AS CIDADES INVISÍVEIS- ITALO CALVINO ( A ESCRITA É A VIDA )

Marco Polo está na corte de Kublai Khan. Toda a noite ele lhe descreve as cidades que fazem parte de seu infindável império. Mas também poderia ser:
Kublai Kahn percebe que ser dono de um império é lutar pelo impossível. Pois assim que um império é construído ele começa a fenecer. O Kahn pede que Polo preserve esse império, pela linguagem. E também pode ser que:
Marco Polo morre de saudades da sua cidade. E a descreve, todas as noites. Assim, cada uma das cidades seria uma visão da mesma cidade, lugar que é infindável, pois cresce na memória a medida que é desvendado.  Mas além disso:
Kublai Kahn joga xadrez com Marco Polo e em cada casa do tabuleiro há uma cidade. E onde eles jogam, no palácio que fica na capital do mundo, há a pista de que esse palácio também está dentro de um tabuleiro. Ou talvez quem sabe:
Os dois sejam apenas uma palavra dita por alguém que fala sobre cidades invisíveis. Narrativas ditas dentro de outra narração. Mas:
Italo Calvino sabe que no pós-moderno, movimento dentro do qual ele é dos poucos que faz sentido, o texto se esgota dentro de si-mesmo. Não há mais enredo ( mas há ), não há mais personagens ( mas há ), o que importa é o ato de se escrever, a escrita é o foco e a vida do texto. A linha e a página são os personagens. Então, Marco fala de cidades que na verdade são palavras sobre cidades, assim como Kublai Khan é imperador de um reino de palavras.
Uma chave: Não sabemos se uma cidade existe. Tokyo existe para mim em palavras que dizem Tokyo. E mesmo que lá eu tivesse ido, tudo o que eu olhasse estaria envolto naquilo que foi me dito: Tokyo. O mundo são palavras, e mais, nós somos palavras, sem elas não existimos.
Linguistica. Italo Calvino sabia tudo sobre linguistica. Aliás, todo intelectual pós-1945 só pode ser considerado se souber linguistica. Porque nós somos uma lingua. Fala.
Então todas as cidades, tão diferentes, não são diferentes, são a mesma. Pontos de significados, narração de alguém que conta ( Marco ) para alguém que ouve ( o Khan ).
Mas será que Marco Polo não é um pensamento na mente entediada do imperador? E o Khan seria um sonho na noite de Marco Polo?
Todas as cidades têm nome de mulher. Seriam as cidades simbolos de mulheres na vida de quem delas fala? Seriam mulheres que são ruas, lixo, córregos, cemitérios, vales e colunas? Ou tudo se resume a cidades vistas no sonho de quem nada viu?
As cidades invisíveis são mais reais que as cidades habitadas. Na verdade as cidades invisíveis são melhor habitadas, porque são levadas com quem as narra. Existem onde alguém as ouve e onde alguém as faz presentes. Ou não?
Italo Calvino dizia que para a literatura sobreviver como "espécie", era preciso que ela fosse "leve, exata, rápida e múltipla". As cidades descritas por Marco Polo são assim. Novelos que se enrolam a novelos ou sedas que flutuam se misturando a sedas. Luz.
Italo Calvino é para sempre.

Criterion Trailer 57: Charade



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CARY GRANT/ AUDREY/ MUPPETS/ DOUGLAS SIRK/ GEORGE CLOONEY/ NICHOLAS RAY/ JOHN WAYNE/ GINA, ELKE, VIRNA, MONICA VITTI

   SANGUE DE REBELDE de Douglas Sirk com Rock Hudson
O alemão Sirk ( ídolo de Fassbinder e Almodovar ), tornou-se cult graças a série de dramas que fez nos anos 50 na Universal. São filmes exagerados, barrocos, que não temem a emoção e os fatos esquisitos da vida. Mas ao mesmo tempo, Sirk fez outros tipos de filmes, inclusive western. Este é uma aventura que fala da Irlanda revolucionária. Hudson, que sempre foi bom ator com Sirk, é um impulsivo irlandês procurado pela lei. O filme, todo feito em locações reais é muito bom. Tem suspense, tem ação, e tem muito clima. Fica a certeza de que Sirk foi um belo diretor em mais de um tipo de filme. Nota 7.
   A VIDA ÍNTIMA DE UMA MULHER de Nicholas Ray com Maureen O'Hara, Gloria Grahame e Melvyn Douglas
Ray, chamado de gênio por Godard e Truffaut, é dos mais irregulares dos diretores. Se é capaz de fazer filmes belos como Rebel Without a Cause ou Johnny Guitar, é capaz de coisas mal realizadas e capengas como este muito desagradável drama policial. Maureen tenta matar Gloria e assume a culpa. Porque, se tudo leva a crer que não foi ela? Gloria Grahame, que não era bonita, foi uma das mais sexys atrizes da América. Há algo nela de perverso, de doido, de proibido. Na vida real ela foi casada com Ray, que era homossexual, e se envolveu em escândalos sexuais na época. Este filme é quase salvo da vulgaridade por sua presença magnética. Mas na verdade é mais um irritante e mal feito filme do superestimado Ray. 3.
   TUDO PELO PODER de George Clooney com Paul Giamati
Clooney surgiu no meio dos anos 90 como a promessa de um novo Cary Grant. Ele tinha o dom de ser engraçado e de misturar esse humor a um charme raro. Mas a partir do século XXI ele começou a querer ser "mais", e se embrenhou na senda dos filmes "relevantes e úteis". Bem, um filme como este pode ser útil, e é bem dirigido. Mas não consigo me envolver com personagens que não me interessam e situações que nunca me comovem. Recordo de "Bom dia Boa Sorte" ( era esse o nome? ), uma das coisas mais insuportáveis que já vi. Há um tipo de filme feito hoje que bebe tudo no estilo que Lumet e Pakula faziam nos anos 70 ( década em que Clooney foi teen ), filmes tipo "Todos Os Homens do Presidente" ou " Network". Não consigo gostar. ( Apesar de Network ser uma obra-prima ). Nota 4.
   CHARADA de Stanley Donen com Audrey Hepburn, Cary Grant, Walter Mathau, James Coburn
Da primeira a última cena, este é um filme delicioso. A música de Henry Mancini começa nos coloridos letreiros de abertura, vem uma cena nos Alpes nevados e Audrey recebe um close em seu Givenchy. Cary entra em cena, rabugento e então... pronto! O filme te leva numa trama hitchcockiana sobre marido morto e montes de bandidos atrás da viúva. Todo mundo mente neste filme, e as cenas sempre misturam policial com humor, romance e suspense. Donen começou dirigindo musicais ( Cantando na Chuva, Sete Noivas Para Sete Irmãos ), e depois se tornou um grande diretor de filmes sofisticados. Ele faz com que as cenas dancem. Cary se achava velho demais para o papel ( era 25 anos mais velho que Audrey ) e isso acabou por dar um charme extra ao filme, acompanhamos Audrey tentando o seduzir e ele sempre a lembrando de sua idade e resistindo. Com a excessão de My Fair Lady, é este o filme onde ela está mais bonita e há ainda uma galeria de vilões espetaculares, todos originais e muito bem feitos por atores que se tornariam estrelas em seguida. Neste século ele foi refilmado por Johnathan Demme com Mark Wahlberg fazendo Cary e Thandie Newton em lugar de Audrey.... preciso dizer no que deu? Com suas cenas de uma Paris noturna, seus improvisos entre Audrey e Cary, seu clima chic, é um dos meus mais queridos filmes. Desde que o descobri, na verdade foi meu irmão que o viu antes e me deu a dica, é um caso de amor eterno e bem resolvido que tenho: entre eu e um filme chamado Charada. Nota Dez, claro.
   WONDER BAR de Lloyd Bacon com Al Jolson e Dolores del Rio
Ah....os anos 30....eis aqui um tipico produto pop da época: tolo, futil, vazio....e tingido de ouro. Esquecemos que a década de 30  é a década da grande depressão, então Hollywood fazia filmes para tentar curar essa deprê. E valia tudo. Aqui temos piadas, dança, sexo, música, romance e uma exagerada e encantadora breguice. Busby Bekerley coreografou dois números que são uma viagem de LSD cafona. No primeiro moças desfilam em formações geométricas, tudo com muito prata e plumas; no outro ( bastante racista ), um negro pobre morre e vai pro céu. Mas é um céu de negros, onde eles comem costelas de porco, jogam dados e dançam. Bem...nos EUA de hoje essa cena é censurada, mas não vi nada que Mussum ou Macalé não fizessem. Se a gente deixar isso pra lá, é um filme doido, ebuliente, mal interpretado, picareta e absolutamente delicioso!!!! Todo passado numa boate francesa, tem gigolôs, dançarinas, maridos em férias e etc etc etc. Dolores del Rio foi uma das piores atrizes do mundo, e ao mesmo tempo é uma das mais bonitas e sensuais já filmadas. Suas cenas com Ricardo Cortez ( adoro esses nomes ) são aulas de sexy camp. Relaxe e se divirta!!!!  Nota.... sem nota.
   IWO JIMA de Allan Dwan com John Wayne
É o filme que deu a primeira indicação de ator para Wayne ( ele só teve duas. A segunda só em 1969, que foi quando venceu. O fato de não ter sido indicado por Rastros de Ódio e Red River demonstra o preconceito de Hollywood com o western ). Aqui ele é um sargento durão, do tipo odioso, que treina jovens soldados para a guerra no Pacifico. Em seu gênero ele é OK. As cenas de guerra são muito boas, cheias de imagens da guerra real ( documentários misturados a cenas de ficção ). É sempre bom ver John Wayne nesse tipo de papel, o durão seco que tem um lado humano escondido. É neste filme que se filma a lenda: os soldados erguendo a bandeira em Iwo Jima, tema de filme de Clint. Nota 6.
   MAN OF THE WORLD de Richard Wallace com William Powell e Carole Lombard
Os filmes sonoros em seu começo foram combatidos por causa de filmes como este. Enquanto os filmes silenciosos tinham uma fluidez mágica ( como demonstra Aurora ), os falados, em seu primeiro ano, eram parados, sem movimento, congelados. Isso se devia ao problema de captar o som e ao equipamento pesado. Peter Bogdanovich diz que o som veio no pior momento, pois em 1929 o filme silencioso atingia seu auge. Powell é aqui um golpista que se apaixona por vitima de seu golpe. O filme é amargo, de final nada feliz. Mas está longe de ser bom, vale só como curiosidade. Nota 2.
   AS BONECAS de Dino Risi, Luigi Comencini, Franco Rossi e Mauro Bolginini com Virna Lisi, Elke Sommer, Monica Vitti e Gina Lollobrigida
No auge de seu cinema ( anos 40/70 ), a Itália, além de seus mestres tinha uma segunda divisão de diretores muito famosos. Gente como Lattuada, Campanille, Zampa, Petri e Indovina. E principalmente esses quatro citados acima. Essa segunda divisão está hoje esquecida, então se tem a impressão de que o cinema da época era só Fellini, Antonioni, Monicelli, De Sica, Pasolini, Visconti, Zurlini e Rosselini. Moda na época era a de fazer filme em episódios. Voce contava quatro histórias, totalmente independentes, com direção e elenco diferentes. Neste tipico exemplo do estilo, temos quatro histórias cujo tema seria o sexo. E quatro simbolos sexuais são escalados. O filme é, visto hoje, ingênuo. Pior, pouco engraçado. Na época já era um filme tolo, e o tempo o piorou. Virna Lisi foi das primeiras atrizes que idolatrei. Eu a achava a coisa mais linda do mundo. Vista agora mantenho a opinião, ela era belíssima! Elke Sommer, que era outra que eu adorava, já nem tanto. E Gina, a mais famosa dentre elas, continua o que sempre foi, bella!!! Mas é Monica Vitti que surpreende. Seu segmento é o melhor ( tem um ator que imita Brando que é impagável ) e ela é a mais bonita. Antonioni, que foi casado com ela, sempre conseguiu a deixar mais feia em seus filmes. Aqui, longe de seu marido, vemos o rosto de Monica como eu o recordava: magnificamente belo, uma perfeição de cabelos, olhos e boca. O rosto dela é o melhor desse filme tão chato. Nota 2.
   MUPPETS, O FILME de James Frawley
Atenção!!!! Não é o novo filme! Este é o primeiro, de 1979. Tem participações de Steve Martin, Orson Welles, Bob Hope, James Coburn, Telly Savallas, Mel Brooks e Richard Pryor. Caco é achado no pântano por um caçador de talentos. Vai para Hollywood, e no caminho vai se unindo a todo o grupo Muppet. As canções, excelentes e emocionantes, são de Paul Willians, uma delas ganhou o Oscar. Jim Henson criou a coisa toda e Frank Oz, hoje um grande diretor de comédias, o ajudou. O filme é deliciosamente on the road, Caco indo estrada afora até Hollywood.
Jim Henson foi um gênio. Revi o filme ontem. Ele pegava um pedaço de pano verde, enfiava a mão dentro, e só com isso conseguia nos fazer crer que aquilo era vivo, tinha personalidade e pensava. Na simplicidade em que ele trabalhava, os olhos dos bonecos não se movem, uma das mãos é paralisada, e mesmo desse jeito a gente embarca naquilo. Isso é genialidade! É o cara que pega um pedaço de madeira e um pincel e cria vida. Um cara que pega papel e pena e faz um universo. E é Henson, que pegava alguns metros de tecido e fazia um ser vivo.  Cresci vendo Vila Sésamo. Recordo em detalhes a estréia no Brasil. Eu voltei correndo da escola pra não perder e quando terminou fiquei contando as horas pra ver o próximo. Quando Muppet Show estreiou aqui, cinco anos depois, eu já me achava grande demais para Henson ( tinha 13 ). Minha paixão por ele é via Vila Sésamo. Os Muppets vim a descobrir já adulto, em vhs e em reprises na TV. Jim Henson sabia tudo sobre crianças, sobre o que elas pensam, querem e sentem. Sua morte fez com que o mundo ficasse muito mais pobre.
Todos aparecem aqui. Gonzo é meu favorito e até os dois velhos estão presentes. Emocione-se!

MANDRAKE, LEE FALK E PHIL DAVIS ( A DÉCADA DA FANTASIA )

   Mandrake licença pra mim!!!! Três marcas de cigarro!!!! E eu, levando socos no ombro, balbuciava: Continental.... Minister....e....Arizona!!!! Bem... voce não tá entendendo nada, mas essa foi uma brincadeira que todo garoto da minha idade brincava. Voce via um cara na rua e gritava: -Mandrake!!!! Esse grito obrigava a que o garoto ficasse paralisado. Então voce chegava do lado dele e começava a socar seu ombro, perguntando ao mesmo tempo o nome de 3 jogadores de futebol ou 3 capitais, tinha de ser 3. Enquanto o cara não respondesse voce não parava de bater e a vitima não podia se mover. Após a resposta ele podia atacar e gritar antes de voce: - Mandrake!!! Mas, se voce tivesse se lembrado de dizer "Licença", pronto, voce estava imunizado por 24 horas. O legal é que em toda rua, quando se ouvia um grito de Mandrake, logo apareciam uns 10 moleques gritando também. Quando isso deixou de ser popular não sei, acho que foi no tempo em que a molecada saiu da rua e foi ver Xuxa na TV.
   Tudo isso pra contar que acabo de reler meu livro de luxo com duas histórias clássicas de Mandrake. Pra quem desconhece, Mandrake foi durante trinta anos um dos dois ou três personagens de HQ mais populares globalmente. Aqui no Brasil ele era O mais popular, batia o Fantasma, SuperHomem, Batman e Homem Aranha. Era editado pela RGE, que depois foi acoplada pela Globo. Engraçado mas tenho a impressão que ele foi sumindo junto com a brincadeira....
   Mandrake é um mágico, de cartola e fraque, que usa o poder da hipnose para vencer seus inimigos. Ao seu lado vai um tipo de guarda-costas, Lothar, um negro africano de dois metros ( é tempo de politicamente muito incorreto ). Narda é o nome de sua namorada, uma bela nobre da Europa Oriental. Mandrake é um retrato do mundo dos anos 30, tem a cara de William Powell ou Erroll Flynn e vive num planeta que ainda crê em continentes perdidos, reinos misteriosos e principes bandidos. Os desenhos de Davis são suntuosos, sexys, lembram muito Alex Raymond. Lee Falk, que também deu vida ao Fantasma, criou Mandrake. Um dos mais vaidosos artistas da história das HQ, Falk sabia dar às suas histórias um clima de filme de aventuras, de seriado de cinema. Delicia!
   A década de 30 foi a década das grandes fantasias. Flash Gordon, Tarzan, filmes de legião estrangeira, de uma India cheia de magos, de Amazônia com reinos perdidos. Wells, Orwell e marcianos. Depois viriam os campos de concentração e o mundo nunca mais poderia ser ingênuo assim. A fantasia desde então viria sempre com cinismo.
  Porque o bom de Mandrake, e dos HQ da época, é que ninguém tenta ser artista, filósofo ou muito louco. É simples diversão de teens, só isso, lixo bem feito. Lixo que na verdade se revelou ouro.
  Nesse livro que tenho há uma carta de Marcello Mastroianni. Uma carta que Marcello escreveu para Fellini. Nela ele implora para que Federico produza e dirija um filme de Mandrake. Com ele como o mágico e Claudia Cardinale como Narda. Lothar pode ser Oliver Reed pintado. Marcello recorda seus tempos de leitor de Mandrake, e diz que sonhava em ser esse herói tão elegante. Melhor que tudo, o livro tem fotos de Marcello vestido de Mandrake em ação, e uma de Claudia como Narda. Que pena Fellini não ter feito!

YOLANDA, LIVRO DE ANTONIO BIVAR ( UMA VIDA EM ROSA )

   Uma sensação muito estranha dá esse livro em seu final. Yolanda Penteado vem a morrer em 1983. Nos últimos três anos, tendo se desfeito da maior parte de seus bens, Yolanda percebera que no "Novo Mundo" americano, o minimo era a lei, voltando, em seus últimos três anos ela morava em apartamento "simplesinho", atrás do Shopping Iguatemi. Vem daí a estranheza. Yolanda, nascida em 1903, milionária desde o berço, de familia antiga como o Brasil, privara da amizade de Santos Dumont, frequentara festas de gente como Picasso e o futuro rei da Inglaterra, conversara com parentes de Proust e se hospedara em palácios de marajás da India, e terminara afinal, por livre escolha, naquele prédio, detrás do Iguatemi, tão pouco mítico, tão corriqueiro, banal.  Prédio que eu frequentei exatamente no tempo em que ela morreu. Nada simboliza melhor a história do século XX.
  Tudo começa em Leme, numa fazenda chamada Empyreo. Um paraíso de flores, de rios e de cavalos. Yolanda tem primeira infância de molecona, mas ao mesmo tempo com aulas de francês, ballet, piano, grego, latim e pintura. Na capital de São Paulo, lugar de uma elite otimista, intocável, onde todos se conhecem e todos são meio que parentes de todos, ela mora  num casarão, na Vila Buarque. Aliás, morar bem era morar lá, ou na avenida Higienópolis, novo rico ( libaneses e italianos ) morava na Paulista. Pois bem, ela estuda em colégio francês e tem uma vida de viagens a Europa ( longas, de navio ) e festas dignas das mil e uma noites. 
  O livro, escrito no estilo fluido, efervescente, risonho de Bivar, dos poucos brasileiros que sabe e escreve wit, tem em toda essa primeira parte um ar de sonho cor de rosa, de delirio de vida feliz ao extremo. Yolanda se casa e cresce como dondoca, conhece a loucura da década de 20, e não sente nada da crise da década de 30. O que ela sabe é como se vestir, o que falar e onde ir. Das melhores coisas descrita, a sua amizade com Santos Dumont é uma das mais deliciosas. Pouca gente sabe, mas em Paris, entre 1900/1925 ninguém era mais famoso que o "Santôs". Duques quando o viam na rua a cruzavam para vir cumprimentá-lo. Para Yolanda, um tipo de sobrinha dele, foi Dumont o homem mais elegante que ela já conheceu. E se mostra verdadeira a história de que foi ele quem criou o relógio de pulso. Sem poder mexer no bolso para ver as horas no ar, ele pede a Cartier que lhe faça um relógio de pulso. 
   Aliás faço eu aqui uma obsevação que não está no livro. Na rivalidade entre Dumont e os irmãos Wright mora a diferença entre a Europa belle- epoque e a América do jazz....
  Figura central no livro é Assis Chateaubriand. Só por suas histórias já vale a leitura. Pra quem não sabe, foi ele, que através de pressão sobre a "burguesada", fez o MASP. Ele fazia com que cada rico comprasse uma obra e a doasse ao museu ( que nem existia ainda ). Na Europa arruinada pós-guerra, ele e Bardi fizeram a rapa. A cada quadro que um industrial brasileiro comprava, era dada uma festa de inauguração da obra. Quem as organizava era Yolanda. Pois foi ela o grande amor ( platônico? ), da vida desse louco-genial-folclórico herói. Hoje, quando se olha o acervo do MASP, a mão e a esperteza de Chatô está ali. Mas se ele fez o MASP, Yolanda, agora já com seu segundo marido, Francisco Matarazzo, fez o MAM e fundou a bienal de São Paulo. 
  A bienal é um capitulo soberbo. Uma bienal para rivalizar com a de Veneza num fim de mundo como São Paulo!!! E foi feita. Yolanda viajando por todo o mundo, convencendo artistas, embaixadores, museus. A primeira ainda no prédio dos jornais de Chatô, mas a segunda já no Ibirapuera. Pra se ter uma ideia: a Guernica de Picasso, que jamais havia saido de New York, veio. Uma sala inteira com dezenas dos melhores Van Goghs. E mais Matisse, Paul Klee, Chagall, Kandinski e Mondrian. 
  Nessa mesma época, o marido de Yolanda, Francisco Matarazzo, funda a Vera Cruz. A tentativa de se fazer cinema industrial no Brasil. Tudo errado, um fiasco digno de louvor. Trazem da Europa grandes técnicos, constroem belos estúdios, mas se esquecem do principal: bons roteiristas e bons diretores. Como ele e Yolanda já haviam ajudado a fundar o TBC, usam atores e diretores de teatro. E dá no que dá, filmes chatos, muito chatos. A aventura dura cinco anos e 18 filmes. O engraçado é que muitas das atrizes eram filhas de tradicionais familias paulistas. 
  Mas tudo bem, Yolanda fica meses na India onde visita marajás. Conhece a vida mais luxuosa já vista, participa de caçadas a tigres, sente emoções novas, insuspeitas.
  A mais engraçada história é sobre uma festa para atores de Hollywood, que vieram participar do primeiro festival de cinema de SP. Um trem, fretado, pega-os na estação da Luz,( foi aí que se cunhou a expressão "Trem da Alegria" ), e os leva até Campinas. Champagne e mordomias a bordo. De Campinas vão até a fazenda de charretes individuais. E na sede a festa. Dificil a descrever aqui, só lendo o livro. Mas se não contei conto agora: a sede da fazenda era famosa por suas festas glamurosas. Nobres europeus, milionários e herdeiros de todo o mundo, industriais americanos, todos iam lá para se impressionar com as festas de Yolanda. Nesta, Erroll Flynn se jogou na piscina assim que chegou, e como estava de terno de linho branco...
  E a estranheza volta. Nos seus últimos tempos, a diversão no tal prédio detrás do Iguatemi, era ver a novela da Globo com seus convidados...E não era questão só de idade, é que a vida  tornara-se mais realista, menos sonhadora. Fazer outro MASP, fundar outra Bienal, comprar todo um acervo para o MAM ( hoje é o MAC )... como? Quem?
  Ela avisara, no meio da década de 60, às suas amigas, que no futuro não se dariam mais festas toda noite, não haveriam mais empregados domésticos fiéis, não se poderia mais conversar com um embaixador ou conde diretamente. Não existiriam mais praias secretas e os muito ricos se sentiriam muito culpados.  O mundo iria se americanizar, as coisas seriam "mínimas", informais, sem grandes requintes. Yolanda soube se adaptar no fim da vida. Percebeu o que havia de bom, de democrático nos novos tempos. Mas que dá uma esquisitice ler esse final, ah isso dá!
  É livro pra se ler numa levada só. E parabéms ao Bivar, escriba que acompanho a tanto tempo, mestre do chic e do moderno, rei da escrita fosforescente. O livro é um luxo.
   

SINATRA'S SWINGIN' SESSION !!!

   Um amigo pediu pra que eu lhe indicasse qual o melhor album de Sinatra. Eu respondo que das coisas que ele gravou entre 52 e 62 tudo tem o mesmo nível alto ( e são mais de vinte e cinco discos ). A dica que dou é que ele gravava um disco down e um up, um para a dor de corno e outro para as alegrias do amor. Indico este. aleatoriamente, por ser o primeiro que comprei ( em 1996, no sebo do Eric, vinyl pesadão, da época, capa de cartão grosso, um luxo ). Na revista da livraria Cultura deste mês, a Heloisa Seixas indica um outro. Como disse, dessa fase de Frank, a única em que ele fez as coisas pra valer, tudo é de ouro e de pérolas.
   Este é dos alegres, e é engraçado o que vou dizer, não sei se é lenda, mas dizem que ele gravava os discos imaginando um encontro. Tipo assim: a primeira faixa era pra acompanhar a chegada de voce e ela ao seu apartamento, na segunda é oferecida uma bebida, na terceira voces conversam bebendo, uma comidinha depois, mais um drink, voce a tira para dançar e ela tira os sapatos para não cair. Lá pela faixa sete voce a beija, na oito as mãos avançam e no fim do disco, quando a agulha fica chiando, bem.... voce sabe.... ( Recordo do último filme que Mel Gibson fez, quero dizer, o último assistível, acho que o nome era "DO QUE AS MULHERES GOSTAM", em que ele, garanhão, se arrumava pra sair sempre ao som de Frank ).
   Arranjos de Nelson Riddle, o que significa metais muito fortes, escorreitos, incisivos e uma bateria swingada que é a coisa mais coruscante já gravada. Sabe como é: tchim tchim tchim tác!!!! Boooom!!!! E a voz de Frank, extra, hiper, cool...ou como ele dizia, it's a gas! Dá pra "ver" ele estalando os dedos enquanto canta. O homem sabia tudo de beat, de ritmo com modulação. A voz nunca se esforça, canta fácil, sem suor, lágrima ou sangue, com muita bossa, charme e savoir faire.
   When you're smiling, a primeira já dá o recado: relaxe e caia na festa, a vida é breve e a noite é bela. Blue Moon é a boa-vinda para a menina que voce está de olho e S'Posin bota tudo nos eixos. Sinatra a essa altura estaria servindo um martini ou um Jack, eu prefiro gim tônica, mas dá na mesma, é tudo jazz.
   O disco fecha ( pós sexo? antes da cama? ), com duas jóias de Cole Porter. I Concentrate in you e depois You do Something to Me... bem... não vou dizer o que penso delas, pra que? Elas tão salvas, jamais vão deixar de ser ouvidas. Mas eu vou deixar um PS aqui:
   Demorou muito pra eu voltar a esse cool world de Frank e Fred e Cole. Isso porque dentro dos seis anos de namoro sério que tive, os dois paradisíacos primeiros anos tiveram como trilha sonora exatamente e tão somente esses ícones da elegãncia. Eu me vestia pra pegar a menina ao som de Frank e dirigia pra casa dela ouvindo Fred. Então posso contar com sabedoria, elas podem odiar Frank, podem achar ele machista, antigo, feio.... mas não sabem que muito de seus sonhos, prazeres e delirios foram arquitetados ao som de Frank e seus amigos.
   Quer mais ou chega?

AVALON

   Acredito que as coisas acontecem na hora em que amadurecem. E também, se não for assim eu jamais vou ter como saber. A gente ama na hora em que tudo nos preparou para isso. E eu descobri Avalon, a canção, no momento exato. Era uma tarde fria, cinza, e eu estava sózinho no quarto vendo um programa de video-clips. Em meio ao abundante lixo da época ( Journey, Reo Speedwagon, Styx, Pat Benatar ), eis que algo alienígena aparece: Roxy Music com Avalon.
   Eu conhecia o Roxy de outros carnavais. Até então, eles eram pra mim uma banda esquisita, indefinida, que me lembrava meus 15 anos de idade. Nem sabia deles, o que eu ouvia muito naquele tempo era Prince, Bowie e Reggae. Mas desde o momento em que escutei aqueles acordes suaves de teclado, uma percussão latina meio sei lá o que, e o vocal que falava de bossa-nova e de samba... as coisas se encaixaram. A melodia e a letra falavam o que eu vivia naquele instante exato. Acabara de entrar na faculdade e estava fascinado pelas pessoas, pelas festas e começando a me apaixonar. E paixão pra mim sempre foi assim: eu sinto a paixão sem saber direito qual a menina que a despertou. Depois eu descubro...
   O segredo da fase final do Roxy ( e dos melhores momentos de Bryan solo ), é o fato de ser uma das poucas coisas do pop que casa bem com o universo adulto de Sinatra e Gershwin. O som nada tem a ver, Bryan seria um garoto pouco viril ao lado de Frank, mas há um clima de paixão sábia, de sofisticação em arranjos e timbres, um cuidado elegante e principalmente, uma tentativa de sair dos excessos emocionais do rocknroll. Avalon é essa tentativa de cool, de elegancia e de maturidade.
   E sempre recordo de uma amiga me dizendo ao ver Bryan: "Que estranho... esse cara não parece ser do rock... ele parece...um homem."
   Avalon é sobre tudo isso.

Bryan Ferry - Avalon - Live in Paris



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BLAISE CENDRARS, IMPRESSÓES SOBRE SÃO PAULO EM 1922 ( O QUE MUDOU? )

   Em 1922 o Brasil tinha grandes intelectuais. Gente que transformou o nada absoluto das mentes tupis em alguma coisa, uma promessa. Paulo Prado foi um dos maiores, e em 22 foi à França. De lá trouxe o muito moderno, muito aventureiro e muito exótico Blaise Cendrars.
   No momento estou a ler a bio que Antonio Bivar ( um autor muuuito bom ), escreveu sobre Yolanda Penteado. O livro é tão delicioso que é dificil parar de ler. Transcrevo aqui o que Blaise escreveu sobre a São Paulo de então...
   "Estou verdadeiramente espantado! Este país é espetacular demais! A terra é vermelha, o céu é azul e o calor é dantesco! Aqui não há tradição, não há preconceito. É o país das loucuras! Os politicos são totalmente corruptos, a economia não funciona... A arquitetura é ridicula e grotesca... São Paulo constrói mil casas por dia. Adoro viajar por este país...Minha curiosidade não tem limites. Os mestiços indolentes nas estações. Buzinas, buzinas, buzinas azucrinando os ouvidos! Aqui não se respeita o silêncio. E o café? Alguns homens vieram e tacaram fogo na mata. Não deixaram uma árvore de pé. Exterminaram os peixes. Expulsaram os índios e plantaram milhões de mudas de café. E pra que tanto café? Será que a humanidade não pode prescindir dessa toxina? Mas é essa toxina que tráz da Europa o luxo e o progresso! ( ... ) Na fazenda de Paulo Prado era meio-dia. Nada se mexia, nenhum ruído, nenhum pássaro. Tudo devastado pelo café. Ninguém imagina um país assim..."
   Se trocarmos o café pela cana de açucar ou pelos bois de corte, temos um retrato exato do Brasil de 2012. Em 90 anos perdemos a beleza art-nouveau de SP e a urbanidade chic do Rio. E o que ganhamos?

O FLÂNEUR, UM PASSEIO POR PARIS COM EDMUND WHITE

   Eu sou um flâneur. O que é isso? É o cara que anda pela cidade sem objetivo nenhum a não ser o de ver. Ele não caminha para perder peso ou para encontrar alguma coisa ou alguém. Não deseja descobrir coisa alguma, não tem rumo estabelecido. Ele simplesmente vai andando... uma rua leva a outra rua que leva a outra rua.... É uma arte refinada. Não são todos que conseguem fazer isso. Deixar que os pés o levem, a curiosidade de ver o que existe além e depois desse além, o que há depois e depois e mais depois.... levado não só pelo desejo dos pés, mas também pela vontade de ver. O flâneur é um estudante, ele educa seu olhar.
  Paris é a melhor cidade do mundo para essa arte. Porque ela é interessante como Roma, mas é tão grande como Londres. Ela é plana, cheia de recantos, de segredos, de lendas. Edmund White não fica nos cansando com descrições. Ele anda e fala do que pensa em cada rua que passa. Cada capítulo é um aspecto de seu caminho, e que bom!, o livro é solto e vago, interessante e vivo, como flaneur!
  Começa falando da atração que Paris exercia sobre artistas de todo o mundo e depois constata que hoje New York ou Tokyo são centros muito mais relevantes. Paris se debate entre a dúvida: ou se torna uma Roma, um tipo de museu a céu aberto, ou admite sua cor mestiça e se faz a capital multicultural do século XXI. White conta histórias enquanto anda ( apesar de o bom flâneur não falar. O flâneur é um solitário ). Fala dos exsitencialistas, de Colette e de Baudelaire. Do jazz. De Sidney Bechet, o sax negro americano, que em Paris encontrou a fama, a fortuna e onde foi aceito. Josephine Baker e o sexo. O livro fala das diferenças entre o racismo americano e o francês, a raiz puritana da América e o catolicismo light francês. Ele fala então dos escritores negros que foram viver lá: Baldwin. Himes e Wright.
  Edmund White penetra então nos bairros árabes, no antigo gueto judeu. Relembra a questão da Argélia, a cultura que os árabes têm trazido e nos emociona ao falar da saga de famílias judaicas. Algumas extintas durante a segunda-guerra.
  Ele enumera a quantidade absurda de museus que há em Paris. Vai em dois, um deles é uma antiga mansão, decorada como casa do século XVIII, e o outro é um museu dedicado ao pintor Gustave Moreau. A descrição ferina que ele faz das "obras" desse pintor é talvez o melhor capítulo do livro.
  White é um escritor gay ( ele se apresenta assim ), e então ele nos exibe o mundo gay de Paris. E mais uma vez expõe as diferenças entre a abordagem americana e francesa ao tema. Para nós há a única referencia ao Brasil: uma das coisas mais divertidas em Paris é apreciar os glamurosos travestis brasileiros...weeelllll....
   No final Edmund White visita os realistas e monarquistas, fala das histórias desses herdeiros, de suas particularidades. Com humor, com penetração, com amor também.
   Edmund White viveu 15 anos em Paris. Hoje ele mora na América, que é onde nasceu. Ele fala de Proust, de Degas e de Genet como se os tivesse conhecido. Ele nunca pinta a cidade como um paraíso na Terra, mas consegue colocar diante de nossos olhos aquilo que ela tem de mais original, sua humanidade, sua complexa mistura de passado e futuro, de requinte e individualismo puro. Uma cidade toda planejada, racional, e ao mesmo tempo uma rede de sombras, de memórias e de recantos esquecidos. É um livro que dá o prazer de se flanar, de se olhar e olhar... sem rumo, sem objetivo e sem hora. Leia que voce vai gostar.

ESBOÇO PARA UM AUTO-RETRATO, LIVRO DE BERNARD BERENSON

   Bernard Berenson viveu 94 anos. Nasceu no apogeu da Europa do século XIX ( 1865 ), e faleceu só em 1959. Judeu da Lituânia, filho de uma das famílias mais ricas do mundo, Berenson cresceu nos EUA, em Boston, estudou história da arte em Harvard e foi viver na Itália. Casou-se e se tornou o mais famoso esteta de seu tempo. Quando algum bilionário precisava saber se aquele quadro era mesmo de Ticiano, ou se não seria uma obra de algum discípulo, era a Berenson que ele consultava. Foi o árbitro do gosto, e mais que isso, foi o responsável por uma nova abordagem às obras de arte, os desenhos passaram a ser analisados por seu valor em si, e não como ensaios de obras maiores. Este livro, com introdução de Daniel Piza, é uma não-biografia escrita pelo próprio biografado.
   Berenson discorre sobre seus pensamentos. Sobre sua vida material, pouco fala. Mas ao ler essa agradável obra, sentimos conhecer verdadeiramente quem ele é. Ao contrário de certas bios, que encavalam datas e casos e nada mostram de motivações e sentimentos, aqui nada há de histórico, de corrido, de fofoca; mas o espirito de Bernard Berenson é exposto. Escrito durante os quatro anos da segunda-guerra, na Toscana, é o relato de alguém que ama a vida. Alguns pensamentos de Bernard Berenson merecem ser destacados.
   Primeiro o fato de que ele é o autor que mais se aproxima daquilo que senti em minha infância. Ele descreve a sensação de plenitude, do eu ligado a tudo que existe, de se sentir dono do mundo, de que todo o universo é aquilo que eu vejo, de deslumbramento com a vida, com o ato de ser. O livro, em poucas linhas, consegue explicar ( ou seria melhor: demonstrar, já que é inexplicável ), essa sensação de felicidade absoluta. Bernard Berenson diz que sempre que se depara com uma obra-prima tem a recordação viva dessa alegria da infância. Não conheço melhor definição de arte superior: o reencontro consigo mesmo, a valorização da experiência de viver.
   Berenson se debate muito com duas coisas que sempre o perturbaram: a preguiça de escrever ( apesar de escrever todos os dias, ele sente que desperdiçou seu tempo, que escreveu pouco ) e a impossibilidade de se auto-conhecer. É impossível saber quem somos. Mais, é impossível que alguém nos conheça. O eu interior, que é imutável, que é idêntico ao eu dos seis anos de idade, esse eu é incomunicável. Sempre nos surpreendemos com o modo como os outros nos vêem. Sempre nos assustamos ao nos ver no espelho.
   É claro que ele faz críticas ao mundo moderno, e uma delas é surpreendentemente premonitória. Ele diz que há um excesso de "fazeres" no mundo. As pessoas fazem coisas demais e não sobra tempo para a fruição. E o mais importante, as pessoas se entopem de informação e não conseguem se livrar de toda essa massa de coisas... precisam vomitar palavras, imagens, sons, se livrar, eliminar tanto material supérfluo. Não conseguem. Não existe um anus mental.
   A outra crítica é sobre a morte da arte da conversa. Nosso tempo valoriza o homem de ação, o homem que faz muito, que age por impulso. Esquecemos que tudo o que realmente constrói é fruto de diálogo, de discussão, de conversa. Jesus, Buda, Maomé, Confúcio falaram muito e quase nada fizeram. Os grandes líderes mundiais estão perdendo o dom de conversar, de falar, de demonstrar. As pessoas não sabem mais o que dizer e sequer lembram do porque se deveria dizer. Animalização do homem.
   Um pensamento de Berenson que transcrevo:
   " Se tivéssemos a certeza de que todo dia nasceria uma nova obra-prima, não teríamos a necessidade de guardar o que foi feito. Sabemos que essas obras não só são raras, como cada vez se tornam mais impossíveis. E é isso que nos diferencia dos animais. A consciência do valor, a consciência da história, de que há um passado e de que haverá um futuro. Um animal sente que o que ele fez hoje será feito igual amanhã. O homem sabe que o que hoje foi feito amanhã não o será."
   Berenson diz ter tido sempre em vista a eternidade. Ele queria ser Goethe. Não foi, mas isso lhe deu uma visão abrangente da vida, o dom de não se prender ao aqui e agora, de perceber o global, o atemporal. Isso lhe ajudou a enfrentar crises, a superar obstáculos, a colocar as coisas em sua perspectiva real. O que é esta guerra em relação a 5000 anos de história? O que é este sucesso em relação a Goethe?
   Bernard Berenson fala sobre alguns amigos famosos ( nada de fofocas ), Edith Wharton, Bernard Shaw e Oscar Wilde. Lamenta a prostituição que Wilde e Shaw cometeram, a roda viva de conferências em que eles tentavam impressionar os jecas.
   Ao terminar de redigir o livro ( que é curto ), Berenson está com 75 anos. É claro que ele não sabe que ainda viverá mais de uma década, então esse final tem um ar de despedida da vida. E é então que o livro atinge seu melhor ponto. Ele sente que as percepções que ele vivera na infãncia retornam com a velhice. Ele volta a ser parte do todo, a apreciar sem julgar, a usufruir sem pensar em motivos e objetivos. A luz volta a lhe envolver, o tempo a ser abstrato, as ações a serem pausadas. Bernard Berenson se reconcilia.
  É um livro sobre um amante das artes que pouco fala de arte. Ele fala de vida.

LIVROS DE VIAGENS, DE PIONEIROS, DE CORAGEM

   Há no mercado editorial do Brasil uma irritante falta de livros de viagens em catálogo. Não estou falando de guias de viagem, falo de relatos sobre viagens, experiências on the road. Frequento muitas livrarias e alguns sebos e posso dizer que no verão, quando me dá vontade de ler esse tipo de livro, preciso recorrer aos meus velhos volumes e reler o que já conheço. O que na verdade é sempre um prazer.
   Talvez o mais heróico de todos que já li seja o relato da expedição de Shackleton ao Polo Sul. A bordo do Endurance, eles ficaram presos um ano e meio no gelo, sem contato com ninguém de fora, e com um detalhe: ninguém morreu, um mérito do capitão e da união da equipe. É uma aventura de arrepiar, eles inclusive tiveram de comer os cães. O livro que tenho tem fotos maravilhosas da viagem, da tripulação, do gelo infindável. O que mais impressiona são as faces daqueles homens: duros, determinados.
   Outro que me marcou é o livro de Thor Heyerdahl, sobre sua viagem a bordo de um tipo de jangada de juncos pelo Pacífico. Esse norueguês realizou essa travessia para provar ser possível os índios da América terem vindo das ilhas dos mares do sul. Então a gente acompanha esse herói em sua navegação solitária, o Pacífico o desafiando e seu barco que mais se parece com uma cabana de folhas.
   Peter Fleming tem um livro maravilhoso em que ele vai a região do Mato-Grosso para tentar encontrar os restos do capitão Fawcett. Fawcett era um inglês que desapareceu na região em fins do século XIX. Fleming parte em sua busca na década de 1920. É uma história absorvente. Voce não consegue largar o livro. Como também não larga o grande livro de Edward Rice sobre Sir Richard Burton ( não é o ator ), um inglês de espirito complexo, estranho, e com uma das vidas mais aventurosas já vividas neste planeta.
   O livro é a bio desse homem, mas como o que Burton mais fez foi viajar, o livro é do gênero viagem e aventura. Burton falava 40 linguas e dialetos, foi cônsul da Inglaterra em Santos ( ele odiou a cidade de Santos. Achou-a feia, suja, com gente estúpida ), e desbravou Oriente e Africa. Foi o primeiro europeu a ver um pigmeu, o primeiro a mapear a região do lago Vitória, o primeiro em dezenas de empreendimentos. Lutou em guerras tribais ( ele tinha uma cicatriz no rosto feita por uma lança que lhe atravessou a cara de bochecha a bochecha ). Quase morreu de inúmeras doenças tropicais e era dado a crises de melancolia. Posso dizer que raras personalidades, de ficção ou não, se comparam a Burton. É um dos melhores livros que li, em que gênero for.
   E não posso esquecer dos livros de Saint-Exupéry, aquele mesmo, do Pequeno Principe, que foi piloto de avião nos anos 30, e tem dois livros maravilhosos, um em que ele descreve a instalação da linha de correio aéreo entre Paris-Rio-Buenos Aires ( cada vôo era um risco de vida ), e outro sobre seus vôos sobre a Africa do Norte, esse livro uma verdadeira obra-prima existencial.
   Mais recentemente conheci os romances de Bruce Chatwin, que infelizmente morreu muito cedo e que escreveu alguns livros soberbos sobre suas viagens solitárias. Há Le Clézio, que às vezes escreve sobre a vida em movimento e Paul Theroux, que está sempre na ansiedade de relatar uma vida na estrada. E é óbvio, os muito bons livros de Amyr Klink livros que devorei nos verões de 91,92.
   Mas eu quero mais. Quero os relatos sobre as ilhas do Hawaii escritos em fins do século XIX, quero as expedições do Polo Norte, quero a conquista do Oriente. Onde os encontrar? Essas sagas sublimes de um planeta ainda por conhecer, de rotas sendo ainda desenhadas, de possibilidades sem fim.
   Nada é melhor para se ler no dolce far niente do verão.