CENA DIONISÍACA ( IN MY TIME OF DYING )

   Já vivi tantos transes dionisíacos ao som desta música que sempre acho que o mais recente será o último. Nunca é. O mais recente foi hoje.
   O primeiro é inesquecível. Junho de 1977. Eu era um pubescente. Havia abandonado a escola e ficava todo o dia só, nas ruas cheias de mato e de sapos. De tarde ouvia discos. E estava meio apaixonado por Jeanne, uma menina com a qual nunca havia falado. Num fim de tarde a música veio e me levou embora- simplesmente. Fechei os olhos e esqueci- fui. Dez minutos que parecem durar até hoje. Meus braços separaram-se de mim e minha voz cantou com uma potência que nunca foi minha. A forte batida estava dentro de mim, desde sempre.
   Após essa primeira vez a vida deixou de ser o que era. Saí da sala, fui pra rua de noite e andei a esmo, sem saber onde ir, mas indo exatamente onde tinha de ir. Pulei a janela e entrei no quarto. Havia um poster de Robert Plant nesse quarto. E de Gerry Lopez...
   O mais dionisíaco solo de guitarra.
   Hoje, tempo que nos rouba tudo de sagrado, vejo esse video. E pasmem, não me decepciono. Mais que isso, sorrio. Mais que isso: entro dentro de lá. E sei: um milagre.
   Tem coisas que são para sempre.

PARA AS MENINAS E MENINOS NASCIDOS EM 1998. E QUE OUVEM O QUE EU AMO.

   Minha última postagem do mês é para aquelas pessoas que eu conheço e que ( tanto tempo ) já fui. Vocês, adolescentes que insistem em ser inocentes, e que andam com suas guitarras em estojos de plástico e vestem camisetas justas, pretas, com Page, Plant, Jones e Bonham. Que ficaram doidos ao ver minha coleção de velhos vinis dos quatro Zeppelins, e que disseram querer ter vivido naquele tempo... Que tempo meus garotos e garotas? Aquele é este tempo para voces!
   Tantas bandas vieram e continuam a vir ao Brasil, que pena que vêem após a festa, após o auge que se acabou. Megas bandas, hiper bandas, quais? Por isso é que voces, moleques, amam uma banda que já era antiga para seus pais.
    ( E vejo no youtube comentários sobre os videos e pesco estes que são engraçados: "É este o motivo de se precisar inventar a máquina do tempo", " Quando vejo John Paul Jones sinto ódio de meus dedos", " Jimi Page faz com que eu desista de tocar guitarra" ). Pois eu conto agora, pra voces moleques de 13 anos, moleques crescidos em meio ao rap e ao funk, minha história de Led Zepp. ( Curta, mas que repercute ).
    Sol, poeira e a lage do meu amigo inesquecível, a gente ouve Tangerine em pose de guru e pensa: isto é pra sempre. Um balde de água na cabeça, outro balde nas meninas, um último pra se beber. Recortar as revistas e colar as fotos na parede do quarto. Pegar duas facas e acompanhar John Bonham batendo as facas na mesa até machucar. Tirar o celofane do disco e ouvir com meu bro, no escuro, com a respiração cortada, coração disparado, e sentir após meia-hora: Yes!!!!!Yes!!!!!! Yes!!!!!!!
   ( Sentir trinta anos depois quase a mesma coisa ao ver QUASE FAMOSOS pela primeira vez. Eu sou um deus grego!!!! )
    Sol, poeira e lage que agora é de voces, alunos. Bebam seus baldes e amem suas meninas e seus meninos. Ao som de Going To California ( quem diria? ).
    A critica foi ruim com o Led nos anos 70. Porque eles pareciam alienados. E era um tempo politico. Se esses criticos soubessem o que viria depois teriam os endeusado. Os anos 90 lhes fizeram justiça. A maior banda da história do rock.
    Última coisa: seus netos vão escutar Kashmir.
    Canto In My Time Of Dying no carro de meu pai em 1977... é hoje. É pra sempre.

Led Zeppelin - In My Time Of Dying (2)



leia e escreva já!

TRISTEZA, MELANCOLIA, ALEGRIA E FELICIDADE, COMENTANDO JABOR

  O Estadão ( que está dando de mil a zero na Folha, ontem teve até uma página sobre 'Billy Budd", dvd de Peter Ustinov já comentado aqui ), publicou ontem uma crônica de Jabor em que ele recorda sua mãe. A vida cotidiana de sua infância/adolescencia, o pai machista. Em certo momento ele fala da tristeza que acompanhava a vida de sua mãe, da tristeza dos móveis da sala. E diferencia a tristeza de então com a "tristeza esquizofrênica" de hoje. Dando a entender que a tristeza de sua mãe era menos violenta, mais gotejante, insistente e suportável. A de hoje seria esquizofrênica por se intrometer na própria alegria, por "parecer" feliz e ser sempre tristonha. Mais, ela vem como vaga de tempestade, destrói e se vai, para retornar mais forte depois.
   Não sou da geração de Jabor. Mas sei do que ele fala. Eu não chamaria a tristeza de agora de esquizo, a chamaria de histérica. É uma tristeza nervosa, que nada observa ou usufrui. Tristeza apressada, urgente, tristeza que se alimenta do não- tempo e do não- espaço. Tristeza que ri. A velha tristeza é a simples e extinta melancolia. A clássica melancolia, que não reconhece tempo. Uma melancolia que olha as coisas com saudade, uma tristeza de suspiros e de impotência. Nada nervosa, antes sonolenta. A melancolia só existe no mundo onde a alegria é rara, mas a felicidade possível. A tristeza histérica é o outro lado da moeda do mundo de alegrias constantes e felicidade distante. Uma, a antiga, é a paz triste ou a paz feliz; a atual simboliza uma triste corrida e a alegre disputa.
   É tudo uma questão de tempo e espaço.
   Existe um site na internet chamado geoportal. Nele, voce vê mapas de 2008 e pode compará-los a mapas fotográficos de 1958 ( em 58 um balão voou sobre SP e fotografou a cidade toda ). O que salta aos olhos é a questão do espaço. A cada quilômetro há espaço livre, sem dono, um horizonte para se esquecer da vida. Vejo que as lembranças que guardo da minha cidade de 1970/1972 não são fantasiosas. Lá estão os limites da cidade sem propriedade, os riachos sinuosos, os horizontes sem fim. E mais, não existem fotos de favelas. Nos limites da metrópole o que existe é mato, árvores, campos de futebol. Um nada que era o tudo verdadeiro. Silêncios.
   As imagens da cidade de hoje é uma retilinea maquinária de concreto. Tudo é linha reta, labirinto, horizontes curtos, espaços tomados e vendidos. Nosso corpos conformam-se a esse espaço dominado, curto, racional. Não há respiro, fuga, esquecimento de onde se está. Mundo onde tudo se contabiliza, se mede.
   Vivemos em espaços catalogados e restritos, nossa alma é reflexo desse ambiente.
    PS: Fato interessante para ser pensado: a internet é um prazer real ou uma necessidade criada artificialmente como foi o cigarro?

SHANE, UM LIVRO INTEIRO SOBRE O FILME DE GEORGE STEVENS ( HEIDEGGER E O WESTERN )

   Paulo Perdigão, programador de filmes da Globo, lançou em 2000 este livro. São 190 páginas analisando cena a cena o monumento SHANE ( Os Brutos Também Amam ) de Stevens. Para quem adora o filme é obrigatório, mas não vou falar de tudo aquilo que ele fala. O que mais me alegrou é o paralelo que Paulo faz entre o western e a filosofia de Heidegger. Ele sintetiza algo que eu intuia mas não conseguia ver com muita clareza.
   O cowboy é aquele que vive no limite entre dois mundos. Não faz parte da cidade/familia, e nem é parte da marginalidade. Não é da cidade e nem do campo. Não está no presente e nem pensa no futuro. Ele está na solidão e me movimento. E vem daí a filosofia Heideggeriana: o cowboy se debate por se sentir preso. Preso numa condição existencial. Mas o que ele não percebe é que ele é o único personagem realmente livre. A angústia perante o vazio e a falta de propósito é a própria sensação de liberdade. Os fazendeiros jamais ousam pensar em liberdade, o mesmo acontecendo com os homens da cidade. Eles vivem nas formas que foram para eles construídas. O cowboy é o ser que saiu dessa forma e se lançou ao limite, ao vazio. Ele sente a solidão, mas nesse sentimento ele pode ver o que acontece a seu redor. Ele vive no vazio dos espaços e dos dias, mas ele sabe, intuitivamente, que foi ELE quem escolheu, foi ele que assim o desejou.
   Todos os grandes heróis trazem embutidos em si esse trajeto existencial. Ninguém melhor que o cowboy exemplifica isso de forma tão nítida.

OS MORTOS- JAMES JOYCE

   No momento em que Joyce escreveu Os Mortos, sua alma se encontrava perturbada. Ele se irritava ao constatar que mesmo vivendo na Itália, a Irlanda permanecia viva dentro de sua mente. O conto é a constatação de que tudo aquilo que cremos morto continua influenciando a nossa vida. Mais que isso, por ser morta, e portanto fora do tempo, essas coisas têm o poder da imutabilidade. Portanto, como deixa claro esse conto, quem pode vencer um amor que morreu de tanto amar?
   No Natal, em Dublin, irmãs solteiras convidam amigos e parentes para a ceia. Música, poesia, discursos e bebidas. Ao fim da noite, Gabriel, o personagem central, descobre que sua esposa viveu uma paixão na juventude. Um jovem apaixonado por ela, de certa forma, morreu de amor por sua mulher. Caindo em si, ele constata que ninguém conhece verdadeiramente alguém, e pior, que os mortos continuam ditando, indefinidamente, os acontecimentos da vida dos vivos. Joyce, jovem quando escreveu este conto, demonstra soberba compreensão da vida e da mortalidade. Gabriel olha a esposa, olha a neve que cai ao fim da narração, e percebe o tempo.
  Não há um final nesse conto, não existe um começo. Exemplo central do tipo de história possível no mundo moderno, Joyce sabe que o mundo ordenado de Austen ou Dickens se fora. Não podemos crer mais em vidas que transcorrem em linha reta. O conto é um fragmento, uma noite numa vida, um floco de neve. Não saberemos de onde os personagens surgiram, e jamais iremos saber o que deles será feito. A narrativa é um pedaço de um pedaço, e do pedaço se tenta tirar um sentido, e esse sentido, Joyce sabia, é a busca do sentido. O único personagem definido e completo é o rapaz morto.
  Na biografia de Richard Ellman ficamos sabendo que a esposa de Joyce também teve um jovem amante que morreu.  Joyce escrevendo tenta dar rumo a uma história que o perturbou? Como saber? Uma tristeza "fofa" ronda através de todo o texto. As pessoas na festa não se percebem, não se tocam, estão em mundos paralelos, à parte. Mas é uma melancolia tola, ausente de propósito, sem força. A impossibilidade do trágico também está aqui representada. Pois a tragédia se dá em pessoas que aceitam a dor e sabem ser ela certa e fatal. Nosso tempo não mais a conhece. Negamos.
  OS MORTOS, com suas vozes empoladas, seus discursos vazios e a cena aterradora na escadaria, é, talvez, o melhor conto que já tive a glória de ler. James Joyce fala de emoções inescapáveis e da condição de se viver sem se poder saber nada. Gabriel tem seu mundo roído diante de nossos espiritos, ele desaba em meio minuto. O modo como Joyce faz isso, simples, claro e sorrateiro, deixa marca na carne de quem o lê.
  Ler é morrer um pouco, e absurdamente, é também viver mais.

UM LIVRO ABERTO- JOHN HUSTON ( NO TEMPO EM QUE DIRETORES DE CINEMA ERAM HOMENS )

   No final da vida, que é quando este livro foi lançado, John Huston morou numa praia escondida, no México. E é lá que este delicioso livro começa. Huston faz parte de duas tradições. A primeira, daquele típico artista americano que detesta parecer "artista". São homens que apesar de lerem poesia, filosofia e amarem teatro, temperam isso com fartas doses de esportes, lutas, mulheres e silêncio. Não frequentam o mundinho intelectual e prezam uma feroz individualidade. A outra tradição de que Huston faz parte é a dos pioneiros do cinema ( pioneiro que ele não é. Sua carreira começa em 1941, longe do cinema silencioso ). Pioneiros que tinham o cinema como uma profissão acidental. Não cinéfilos, com currículos de atletas, gigolôs ou marujos. Gente como Hawks, Walsh e Fleming.
   Huston carrega também um feito que dificilmente será igualado. Dirigiu o filme que deu o Oscar a seu pai e quase quarenta anos depois, dirigiu um filme que deu um Oscar a sua filha.
   John Huston vem de uma familia aventureira. Gente que ganhou fábricas em mesas de poker e perdeu fortunas em casamentos ruins. Walter Huston, pai de John, foi uma lenda do teatro. É dele a versão que popularizou para sempre September Song de Kurt Weill. Walter fazia de tudo: Shakespeare e burlesco. Depois ficou famoso no cinema. John veio ao mundo nesse planeta de shows, trens e hotéis. Desejou ser pintor, mas não gostava de passar fome e se fez lutador profissional de boxe. Depois, cansado de quebrar o nariz, começou a escrever contos, foi convidado a ajudar a terminar roteiros e acabou como roteirista famoso. Veio então a estréia como diretor em "O FALCÃO MALTÊS" e o sucesso.
   Os melhores filmes de Huston têm um tema em comum: a luta de gente derrotada em conseguir ganhar alguma coisa na vida. E a derrota final dessas pessoas. Mas são homens que jamais se lamentam, têm a vida que escolheram. Os filmes de Huston são profundamente existenciais, não por acaso Sartre gostava deles.
   Cinema era coisa secundária para John. Ele preferia viver. Me assusta um pouco a avidez com que ele matava animais. Caçadas na África e na India. Mas depois ele diz que jamais voltaria a matar um animal, cometer tal pecado. Ao mesmo tempo ele ama os bichos e chegou a destruir um de seus casamentos por isso. Optou por um chimpanzé e largou uma esposa, ( essa história é hilária ). De qualquer modo, foram cinco casamentos e as mulheres são beeeem secundárias no livro.
   Os amigos são mais importantes. O melhor foi um jockey. Mas Huston tinha entre seus preferidos escritores, nobres europeus, caçadores, boxeurs, tenistas e Humphrey Bogart.
   Ele fala de como foram feitos seus filmes. Nenhum é mais divertido que THE AFRICAN QUEEN. Feito em locações precárias, numa Africa ainda sem contato com o "mundo civilizado". Bogart odiando aquilo tudo, e Kate Hepburn amando a aventura. Formigas vorazes, nuvens de mosquitos, desinteria, água imunda, ruídos na noite, elefantes e leões, macacos vivendo nos sets. Tempestades. Há um filme de Clint ( meu favorito de Eastwood ), que narra esses bastidores. O papel de Huston é feito por Clint...
   O pior foram os sets de FREUD. Montgomery Clift já corroído pela bebida, o roteiro impossível de Sartre e atores que se pensavam gênios. Um inferno! Os maiores elogios de John vão para atores não-estrelas, gente como Paul Newman, Gregory Peck, Clark Gable ou Sean Connery. Gente que sabia viver e que via o cinema como profissão, se arriscavam, tentavam mudar.
   Há longos capítulos sobre boxe, sobre a India e sobre a Irlanda. Todos são ótimos, mas o melhor fala sobre a arte da caça a raposa. Acredite, é muito bom. Huston nunca tenta ser simpático e está longe da era do politicamente correto. Ele é o que é, e é isso que seus filmes ensinam.
   Casou-se em impulso de uma noite, casoú-se com amiga, casou-se muito jovem e se casou com artista. E também com uma predadora. Errou em todos. Não chora por isso. Mulheres eram importantes, mas estavam longe de ser "tudo".  Amava mais às viagens, as bebedeiras, as apostas ( Huston era desse tipo que joga cara ou coroa pra ver se aceita um trabalho ou recusa ), os bichos, os filmes. Nessa ordem de preferência.
   Ele gostava de Bergman e Fellini, admirava essa coisa de se escrever sobre si-mesmo e fazer uma série de filmes "com estilo definido". Mas preferia fazer um filme diferente do outro, sobre temas exteriores a sua vida, pegar um livro e filmá-lo. Lia muito. Quatro por semana.
   Fez grandes filmes. Obras que dão um imenso prazer. O TESOURO DE SIERRA MADRE, O SEGREDO DAS JÓIAS, A GLÓRIA DE UM COVARDE, O DIABO RIU POR ÚLTIMO, O CÉU POR TESTEMUNHA, KEY LARGO, OS MORTOS...
   Nunca haverá outro diretor assim. Todos são/serão ratos de cineclube. Fãs que citam o que viram num filme e nunca aquilo que viveram ao vivo.
   Apesar de John Huston ter sido um ateu convicto, digo: Deus salve seus filmes! Um brinde a um grande Homem!
   PS: Consegui ver um de seus documentários sobre a segunda-guerra ( ele esteve lá ), é uma obra-prima. HAVERÁ LUZ foi censurado nos EUA por trinta anos. Mostra a vida dos soldados traumatizados em centros de reabilitação. O trabalho dos psiquiatras com esses farrapos humanos. É um filme de uma nobreza infinita. É puro Huston.

John Huston's The Dead - Finale



leia e escreva já!

SE EU TIVESSE DE NASCER DE NOVO, IA QUERER SER JOHN HUSTON.

   Durante dezoito anos de sua vida John Huston morou na Irlanda. E descreve em um dos capítulos de seu livro a sensação de acordar de manhã e ver pela janela éguas e potros passeando pela relva verde. A "casa" de Huston era um castelo com dezoito empregados. Os convidados, e sempre havia vários, geralmente escritores, se trocavam para jantar. Caçadas à raposa eram organizadas. Festas em pubs. O filme de Clint Eastwood ( tenho certeza que ele também iria querer ser John Huston ), Coração de Caçador, mostra esse castelo. Mas não pense que eu queria ser Huston por causa desse castelo ou de seu amor a Irlanda. Eu queria ser esse cara por causa da vida que ele teve, John Huston viveu. Viveu a vida como ela pode ser vivida. A desafiou todo o tempo.
  Ao contrário dos livros de Bergman, Scorsese, Hitch ou Woody Allen, livros que passam 90% do tempo falando sobre cinema ( o de Bergman 80%, 20% ele fala sobre depressão ), Huston fala 30% sobre cinema, nos outros 70% ele fala sobre caçadas, cavalos, apostas, jogo, viagens, boxe e amigos. Não há fofocas, não existem lamúrias, nada de pose de "artista". Huston se casou cinco vezes, segundo ele, com cinco mulheres completamente diferentes: uma atriz linda, uma lady, uma garotinha, uma intelectual e uma jararaca. Alguns filhos, mas é bacana notar, ele mal fala sobre elas. Mulheres estiveram sempre por perto, mas não eram centrais. Huston faz parte de uma geração em que ser homem significava viver livremente, e não obter o máximo de mulheres. Jogo, humor e arriscar-se eram importantes.
  Huston jogava todo o tempo. Seja caçando raposas ou leões, seja lutando boxe. Ao ver uma luta na tv, apostava com os amigos. Mas principalmente, cada filme era uma aposta. Já se falou muito que Huston filmava para poder viajar. Mais que isso, ele filmava só o que representava riscos. Elencos problemáticos ou roteiros dificeis, locações perigosas, fracassos irrecuperáveis. A partir de 1951, até 1985, todos os seus filmes foram apostas pesadas. Alguns perderam, alguns ganharam, todos foram excitantes.
   Huston mal fala dos filmes que gosta. E até os 28 anos não teve uma profissão definida. Lutava boxe profissionalmente. Ia ao México ver touradas. Caçava e se casava. Fato do livro: ele nunca tenta ser simpático. Não se faz de sensível ou de herói.
   Quer ser pintor, acaba sendo escritor e depois passa a dirigir filmes. A impressão que dá é que ele só levou o cinema a sério por oito anos. Depois outras coisas se tornaram centrais: viver e viajar. Cada filme era uma viagem, Japão, África, Paris, Itália, Irlanda. O filme de Clint refaz as filmagens na África de "The African Queen". É a melhor parte do livro. Uma África que não mais existe ( o livro é sobre um mundo recente que já se foi para sempre ). Rios fora do mapa, canibais, manadas de elefantes, zonas incomunicáveis, perigo constante. Um quase inferno/ um quase paraíso.
   Ele fala sobre seus amigos Heminguay, Truman Capote, Steinbeck, Ben Hecht, sobre seu pai Walter Huston, sobre nobres irlandeses ( falidos ), sobre Errol Flynn, Humphrey Bogart, Mitchum, Peck... Mas o centro é sobre aqueles amigos que ninguém conhece, caçadores de raposas, médicos, donos de bares, secretárias, guias africanos, instrutores de equitação. John Huston é o típico "artista americano", ele foge da intelectualidade. Como Heminguay, Faulkner ou Whitman, a vida lhe é importante, andar, conhecer, fazer. Ser um homem, jamais um pensador abstrato.
   Seria maravilhoso ler este livro aos 15 anos. Seria um guia, tipo "Como Ser Adulto e Homem". Eu o li, emprestado por um amigo, aos 24. O devolvi e passei 20 anos procurando-o em sebos. Sempre que entrava num, ia logo às biografias atrás dele. Acabei encontrando-o dois anos atrás, no sebo em que menos esperava o achar. Li-o então, e voltei a ele agora. Não conheço melhor livro para te fazer erguer a espinha e ajeitar os ombros. 
   Sem dúvida ele poderia ter se dedicado mais. Feito as coisas com mais cuidado. Mas aí ele não seria John Huston. Seria um diretor dos anos 1970/2010, da geração cinéfila. Desses que só conhecem a vida através dos filmes que viram e dos livros ( sobre cinema), que leram. Huston lia Joyce e Cervantes, fazia um filme por ano, e mesmo assim encontrava tempo para jogar com a vida. Um touro.
   O livro se chama: "Um Livro Aberto" e é da LPM. Mais que bom, vital. Um antídoto contra os bundões, fala ainda da sua participação na segunda-guerra, da sua visão da América MacCarthista, e de um monte de apuros passados em florestas, desertos, sets de filmagem e ruas de madrugada. 
   Quando Huston tinha 12 anos o médico disse que ele tinha um problema no coração e lhe receitou cama e dieta. Ele se submeteu por dois anos. Mas começou a pular a janela do quarto de casa e ir nadar de madrugada escondido, no frio. Isso salvou sua vida e lhe deu caráter. Pelo resto da vida ele fez isso, apostou contra os prognósticos. E venceu.
   Esse é o homem. 

HITCHCOCK/ BUÑUEL/ LEAN/ X-MEN/ TAVIANI/ MURNAU/ HENRY FONDA

   MOVIE CRAZY de Clyde Bruckman com Harold Lloyd e Constance Cummings
Filme falado de um dos mais famosos humoristas da época. O tipo de Harold é o "americano comum". Um otimista. Aqui ele vai para Hollywood "ser famoso". Se mete em mal-entendidos. Me parece que "Um convidado Trapalhão" de Blake Edwards se inspirou aqui. Mas Lloyd é bem melhor em seus flmes mudos. Faltam aqui suas soberbas cenas de ação. Nota 4.
   O HOMEM ERRADO de Alfred Hitchcock com Henry Fonda e Vera Miles
Um original. É um dos mais angustiosos filmes do mestre-gênio. Sem qualquer cena de fantasia, sem nenhuma concessão, sem nada de "bonito". Esta história é real, verídica, e Hitch a filmou quase como um documentário. Fonda, desamparado, inconsolável, é um pai de familia que é confundido com um assaltante. Vai preso e todas as testemunhas o apontam como culpado. Nesse processo sua esposa enlouquece. Até que ocorre um milagre... É o mais pessoal filme do gênio do cinema fantasioso. Quando criança, na Inglaterra, seu pai lhe pregou uma peça: fez com que fosse preso "de brincadeira". Hitch nunca mais deixou de ter pavor da policia. Aqui nos sentimos na pele de Fonda. A cena em que ele é trancafiado e anda pelo espaço minúsculo da cela é magnífica. O filme inteiro é seco, objetivo, detalhista. Todo o processo de identificação, de detenção, de códigos legais é mostrado. Quem acha Hitchcock pouco "real" deve ver este filme. Inesquecível. Atenção para a trilha sonora de Bernard Herrman, é uma obra de mestre. Já nos letreiros iniciais somos tocados por essa melodia esquisita. Os olhos de Fonda são os melhores do cinema. Filme que não proporciona qualquer prazer imediato, ele se fixa na mente por sua poderosa dor. Nota DEZ.
   THE PLEASURE GARDEN de Alfred Hitchcock
É o prmeiro filme dirigido pelo mestre. Mas nada tem de hitchcockiano. Trata de duas coristas e suas disputas num cabaret. Uma chatice! Bons tempos em que um diretor podia fazer dúzias de filmes até aprimorar seu estilo... hoje o cara tem de acertar na primeira e depois se repetir pra sempre ( ou fazer continuações de HQ e que tais ). Nota 1.
   L'AGE D'OR de Luis Buñuel
Segundo filme de Luis. Imagens sobre bispos, que viram esqueletos; o desejo de um casal que é separado, escorpiões, mar e sol. Me desculpem, mas em termos de surrealismo prefiro os filmes de Man Ray. Nota 5.
   A SOMBRA DE UMA DÚVIDA de Alfred Hitchcock com Teresa Wright e Joseph Cotten
De todos os seus filmes este é aquele que Hitch mais gostava. Porque? Talvez por ter sido aquele com melhor clima nas filmagens. Inclusive o roteirista, Thorton Wilder, uma estrela do teatro,  não se mostrou chato ou turrão. Mas o principal talvez seja o fato de que este é realmente um grande filme. Um assassino foge de New Jersey e vai morar com sua irmã, numa pequena cidade do interior. Essa irmã é casada, e tem uma simples e alegre familia típica. A filha ansia pela quebra da rotina interiorana e fica em êxtase com a chegada do tio cosmopolita. O que vemos então é a lenta destruição da inocência dessa menina, o aparecimento, passo a passo, do mal na tranquila familia. Mas atenção! Nada de cenas de violência, nada de grandes dramalhões, o filme é sutil, a familia jamais percebe o mal, apenas a filha tem essa percepção. Fato complicador: tanto o tio como a filha têm o mesmo nome, Charlie. Serão duplos? A cena em que ela descobre quem o "querido tio" é, tem um movimento de câmera que se tornou célebre, Coisa de gênio. Aliás, este é um daqueles raros filmes perfeitos, não há uma cena a mais. Obra-prima. Nota MIL.
   PASSAGEM PARA A INDIA de David Lean com Judy Davis, Peggy Ashcroft, Victor Banerjee, James Fox, Alec Guiness
Estava querendo recordar como são os melhores filmes, então passei este semana numa dieta de Htchcock e David Lean. Escrevi sobre este filme abaixo. O que mais dizer? Que apesar de suas 3 horas ele passa voando? E que já sinto vontade de vê-lo mais uma vez? Nota MIL.
   X-MEN PRIMEIRA CLASSE de Mathew Vaughan
Apesar de durar uma hora e meia, este filme parece muuuito longo. E não é ruim. Claro que tem um roteiro tipo "guarda de trânsito", o seu objetivo é apenas o de manter tudo em movimento. Há também um dos mais recorrentes defeitos desse tipo de filme: as melhores cenas estão no começo. Mas se voce esquecer os diálogos ridiculos e a infantilidade dos "motivos dramáticos", dá pro gasto. O diretor não enfeita demais, apenas mostra o que tem pra se mostrar. E os dois "heróis" são feitos por atores competentes ( James MacAvoy e Michael Fassbender ). O que me intriga é: ninguém ainda percebeu que o encanto de um filme de ação está na dosagem entre movimento e diálogo? Nota 4.
   ACONTECEU NA PRIMAVERA de Paolo e Vittorio Taviani
Uma familia de hoje vai á Toscana visitar o avô. No caminho o pai conta aos filhos a história da familia. Desde a época de Napoleão até o século XX. O tema do filme é fascinante, a Europa teria traído o espirito revolucionário e se prostituido pelo dinheiro. Os irmãos Taviani são marxistas e isso os prejudica. Acabam se perdendo num rancor e numa nostalgia pelos "bons tempos" revolucionários. Na cena final as crianças de hoje são mostradas como pequenos monstrinhos que só pensam em dinheiro. Uma pena que um tema tão vasto, rico, seja desperdiçado numa direção que sempre opta pelo errado. Há um excesso de cenas de amor, um excesso de personagens sem carisma e no fim, o avô se mostra apenas um comunista estúpido. De qualquer modo, concordamos com a bundice atual da Europa e lamentamos que os ideias da revolução ( Igualdade, Fraternidade e Liberdade ) tenham sido jogados na vitrine de algum Shopping Center. Nota 4.
   TABU de F.W. Murnau
Em 1930, Murnau, diretor famoso então, se une a Robert Flaherty, maior documentarista do mundo, e rumam a Bora-Bora, Pacifico Sul. Lá fazem um filme que é um misto de ficção e de documento, este sublime Tabu. Há quem o considere o melhor filme já feito. Não sei se é tanto, mas há algo de mágico aqui. Os nativos, verdadeiros, são os atores. O que vemos são pescarias, danças, sol e areia e muito mar. E a história de um casal que se ama mas é impedido por um tabu. Impressiona o sorriso desses homens. Há neles uma leveza e uma felicidade que está extinta do mundo. Eles vivem em idilio, são naturais. Tudo é feito em grupo, todos são livres dentro do mundo que os aceita e é aceito por eles. Juro que não estou romantizando, eles realmente são a imagem da felicidade humana. Lembro que este foi o primeiro dvd que vi na vida, ( mas não o primeiro que comprei, que foi My Fair Lady ), e é um belo começo de coleção. Murnau faleceu logo ao final das filmagens em acidente de carro. O mundo perdeu um soberbo mestre. Nota DEZ.
  

O QUE É UM "GRANDE FILME" ? PASSAGEM PARA A INDIA, DE DAVID LEAN, TE ENSINA A ENTENDER. ( E pobre de quem nunca o assistiu ).

   É muito mais fácil escrever sobre bons diretores que sobre os grandes mestres. Por mais que os elogiemos sempre fica faltando alguma coisa a destacar. David Lean foi um mestre. Basta dizer que Steven Spielberg é seu discípulo/fã. Nenhum diretor inglês chega perto de sua quantidade de prêmios.
   Ele fazia um tipo de cinema que não mais pode ser feito. Um filme "de luxo", que levava quatro, cinco anos em produção, centenas de técnicos/artistas, meses em locação, meses em edição. Um tipo de filme que gente digna como Paul Thomas Anderson luta por fazer, e é boicotado. Filmes que não são de kinoplex e nem de festivais de cinema. Muito complexos e exigentes para adolescentes barulhentos, e muito bem feitos e bem escritos, profissionais, para os festivais. David Lean tinha o mesmo público de Kurosawa ou de Kubrick, o cinema adulto perfeccionista.
   Este filme é baseado num belo romance de E.M.Forster. Autor central da Inglaterra dos começos do século XX. Lean fez o roteiro e a edição do filme. E dirigiu a seu modo. E como é esse modo? Sem frenesi. Ele faz filmes de ação, de diálogos, de movimento, mas não sacrifica a estética a isso. Ele interrompe a ação para mostrar um rio, uma montanha, o sol. E mostra em seu explendor completo, sem pressa. Os filmes de Lean costumam ter as mais belas cenas do cinema. Este lhe faz justiça. Há cenas que chegam a estontear. Como exemplo, as várias cenas do trem. Há uma em que o trem passa sobre uma ponte no fim de tarde que beira o milagroso. Mas o filme é 100% belíssimo, todas as cenas são maravilhas de cor, de composição e de luz. A India nunca foi tão mágica e rica.
   E o tema do filme é esse. O contraste da sensualidade indiana com a rigidez inglesa. Lean nunca morreu de amores pela metrópole britãnica. Aqui acompanhamos uma jovem inglesa, sedenta por aventuras, que vai à India encontrar o noivo. O que ela lá encontra é uma comunidade de ingleses que jamais se mistura aos indianos. Ela encontra uma Inglaterra quente e úmida, apenas isso. Mas sua amiga mais velha trava contato com um médico indiano e isso irá ter sérias consequencias. Mais não conto, o que adianto é que não se trata de um caso de amor. O filme é sobre a força da India, seu excesso de cor, de vida, de sensualidade, em oposição a frieza enfadonha dos ingleses. Flores, folhas, bichos e principalmente as pessoas vão lentamente enlouquecendo os europeus. Esse é o tema. Vasto como o país.
  David Lean tem o dom de saber conduzir atores. Judy Davis, que em seguida estaria excelente com Woody Allen, faz a moça. Impressiona o olhar de curiosidade e depois de terror que ela nos dá. Grande atriz australiana, a confusão em que ela se enfia poderia ser uma armadilha para uma atriz banal. Para ela é um triunfo. Mas há ainda a maior atriz da história do teatro inglês, Peggy Ashcroft. Como a velha senhora que entende aquilo que a India significa, ela domina todo o filme. A cena de sua morte no mar é inesquecível. Como é inesquecível Victor Banerjee, o médico indiano. Modesto, de bom coração, tudo o que ele deseja é agradar seus amigos ingleses. Comove sua pureza, sua alegria simples, a forma como ele se afoba em tentar agradar. E a transformação que lhe cabe, a dolorosa maneira como ele toma consciência de si-mesmo. Uma atuação histórica. Alec Guiness faz um filósofo hindú e James Fox é um professor inglês que gosta do país. Fox poderia ter sido uma grande estrela, mas pirou ao filmar "Performance" com Mick Jagger e ficou dez anos "perdido" na India. Este filme é seu "retorno". Belo retorno.
   Tenho pena de uma geração que não tem os filmes de David Lean. Uma geração que só conhece filmes mutio idiotas ou muito cabeça. Filmes muito ricos e vazios, ou muito complexos e... vazios. Asssistir Lean é exatamente como ler um grande livro. Voce cresce se distraindo, aprende se divertindo e principalemte se extasia. As cenas do filme não saem da cabeça, a beleza é grande demais.
   Em 1984 este filme concorreu a 8 Oscars e venceu dois. Trilha sonora de Maurice Jarre e coadjuvante feminina para Peggy Ashcroft. Era o ano de "Amadeus" que o atropelou. Cá entre nós: eu adoro Amadeus, mas este é melhor.