OS PRIMEIROS A GENTE NUNCA ESQUECE

Tinha uma capa de um azul profundo, aquele azul que é quase preto, mas permanece sendo todo azul. Nesse azul, que era o céu londrino, Peter Pan voava vestido em verde. E com ele vinham Miguel, Wendy e o outro que não lembro mais seu nome. A capa cheirava a tinta recèm impressa e o título era escrito em dourado. O Big Ben emanava luz quente e sombras da cidade eram adivinhadas embaixo. Esse foi talvez meu primeiro contato com a escrita em forma de livro. Ou não? Renard, Velha Raposa, terá vindo antes? Sei hoje que Renard é a mais antiga narrativa daquilo que viria a ser a França. O livro que li era imenso, formato grande e cheio de ilustrações em preto e branco. Renard era o simbolo do caráter gaulês em oposição aos romanos: o gaulês era malandro, os romanos, trouxas. Renard era uma raposa, as galinhas eram os trouxas. Li lentamente, que idade eu tinha? Sete? Mas havia também outro presente de minha madrinha ( Renard foi presente dela ), O Zorro, com seu cavalo negro correndo em meio ao pó de uma vila mexicana. Esses três foram livros que ganhei, que li, mas não foram escolhas, surgiram em minha vida. O primeiro que pedi, escolhi e li inteiro foi A Ilha do Tesouro, de Stevenson, e foi aí e exatamente nesse momento, aos 9 anos, que meu amor aos livros foi afirmado. Veio em plástico transparente e o cheiro que ele exalou ao ser aberto é dos melhores perfumes que já senti. A capa dura, roxa, com a ilustração magnífica de um bote ao lado de um navio. Desse bote saem os piratas, um deles com uma lanterna na mão. O texto fala de portos, mares, tesouros e ilhas. De locais secretos, de traição e de coragem. Depois veio Tom Sawyer de Mark Twain e O Conde de Monte Cristo de Dumas. Com Tom Sawyer eu senti pela primeira vez a despersonalização que um grande texto nos dá. Me fiz Tom e passei a percorrer o Morumbi atrás de meu Mississipi e de uma ilha deserta ( até hoje procuro ). Tom Sawyer se tornou uma febre em minhas tardes de doce vagabundagem, tudo o que no livro acontecia eu tentava reviver em meu mundo. Mas por que falo tudo isso? Para dizer que eu penso que não temos muita consciência do quanto é decisivo aquele momento, o segundo em que vemos nosso primeiro livro, em que abrimos nossa primeira capa, em que penetramos na primeira história. O virgem cérebro capta seu primeiro sinal, um rumo, um rastro, cria um mito. Grava-se em território verde a primeira trilha. Recordo, e isso é um quase milagre, meu primeiro filme. Sonho de Uma Noite de Verão entrou em mim como um delirio. Foi numa idade tão remota que passei todos os quarenta anos seguintes pensando ter sido um sonho de infância e não um filme. Recordava de várias cenas como se tivessem sido sonho infantil, sonho em que eu era personagem ( Puck ). Sómente em 2007, ao rever esse raro filme em dvd ( filme de Max Rheinhardt, superprodução da Warner de 1934 ), é que abismado e aturdido, revi na tela "meu sonho de criança". Recordo aquela noite, de festa em casa, muita gente falando, eu zanzando por entre aquelas pernas altas de adultos fumantes. A TV ligada sem ninguém a assistindo. Então noto que nessa tela algumas fadas dançam e em meio ao bosque misterioso um menino-duende ri e pula. Páro e fico hipnotizado, absorvendo a rainha que chora, o enfeitiçado que se torna burrico, a música que brilha. Nada compreendo do que vejo, mas vejo. Foi essa a minha entrada no mundo do cinema, e, mais importante, em Shakespeare e no mito celta. Após esse momento eu percebi que toda imagem é mágica, sentimento que fica até hoje em mim. Ao absorver tudo isso eu podia me isolar e viver essas imagens e essas histórias em território de ninguém. Eu morava na periferia de SP, Morumbi, e após andar vinte minutos eu me encontrava no vazio, em ruas sem dono, sem muros, sem cercas, sem nada. Podia então me perder, me deixar, ouvir o vazio, ver o nada, estar sonhando. Nenhum ponto de referência, nenhum caminho reto, apenas aquilo que hoje se chama de nada/vazio, e que eu sei/sabia ser a vida real. Um céu imenso, vento e sombras, ruído de água e espaço. Livre livre livre. Amigos meus de Moema e do Itaim Bibi me contam que naquele tempo em seus bairros também era assim. Voce andava vinte minutos e se encontrava num grande vazio, na terra de ninguém. Penso que nas bordas da cidade de hoje se voce andar vinte minutos cai numa favela ou num descampado com lixo. Não há mais terra de ninguém, todo espaço é de alguém. Portanto é até bom que as crianças não leiam mais Tom Sawyer. Jamais achariam lugar para procurar um Mississipi ou uma ilha. Melhor que leiam Senhor dos Anéis ou Harry Potter, fantasias que só podem se dar dentro da cabeça e jamais em algum lugar "lá fora". Ninguém brincará de ser Harry, jogará numa tela. A vida nunca foi tão rica, tão fácil, tão cheia de coisas. A terra de ninguém é agora totalmente habitada.

MÚSICA É SEMPRE UMA PRECE

Tá tudo nela. Certas músicas, todas as que valem a pena, são preces voltadas para o sol ou para o âmago de voce mesmo. Desde Buxtehude até Bruce Springsteen, música é confissão sem verbo, é esperança sem deus nenhum, é êxtase irrecuperável. Memória sem palavra. Porque o homem jogado no metrô, olhando seus pares lá jogados também, faz uma prece para o resto, para restos humanos, e toda canção que vale a pena é uma estrada percorrida por um poeta. Não se iluda, toda arte aspira a ser música. Quando ele solta a voz eu choro. E enquanto sua guitarra uiva eu me encontro em si. Hesíodo já nos dizia ( quantos séculos? Éramos nós? ) que as musas tudo iniciaram com dança e música. O mundo criado por sinfonia. Antes de tudo, portanto, melodia. Antes de abrirmos os olhos, som. E posso dizer então ( sem medo e vergonha ), em 1993 HUMAN TOUCH salvou minha vida. As lágrimas que derramei então foram para minha musa daquele inicio. Tudo que vale é musical. A morte é a ausência de música. Mortos não cantam, não dançam, não têm ritmo. As musas se esquecem dos mortos. Então leremos livros que são sinfonias e assistiremos filmes como canções. Shakespeare está perto de Beethoven e John Ford é como Bach. Bruce e The Band rima a Whitman. Yeats é Debussy??? Tudo que é vivo quer ser música. O inseto que voa e a fera que nasce. Fazemos amor em compasso de suores e harmonia de cheiros. As estradas levam a músicas que indicam rumos. E mortos não escutam as melodias ou marcam ritmo com o pé. Morrer deve ser muito chato.

Bruce Springsteen - Human Touch

leia e escreva já!

CLINT/ RICHARD BURTON/ DAVID LEAN/ SIDNEY LUMET/ WILLIAM HOLDEN

ALÉM DA VIDA de Clint Eastwood com Matt Damon Crítica abaixo. É um bom filme. Inclusive tem a coragem de deixar tudo no ar. Todas as cenas com Matt Damon são excelentes. A trilha sonora é de Clint. Há algum diretor americano atual mais irriquieto? Nos últimos dez anos ele falou de boxe, de pedofilia, de imigração, de falsos heróis e do Japão e a guerra. Tudo com seu estilo low profile, discreto, sério, sem afetação nenhuma. É o cara. Nota 7. ....................................UM DOCE OLHAR de Semin Kaplanoglu Muito elogiado, este filme mostra a bela relação entre pai e filho na Turquia. O pai colhe mel de abelhas que vivem no alto das árvores. O menino é isolado na escola e se solta com o pai. É bom ver um filme turco. Outra paisagem, outros rostos. A fotografia é bonita, o filme tem poucos cortes e boas intenções. Mas não há nada nele que não tenha sido feito antes ( e melhor ). De qualquer modo, para aqueles que começam a ver filmes agora, é recomendado. Nota 5. ...................................................................GREAT BALLS OF FIRE de Jim McBride com Dennis Quaid, Winona Ryder e Alec Baldwin Foi um aguardado lançamento no fim da década de 80 esta bio de Jerry Lee Lewis, o bombástico "novo Elvis" que arruinou sua carreira ao se casar com a própria prima de 13 anos. Dennis Quaid é tão elétrico quanto Jerry Lee, sua atuação, à cartoon, é esfuziante. Quaid, ainda jovem, é um ator que nos dá prazer em ver. Winona, beem jovem, tem aqui o melhor papel de sua desperdiçada carreira. Vê-la aqui e em seguida na bomba ridicula de Aronofski chega a ser um choque! McBride estudou no Rio. Um apaixonado pelo cinema brazuca, seus filmes são sempre muito coloridos, exagerados, vivos, quase excessivos. Este é um tipo de brincadeira festiva sobre um dos mais dionisíacos astros do rock. Alec Baldwin está muito correto como Jimmy Swaggart, o muito bem sucedido primo de Jerry Lee, um pastor evangélico. O conflito entre os dois é o melhor do filme. Se a bio de Ray Charles foi uma patuscada caretésima, e se a bio de Cash foi muito pouco rock, esta é totalmente cartoon, irreal, frenética e vazia. É obrigatório para fãs de rocknroll. Nota 7. ..........................................................................................ODEIO ESSA MULHER de Tony Richardson com Richard Burton, Mary Ure e Claire Bloom Burton faz raios caírem na Terra com este texto irado de John Osborne. É sobre raiva e desespero, sobre desencanto e machismo. Nada há de agradável ou de bonito no filme inteiro. A Inglaterra reconhece sua irrelevância neste momento ( e ao reconhecer seu fim dá seu último berro de criação ). Por que atores ingleses são tão bons? Shakespeare no breakfast? Nota 7. .............................................................................................GRANDES ESPERANÇAS de David Lean com John Mills, Valerie Hobson, Jean Simmons Os primeiros vinte minutos deste filme são das melhores coisas já feitas na história do cinema. Um clima de medo, confusão e solidão levado com maestria pelo seguro David Lean. Depois o filme deixa de ser tão genial e se torna apenas ótimo. Há quem considere este o maior filme baseado em Dickens já feito ( e sabemos o quanto a refilmagem de Cuarón com Gwyneth e Hawke é ruim...), Oliver Twist do mesmo Lean é melhor, mas este é totalmente absorvente. As cenas na casa abandonada, a relação da familia do menino, o modo como a menina o trata, tudo é inesquecível, feito com a competência de quem sabe do que fala. A fotografia é de Guy Green, fotografia da soberba escola inglesa de 1940/1960. David Lean é o mais bem sucedido diretor inglês da história, ele é o modelo e sonho de Spielberg e que tais. Eu prefiro Powell, mas dizer o que de quem fez estes filmes dickensinianos, e ainda Lawrence da Arábia e A Ponte do Rio Kwai? O homem era nobre, detalhista, perfeccionista, culto e sempre valorizava a finesse de seu público. Cinema que nos trata bem, que nos valoriza. Nota 8. ..................................................................................................................................................LADRÕES DE CASACOS de Robert Asher com Terry Thomas e Billie Whitelaw Grupo de aposentados passa a roubar estolas e casacos de peles. O objetivo é doar o dinheiro a caridade e dar nova vida a suas medíocres existências. Comédia inglesa tradicional: um pouco excêntrica, muito convencional. Os Atores a salvam e o texto é agradável. Nota 5. ....................................................EM UM MUNDO MELHOR de Susanne Bier O tema é "relevante", mas o filme é terrivelmente nórdico: anódino, bonzinho, sem tempero. Típico produto que agrada àqueles que vão ao cinema ver uma tese, um telejornal, algo de "bom", não Cinema. Não dá para se falar de direção, de atores, de falas, de alguma arte; o que se pode é falar do tema, apenas do tema. Como cinema é paupérrimo. Nota (............).................................................................... SUCKER PUNCH-MUNDO SURREAL de Zack Snyder O diretor disse em entrevista ser fã de Kurosawa. Nada aprendeu com seus filmes ( terá mesmo visto algum? ). O filme, bem moderninho, é uma mixórdia de efeitos espertos, mocinhas fashion e teorias pseudo-bem sacadas. Que saco!!!!!!! Nota Zeeeeeero! ...........................................................................................REDE DE INTRIGAS de Sidney Lumet com Faye Dunaway, Peter Finch e William Holden Quem quiser saber o que é um bom filme do moderno cinema americano veja este. Dizer mais o que? O roteiro de Paddy Chayefski é uma porrada na cara de todos nós. Não há um herói, o que há é um louco, uma ambiciosa escrota e um bom-coração bundão. A TV manda e a TV é ninguém. Lumet dirige como um gênio ( que não foi, mas chegou perto disso ), várias cenas são antológicas. Em 1976, em minha primeira noite de Oscar ( eu era uma criança... ) torci muito por este filme ( mesmo sem o assistir ), deu Rocky de Stallone... esse foi meu primeiro contato frustrante com o tal prêmio. Trinta e cinco anos depois e Lumet morre nos deixando este filme ainda vivo e relevante. E que atuação é essa de Peter Finch????? Chega a dar medo de tão poderosa!!! ( ele venceu postumamente como best actor, morreu logo após este filme ). Nota 9.

LOOK BACK IN ANGER ( ODEIO ESSA MULHER )- TONY RICHARDSON

A Inglaterra vai abaixo nos anos 50 quando se cria o teatro dos Angry Young Men. E ninguém foi mais angry que John Osborne. Look Back in Anger é a peça que mudou tudo, e este é o filme. História: Teatro inglês era aquela coisa de sempre ( como o cinema também era ), podia às vezes ser genial ( como em Wilde ) mas era sempre aquele bando de lords dizendo coisas inteligentes e wit. Mais que isso, todos pareciam feitos de papelão. Nada de paixão ou de sangue verdadeiro. Os tempos de Marlowe e de Shakespeare eram então recriados como tempo afetado. Mas veio esta peça e a coisa caiu. Gírias, sujeira, violência, jazz, sexo e gente pobre. Vida real? Nem tanto, vida vazia. Jimmy Porter, o personagem, torna-se o ícone da geração que daria ao mundo os Beatles e os Stones ( o teatro de Osborne é bem mais i can't get enough ). Jimmy trabalha na feira e toca piston. É casado e arruma amante, mas o principal: Jimmy odeia a vida. Ele passa todo o tempo agredindo tudo a seu redor. Ele odeia os velhos, odeia as mulheres, odeia o sol e a lua, odeia o passado colonial e a guerra, odeia a paz. No filme, esse papel é feito por Richard Burton e não poderia haver atuação melhor. A cena em que ele murmura a palavra: " Horror" após um enterro é terrificante. O filme aliás, é das coisas mais desagradáveis que já vi. Se voce abomina a Inglaterra de reis gagos e de irmãs fofinhas, este é seu filme. O tal do "filme inglês" ( que aliás eu adoro ) é cruelmente assassinado aqui. Nada é vitoriano, elegante, bonito. O que se mantém de inglês são as falas soberbas e os atores, magistrais. O artificialismo está exatamente nessas falas. Jimmy fala como um menestrel, ele sabe falar bem. E contra o que ele se revolta? Contra tudo. E porque? Eis a força do texto: por nada. Jimmy diz ter ódio de viver, e esse ódio não tem motivo. Quando pensamos descobrir uma razão ela se esvai na cena seguinte. Isso dá o caráter desagradável do filme: esse mal estar, essa raiva é inerente a vida. Viver seria sentir raiva de viver. A fotografia de Oswald Morris, toda em vielas com céus nublados é coisa do mestre que ele é. Junto de Jack Cardiff, são meus dois fotógrafos de cinema favoritos. Claire Bloom faz a amante com rasgos de esperteza. Há algo de muito diabólico nela. Mary Ure é a esposa. Ela sofre sem motivo, é agredida sem reagir e ama quem a destrói. Tony Richardson faria após esta bomba incendiária, Tom Jones, que lhe daria um muito justo Oscar. 1960.... Brilhante momento da arte inglesa. A consciencia de que o império se foi e o ódio a herança deixada pelas gerações passadas. Jimmy Porter abomina o tempo em que nasceu. Mal sabia ele o que viria a seguir. O filme é o epitáfio de um império feito na época em que alguém ainda se importava com isso. Incômodo, desagradável e árduo. Obrigatório. PS: Em tempo de homenagens a Elizabeth Taylor ( merecidas ) cabe reavaliar Richard Burton. Ele surgiu nos anos 50 em palcos ingleses como a esperança de um novo Olivier. Mas Hollywood logo o pescou e lá seu talento foi paralisado. Às vezes, em meio ao alcoolismo, o verdadeiro Burton renascia. Há quem veja nele o melhor ator inglês do século. Jimmy Porter é ele.

O SOL TAMBÉM SE LEVANTA- ERNEST HEMINGUAY

Poucos livros foram tão importantes em minha vida e poucos livros são tão opostos àquilo que acredito e me tornei. Relendo agora ( sexta vez? ), O SOL TAMBÉM SE LEVANTA se revela aquilo que ele é: a tentativa mais apurada de se escrever com objetividade fria. Sêneca e folhas de jornais vivem em suas frases. Heminguay deve muito de sua fama ao que foi e não ao que escreveu. E nisso ele é o oposto de Joyce e Proust. Criou-se, até os anos 60, o mito de que sua vida fora glamurosa, aventureira, vasta. O típico escritor americano: viril e ativo. Uma licença, um álibi para que homens pudessem escrever, para que escritores do Kentucky não se sentissem maricas. Mas as coisas mudaram, e o autor que parecia heróico revelou-se um mentiroso, pior, um macho vaidoso. Em tempos de politicamente correto, Heminguay se tornou out e Scott Fitzgerald muito in. Waaaal.... O livro descreve um grupo de amigos na Paris de 1920. De lá eles vão à Espanha ver as touradas e é só. Sob vários pontos de vista, nada acontece no livro. Sob o meu ponto de vista, tudo que pode acontecer acontece. Jake Barnes é o herói. Um herói derrotado e impotente. Um homem que jamais transparece o que sente ( quem lembrou de Humphrey Bogart acertou ). Ele ama e é amado por Lady Brett, uma ninfomaníaca. O amor impossível. Robert Cohn é um inseguro jovem judeu. Ele ama a moça e é usado por ela ( ninguém no livro prima pelo caráter ). Há ainda um escocês bonachão e um grego. Como se pode ver, a trama é ínfima. Não é por aí que se dá valor ao livro, é pelo que ele não fala. Quando lançado O SOL TAMBÉM SE LEVANTA se tornou uma febre e Heminguay uma estrela, por quê? Por não falar. Alí, pela primeira vez, estava um romance sobre o vazio. Os personagens nada fazem de especial, eles apenas estão lá, em seus lugares. Há um tédio abissal ao redor deles, e todos têm a consciência disso, mas mesmo assim, eles vivem. Viajam, tentam sentir, amar, e sempre perdem. Não possuem raízes, não pertencem a nada, nada possuem, são impotentes em carne e em alma. Falam frases que escondem tudo o que deveria ser dito. Exibem risos, coragem, liberdade, mas estão presos em frieza, memória e desalento. Heminguay passou o resto da vida tentando repetir o sucesso deste livro. Em termos de vendas o suplantou com POR QUEM OS SINOS DOBRAM. Mas jamais teve o gosto de ser tão moderno outra vez. Ter lido este livro aos 21 anos com certeza mudou minha vida. No mínimo perdi a vergonha de ser vazio e aprendi que se pode escrever simples, sem grandes frases e sem emoções violentas. Tentei ser Jake Barnes e tentei achar minha Lady Brett. Não rolou. Com o tempo me redescobri como não-heminguayano, mas este livro, este fino e elegante livro, tem algo de muito certo, de muito verdadeiro e de muito dificil de repetir. Quem sabe o quê?

A PRESENÇA DA MALDADE

Discutir se o mal existe é tão vazio de significado como saber se Deus é real ou se os vampiros vivem. Deus é real e os vampiros vivem ( simbolicamente, e símbolos são para sempre ). Para saber o que é o mal é preciso saber o que é o bem. O mal é sua ausência. Mefistófeles é aquele que tudo sabe, que se vê como auto-suficiente. O FAUSTO de Goethe, (ao lado de MACBETH de Shakespeare), é a melhor síntese do que seja a maldade. Mefistófeles ousa desafiar Deus e é expulso do paraíso. Eis a raiz de todo mal: orgulho egocêntrico e complexo de exclusão. Em toda maldade há a ilusão de se ser um homem especial, uma sensação de superioridade, uma ditadura do ego. Lady Macbeth sucumbe ao mal quando descobre que seu marido será rei. Mas todo herói é também um homem isolado, um homem que sai do convivio dos seus, e dono de ego exaltado, parte em busca de sua missão. Mas existe um oceano de diferenças entre Macbeth e Persival. O herói é dono de seu ego, como diria Jung, ele usa seu ego como escravo de si e não o contrário. O vilão é dominado por esse eu autoritário e surdo. O herói escuta o apelo do mundo e mesmo só, ele trabalha pelo outro, ou por algum ideal diferente de si-mesmo. O vilão só vê espelhos. O bem é a virtude e conhecer o mal é saber o que seja ser virtuoso. Na raiz de toda virtude está o conhecimento do outro. Bondade, compaixão, humildade. Todo mal foge dessas três palavras. Em nosso mundo, 2011, acontece uma perversa armadilha contra o bem. Tudo exalta o ego, a auto-realização, tudo quer fazer com que tenhamos a ilusão de sermos únicos, especiais, e tudo leva ao enfrentamento de toda autoridade. Somos todos Nietzsches de araque, desprezamos a bondade como fraqueza. Triste situação, o bem só é reconhecido como verdade em sociedade que preza a virtude, numa sociedade voltada ao individualismo o bem sempre será perdedor. Resta ainda saber que o que conhecemos como bem é genial criação cristã. Para os gregos todo bem se ligava a beleza física e a violência em defesa do estado. O mal seria o desequilíbrio das formas e a covardia. Somos muito desse grego, mas o bem que nos interessa é o bem da bondade, da justiça e da compaixão. O bem cristão. Ele é hoje quase impossível. Os pagãos voltaram com tudo. A violência é sempre um mal? Matar crianças é sempre um mal. Assassinar uma moça num sinal de trânsito é sempre um mal. Mas atirar em bandido que está prestes a matar um inocente, é um mal? Assassinar nazistas era um mal? A violência se justifica contra aqueles que crêem nela. Porque essa é a única língua que eles entendem. O ponto fraco do cristão é exatamente esse: contra quem tem a violência como fé suprema ele nada pode. O ego só pode ser vencido quando o espirito encontra uma brecha para se manifestar. Contra o aço do ego, o aço da ação. O mal existe? Nenhum ato de maldade deveria nos surpreender. O milagre é exisitir o bem.

SIDNEY LUMET, O EXEMPLO A SER SEGUIDO

Lumet fez alguns dos piores filmes americanos ( a versão de O Mágico de Oz é de matar! ), mas ele tinha de errar ocasionalmente. Isso porque Lumet corria riscos, enfrentava desafios e não temia tocar em feridas. Quando acertava nos dava socos na barriga. Se voce nunca viu nada dele, assista correndo a Rede de Intrigas. Tudo sobre hoje está nesse filme de 1976. Mas ele ainda fez Serpico, filme que mostra as ruas sujas da América como nenhum outro ( e tem Pacino em momento de genio ), e Um Dia de Cão, soberba overdose de adrenalina e aula de edição ( e Pacino em sua melhor atuação ). Mas porque chamo a Lumet de exemplo a seguir? É que ele é o tipo de diretor que nos falta. Havia uma genialidade modesta em suas entrevistas, e seus filmes não tinham nenhuma afetação. Eram vivos, elétricos, vibrantes, inteligentes sem jamais serem posados. Todo jovem diretor "genio" aprenderia muito com suas aulas de cinema virulento, urbano, viril, irriquieto. Lumet veio na geração de Arthur Penn, John Frankenheimer, Sam Peckimpah, Mike Nichols, Robert Mulligan, George Roy Hill e Franklyn Schaffner. É a geração imediatamente anterior a geração de Scorsese e Coppolla. É a geração que preparou o terreno para essa turma. É para mim, uma geração mais satisfatória que a seguinte ( mas é tema para longa conversa ). Em Lumet, nos seus bons momentos, vive o cinema americano puro, autêntico, real, doses de emoção com momentos de revelação. Fará muita falta.

VITORIA- JOSEPH CONRAD

Este é um dos livros de Conrad que não foi reconhecido em seu lançamento. Hoje é clássico. Como em todo texto desse polonês anglófilo, é a aventura que se faz presente em toda página. Mas o subtexto é todo existencial, pessimista, labiríntico. Temos como cenário uma ilha e um porto. Heyst é um holandês que procura viver sem se envolver com a vida. Schomberg é um hoteleiro alemão que o detesta. Toda a primeira parte do livro é a história desse auto-isolamento e desse ódio. Mas a vida procura Heyst, na forma de um amigo e de um sócio. Heyst se deixa levar, friamente, com distanciamento. Depois ele se envolverá com uma inglesa perdida por lá. E esse envolvimento será fatal. A mulher em Conrad é sempre um vazio. As mulheres mal aparecem e quando surgem destroem tudo a seu redor. Heyst ao se unir a Lena se torna fraco. Seu mundo de coloca em xeque, suas certezas se vão. O holandês torna-se uma vitima frágil de turma de ladrões que lhe roubam a paz. Nossa percepção dos personagens muda ao passar das páginas: Heyst passa a ser odiado por sua passividade tola, seu esnobismo espiritual. E Lena se mostra uma apaixonada que se define apenas nessa paixão. Ricardo, um dos ladrões, também sucumbe no contato com a mulher; e seu chefe, o aristocrático Jones, é homossexual ciumento. Para Conrad é a mulher Eva inocente e serpente inconsciente. Lena não tem culpa alguma, mas seu toque destroi todo homem que se deixa ficar. Mas há mais, na passiva fraqueza de Heyst e na fragilidade classuda de Jones anuncia-se o futuro do homem, raça de seres sem coragem, sem ação e desprovidos de dons para a aventura. Vítimas de mulheres tolas. Se Joseph Conrad acertou ou não é indiferente. O que fica é uma certa perturbação por personagens tão inconscientes e situação sem qualquer traço de coragem. Em Vitoria, título irônico pois todos perdem, a covardia é a caracteristica humana. Terrível polonês....

ALÉM DA VIDA- CLINT EASTWOOD

Alguns criticos, envergonhados pelo fato de terem apreciado um filme new-age, distorceram tudo e falaram que este filme Não defende abertamente a existência de mistérios pós-morte. Viram outro filme, ou como diz o roteiro, o preconceito os tornou irracionalmente cegos. A vidência de Matt Damon jamais é posta em dúvida. Ele "adivinha" coisas sobre o além. Clint Eastwood surpreende novamente. A mente desse cowboy esconde muito mais coisas do que pensamos. O filme, com tsunami impressionante, é todo sobre a dor. Dor que leva a solidão absoluta. Dor que se avizinha da morte. As cenas de Damon jantando só em sua cozinha são de doer o coração. Mas há também a dor muda do menino que perde sua metade e da jornalista que perde toda sua certeza. A vida é uma perda e é aí que reside toda a grandeza do mestre Eastwood. Pois toda a sua obra sempre não falou de outro tema: a perda. E agora digamos a verdade: Dirty Harry já era um tira vivendo a perda ( da fé na lei ) e a melancolia, então, acompanha seus filmes ( Bronco Billy, Sobre Meninos e Lobos, Um Mundo Perfeito, Bird... todos quase insuportávelmente tristes ). Que grande diretor esse americano da California se tornou. Surgindo como ator em 1955 ( na TV ) se tornando star em 1965 ( na Italia com Sergio Leone ), voltando a América e criando ( com Don Siegel ) Harry o sujo. Começa a dirigir em 1970, sempre ouvindo gozações dos criticos americanos ( e sempre respeitado pelos franceses ), até que em 1987 dá um nó na cabeça de todos com o artistico Bird. Tolice dos compatriotas: Clint sempre foi bom diretor, Josey Wales de 1976 já era uma obra de mestre. Em 1990 é incensado em Cannes com Coração de Caçador e em 1992 vem Os Imperdoáveis. Mas ele continua, agora oitentão, a seguir inquieto, insatisfeito, inesgotável. Não existe em toda a história do cinema tal exemplo de vitalidade. Neste filme, como em todos os outros, se percebe a influência de Hawks no modo de contar uma história sem enfeitar nada, é o estilo de direção que não chama a atenção sobre si. O diretor dirige em função do roteiro, nos faz esquecer que existe uma coisa chamada direção. Os cinéfilos novatos, aqueles que se impressionam com câmeras rodantes e efeitos de estilo oco, pensarão em Clint como um cara "pouco criativo". Necas! Como Hawks e Ford, ele é seu próprio estilo. Dirigir sem enganar é a maior das artes. E neste filme isso fica evidente. É um filme sem humor, triste, árido, plasticamente franciscano e mesmo assim eu fiquei mais de duas horas hipnotizado. Sem rodopios, sem gritos, sem apelações, Eastwood me segura acordado, ligado e comovido. Um mestre. Matt Damon, verdade seja dita, está envelhecendo bem. Neste filme e no infinitamente pior True Grit, ele se mostra o melhor ator de sua geração. Seu rosto, doído e contrito, é máscara de dor. A cena em que ele diz a verdade à sua quase nova namorada é maravilhosa. Não ter sido indicado atesta a miopia da academia. Mas, como em todo filme de Eastwood, todo o elenco brilha. E é bacana ver a sumida Marthe Keller em pequena ponta e Derek Jacobi como ele mesmo. O personagem se deita e escuta toda noite a narração de David Copperfield. Depois ele falará para um tipo de atual David Copperfield a mensagem de seu irmão morto. E tudo o que esse orfão do século XXI consegue falar é: Eu me sinto só. Um muito grande filme. Se Kurosawa é o diretor favorito de Clint Eastwood ( e é ), ele se torna cada vez mais digno de seu mestre. Além da Vida sobreviverá.

LOSEY/ VISCONTI/ BURT LANCASTER/ OLIVIER/ HITCHCOCK/ HELEN MIRREN/ JACK NICHOLSON

EVA de Joseph Losey com Jeanne Moreau, Laurence Harvey e Virna Lisi Se eu gostasse tanto de Moreau como Losey parece gostar, o filme seria melhor. A trilha sonora de Michel Legrand é fascinante e a fotografia de Gianni di Venanzo faz deste um dos mais elegantes filmes já feitos. Fala de uma relação completamente vazia entre um homem poderoso, confiante e uma mulher sem alma. Ele sucumbirá. Filme bom de se olhar, mas tão árido quanto seu tema. Losey fugiu do MacCarthismo e se deu bem na Europa. Tem vários filmes maravilhosos, este não é um deles. Nota 5.//////// RUMO A FELICIDADE de Ingmar Bergman com Maj-Britt Nilsson, Stig Olin e Victor Sjostrom Bergman é uma alegria em minha vida. Toda a dor que ele mostra em seus filmes ( e que deprime alguns ) me dá força, paz e confiança. Porque? Pela magnifica beleza que existe em seu mundo. Cada close, cada tomada, todo ator em cena, a escolha das músicas, tudo é digno, claro, hipnótico, belo sem ser tolo ou piegas. Este é seu último filme antes da entrada em sua fase genial, fase de inigualável sequencia de obras-primas ( entre 1951/1982 ). Este fala de jovem casal que não consegue ser feliz. O egoismo dele tudo aniquila. Um filme simples, um ensaio para coisas maiores. Nota 6. ////////HAMLET de Laurence Olivier com Olivier e Jean Simmons Não preciso falar da excelencia dos atores. Este foi o primeiro filme ingles a ganhar o Oscar de melhor filme ( em ano muito forte, basta dizer que venceu Sierra Madre ). Já foi meu filme favorito, o que confirma a tese de Paul Valery de que crescemos todo o tempo com a prática da apreciação artistica. O filme é ainda maravilhoso, mas com esse texto e esses atores que filme não seria? Shakespeare tem alguns bons filmes no cinema, mas o melhor não é este ( é RAN de Kurosawa, baseado em Rei Lear ). O cenário é feito de escadas em espiral, fumaça e escuridão, e Simmons é a Ofelia mais bela possível, mas a direção de Olivier se perde as vezes num excesso de freudianismo ( sim, este é Hamlet sob a ótica de Édipo ). De qualquer modo é um espetáculo nobre e que deve ser sempre visto e revisto ( é minha sexta apreciada ). Hoje um filme tão elevado ganharia o prêmio? Nota 9.//////////// O AGENTE SECRETO de Alfred Hitchcock com John Gielgud e Madeleine Carrol Hitch na Inglaterra fez filmes melhores que nos EUA? Ele próprio pensava que não, mas fica bem para um certo tipo de esnobe dizer que sim. Tolice! Embora na Inglaterra ele tenha feito algumas obras-primas, é nos EUA que ele atinge o cume dos cumes. Este é um suspense médio que serve para mostrar Gielgud, o melhor ator ingles de teatro ( é dele o maior dos Hamlets ), e que jamais deu certo nas telas. Nota 6. ////////////SABOTAGEM de Hitchcock com Silvya Sidney e Oskar Homolka Um belo Hitch da fase inglesa. Cheio de ação e com um clima opressivo, sórdido, cruel até. Lemos em entrevistas que ele não gostava do filme, mas é incompreensível: é uma obra invulgar. Destaque para a cena no ônibus e a da sala de cinema, Hitchcock já sendo um mestre absoluto. Nota 7. ////////////////A ÚLTIMA ESTAÇÃO de Michael Hoffman com Helen Mirren, Christopher Plummer e Paul Giamatti Só agora é lançado este filme que assisti um ano atrás!!!! Escrevi sobre ele na época e o registro novamente. Se voce quer saber algo sobre o gênio Tolstoi nada vai saber vendo o filme. Mas se voce quer ver dois atores dando aulas de magia e carisma, aqui está. Helen Mirren é a melhor atriz viva, Plummer não desaparece ao seu lado. O filme é bastante melancólico ( existe algum filme "artisitico" feito hoje que não o seja? ), e está longe de ser do tamanho que o tema merecia. Mas é bem superior a 99% daquilo que voce pode ver agora. Nota 6. /////////////////VIOLÊNCIA E PAIXÃO de Luchino Visconti com Burt Lancaster e Helmut Berger Citando Valery outra vez, se voce tem já alguma intimidade com grandes filmes corra ao Cinesesc e se dê o privilégio de ver esta obra-prima. Se voce ainda está naquela ração de lançamentos da semana, fuja. Visconti é o contrário de tudo o que se faz em cinema agora ( quase tudo ), ele é titânico. Seu tema nunca é modesto, tudo é sempre grande, vasto, operistico. Este adorável filme me toca profundamente por falar de meu tema favorito: decadencia. Vemos a vulgarização do mundo de um esteta, o assassinato da aristocracia de gostos e de gestos. O filme exibe a vitória da vulgaridade, do espalhafato, da grosseria. Quando os novos inquilinos chegam, vemos a barbárie rica e pretensamente chic tomar o poder. Impotente, só resta ao aristocrata assistir estoicamente o fim de seu mundo. Lancaster brilha intensamente. Cada olhar que ele nos dá é um testamento de nobre pensamento. O filme é inesquecível. Nota DEZ!!!!!!!!!! O MÁGICO de Sylvain Chomet Que decepção!!!! Este desenho homenagem a Jacques Tati ( parece que ele deixou um esboço de roteiro que foi aqui usado ) é tudo o que Tati nunca foi: chato. Os traços são maravilhosos, as ruas de Londres e de Edimburgo estão belas como em sonho, mas o desenho é de uma melancolia que parece forçada, poética demais. Há que se comentar um fato: por que os desenhos feitos a mão parecem mais humanos? Sem saudosismo, os digitais são mais perfeitos, mas um desenho como este sempre tem mais "autoria", mais calor. Mas o roteiro, sobre um mágico modesto, é enfadonho! Nota 4.////////////////// HEAD de Bob Rafelson com Monkees, Jack Nicholson, Frank Zappa e Victor Mature Jack Nicholson e Rafelson, amigos até hoje, se encheram de ácido e escreveram o roteiro desta viagem psicodélica. Entregaram tudo aos Monkees, que após o fim de seu seriado de sucesso na NBC, se despediam da fama com este fracasso. O filme é um caleidoscópico dia na vida da banda. Mas é dificil resumir a história ( que história? ). A trilha é fascinante e o filme, que hoje é hiper-cult, acaba sendo uma diversão bastante instigante. Para se ter uma idéia do filme, há uma cena com Zappa puxando uma vaca e outra com os Monkees presos num secador de cabelos. Foram meus primeiros ídolos, eu os amava apaixonadamente aos 7, 8 anos de idade. Ainda sinto algo quando os vejo. Nota 6.

O FUTURO É UMA CAÓTICA PROMESSA NÃO ESCRITA

A gente nunca sabe o que virá depois. Às vezes adivinhamos, mas é isso, adivinhação, acaso. Ontem estudamos um texto de Paul Valéry. 1922. Ele percebe o futuro da escrita. E acerta. O leitor se faz, desde 1800, tão importante quanto o autor. Mas não por bancar financeiramente a obra, não. Mas sim porque quanto mais se lê mais se penetra no mundo do escritor e mais se percebe que sua beleza e sua atemporalidade reside no erro, no que ele tem de igual a quem o lê e não em sua "divindade". Valéry nota então que para se entender a arte é preciso ter uma atitude individual- ou seja: eu lerei aquele texto a meu modo, diferente do modo de qualquer outra pessoa. Mas, o texto continuará sendo ele-mesmo: desafio constante a interpretações várias. Há mais. Shakespeare e Da Vinci são os pontos culminates do ser moderno. Te surpreende? Explica-se. No tempo de Leonardo os estetas amavam Michelangelo e Rafael. Da Vinci era uma curiosidade que fazia obras nunca acabadas, ele era imperfeito. Eis o modernismo! Leonardo não almejava a perfeição, ele sabia que a vida é caos e jamais se permitia ser acabado. Rafael, hoje amado, mas amado como algo morto, era perfeito e bem terminado. Apurado. Michelangelo sobrevive graças aquilo que ficou de inacabado, de dramático. O azar de sua vida foi sua sorte para o futuro. Mas Leonardo não! Tudo nele é esboço, é obra em andamento, é projeto, é tentativa falha ( gigantescas falhas ). Ele é mais que moderno, é vivo. Quando vivo Shakespeare era um sucesso. Mas um sucesso sem arte. Era considerado apelativo, grosseiro, um autor que misturava drama com comédia, que usava a violência sem razão de ser. Durante os duzentos anos seguintes a sua morte, tempo da razão absoluta, gostar de Shakespeare era considerado mal gosto. Ele era um bárbaro que não sabia refinar suas obras. Um crente em feitiçarias, em fantasmas, pior: um irracionalista. Com os romanticos alemães isso começa a mudar. Schiller e Goethe o reabilitam e o século XX tem uma Shakespearemania. Nosso tempo é o tempo de Shakespeare. Irracional, não refinado, uma mistura de poesia e grosseria, violento, caótico, sublime e grotesco, comico e trágico. E o principal: um bom leitor, um leitor moderno, vê em Shakespeare uma infinidade de leituras, inesgotável fonte de idéias. Hamlet pode ser farsa, freudianismo, marxismo ou delírio. Macbeth ateísmo, gnosticismo ou poesia satânica. Shakespeare conseguiu antecipar o século XX e provávelmente será presente por todo o século XXI ( se nossa era é virtual, tudo nele sempre foi virtualidade ). A leitura moderna só comporta então aquilo que abre portas para indefinições. Borges, Flaubert, Melville, Sebald, Poe, Calvino ou Joyce e Proust. Textos que se abrem infinitamente, que convidam a debate, a delirios, textos caos. Mann, Stendhal, Nabokov, Eliot, Stevens, Mallarmé, Cervantes. E outros mais. É o grande erro da literatura de auto-ajuda: eles falam do caos como coisa apreensível. O caminho da literatura é o oposto: o apreensível tornado caótico. Por fim, o bom autor passa a ser aquele que não se arvora estatuto de guia. Se escrito como pretensa obra de arte, normalmente tal texto torna-se um engodo. Vide Joseph Conrad ou Whitman, autores que jamais se pensaram como artistas. E que são arte e atemporalidade plena. ( O que me recorda o cinema de Hawks, Hitchcock e Ford, artesanato que se torna arte suprema pela graça do entendimento de quem os assiste ). Não há obra plena sem público que a complete. E não poderá ser completa sem um público que a saiba entender. Criativamente. Tá dito.