SIDNEY LUMET, O EXEMPLO A SER SEGUIDO

Lumet fez alguns dos piores filmes americanos ( a versão de O Mágico de Oz é de matar! ), mas ele tinha de errar ocasionalmente. Isso porque Lumet corria riscos, enfrentava desafios e não temia tocar em feridas. Quando acertava nos dava socos na barriga. Se voce nunca viu nada dele, assista correndo a Rede de Intrigas. Tudo sobre hoje está nesse filme de 1976. Mas ele ainda fez Serpico, filme que mostra as ruas sujas da América como nenhum outro ( e tem Pacino em momento de genio ), e Um Dia de Cão, soberba overdose de adrenalina e aula de edição ( e Pacino em sua melhor atuação ). Mas porque chamo a Lumet de exemplo a seguir? É que ele é o tipo de diretor que nos falta. Havia uma genialidade modesta em suas entrevistas, e seus filmes não tinham nenhuma afetação. Eram vivos, elétricos, vibrantes, inteligentes sem jamais serem posados. Todo jovem diretor "genio" aprenderia muito com suas aulas de cinema virulento, urbano, viril, irriquieto. Lumet veio na geração de Arthur Penn, John Frankenheimer, Sam Peckimpah, Mike Nichols, Robert Mulligan, George Roy Hill e Franklyn Schaffner. É a geração imediatamente anterior a geração de Scorsese e Coppolla. É a geração que preparou o terreno para essa turma. É para mim, uma geração mais satisfatória que a seguinte ( mas é tema para longa conversa ). Em Lumet, nos seus bons momentos, vive o cinema americano puro, autêntico, real, doses de emoção com momentos de revelação. Fará muita falta.

VITORIA- JOSEPH CONRAD

Este é um dos livros de Conrad que não foi reconhecido em seu lançamento. Hoje é clássico. Como em todo texto desse polonês anglófilo, é a aventura que se faz presente em toda página. Mas o subtexto é todo existencial, pessimista, labiríntico. Temos como cenário uma ilha e um porto. Heyst é um holandês que procura viver sem se envolver com a vida. Schomberg é um hoteleiro alemão que o detesta. Toda a primeira parte do livro é a história desse auto-isolamento e desse ódio. Mas a vida procura Heyst, na forma de um amigo e de um sócio. Heyst se deixa levar, friamente, com distanciamento. Depois ele se envolverá com uma inglesa perdida por lá. E esse envolvimento será fatal. A mulher em Conrad é sempre um vazio. As mulheres mal aparecem e quando surgem destroem tudo a seu redor. Heyst ao se unir a Lena se torna fraco. Seu mundo de coloca em xeque, suas certezas se vão. O holandês torna-se uma vitima frágil de turma de ladrões que lhe roubam a paz. Nossa percepção dos personagens muda ao passar das páginas: Heyst passa a ser odiado por sua passividade tola, seu esnobismo espiritual. E Lena se mostra uma apaixonada que se define apenas nessa paixão. Ricardo, um dos ladrões, também sucumbe no contato com a mulher; e seu chefe, o aristocrático Jones, é homossexual ciumento. Para Conrad é a mulher Eva inocente e serpente inconsciente. Lena não tem culpa alguma, mas seu toque destroi todo homem que se deixa ficar. Mas há mais, na passiva fraqueza de Heyst e na fragilidade classuda de Jones anuncia-se o futuro do homem, raça de seres sem coragem, sem ação e desprovidos de dons para a aventura. Vítimas de mulheres tolas. Se Joseph Conrad acertou ou não é indiferente. O que fica é uma certa perturbação por personagens tão inconscientes e situação sem qualquer traço de coragem. Em Vitoria, título irônico pois todos perdem, a covardia é a caracteristica humana. Terrível polonês....

ALÉM DA VIDA- CLINT EASTWOOD

Alguns criticos, envergonhados pelo fato de terem apreciado um filme new-age, distorceram tudo e falaram que este filme Não defende abertamente a existência de mistérios pós-morte. Viram outro filme, ou como diz o roteiro, o preconceito os tornou irracionalmente cegos. A vidência de Matt Damon jamais é posta em dúvida. Ele "adivinha" coisas sobre o além. Clint Eastwood surpreende novamente. A mente desse cowboy esconde muito mais coisas do que pensamos. O filme, com tsunami impressionante, é todo sobre a dor. Dor que leva a solidão absoluta. Dor que se avizinha da morte. As cenas de Damon jantando só em sua cozinha são de doer o coração. Mas há também a dor muda do menino que perde sua metade e da jornalista que perde toda sua certeza. A vida é uma perda e é aí que reside toda a grandeza do mestre Eastwood. Pois toda a sua obra sempre não falou de outro tema: a perda. E agora digamos a verdade: Dirty Harry já era um tira vivendo a perda ( da fé na lei ) e a melancolia, então, acompanha seus filmes ( Bronco Billy, Sobre Meninos e Lobos, Um Mundo Perfeito, Bird... todos quase insuportávelmente tristes ). Que grande diretor esse americano da California se tornou. Surgindo como ator em 1955 ( na TV ) se tornando star em 1965 ( na Italia com Sergio Leone ), voltando a América e criando ( com Don Siegel ) Harry o sujo. Começa a dirigir em 1970, sempre ouvindo gozações dos criticos americanos ( e sempre respeitado pelos franceses ), até que em 1987 dá um nó na cabeça de todos com o artistico Bird. Tolice dos compatriotas: Clint sempre foi bom diretor, Josey Wales de 1976 já era uma obra de mestre. Em 1990 é incensado em Cannes com Coração de Caçador e em 1992 vem Os Imperdoáveis. Mas ele continua, agora oitentão, a seguir inquieto, insatisfeito, inesgotável. Não existe em toda a história do cinema tal exemplo de vitalidade. Neste filme, como em todos os outros, se percebe a influência de Hawks no modo de contar uma história sem enfeitar nada, é o estilo de direção que não chama a atenção sobre si. O diretor dirige em função do roteiro, nos faz esquecer que existe uma coisa chamada direção. Os cinéfilos novatos, aqueles que se impressionam com câmeras rodantes e efeitos de estilo oco, pensarão em Clint como um cara "pouco criativo". Necas! Como Hawks e Ford, ele é seu próprio estilo. Dirigir sem enganar é a maior das artes. E neste filme isso fica evidente. É um filme sem humor, triste, árido, plasticamente franciscano e mesmo assim eu fiquei mais de duas horas hipnotizado. Sem rodopios, sem gritos, sem apelações, Eastwood me segura acordado, ligado e comovido. Um mestre. Matt Damon, verdade seja dita, está envelhecendo bem. Neste filme e no infinitamente pior True Grit, ele se mostra o melhor ator de sua geração. Seu rosto, doído e contrito, é máscara de dor. A cena em que ele diz a verdade à sua quase nova namorada é maravilhosa. Não ter sido indicado atesta a miopia da academia. Mas, como em todo filme de Eastwood, todo o elenco brilha. E é bacana ver a sumida Marthe Keller em pequena ponta e Derek Jacobi como ele mesmo. O personagem se deita e escuta toda noite a narração de David Copperfield. Depois ele falará para um tipo de atual David Copperfield a mensagem de seu irmão morto. E tudo o que esse orfão do século XXI consegue falar é: Eu me sinto só. Um muito grande filme. Se Kurosawa é o diretor favorito de Clint Eastwood ( e é ), ele se torna cada vez mais digno de seu mestre. Além da Vida sobreviverá.

LOSEY/ VISCONTI/ BURT LANCASTER/ OLIVIER/ HITCHCOCK/ HELEN MIRREN/ JACK NICHOLSON

EVA de Joseph Losey com Jeanne Moreau, Laurence Harvey e Virna Lisi Se eu gostasse tanto de Moreau como Losey parece gostar, o filme seria melhor. A trilha sonora de Michel Legrand é fascinante e a fotografia de Gianni di Venanzo faz deste um dos mais elegantes filmes já feitos. Fala de uma relação completamente vazia entre um homem poderoso, confiante e uma mulher sem alma. Ele sucumbirá. Filme bom de se olhar, mas tão árido quanto seu tema. Losey fugiu do MacCarthismo e se deu bem na Europa. Tem vários filmes maravilhosos, este não é um deles. Nota 5.//////// RUMO A FELICIDADE de Ingmar Bergman com Maj-Britt Nilsson, Stig Olin e Victor Sjostrom Bergman é uma alegria em minha vida. Toda a dor que ele mostra em seus filmes ( e que deprime alguns ) me dá força, paz e confiança. Porque? Pela magnifica beleza que existe em seu mundo. Cada close, cada tomada, todo ator em cena, a escolha das músicas, tudo é digno, claro, hipnótico, belo sem ser tolo ou piegas. Este é seu último filme antes da entrada em sua fase genial, fase de inigualável sequencia de obras-primas ( entre 1951/1982 ). Este fala de jovem casal que não consegue ser feliz. O egoismo dele tudo aniquila. Um filme simples, um ensaio para coisas maiores. Nota 6. ////////HAMLET de Laurence Olivier com Olivier e Jean Simmons Não preciso falar da excelencia dos atores. Este foi o primeiro filme ingles a ganhar o Oscar de melhor filme ( em ano muito forte, basta dizer que venceu Sierra Madre ). Já foi meu filme favorito, o que confirma a tese de Paul Valery de que crescemos todo o tempo com a prática da apreciação artistica. O filme é ainda maravilhoso, mas com esse texto e esses atores que filme não seria? Shakespeare tem alguns bons filmes no cinema, mas o melhor não é este ( é RAN de Kurosawa, baseado em Rei Lear ). O cenário é feito de escadas em espiral, fumaça e escuridão, e Simmons é a Ofelia mais bela possível, mas a direção de Olivier se perde as vezes num excesso de freudianismo ( sim, este é Hamlet sob a ótica de Édipo ). De qualquer modo é um espetáculo nobre e que deve ser sempre visto e revisto ( é minha sexta apreciada ). Hoje um filme tão elevado ganharia o prêmio? Nota 9.//////////// O AGENTE SECRETO de Alfred Hitchcock com John Gielgud e Madeleine Carrol Hitch na Inglaterra fez filmes melhores que nos EUA? Ele próprio pensava que não, mas fica bem para um certo tipo de esnobe dizer que sim. Tolice! Embora na Inglaterra ele tenha feito algumas obras-primas, é nos EUA que ele atinge o cume dos cumes. Este é um suspense médio que serve para mostrar Gielgud, o melhor ator ingles de teatro ( é dele o maior dos Hamlets ), e que jamais deu certo nas telas. Nota 6. ////////////SABOTAGEM de Hitchcock com Silvya Sidney e Oskar Homolka Um belo Hitch da fase inglesa. Cheio de ação e com um clima opressivo, sórdido, cruel até. Lemos em entrevistas que ele não gostava do filme, mas é incompreensível: é uma obra invulgar. Destaque para a cena no ônibus e a da sala de cinema, Hitchcock já sendo um mestre absoluto. Nota 7. ////////////////A ÚLTIMA ESTAÇÃO de Michael Hoffman com Helen Mirren, Christopher Plummer e Paul Giamatti Só agora é lançado este filme que assisti um ano atrás!!!! Escrevi sobre ele na época e o registro novamente. Se voce quer saber algo sobre o gênio Tolstoi nada vai saber vendo o filme. Mas se voce quer ver dois atores dando aulas de magia e carisma, aqui está. Helen Mirren é a melhor atriz viva, Plummer não desaparece ao seu lado. O filme é bastante melancólico ( existe algum filme "artisitico" feito hoje que não o seja? ), e está longe de ser do tamanho que o tema merecia. Mas é bem superior a 99% daquilo que voce pode ver agora. Nota 6. /////////////////VIOLÊNCIA E PAIXÃO de Luchino Visconti com Burt Lancaster e Helmut Berger Citando Valery outra vez, se voce tem já alguma intimidade com grandes filmes corra ao Cinesesc e se dê o privilégio de ver esta obra-prima. Se voce ainda está naquela ração de lançamentos da semana, fuja. Visconti é o contrário de tudo o que se faz em cinema agora ( quase tudo ), ele é titânico. Seu tema nunca é modesto, tudo é sempre grande, vasto, operistico. Este adorável filme me toca profundamente por falar de meu tema favorito: decadencia. Vemos a vulgarização do mundo de um esteta, o assassinato da aristocracia de gostos e de gestos. O filme exibe a vitória da vulgaridade, do espalhafato, da grosseria. Quando os novos inquilinos chegam, vemos a barbárie rica e pretensamente chic tomar o poder. Impotente, só resta ao aristocrata assistir estoicamente o fim de seu mundo. Lancaster brilha intensamente. Cada olhar que ele nos dá é um testamento de nobre pensamento. O filme é inesquecível. Nota DEZ!!!!!!!!!! O MÁGICO de Sylvain Chomet Que decepção!!!! Este desenho homenagem a Jacques Tati ( parece que ele deixou um esboço de roteiro que foi aqui usado ) é tudo o que Tati nunca foi: chato. Os traços são maravilhosos, as ruas de Londres e de Edimburgo estão belas como em sonho, mas o desenho é de uma melancolia que parece forçada, poética demais. Há que se comentar um fato: por que os desenhos feitos a mão parecem mais humanos? Sem saudosismo, os digitais são mais perfeitos, mas um desenho como este sempre tem mais "autoria", mais calor. Mas o roteiro, sobre um mágico modesto, é enfadonho! Nota 4.////////////////// HEAD de Bob Rafelson com Monkees, Jack Nicholson, Frank Zappa e Victor Mature Jack Nicholson e Rafelson, amigos até hoje, se encheram de ácido e escreveram o roteiro desta viagem psicodélica. Entregaram tudo aos Monkees, que após o fim de seu seriado de sucesso na NBC, se despediam da fama com este fracasso. O filme é um caleidoscópico dia na vida da banda. Mas é dificil resumir a história ( que história? ). A trilha é fascinante e o filme, que hoje é hiper-cult, acaba sendo uma diversão bastante instigante. Para se ter uma idéia do filme, há uma cena com Zappa puxando uma vaca e outra com os Monkees presos num secador de cabelos. Foram meus primeiros ídolos, eu os amava apaixonadamente aos 7, 8 anos de idade. Ainda sinto algo quando os vejo. Nota 6.

O FUTURO É UMA CAÓTICA PROMESSA NÃO ESCRITA

A gente nunca sabe o que virá depois. Às vezes adivinhamos, mas é isso, adivinhação, acaso. Ontem estudamos um texto de Paul Valéry. 1922. Ele percebe o futuro da escrita. E acerta. O leitor se faz, desde 1800, tão importante quanto o autor. Mas não por bancar financeiramente a obra, não. Mas sim porque quanto mais se lê mais se penetra no mundo do escritor e mais se percebe que sua beleza e sua atemporalidade reside no erro, no que ele tem de igual a quem o lê e não em sua "divindade". Valéry nota então que para se entender a arte é preciso ter uma atitude individual- ou seja: eu lerei aquele texto a meu modo, diferente do modo de qualquer outra pessoa. Mas, o texto continuará sendo ele-mesmo: desafio constante a interpretações várias. Há mais. Shakespeare e Da Vinci são os pontos culminates do ser moderno. Te surpreende? Explica-se. No tempo de Leonardo os estetas amavam Michelangelo e Rafael. Da Vinci era uma curiosidade que fazia obras nunca acabadas, ele era imperfeito. Eis o modernismo! Leonardo não almejava a perfeição, ele sabia que a vida é caos e jamais se permitia ser acabado. Rafael, hoje amado, mas amado como algo morto, era perfeito e bem terminado. Apurado. Michelangelo sobrevive graças aquilo que ficou de inacabado, de dramático. O azar de sua vida foi sua sorte para o futuro. Mas Leonardo não! Tudo nele é esboço, é obra em andamento, é projeto, é tentativa falha ( gigantescas falhas ). Ele é mais que moderno, é vivo. Quando vivo Shakespeare era um sucesso. Mas um sucesso sem arte. Era considerado apelativo, grosseiro, um autor que misturava drama com comédia, que usava a violência sem razão de ser. Durante os duzentos anos seguintes a sua morte, tempo da razão absoluta, gostar de Shakespeare era considerado mal gosto. Ele era um bárbaro que não sabia refinar suas obras. Um crente em feitiçarias, em fantasmas, pior: um irracionalista. Com os romanticos alemães isso começa a mudar. Schiller e Goethe o reabilitam e o século XX tem uma Shakespearemania. Nosso tempo é o tempo de Shakespeare. Irracional, não refinado, uma mistura de poesia e grosseria, violento, caótico, sublime e grotesco, comico e trágico. E o principal: um bom leitor, um leitor moderno, vê em Shakespeare uma infinidade de leituras, inesgotável fonte de idéias. Hamlet pode ser farsa, freudianismo, marxismo ou delírio. Macbeth ateísmo, gnosticismo ou poesia satânica. Shakespeare conseguiu antecipar o século XX e provávelmente será presente por todo o século XXI ( se nossa era é virtual, tudo nele sempre foi virtualidade ). A leitura moderna só comporta então aquilo que abre portas para indefinições. Borges, Flaubert, Melville, Sebald, Poe, Calvino ou Joyce e Proust. Textos que se abrem infinitamente, que convidam a debate, a delirios, textos caos. Mann, Stendhal, Nabokov, Eliot, Stevens, Mallarmé, Cervantes. E outros mais. É o grande erro da literatura de auto-ajuda: eles falam do caos como coisa apreensível. O caminho da literatura é o oposto: o apreensível tornado caótico. Por fim, o bom autor passa a ser aquele que não se arvora estatuto de guia. Se escrito como pretensa obra de arte, normalmente tal texto torna-se um engodo. Vide Joseph Conrad ou Whitman, autores que jamais se pensaram como artistas. E que são arte e atemporalidade plena. ( O que me recorda o cinema de Hawks, Hitchcock e Ford, artesanato que se torna arte suprema pela graça do entendimento de quem os assiste ). Não há obra plena sem público que a complete. E não poderá ser completa sem um público que a saiba entender. Criativamente. Tá dito.

PARA QUE SERVE A POESIA?

Quando ia a sua casa ele logo entendeu, que tudo o que eu mais temia era meu desejo que dizia. Mas então se era a loucura o medo mais real, louco eu queria ser, um homem original... Para que serve a poesia? Para dar vida as coisas mortas. Para que serve a poesia? Para tolerarmos aquilo que morre. Para que serve a poesia? Para saber morrer. E ele disse em sala cheia: Se a poesia não houvesse sido criada no passado, ela existiria hoje? O homem de agora criaria a poesia? Dar vida a coisas mortas, fazer nascer o que nascido está, iluminar o medo e desafogar o afogado. A poesia nasceria hoje? Quando estive naquela sala, onde o nada imperava, tudo o que eu falava, dor/medo e saudade, era em forma de verso e de encanto. De onde vinha essa magia? Ao nascer eu fui roubado e outro ficou em meu berço, este aqui que meu pai viu, este aqui que minha mãe criou, este não sou eu. Ao nascer eu fui levado por um beijo. E da janela posso ver aquele que está em meu posto. E ela me espera, eu que fui roubado. Esse que lá ficou conta. Eu que fui beijado nunca cesso. Para saber morrer é preciso viver. Epifania. Em 1991 Apolo me acenou na forma de luz e de letra impressa. O raio de sol entrou pelo meu olho e me cegou para fora. A canção de Yeats saiu do livro e saiu de mim ( eu já a sabia antes de a conhecer ). Epifania. Um deus falou em minha vida. Aquela tarde, 28 de abril de 1991, jamais foi deixada. A água tragou minha vida então. Ofélia acenando na névoa. Crianças roubadas todas as noites. A lua sabe. Meus pés estão na lama da ilha. Para sempre e mais algum tempo mais. Para que serve a poesia? Unir a criança e reavivar a lama. Perder a razão e o medo de se ir. A janela, a janela, a sempre presente janela. Este mundo criaria a poesia? Mas a questão é: a poesia criou este mundo? Uma criança lê the stolen child.

The Stolen Child - W.B. Yeats

leia e escreva já!

Erik Satie Gymnopédie nº 3

leia e escreva já!

O MELHOR ESCRITOR INGLÊS FOI POLONÊS

Bangcoc, Malacca, Bornéo, Saigon, Manilla, Hong Kong, Tahiti... esse é o mundo do polonês que se fez o melhor ( e mais influente e moderno ) escritor inglês. Ele nasceu com o nome de Josef Korniewicz e seus pais foram perseguidos pelas autoridades russas ( lutavam pela independencia da Polonia ), mortos os pais, foi criado por um tio que o colocou nas melhores escolas. Mas tudo mudou novamente, quando aos 17 anos ele se empregou na marinha mercante inglesa. Foram dez anos no mar, dez anos no oriente, entre ilhas perdidas e colonialismo ( 1900, tempo em que o mundo ainda tinha recantos misteriosos ). Apenas aos 40 anos, já na Inglaterra e em terra firme, rebatizado como Joseph Conrad, ele passaria a ser um escritor profissional. E estranhamente, apesar de polaco, se tornaria um mestre do idioma. Escrever nunca seria um prazer para ele, escrevia para fixar suas lembranças, e apesar de ser defendido por Henry James e HG Wells ( e depois amado por Heminguay ) os criticos de então o consideravam um mero autor de aventuras, um escritor superficial. Preferiam Thomas Hardy ou Virginia Wolff. O tempo sempre faz justiça na arte. Ao fim da vida, autor de montanhas de livros, Conrad se torna laureado e popular. E como sempre, honrado, jamais aceitou qualquer homenagem. Não esqueceu as ofensas. O mundo que ele retrata é maravilhoso ( e sempre trágico ). Europeus fracassados em sonhos de riquesa e poder, perdidos em ilhas abafadas e cheias de mosquitos, cheios de doenças e bebida, incapazes de fugir pois amam aquilo que os mata. Europeus inadaptados ao mundo mestiço dos trópicos, homens honrados que sempre afundam em medo e desencanto. Conrad é raro, é dos poucos autores que misturam aventura e arte em doses iguais. Um tipo de Akira Kurosawa das palavras. Tudo nele tem ação, as coisas acontecem no mundo real, mas ao mesmo tempo, as coisas acontecem dentro dos personagens, existencialmente. E que personagens! São trágicos grandiosos, se movem em ódios e paixões mesquinhas, são covardes e falsos, e às vezes muito nobres. Acima de tudo, são como eu e voce poderíamos ser se tivéssemos hoje o espaço para o ser. Pois naquele mar estagnado e naquelas ilhas mortas, eles podem se fazer inteiros, mesmo que essa inteireza seja podre e fétida. Li quatro livros de Conrad e agora estou embrenhado no quinto. Lord Jim foi o primeiro. A saga do homem covarde que tenta por toda a vida se redimir. Depois vieram Nostromo, O Coração das Trevas ( que originou o Apocalypse de Coppolla ), O Agente Secreto, que foi filmado por Hitchcock.... Todos são brilhantes, viciantes, ágeis e genialmente bem escritos. Ele mescla a ação com observações filosóficas profundas, surpreendentes, cínicas e poéticas. Mestre. Estranho país a Inglaterra. A partir de 1880, e apesar de vários bons escritores, seus gênios são todos estrangeiros. Irlandeses ( Yeats, Shaw, Joyce, Wilde, Synge ), americanos ( Henry James, Eliot ) e até um polonês, Joseph Conrad. Nasce dele toda a linha aventureira/existencial que tanto marcaria o século XX, de Heminguay a Malraux. Mas acima de qualquer critica, ler Conrad é uma diversão. Há coisa melhor que isso? Ler alta arte com um alto grau de prazer juvenil? É claro que toda arte genial dá prazer. Mas esse prazer pode ser árido, ou até mesmo custoso. Em Conrad não. Como, volto a dizer, no cinema de Kurosawa, temos aquele tipo de diversão de adolescência, direta e simples, mas misturada com a profundidade escura e terrível de Dostoievski ou do cinema de Dreyer. Esse é o ideal de todo escritor moderno. Quantos chegaram lá?

COMO VER "A LUZ" SENDO ATEU

Dentro dessa influência oriental, dessa revalorização do reprimido ( nosso imenso lastro pagão ), quero falar sobre o zero. Invenção hindú ( apesar do orientalizado Pitágoras ter tocado no problema ), o zero é um problema que afeta toda a ciência, incluindo a linguistica e a psicologia. Pois o zero existe, é 0, mas ao mesmo tempo não existe, é um vazio, um nada, uma ausência. Percebe o tamanho do problema? Como pode um símbolo ser um ente não existente? E como pode esse nada afetar o 1? Somente o pensamento abstrato superior poderia conceber esse aparente e ilógico absurdo. A ausência significando algo. Dito isso. Me é impossível crer em algo que meus sentidos não podem provar. Apesar do zero. Apesar de eu obter ontem a informação de que a ciência moderna desistiu de saber os porques e as origens, se focalizando agora apenas nos para que. A ciência entregou os pontos, nada pode ser explicado após a terceira questão ( a maçã cai por causa da gravidade, a gravidade existe por causa da massa, mas porque a massa atrai? O universo se expande por causa do big bang, fora do universo existe a não matéria, mas de onde surgiu o não vazio? ). Não posso crer porque nasci e estou imerso no pensamento de meia dúzia de gregos que criaram o único mundo que me é familiar. Portanto, por mais que eu ache sedutora a idéia de anjos ou de Buda, são idéias para mim inalcansáveis. Mas existem ateus e ateus. Explico. O ateu fechado em si, normalmente seco e sem criatividade, pensa o mundo como ação e reação, numa lógica que depende muito mais de fé do que ele imagina. Ele deseja crer na lógica, na razão, e jamais percebe que essa forma de pensar fecha portas e possibilidades sem nada dar em troca. A vida se torna quimica. Para o outro tipo de ateu, no qual me incluo, a vida também é quimica, mas não só quimica. A lógica existe em problemas matemáticos e a razão é uma parte do todo, nunca o todo. É um ateísmo que reconhece o limite do saber, que aceita o mistério e a transcendencia ( não como fé, mas sim como abertura de novas possibilidades de pensar e sentir ). Quando Jung fala de espirito é disso que ele fala: tudo o que há no ser fora da razão, do consciente, do ego. Nada tem a ver com Deus ou deuses. Muito tem a ver com o tal vazio oriental. ( Para Buda quando morremos, se tivermos sorte, morremos como ser individual, continuamos como centelha divina. Ora, se meu ego morre não mais sou ). Olhar para fora e reconhecer que quase nada sabemos, olhar para dentro e perceber que quase nada percebemos, saber que da vida não somos senhores e que nossa vontade é minúscula perante o que significa viver. Não creio em Deus ou milagres, mas sei o imenso valor ( central e definidor ) da experiência religiosa. O ateu que fecha os olhos para esse fato ( ele estranhamente e de forma medieval crê que se não pensar nela a religião deixará de ter valor!!!! ), se priva de uma fatia imensa da vida, joga fora a chance de enriquecimento da alma e amputa toda uma possibilidade de criação e de crescimento. Torna-se avestruz pensando ser um leão. Ainda acrescento que nossa herança ( genética? ) pagã está viva em todos nós. Foram milhares de anos de animismo, de comunhão com a natureza e apenas 3000 anos de ciência. Como asfixiar essa verdade? O homem que usava amuletos e falava com o sol ainda vive em mim. Poesia, lendas, música, dramas e sonhos tentam nos lembrar disso. Não consigo crer em Deus ou na vida pós-morte, mas não posso roubar de mim mesmo essa herança ( parte que justifica e dá sentido a vida ). O resto é brincadeira de cientistas.

CONTRAPONTO- ALDOUS HUXLEY

Reli este livro estes dias... Huxley tem as raízes de seu espirito no movimento romântico alemão de 1790. A insatisfação com o mundo em que se vive e a tentativa de mudar as coisas. Esse espirito rebelde está presente no simbolismo francês e no começo do século XX é preponderante em gente como Hesse, Mann, Jung, Joyce e Pound. O que os une é um desejo de suplantar a tradição de pensamento greco/cristão, uma busca por alternativas de arte/vida que em seu extremo leva a pregação de uma espécie de negação dos conceitos de tempo/filosofia do ocidente. Os celtas, os vikings, os trolls, e também os hindus e aztecas são visitados por todos esses artistas/escritores/pensadores. Conceitos de verdade, de objetivo e a própria forma de viver no mundo são repensadas. É tentada a liberação de conteúdos negados por mais de 3000 anos. Toda a contracultura, todo o cinema de autor, beberá nas fontes dessas primeiras décadas do século de 1900. O livro de Huxley nos entontece. Não há centro em sua narrativa. Não há linearidade. Todas as histórias, de todos os personagens, acontecem paralelamente. É o conceito sincrônico, conceito que nega causa e origem, conceito anti-grego, aplicado ao romance. Nada parece lógico, nada é consequencia de nada, a vida de cada ser é definida apenas pelo momento presente. Huxley consegue jogar com tudo isso sem jamais parecer estar jogando. As peças desse xadrez emocional se movem em regras atemporais, mas com uma lógica que é construída em cada frase. Tudo é vivo. Ao terminar essa releitura, sinto que o mundo de hoje está muito mais próximo de um novo paganismo que daquilo que meia dúzia de gregos nos legou. A imensa força intelectual que esses poucos áticos nos deram ( um feitiço? ) está desde os tempos de Contraponto em processo de putrefação. Coisas como história, politica, filosofia, causa e efeito, catarse e lógica linear têm desaparecido. Não era esse o objetivo de Huxley. Sua utopia feliz seria a de um mundo que unisse o bom dos dois mundos, mas o que temos vivido é o retorno de um tipo de relativismo pagão e de uma atitude anti-racional nada grega. Temos o isolamento oriental sem sua sabedoria, e a hiperatividade do ocidente sem seu sentido de história. Um tipo de hiperatividade "cada um no seu mundo particular", o nome disso é alienação, outro nome é psicose branda. Eu me movo sem motivo particular, voce se move sem motivo particular e ambos vivemos em mundinhos que remetem a mundinho próprio e sem fim. Huxley percebeu tudo isso oitenta anos atrás. Sua esperança era a de que cada um mergulhasse em suas trevas pagãs e descobrisse o gênio dentro de si-mesmo. Nada feito, a covardia venceu. Contraponto nos mostra, nos condena e nos remete ao começo. É livro terrível, soberbo e alucinógeno. Leia.

O MUNDO HOJE OU VALE QUEM VENDE MELHOR

Esta eu não sabia e foi discutida em aula: Na Grécia existiam os sofistas. Até aí tudo normal. Eles não acreditavam na existência real das coisas, portanto, tudo era relativo. Verdade, justiça, bem, beleza, ética, todos eram valores relativos, não reais. A única verdade seria a verdade imposta pelo convencimento. Verdade é aquilo que alguém me convence, com discurso bem elaborado, a aceitar. Platão se irritava muito com isso e toda a sua filosofia é refutação dessa idéia. Para Platão, verdade, bem e belo não são relativos, eles existem como idéias superiores, independentes de nossa vontade. Por mais que eu queira que George Lucas seja o melhor diretor de cinema da história, existe uma verdade: ele não é. Em nosso mundo ocidental a idéia sofista é tão vitoriosa que no debate que se instaurou em classe todos os alunos ( inclusive eu ) caíram em contradição. Todos execraram o relativismo que nos obriga a considerar tudo válido, tudo discutível e tudo um caso de crença pessoal. É mundo onde a filosofia verdadeira se torna impossível, porque tudo se reduz a um absoluto "cada um na sua". Se eu disser que Britney Spears é genial e criar argumentos que me apóiem voce será obrigado a aceitar minha tese, mesmo discordando, pois não existe no relativismo uma medida de genialidade ou sequer de valor. O discurso é sempre o mesmo: Eu penso assim e essa é a Minha Verdade. Segundo Platão, todo estado que vive nesse individualismo de idéias próprias tende a decair. Simplesmente por não haver coesão, união em um ideal. Toda a sala de aula sentiu aversão pelo relativismo, pela vitória do belo discurso ( mesmo que vazio ), pela prevalencia do cada um na sua. Mas ao ser exposto o que seria seu oposto fez-se mais uma aversão. O platonismo real seria a vitória da verdade, mas quem saberia qual a verdade? O líder ou o senso comum? O exemplo mais próximo de platonismo existe, e bem vivo, em todo o mundo do islã. Uma única verdade, um único bem, um conceito de belo e de ético. Fez-se o nó: aversão ao relativismo, total impossibilidade de aceitar que alguém pense e julgue por nós. Conciliação impossível. Eu sou, todos somos, sem o saber, sofistas. Tudo é relativo, tudo é um imenso talvez. Quando alguém diz que sem o facebook não vale a pena viver, acabamos por crer nisso. Se falam que café faz bem, acreditamos. Se disserem que Neymar é melhor que Pelé iremos apoiar. Desde que esse discurso seja sedutor, bem elaborado, convincente. Tempo em que não interessa a verdade, interessa o slogan. Dentro desse mundo me é impossível sequer imaginar uma alternativa. Para mim, o mundo parece ter sido sempre assim. E pensar que me imaginava platônico....