HOMENAGEM À ROBERT CAPA

Deem-me uma guerra para lutar. Mas que seja justa, que eu possa atirar em nazistas. Libertar judeus e ciganos, me sentir vivo.
Me deem uma cidade em ruínas para reconstruir. Unida por ter vencido um inimigo. Eu quero vizinhos em abrigos onde se dividem coisas que são poucas. Deixem-me querer pouco.
Eu quero viver e o homem, falemos a verdade, nasceu para a ação.
Para onde foram meus partisans? Onde morreram os bolcheviques? Confederados e cruzados, onde estão? Me canso de lutar em telas ou de me jogar em abismo ( amarrado ) tentando uma emoção.
Essa molecada que se entope de crack e fica por aí gastando energia no mal. Lhes falta onde viver. É só isso, e é terrível de dizer. Nos falta um campo de batalha onde provar a vida e o valor.
Quero inimigos e poder odiá-los.
Para assim poder amar meus companheiros.
Quero proibições e perigos.
Para poder os derrotar.
Meus partisans, onde foram?
Se tudo vale, nada tem valor. Se tudo é relativo, nada é de verdade.
Vejo essas fotos de Capa e os rostos que nelas estão. Por que eles parecem tão de verdade? E por que tantos rostos de hoje parecem ser tão falsos?
Quero o cheiro de corpos reais, e a falta de jeito de quem nunca posou.
Uma guerra justa para ser vencida. Ser o tigre em seu jangal.

ROBERT CAPA NA TV CULTURA

Cartier-Bresson e Robert Doisneau são mais conhecidos. Man Ray é mais artístico e Richard Avedon glamuroso, mas Robert Capa foi o maior. A tv Cultura, em seu atual renascimento, exibiu ontem um suscinto e belo documentário sobre esse herói da objetiva.
Capa cobriu guerras. A revolução da Espanha, a chinesa, a segunda grande guerra, a revolução do México. E sempre esteve contra o fascismo. Foi o único fotógrafo no desembarque do dia D. Ele estava lá, desceu em meio as balas, na areia e no frio. Entrou em Pequim e fotografou discursos e tiroteios. Seu ditado era : se a foto não saiu boa, foi porque não me arrisquei o bastante.
Amava a vida. Bebia e namorava muito. Bom conversador, sorridente, um tipo latino. Suas fotos têm a força de literatura completa. Cada foto é uma narrativa sobre aquele fato. Voce as olha e imediatamente ouve a história. Serão eternas.
O maior momento de Capa foi a libertação de Paris. Nossa geração, penso eu, jamais terá idéia do que foi aquilo. Imagine um dia em que todos saem à rua para celebrar a derrota de um inimigo comum. Mais que isso, o final de um terrível pesadelo. Penso que nunca mais comemoraremos a derrota de um inimigo. Pois nunca mais poderemos crer na vitória. Milhões de pessoas nas ruas, cantando, chorando, rindo, se beijando. Milhões de pessoas completamente felizes. Sem qualquer pudor. Me é, nos é, inimaginável. E aconteceu a tão pouco tempo.....
Após a segunda-guerra Capa foi para Hollywood. Para descobrir que o mundo falso do cinema lhe era insuportável ( o que não o impediu de ter um caso com Ingrid Bergman. Mas ela era uma estrela anti-Hollywood ). Mesmo assim, Capa tem belas fotos de Hitchcock, Ingrid, James Stewart, Cary Grant e George Cukor. Mas seu lugar era Paris.
Volta e cria a Magnum ( nome tirado de uma champagne ). Com Bresson e outros, é criada a primeira agência de fotógrafos. Eles vendem suas fotos aos veículos que desejarem. São donos de seus narizes. Sebastião Salgado é hoje membro dessa agência ( que sempre tem apenas dez ou doze participantes ).
E Capa vive. Festas, casos, jazz. Até que é chamado pela revista Life para fotografar o Vietnã. Os vietnamitas lutavam contra a França. Tentavam se libertar. Capa foi. Tirou fotos assombrosas. E morreu por lá, ao pisar numa mina. Tinha trintae oito anos.
Os vietnamitas queriam o enterrar em Hanoi. Mas foi levado para New York.
Não haverá mais espaço para novo Robert Capa porque hoje temos um bilhão de fotógrafos fotografando tudo. Isso é bom. Posso brincar de ser Capa. E sei que meu mundo estará para sempre vivo nessas imagens que não param de se reproduzir. Democracia.
Mas por outro lado, em meio a essa massa imensa, se existir um talento tão forte quanto o de Capa, ele será imediatamente subjugado pelo clamor dessas imagens que não cessam de brotar. E pior, nosso olhar, sempre instigado e confundido por cenas que não páram de chegar, não será mais educado por outro olhar, um olhar mais apurado, treinado e sábio. Na bilhanesca quantidade de imagens, todas terminam por ter o mesmo valor : a irrelevância.
Nisso a geração de Capa foi privilegiada. Como aconteceu com o cinema e a música da época, é uma geração que teve a sorte de ser a primeira e ao mesmo tempo a última. A primeira a conhecer a comunicação global, e a última a ter o tempo necessário para se desenvolver e ser apreciada.
Tenho em casa um livro de Robert Capa. Fotos da Espanha, da China e da grande guerra. E das festas em Paris. São como textos de Heminguay ou páginas de Proust. Tudo está lá. Tudo. Mas o que mais se percebe é a força de quem tirou essas fotos. Se em Bresson percebemos a ordem e a suprema maestria do francês, e se em Doisneau vemos a poesia e a fé do fotógrafo, em Capa não paramos de notar, em toda foto, a coragem, a virilidade, a confiança de quem as produziu.
Robert Capa foi um Homem.

O FILÓSOFO E O CACHORRO

Admitir que nada se sabe ( e citar Socrates ) é sempre uma forma de se desculpar por sua obtusidade. Ainda mais quando se diz que ninguém é seu herói. Ser "humilde" e ao mesmo tempo vomitar teorias sobre macacos e lobos é tão esquisito quanto falar que macacos são interesseiros. Simios não entendem a vida em termos morais. Eles apenas tentam se defender do perigo e para isso procuram a proteção do grupo. Lobos são muito mais fortes, e apesar de também viver em grupo, eles podem lidar mais facilmente com o medo.
Macacos, como nós, são acima de tudo covardes.
Confundir religião com política é um erro que todo "intelectual" superficial faz. Igreja é politica, religião é outra coisa. É o que nos diferencia de macacos. Ter fé em prescindir da fé, ou melhor, ter fé na inteligência racional, o velho e mofado cartesianismo.... percebe a incongruência ? No fim é tudo uma questão de querer se acreditar, seja em Marx, Jung, Kierkgaard ou em seu próprio ego.
Eu tinha 28 anos de idade quando escrevi um texto dizendo que meu cão, Nick, era um grande filósofo. Seu delicado imediatismo me ensinava o que era a vida. Gostava de acreditar ( tinha fé ) que ele pensava e tinha chegado a uma simplicidade proposital. Eu dormia com ele e o observava. Hoje sei que minha relação com ele era de afeto.
Nosso lado macaco é nosso lado "romano". Aquele nosso ser hiper-social, falador, medroso, e que quer ver apenas o óbvio. Nosso lado que vive em função do agora e que está preso na retidão da história e nos desejos do estado. Não temos nenhum lado lobo, muito mais interessante é dizer que temos um lado tigre. Pois é o tigre o verdadeiro oposto ao macaco. Absolutamente solitários, absolutamente silenciosos, totalmente misteriosos. O tigre é nosso lado pagão, celta, bárbaro, mistico. É ele que não pode se comunicar, não admite viver em grupo e vê a vida como emaranhado, círculo sobre círculo, selva indiana ( jangal ).
Macacos são cotidianos, simples, sem segredos.
Tigres são além da vida, complexos, cheios de perigos, fugidios.
O tal autor fala obviedades sobre obviedades.... todo best-seller é sempre macaquice.

TOP HAT - MARK SANDRICH

A partir do momento em que se coloca alguém como Daniel Day Lewis num musical ( Nine ) ou Renee Zellweger ( Chicago ), está provado : falta talento musical no mundo. ( Os dois são bons atores, mas sabem cantar ? Sabem dançar ? Têm carisma de entertainer ? )
Top Hat é um dos top 5 de Astaire. Por que ? Vamos explicar.....
Música. Quem a faz é Irving Berlin e se voce não sabe quem é Berlin...bem, sinto por voce. Berlin é um dos cinco grandes inventores da musica popular americana. Um cara que foi e é regravado sem parar ( por Billie, Sinatra, Ella, Chet, Sarah, Harry, Norah, Anita.... ). Impossível alguém não conhecer pelo menos meia dúzia de músicas dele. Pois bem, aqui estão as melhores. Cheek to Cheek, Lovely Day, Top Hat... e cantadas por Astaire que foi quem as popularizou primeiro. E o que são essas canções ? Classe baby, classe. Elas são melodias sobre a alegria do amor e também sobre como sofrer a dor de amar sem perder a consciencia da beleza de se estar in love. Mais que isso ? Aula de elegancia, harmonia e infinito.
Dança. Fred Astaire trabalhou com Hermes Pan no filme, e Ginger Rogers dança com ele. Fred é etéreo, nada nele é sexy. Ginger é pimenta, tudo nela é sexo. Eis a perfeição. Fred leva a dança ao cúmulo do sublime, Ginger o traz de volta a terra. Ela era uma atriz esfusiante ( e linda ) e ele era... um anjo ? O segredo de se entender o musical está lá explícito : na dança eles conseguem nos mostrar tudo aquilo que sentem. A forma como ela vai cedendo e se dá em Cheek to Cheek é dos momentos que justificam o cinema.
Cenário. Van Nest Polglase e Carrol Clarck. Coisa de gênio. Tudo é completamente de fantasia. Hotéis pintados de branco e creme, vidro e tapetes ( brancos ). Se o paraíso tem algum design é este : os quartos dos hotéis dos filmes de Astaire/Rogers. A Veneza que aqui aparece não tenta ser Veneza. É a Veneza da RKO, de Van e Carrol, é a cidade de Fred e Ginger. O céu.
Roteiro. Desencontro amoroso. Ele conquista garota, perde a moça, a reconquista. É só isso. Mas os diálogos são espertos, leves, "champagnosos". Pipocam como bolhas de bebida ( nunca como tiros ). E são ditos por Everett Horton, Erik Blore e Eric Rhodes, atores coadjuvantes de talento cômico, elegantes e excêntricos, amáveis.
Direção. Mark Sandrich segue a frase de Astaire: ou dança a câmera ou danço eu. E então a câmera abre o foco e não corta. Ele dança sem edição. Nada mais anti-MTV, o cara tem de dançar de verdade, nada de cortar. Eu contei, acontecem takes de um minuto sem um corte, sem um movimento de câmera, nada. O que se move é o corpo.
Produção. Pandro Berman. Top da RKO. Sets do tamanho de aeroportos. Plumas, pratas, limusines e todo o talento que o dinheiro podia comprar.
O que dá tudo isso ? Duas horas de diversão absoluta, de contato com mundo superior, de refinamento espiritual, de aprimoramento do gosto. É pouco ? Onde se encontra esse talento hoje ? Não em Penelope Cruz ou Richard Gere. ( Volto a dizer, seus talentos são outros ).
Foi a décima vez em que assisti este filme. Mal posso esperar pela próxima !

FELIZ 2011 - O CINEMA DOS SONHOS

Tendo o mesmo aspecto onírico que a poesia, o cinema dos anos 30 é absolutamente simbólico e arquetípico. Mesmo quando ele procura ser "vida real" , mantém sempre o espírito de sonho, de atemporalidade e de vida inconsciente ( pois não é nosso inconsciente atemporal ? ). Não tendo nada a ver com a crueza do mundo real, ele fala diretamente com o que há de mais profundo em nós. Seu reino é a alma do homem. Se voce perdeu, ou jamais teve, acesso a esse seu universo, esqueça o cinema dessa época. Não é para voce.
Para se usufruir do privilégio desse mundo, é preciso relaxar. Esqueça a adrenalina do cinema atual ou a "arte" dos anos 50/60. O cinema da golden age é paisagem e vinho raro, aprecia-se, ama-se, aprende-se.
É absolutamente classe AA. Espiritos mal educados jamais conseguirão compreender seu valor.
Tudo nele é luxo. E luxo de verdade ( luxo que remete a mármore e seda, e não a aço e fibra sintética ) não excita, acalma. Mesmo seus dramas policiais, suas denúncias sociais, possuem esse aspecto de luxo, de segredo para poucos, de nascimento de um sonho. E ele deve ser amado, nunca admirado, porque admiração pressupõe razão e amor fala ao instinto. Instintivamente amamos aqueles filmes porque eles parecem ter sido feitos com naturalidade, sem forçar, ao sabor do vento. Os rostos que lá vemos são os patriarcas e matriarcas da arte das telas, e seus cenários possuem a tênue irrealidade da vida imaginada, desejada, sonhada.
Aprendia-se a ser homem com Gary Cooper e como se abordar uma mulher com Clarck Gable. Henry Fonda demonstrava o que significava ser nobre e Errol Flynn a ser leve. Cary Grant dava aulas de elegância enquanto William Powell mostrava como ser charmoso e feliz no casamento. James Cagney mostrava aos durões como ser mais durões e Humphrey Bogart instituia o cool. Groucho Marx ensinava a ironia e o nonsense e Spencer Tracy o machismo tranquilo. Em todos esses atores, ensinados a ser estrelas pelos fortíssimos estúdios e produtores de pedra, havia a total ausência de carnalidade, de fedor, de neurose ou de fraqueza. E sobre todos eles, vivia o mais irreal dos astros : Fred Astaire.
O mundo que criou Astaire é o mundo que não conhecia a bomba atômica, a poluição, a droga e o campo de concentração. Astaire nasceu quando ainda se podia viver na completa ignorância da maldade e do crime. Viena ainda não havia sido esquecida.
Em quarenta anos de carreira nada em Fred Astaire é menos que perfeito. Ele esteve em muitos filmes ruins, mas em cena, ele sempre foi Astaire e isso era um tipo de mensagem vinda não se sabe de onde, a nos dizer : Hey, os homens poderiam ter sido assim ! Perfeitos. O nascimento de um novo Fred Astaire é tão impossível quanto o nascimento de outro Shakespeare. O mundo que o criou está completamente passado.
Mas nossa alma, nosso inconsciente ou o que seja, que não reconhece tempo ou distância, continua sendo atingido, embalado, hipnotizado pela cadência musical dos filmes desse período. É uma espécie de religião ( os poucos amantes desses filmes se comportam como se fossem fiéis a um tipo de deus/ deuses ). Os filmes desse tempo jamais voltarão a ser POP, mas serão para sempre MITICOS.
E é maravilhoso para mim voltar a ver esses filmes. Após duas semanas de filmes dos anos 2000 ( alguns excelentes, muitos ruins, mas todos febris, neuróticos, nervosos, sem transcendência ), é uma felicidade, inimaginável para os não iniciados, reencontrar esses ícones, reencontrar o rumo, a poesia, o sentido, a paz. Assito ontem a FOLLOW THE FLEET, que nem é um Astaire dos melhores, e me vejo sorrindo todo o tempo, vendo o mundo como coisa maior, mágica, sublime. Reencontro os rostos de Ginger Rogers e de Randolph Scott e revejo linhas de poesia em forma de cinema.
Quando Fred pega Ginger e canta dançando LET'S FACE THE MUSIC AND DANCE, todo o segredo da vida é exposto. Tudo fica claro, nitido, simples e melhor, fácil. Eu merecia isso em ano que começa.
Se um dia existiram santos sobre a terra, Fred Astaire foi um deles. O bem que ele faz é milagre.

KUNG FU HUSTLE - STEPHEN CHOW

Quantos filmes voce já assistiu que te deixaram feliz com a vida ? Este é um deles. Feito em 2004, pelo maior star do oriente ( Chow ) ele é uma carinhosa sátira e também homenagem, aos filmes de kung fu dos anos 60. E é, principalmente, a melhor comédia da década.
Nos anos 30, a Quadrilha do Axe aterroriza um bairro proletário da China. Mas não sabem eles que alguns dos moradores são velhos mestres Shao Lin. Só isso ? Não, há muito mais. Todos os persoangens são criações geniais. Não há preguiça em sua gênese, o que existe é muita inspiração. Vemos o herói ( Chow ) que é um valentão que não sabe lutar; seu amigo balofo e uma vendedora de sorvetes muda. Há a senhoria que só grita e tem um cigarro enfiado na boca, o marido, tipo ridiculo de conquistador barato; o barbeiro de bunda de fora e o alfaiate gay; o lider dos axes, estiloso, que tem cena de dança hilária, o velho assassino de chinelos e careca.... há tanta criação no filme, tanto prazer em fazer ( e em agora assistir ) que fica dificil transmitir sua riqueza.
Posso garantir que seus primeiros vinte minutos são das melhores coisas que já vi no cinema dos últimos trinta anos. Velocidade, surpresas, colorido, e uma trilha sonora vibrante e puramente chinesa. Como diz Roger Ebbert, é uma mistura de Tarantino com Pernalonga, mais Buster Keaton e Jackie Chan. Há de tudo aqui, arte superior e tolice de cartoon, sangue e risos, dança e filosofia. E depois desses vinte minutos, quando já nos acostumamos com tanta criatividade, relaxamos e usufruimos do resto da festa.
Só agora, no fim da década, é que vejo o que perdi : filmes de Hong Kong, Taiwan, China, Coréia, Malásia, Cingapura e Tailândia. Todo um continente preso em nosso preconceito ( ou preguiça de procurar ). Filmes Pop como os americanos não conseguem mais fazer. Sem medo, sem pretensão, sem preguiça.
Será Stephen Chow o melhor diretor do mundo ?
Não sei se ele é melhor que os Coen ou que Tarantino. Não sei se ele é tão fascinante como Scorsese ou se tem uma marca autoral como Eastwood. Também não posso saber se ele é tão inquieto como Aronofski ou Almodovar. E se ele tem a gana de Arau ou de Frears. Mas o que eu sei é que nenhum deles é MELHOR DIRETOR que Stephen Chow. Diretor no sentido de saber fazer um filme, entender da técnica, da montagem, do roteiro e da cor. Fosse americano ou inglês, ele dominaria facilmente Hollywood. Talento tão pop e tão brilhante não há.
Nunca é tarde para descobrir coisas novas, e este filme é absolutamente NOVO. Ele não entende o novo como colocar telas de computadores no filme e fazer a câmera tremer. Ele não procura ser novo abusando de efeitos ou enchendo a trilha de pop music. Nem comete a bobice de confundir novidade com video game ou tédio deprê. Ele sabe que o novo, o que só nosso tempo pode ter, é o carnaval de referências, a irreverência plena, a elétrica criação sem pudor algum. Um caldo onde tudo cabe e tudo é válido. Um caleidoscópio chinês. Uma feira de contrabandos. Isto é novidade, isto é jovem. Delicie-se....
Stephen Chow é o máximo.

RIDLEY SCOTT/ JEFF BRIDGES/ JORDAN/ TOMMY LEE/ SARAH POLLEY

ROBIN HOOD de Ridley Scott com Russel Crowe, Cate Blanchett e Max Von Sydow
Quanto deve ter sido estranho para Max estar aqui. Em 1956 ele visitava a idade média em O Sétimo Selo, e agora é a única figura real neste tolo e muito chato pastiche. Cate está terrivelmente chata e Crowe, ator excelente, não tem um personagem definido para atuar. O filme, longo demais, não emociona, não interessa, é um nada. Nota 2. Pelos cenários.
HOMEM DE FERRO 2 de Jon Favreau com Robert Downey, Gwyneth Paltrow, Mickey Rourke, Scarlett Johansson
Após me acostumar com a arte refinada das cenas de ação dos filmes orientais, fica dificil aturar cenas de ação tão óbvias. Todas as lutas deste filme são cliché. Lá vai o bonequinho ( desculpem, mas é um desenhinho bem chinfrim ) voando, tiros e explosões, ele quase sifu, ele reage, explosão, ele sai voando.... caraca!!! Quem ainda aguenta esses filmes de hq???? Downey mostra porque nunca se tornou um ator classe A : aqui aparece sua enorme antipatia. Seria lindo ver Mickey dar uma surra nele ! Falha do filme : Mickey é muito mais interessante. Não dá pra torcer pelo mala do Stark. O filme é chato pra cacete !!!! Nota 2 pelo Ac/Dc na trilha.
UM ANO DE CÃO de Daniel Von Akon com Jeff Bridges
Um escritor em crise se isola da familia com seu cão-problema. Para quem ama cães é um prato fino. Jeff faz o personagem com muita preguiça e mal-humor. Gran Torino versão canina. A Rolling Stone reconheceu que Jeff em O Grande Lebowski tem uma das maiores atuações da história. Demorou ! Jeff Bridges é o cara ! Nota 5.
ONDINE de Neil Jordan com Colin Farrel e Aljcia Bacheda
Atenção: Colin sabe ser ator. Mas só quando o filme fala de sua terra, Irlanda. Aqui ele é um pescador que ao encontrar moça em rede quer crer ser ela uma sereia. A moça, Aljcia, é lindissima, mas muito má atriz. É uma delicia o sotaque da ilha, mas o filme não tem nada dentro de si. Quando vem a verdade ele desaba de vez. Pobre de idéias, pobre de coragem. Neil Jordan fez este filme para que? Nota 4.
THE RUNAWAYS de Flora Sigismondi com Kristen Stewart, Dakotta Fanning e Michael Shannon
Para quem gosta de rock é obrigatório. Nada alegre, nada levinho. Um drama sério e muito bem interpretado ( mesmo pela crepuscular Kristen ). A música das Runaways era de uma pobreza óbvia, mas o filme é tão bom que faz com que elas pareçam melhor ( ou será porque hoje o som delas é cult ? ). Meninos creiam, o mundo em 1976 era daquele jeito, e era muuuito divertido ! Depois vem o bode das drogas, mas o filme consegue não ser moralista demais. Nota 7.
RISCO DUPLO de Bruce Beresford com Ashley Judd e Tommy Lee Jones
Em época de Angelina, Nicole, Scarlett e Charlize, ninguém é mais bonita que Ashley. Certos closes chegam a fazer doer de tão bonita. E melhor, ela parece de verdade, real. É uma mulher. Bem... misture isso com a presença carismática de Lee Jones e temos um belo passatempo. É verdade: o filme é uma delicia tola ! O enredo, que tenta ser Hitchcock, é cheio de furos, mas Beresford é bom diretor, sabe levar a coisa no ritmo certo. E tem New Orleans, muito bem fotografada. Profissionalismo pop, e saiba, isso é muito raro. Nota 7.
AMORES PERROS de Alejandro Iñarritu
Uma poderosa obra-prima. De um niilismo cruel, ele jamais apela para o melodramático. A primeira parte é suja, dura, dificil de assistir. É a parte "classe baixa" com seus bebês jogados ao léu, sua violência latente, a ausência de pais e de paz. Na segunda parte vem a asfixia classe-média. A tentativa de ter amor, a falência desse amor, o desespero e o vazio absoluto. A última parte é um quase western e é nela que finalmente surge o herói. Que é um assassino. Um filme que permanecerá cravado na história do cinema. Nota DEZ !!!!!!!!!!!
LONGE DELA de Sarah Polley com Julie Christie e Gordon Pinsent
Nesta história de mulher com alzheimer que passa a não conhecer mais o próprio marido, vemos uma das situações mais tristes imagináveis. O marido, profundamente apaixonado por ela, é obrigado a testemunhar a transformação de seu amor em coisa desconhecida. Ele é agora um novo amigo. A dor no rosto desse admirável Gordon Pinsent é jóia inesquecível. Ele sofre calado, e é constante. Julie venceu dúzias de prêmios, perdeu apenas o Oscar para Piaf e Cotillard. Ainda bela, ela consegue mostrar essa transformação sem jamais sair do tom. Polley é uma das melhores direções do cinema atual. Não canso de dizer : enquanto voces prestam atenção apenas em Fincher, Nolan, Van Sant e Croenemberg, há uma dúzia de bons diretores sendo ignorados. O futuro irá os redimir ( como sempre faz ). Nota 8.
JUMPER de Doug Liman
E o roteirista de Clube da Luta ( Jim Ulhs ) nos dá esta insuportável mixórdia. É um dos piores filmes da década. Nota Zero.
US MARSHALS de Stuart Baird com Tommy Lee Jones, Wesley Snipes, Robert Downey Jr
Não é grande coisa. Os atores estão excelentes ( e esqueci de escrever que ainda tem Irene Jacob, linda de doer demais ), mas o roteiro só esquenta na meia hora final ( que é bem legal ). É fácil adivinhar quem é o bandidão e isso estraga tudo pois Lee Jones fica parecendo tapado por não perceber. Nota 4.
A CÂMARA 36 DE SHAOLIN de Lau Kar Leung com Gordon Liu, Wong You, Loh Lieh
Um grande clássico do cinema de aventura chinês. É o filme que transformou Liu em mito ( o Cahiers du Cinéma o considera o maior ator de kung fu da história ). Ver Gordon lutar é testemunhar uma arte milenar em seu estado mais puro. Coloca Jet Li e Bruce Lee pra correr. O filme, imenso sucesso, conta a saga real do primeiro homem a tirar o kung fu do meio budista e levá-lo para os leigos. Com isso esse herói ( San Ta ) tentava livrar a China do dominio de Cantão. A forma como os chineses vêem o cinema é diferente da ocidental: para eles a arte está na ação, todo o resto é secundário. Gordon Liu foi homenageado por Tarantino em Kill Bill. É ele o mestre que ensina Uma Thurman. Eu me apaixonei pelo filme. Ele faz com que nos tornemos muito mais exigentes. Bonequinhos virtuais voando perdem toda a graça então. Nota DEZ.
CREPÚSCULO de Catherine Hardwicke com Kristen Stewart e um menino
Creiam, eu devo já ter visto uns 5000 filmes. E já vi muito lixo. De Mazzaropis a gozações de terror, de westerns italianos a ficções pobres, já vi muito filme brega. E de alguns eu gostei. Muito. Mas jamais vi nada tão ruim. Deve ser uma gozação, não é possivel ter sido feito a sério. Os atores fazem caretas o tempo todo. Ela parece estar com dor de barriga e ele tem expressão de quem perdeu sua caixa de maquiagem no metrô. Eles não param de mexer a sobrancelha, fazer bico, balançar a cabeça... o que é isso ? Amor ? Não me faça rir !!! Nada há de vampiresco aqui ( perto disto os filmes de Christopher Lee parecem eróticos ), nada há de emocionante. Provávelmente é a pior coisa que já assisti ( mas toda semana descubro algo pior ainda ). O que me faz não entender nada é : Isto foi mesmo um sucesso ? Década miserável.... Sem Nota.

CELTAS X ROMANOS, UM NÓ GÓRDIO, ARMAND HOOG

Na introdução a edição de PERCEVAL que tenho, há um texto muito bom de Armand Hoog que me fez pensar muito. Vamos ao que ele diz ....
Que poetas e historiadores romanos, falemos a verdade, não emocionam ninguém. Seja epopéia, seja mitologia, tudo o que Roma nos deixou é feito de blá blá blá sem fim. Uma verborragia bela e vazia, fria e indiferente ao que sentimos.
Os contos, poemas e lendas que nos emocionam nascem na idade média em meio aos ditos bárbaros. São eles que nos deixam o que entendemos por "arte que emociona". Mas essa criação ( que tem no ciclo arturiano, nas canções de Rolando, em Tristão e Isolda e Perceval, seu nascimento ) não é pura. Assim como o dia 25 de dezembro é uma união de cristianismo adaptado a comemorações celtas, a arte poética que vem até nós dos tempos medievais, é uma mistura muito natural de mitos bárbaros tingidos com cores cristãs.
E isso se dá de forma natural e lógica. Roma odiava toda religião bárbara. E para os romanos, cristianismo era tão bárbaro ( e incompreensível ) quanto cerimônias vikings. Roma adapta o cristianismo a sua politica quando vê nele a nova força que poderá unir seu império, mas jamais entendeu o que ele fosse. Criaram a politica católica, mas nunca entenderam o que seja religião.
Há uma pobreza espiritual constrangedora no mundo romano. Seus deuses nada possuem de grandioso, nada exigem de transformador. O mundo de Roma é todo voltado para o exterior, para a vida a serviço do estado, da politica e da guerra. Nesse tipo de sociedade, onde tudo o que tem valor passa pelos olhos do outro, a vida interior é muito pobre, a alma confunde-se com a carne e portanto a arte aí produzida é fria, distante, nada visceral. Técnica apurada, e um blá blá blá sem fim.
Enquanto isso os bárbaros produzem uma arte muito mais tosca, sem grande técnica e sem muita elaboração. Mas tudo é pura emoção, abundam acontecimentos, a ação nunca cessa e o mistério, a noite, a fantasia estão sempre presentes. É arte vital.
Até os dias de hoje nós vivemos dentro desse conflito. A ordem romana contra a ebulição celta. Certos períodos de nossa história pendem para nosso lado racional, ambicioso, amante de jogos verbais, o lado romano. Outro momentos vêm o renascimento da luz celta, da arte do sonho, da individuação, do delirio, do frenesi.
Tudo no mundo romano é imperial. Estradas, cidades, exércitos e leis. Roma pensa sempre em expansão, em comunicação, em integrar. O pensamento bárbaro pensa em fortalecer o clã. E cada clã é isolado, fundado por laços de sangue. Roma institui o discurso, o senado, o jogo de poder. O chefe celta é sempre o patriarca, o depositário da história do clã.
Roma luta com legionários. E os legionários são disciplinados. São peça de um todo e nesse imenso organismo ele é anônimo. O exército celta é anarquista. Cada um tenta ser maior que o todo. Todo guerreiro tem seu uniforme particular, sua bandeira, sua honra. ( E escrevendo isto não há como não pensar em porque a Inglaterra venceu França e Espanha em guerras decisivas. A Inglaterra sempre foi a herdeira de Roma, assim como os EUA são hoje. Enquanto os fidalgos espanhóis pensavam em se exibir na batalha e os sires franceses não admitiam obedecer um lider, os soldados ingleses lutavam como operários da guerra, legionários bem treinados e anônimos ).
No vazio espiritual de Roma ( acredite, Roma criou o ateísmo ) se institui o circo. O vazio espiritual é preenchido pela hiper-valorização do corpo. Emoções para os olhos, para os ouvidos. Sexo ocasional, orgias de comida e bebida, carnaval. A violência torna-se espetáculo.
Mas o que dá sentido a vida da civilização romana ? O crescimento sem fim. O que define Roma e lhe dá sentido é a crença em que "tudo leva a Roma", a certeza de que eles são o único povo civilizado, de que são os criadores do futuro. Roma, como uma doença, só existe enquanto cresce. Um povo bárbaro não pensa em termos de crescimento. A guerra é para eles prova de valentia, rixa entre familias. Sua existência é justificada pela própria vida. Eles não se preocupam com futuro ou com certo e errado, tudo o que desejam é ser o que já se é.
Quando irrompe a alta idade média temos o encontro entre a politica romana e o inconsciente bárbaro. A igreja se forma como politica romana, mas cheia de apelos e símbolos celtas. Todas as heresias dentro da igreja são sintoma dessa dualidade. O catolicismo tenta cumprir dois papéis : organizar o mundo real e aplacar a sede religiosa. Nunca consegue.
A sina do mundo ocidental passa a ser essa. Como conciliar em nós essa racionalidade romana e essa febre bárbara que pede mais vida e mais magia ?
Cavaleiros medievais, poetas romanticos, simbolistas, beatnicks e hippies, anarquistas, busca por religiões orientais, tudo é sinal da alma celta que insiste em crer, em criar e em rir. Tudo é essa raiva da conformação romana, da vida em cidade organizada, da vida em função do bem do estado.
Para terminar um adendo :
Se sofremos esse conflito na carne, imagine um africano, recém saído de mundo totalmente bárbaro, às vezes canibal, tribal. Como é sua adaptação a mundo romanizado que nem mesmo nós, antigos celtas, antigos árabes, aceitamos em paz ?

ALDOUS HUXLEY NA TV CULTURA

Tenho percebido que a Cultura tem dado uma ressuscitada. Talvez seja a crise que está fazendo com que ela retorne a algum tipo de espírito "Tv Cultura anos 80".
Ontem ví Barbara Heliodora no Roda Viva. Ela é alta-classe. Formação inglesa, ela não admite teatro que não respeite a intenção do autor. Voce pode criar sobre o texto, desde que esse texto seja contado. Mais interessante é como ela explica o modo como se deve abordar uma obra : o crítico deve descobrir qual era a intenção do autor, e a partir daí, observar se o objetivo foi atingido. Exatamente o que dizia Pauline Kael e exatamente o que tento fazer.
Ela diz que Gielgud, Olivier e Redgrave foram os maiores.
Em seguida vem um documentário sobre Laura Huxley, a viúva de Aldous. Maravilhoso! Várias cenas de Huxley ( inclusive de sua vinda ao Brasil ). Laura tem uma presença estranha. Ele a considerava um tipo de anjo. Aos 95 anos, magérrima, ela é de fulgurante alegria, uma eterna criança, no sentido belo de ser criança : brincalhona, curiosa, cheia de vitalidade.
Conta das experiencias com LSD dos dois. Que o ácido não dá alucinações, ele faz com que portas se abram dentro de nós, coisas que jaziam dentro saiam para fora. Ela descreve a viagem dela e dele. O peyote inclusive.
Naquele tempo o LSD era legal, e toda faculdade americana tinha seu grupo de estudo sobre o ácido. Logo Timothy Leary veio com seu lema : Ligue-se, caia fora, saia de casa. Huxley foi contra esse desbunde. Ele pensava que o LSD deveria ser usado com muito cuidado. Bem... de qualquer modo, existem cenas históricas de Huxley com Leary e entrevistas na tv sobre LSD.
Há uma fala de Aldous profética. Ele diz que a publicidade está penetrando no inconsciente das pessoas. E que isso será devastador para aquilo que consideramos humano. Tudo o que se torna inconsciente se transforma em parte de nosso ser. E se uma mensagem publicitária se aloja em nosso inconsciente, deixamos de ser 100% humanos e nos fazemos mecanismo de consumo.
Diz ele que toda tecnologia é boa, desde que respeite a biologia do homem. O equilibrio biológico e quimico do ser deve sempre manter-se intocado. Nada que não seja humano deve penetrar dentro do homem. Ou haverá o desequilibrio.
Mostra-se a bela casa onde eles moravam ( em Hollywood ), as crianças, os livros, os quadros. Laura descreve a morte do marido, uma "passagem" tranquila sob efeito de LSD. Christopher Isherwood é várias vezes citado, cenas com o amigo Igor Stravinski, com Orson Welles e com George Cukor ( a nata do cinema frequentava a casa ). Mas o que mais brilha é a presença de Laura, com olhos de bruxa e voz de italiana da renascença.
Uma história do Brasil: em 1960, convidados por Kubistcheck, os dois vieram fazer conferências. Viajaram então ao interior do Mato Grosso, para conhecer os indios. No meio do nada, em meio a tribo que os recebeu bem, eis que um dos moradores, de olhos arregalados e mãos trêmulas, se adianta e maravilhado pergunta: "O senhor é Huxley? Contraponto? Huxley? Contraponto?" Aldous sorri emocionado. Laura diz ter sido essa uma das lembranças mais caras a Huxley.
Conclusão: em noites entediantes, com 102 canais a disposição, é na velha tv Cultura que ainda encontro alguma inteligência. Valeu!

AMORES PERROS - ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑARRITU

Concordo com Houllebecq. O mundo não está em decadência, ele já decaiu. Ontem, vendo as nevascas em NY, me veio um insight : tudo nos prepara para o fim. Abandonaremos o mundo e viveremos em buracos. Toda a nossa tecnologia nos prepara para essa vida em buracos isolados. E no futuro eles dirão : "Pobres humanos de 2010! Sabia que eles viviam ao ar livre ? Imagine que inferno ! Eles tinham contato com o sol e a chuva !"
O homem só pode viver sem nenhum tipo de repressão se for nobre como tigre na selva. Se tiver seu espaço de ação preservado e usufruir da liberdade de ser essa fera. Tendo de viver como homens em sociedade, sem politica, arte ou igreja, é o absoluto vazio. Kaos.
A vida real é esta. Não me venha com frescuras. Mundo sem a figura do pai. Irmão mata irmão, a mãe é apenas um objeto lamuriento. E a fantasia de que um tesão vulgar é o tal do amor.
E a violência vem. O grande tema destes dias não é o facebook. Ele é apenas para aqueles que já desistiram e vivem no buraco. O tema é o sangue.
Mas existe o cão.
Alguém percebeu ? Fazemos do cão aquilo que desejamos sem saber que ele nos paga pelo que desejamos.
Se voce o treina para a violencia, ela virá em paga. E se voce o fragiliza como um fru fru ele será vítima de um buraco absurdo. ( A prisão da não-reação ).
O cão é sua alma baby...
O filme, o filme que abriu Hollywood para os latinos, o verdadeiro grande filme latino- americano dos anos 2000 ( é mais verdadeiro que Cidade de Deus ) é devastador. Chega perto do insuportável, mas o que o redime é que ele jamais nega sua raiz. É do México de Octavio Paz, terra que cometeu o maior genocidio da história e que convive com isso até hoje. Terra onde não há paz.
Tal qual os filmes de Paul Thomas Anderson, há aqui um cristianismo sem igreja, um cristianismo puro. Os dois percebem a vida como purgação, como via crucis, sofrimento que só tem sentido se for aprendizado. Alejandro nos faz desejar a chuva de sapos que nos redima. Ela vem de outro modo.
Vem na figura do tigre que criou seu espaço. Naquele que se afastou do kaos criando seu reino particular. Do único personagem que observa, pensa, está à parte de tudo.
E do único que sabe lidar com seu cão ( que são vários e vivem livres para cachorrar ).
Esse tipo de anjo vingador coloca irmão de frente a irmão. Lida com a podridão sem perder sua integridade ( mesmo sendo um assassino ), ainda tem o amor ( amor a filha e aos cães ) como norte.
Na cena final, tendo reencontrado sua alma verdadeira ( na figura do cão que assassina cães, um sobrevivente como ele é ), como John Wayne em Rastros de Òdio, ele parte rumo a vastidão. O único possível herói é ainda Perceval e também um cowboy.
Demorei dez anos para ter a coragem de ver este filme. Temia as cenas de crueldade com os cães ( não há ). Vendo-o agora, sob a perspectiva da década que felizmente termina, constato que ele é central, poderoso, influente e muito corajoso. Alfonso Arau é um diretor mexicano melhor. Mas ninguém pode negar que este é um imorredouro clássico. Clássico que tem dúzias de cenas grandiosas, que não teme a patetice do amor "feio" entre garota idiota e garoto imbecilizado, filme que tem atuações de magnitude infinita ( a cena da dor com a descoberta do massacre dos cães é de antologia ). Que exibe mundo abandonado, vazio, onde a violência é futil.
Perturbador.

THE RUNAWAYS - FLORA SIGISMONDI ( MUITO MELHOR DO QUE FIZERAM VOCE PENSAR )

Quantas cabeças de criancinhas indefesas David Bowie literalmente "fodeu" nos anos 70 ? Eu estava lá e eu vi. E tem um monte de filmes sendo feitos agora sobre isso. Posso citar CRAZY, e também PLUTÃO de Jordan, e ainda ( bem mais velho ) VELVET de Haynes. Penso que na verdade o rock se divide em antes e depois de Bowie. ( Quem discordar depois eu explico porque ). E este filme, este surpreendente filme ( que nada tem de artístico ) tem uma cena linda : Dakota Fanning ( excelente atriz ) fazendo Cherie Lunghi ( vocalista das Runaways ) dublando Lady Grinning Soul num breguérrimo show de escola. Pintada de Bowie aos 13 anos. Uma criança perdida no mundo de Ziggy Stardust. No filme ela usa umas camisetas de David que eu daria minha coleção de dvds para as ter !!!!
Bem.... é preciso dizer, eu lembro meninos e meninas, de quando as Runaways surgiram. E eu recordo que ninguém as levou a sério. Foram, como os New York Dolls, o tipo de banda que se torna famosa antes de gravar e é esquecida após o fiasco do primeiro disco. ( Menos no Japão, que as adorava ). Elas nada mais eram que um tipo de Glitter made in USA. Suzi Quatro para yankees. Mas não dá pra negar, foram pioneiras num tipo de atitude que é dominante hoje, em 2010. Os olhos de Joan Jett e o cabelo de Cherie é moda entre adolescentes rocknroll com 15 anos em todo o planeta. Elas riram por último.
Se Cherie é uma comovente caipira americana tentando ser Bowie, Joan Jett é Iggy Pop. ( E quantos filmes usam música de Iggy nesta década ??? Um ziggylhão ??? ) Kristen Stewart também dá um show e tem cena em banheira que é atestado de boa atriz. Rebelde radical, perdida em sua agressividade, se torna um tipo de heroína rocker, uma Keith Richards com vagina.
Mas o filme ainda tem Michael Shannon fazendo Kim Fowley. Para os mocinhos nascidos recentemente cabe explicar: Fowley era uma estrela. Naquele tempo, auge de vendas de discos, produtores se tornaram estrelas. Tempo de Bob Ezrin, de Chris Thomas, Tony Visconti, Eno, Gus Dudgeon, Guy Stevens e de Kim Fowley, um tipo de flamboyant hiper pop com acentos rocker. O retrato dele é exato. Ego cruel e estranhamente amador. Era o tempo em que todos comiam na mão das gravadoras.
Mas eu testemunhei a ascenção ( que nunca houve ) e a queda ( melancólica ) das meninas. Sumiram sem deixar um só traço em meio aos punks, que cumpriram tudo o que elas insinuavam. E fui pego de surpresa com o sucesso de Joan Jett em 1981, ironicamente usando o caminho aberto por Chrissie Hynde. Eu vi crianças.... eu tava lá.
O filme não mente. As meninas são trituradas. E o balão bolado por Kim Fowley murcha antes de subir. O filme, excelente, respira pelas atuações irretocáveis e pelo retrato do aturdimento de vida ansiada e detestada. Para quem gosta de rock é obrigatório !
Estranho é ver as Runaways, hoje, como um tipo de grupo cult. Estaremos em fase tão ruim assim ?

O ROMANCE DO GRAAL - CHRÉTIEN DE TROYES ( O HOMEM DONO DA FELICIDADE )

Chrétien de Troyes escreveu este livro em 1180. França, região de Champagne. Trata-se de centro daquilo que podemos chamar de "REINO DE NOSSO INCONSCIENTE". Rico de símbolos, rico de ação, criatividade exuberante onde tudo pode acontecer e acontece, ler esse livro é experiência de estranhamento : lendo-o nos sentimos em sonho e ao mesmo tempo, aliás como acontece no sonho, tudo nos é magicamente conhecido, é como reencontrar uma verdade perdida. Tudo é surpresa, e tudo é familiar. E lemos como quem sonha e do sonho não deseja acordar.
Uma verdade perdida. É exatamente esse o legado da verdadeira idade média ( aquela que vai de 800 a 1250 ). Para muitos , única época histórica ( ou seja, após a criação da escrita, de 5000 a/c para diante ) em que o homem foi "verdadeiramente sí-mesmo" e portanto, feliz. Não me importa discutir se isso é verdade ou não. Jamais o saberemos. Tudo será imaginação otimista ou dúvida pessimista. O que é fato é que uma sociedade que cria relatos como este só pode ser chamada de saudável. Na época de Chrétien a neurose está ausente e não é dificil entender o porque.
Pouco se teme a morte. Quando hoje, descrentes e sem objetivos maiores, pensamos nas baixas médias de vida daquele tempo, imaginamos ser aquele povo medroso, fanático, triste e fatalista. Não. Para eles, morrer é terrível só se for morte em desgraça, morrer como covarde ou sem a absolvição da igreja. Para eles, suprema, e para nós irrecuperável felicidade, morrer é apenas mudar de condição, transformar-se. Eles temem o inferno, não o morrer.
Outro fato pouco neurótico: as emoções livres. Amigos se beijam ao se encontrar ( na boca ) várias vezes, e ao se abraçar rolam no chão rindo e cantando. Conversam de mãos dadas. Quando feliz, o homem desse tempo rí alto, gesticula, dança e pula. Toda emoção é LIVREMENTE EXPRESSA PELO CORPO QUE VIVE. E na tristeza eles choram, arrancam os cabelos, socam paredes, e desfalecem. Não existe o pensamento de se controlar uma emoção. O homem nobre é aquele que as vive, e quanto maiores elas forem, maior é seu coração.
E o coração é o centro da vida.
O amor é um compromisso conscientemente dado a um símbolo. A mulher é perfeita. É um anjo que dá ao homem o direito de se alçar ao céu. Então podemos pensar que se trata de amor casto. Mas me surpreendo ao ler a quantidade de vezes em que os amantes se cobrem de beijos, de caricias e quantas donzelas se dirigem ao leito do herói para lá dormir. O compromisso é o de se defender a dama, honrá-la de qualquer ofensa, cuidar de seu bem, ser seu CAVALEIRO E ELA SER SUA DAMA. E cabe a dama honrar esse campeão, sendo sua inspiração, o motivo de sua partida ( sim, ele parte por ela ), o objetivo de seu fim.
Mas antes vem a estrada. E toda aventura é uma estrada em que em cada bosque há um perigo ou uma sorte. O livro esgota todo o arsenal de aventuras que até hoje usamos. De damas traiçoeiras a poços sem fundo, de castelos prisão até encantamentos, de rivais mentirosos à reencontros com mães. E a estrada inaugura o tempo. É nesse período que se institue o tempo do ocidente. E esse tempo é uma estrada, um caminho. Adiante para sempre.
Jung bebeu tudo nesta fonte. Ele dizia que o caminho do homem, hoje e sempre, é o caminho da individuação. Tornarmo-nos nós mesmos. Nesta saga, Perceval começa como tolo jovem egoísta e após seu amadurecimento ele tem a "lembrança" de seu nome : SOU PERCEVAL ! Note : ele não ganha um nome, ele o recorda. Nos tornamos individuos não pela graça de outro, mas por nosso mérito. Recordamos aquilo que sempre fomos.
É AQUILO QUE UM DIA SUCEDERÁ AO PLANETA : LEMBRAREMOS O QUE NUNCA DEIXAMOS DE SER.
A aventura mais conhecida de Perceval ( e a que mais intrigava Jung ) era aquela em que ele adentra o reino do Rei Pescador. Rei ferido, aleijado, que não pode mais caçar. Carregado a beira de rio, ele usa anzol e pesca. O que significa cada peixe que ele pega ? Nesse reino há uma lança que sangra e o GRAAL, taça maravilhosa que dá vida e cria o homem. Perceval vê as duas passarem diante de seus olhos, mas se cala e não faz a pergunta que salvaria o Rei Pescador. Ele não pergunta o porque do sangue e para onde vai o graal.
Para vários artistas, psicólogos, poetas, essa imagem é o centro do simbolismo ocidental. A lança, a taça e o rei que pesca.
Perceval depois é hipnotizado por 3 gotas de sangue sobre a neve branca....
Eu poderia então escrever laudas e laudas sobre a riqueza de tudo isso. Mas a fé no símbolo se manifesta pela não explicação de sua força. Que cada um tire dele o que conseguir.
Cito ainda a divisa que norteia o que seria desejável num homem :
BELO, CORAJOSO, MODESTO, SEM AMBIÇÃO E LEAL. E o livro demonstra o quanto se valoriza a beleza física de homem e mulher. A do homem estando ligada a agilidade e rapidez e a beleza feminina a jóias e animais ( olhos de rubis, pele de pérola, corpo de gazela ). Estamos a séculos da valorização da ambição, esperteza e volubilidade. Para eles, ser ambicioso é ser mau, ser esperto é desonrar e ser volúvel é mentir. Não se mata um inimigo inutilmente ( e muitos se tornam amigos ), captura-se esse rival. E não se nega a palavra dada ( e tudo é palavra ). O que se diz ainda tem peso.
Chrétien de Troyes faz aqui a gênese da nobreza. O momento em que o mundo se abre como caminho que leva a aventura, e aventura que nada mais é, que o reconhecimento do símbolo. O recordar-se daquilo que sempre se soube. Perceval, tolo galês que se torna o mais adorado dos cavaleiros ( por ser corajoso, belo e puro ) demonstra a todos nós a via do homem, a saga da Europa e tudo o que perdemos desde então.
A influência deste livro é inescapável.