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A SALVAÇÃO DA ARTE E DA MINHA CIVILIZAÇÃO. ... JOSEPH HAYDN- MISSA DE SANTA CECÍLIA.

Um colosso! A obra, PRIMA de fato e merecimento, já começa nos assombrando. O coro, imenso, assalta nossos ouvidos e cativa nossa alma. Inteira. Haydn foi mestre de Beethoven, e de Mozart antes. Seu "azar" foi ter vivido entre os dois. Mas ele é tão genial quanto ambos. Seu "problema" é ter tido uma vida pacífica. Não há nada de sensacional para se dizer sobre a biografia de Haydn. E é por isso que ele é menos considerado que os outros dois. Um precioso detalhe: a música de Haydn, toda ela, exala bondade. Em Beethoven sempre sentimos algo de "mal" em sua beleza. E em Mozart convive a sensação de beleza com um ar de narcisismo. Haydn não. Sua música é inocente. Sempre linda, muitas vezes genial, sempre com bom coração. -------------- Haydn inventou a sinfonia e deu ao quarteto status de arte perfeita. O que mais se pode querer? Eugen Jochum rege a orquestra da Rádio da Baviera, em 1959, e a beleza se faz imensa. É a Missa de Haydn. Coros triunfantes, violinos viris, metais angélicos, vozes que se criam em camadas de som que caminham ao céu. Paraíso em forma de música. O coro, que belo!, murmura e se eleva, entra em júbilo, se compadece, e revive. Toda a cerimônia sagrada da Missa Católica em sua expressão máxima. ------------- Não temos consciência disso, mas durante 600 anos, sim, seiscentos longos anos, foi a Igreja Católica que, sozinha, manteve viva a cultura do ocidente. Do ano 400 até o ano 1000 de nossa Era, foi nos conventos e igrejas, abadias e monastérios que se guardou como tesouro os livros de Platão, Aristóteles, Homero, Cicero e vasto etc. E depois foi dentro da fé católica que se deu o reviver da filosofia, da pintura, da arquitetura e da música. Primeiro na música coral e depois no orgão, por fim na orquestra. O que entendemos por nossa música é filha da arte eclesiástica. Sem essa meia dúzia de padres e monges fieis, provávelmente hoje teríamos outro tipo de música e de arte em geral. ( Ciência também, mas essa é uma outra longa história ). -------------- Pois esta missa é um dos ápices dessa jornada. Do KYRIE ao AGNUS DEI, uma jornada completa. Deus do céu! Essas vozes são testemunhos de uma presença. O que me resta é agradecer por poder ouvir.

AGRADECENDO À DEUS E À FAMÍLIA. PORQUE TANTO ATLETA É TÃO CONSERVADOR?

Eu odiava meu pai. Odiava mesmo, de forma assumida. Odiava também igrejas, todas. E famílias comuns. Eu tinha ódio por burgueses felizes. Por artistas felizes e bem sucedidos. Portanto eu sou prova viva daquilo que um certo tipo de educação faz: A destruição de qualquer chance de ser feliz. --------------- Porque para mim, aos 12 anos, ser jovem era ser contra tudo. E aos 18, ser jovem era ser briguento. Me via como um tipo de artista maldito. Era esse meu modelo. Viver era sofrer e a culpa da minha dor era do mundo de meu pai, aquele que ele me legou. Tudo de errado era obra de gente como ele. ------------------ Depois tudo isso se suavizou, tornou-se mais complexo, mas o mal já estava feito em mim. Eu fora educado para me ver como UM SER ÚNICO, ESPECIAL, INVULGAR. O povo me dava nojo. Eu era um aristocrata do espírito. ---------------- Cresci no meio de pessoas que eram mais ou menos como eu. Alguns até amavam seus pais, mas sempre havia essa super valorização do EGO, essa coisa narcisista de se achar especial, esse umbigo onipresente. NINGUÉM MANDA EM MIM. NÃO OBEDEÇO NADA. MEU MUNDO EU FAÇO. Esses os slogans centrais. -------------- Mas, por acasos da vida, fui obrigado a sair desse mundo, mundo aliás que eu achava ser o único possível. E aos poucos fui notando que fora do meu grupo social não havia a tal crise de sentido do século XX. Que o universo de meus ídolos, gente como Bergman ou Proust, só era válido para quem fora educado como eu fora, se achando especial e tendo tempo livre para sentir um tédio sem fim. Gente, que como eu, crescera odiando sua raiz, porque toda raiz é antiga-velha e podre. -------------- Todo atleta parece conservador porque fora da BOLHA, Deus permanece vivo. Fora do Leblon e da Augusta, a família comum ainda conta. Saindo do mundo das aulas de sociologia, ainda se chama pai de senhor. No universo, imenso, que vive fora das séries chiques da Net, ainda se crê no bem e na virtude. --------------- Meu mundo, aquele onde fui educado, o dos filmes de arte, discos de rock e livros niilistas, nele o que mandava e manda, é o vazio existencial ou a loucura anarquista. Esse mundinho existe e é real, meu erro foi crer que era o único que havia. -------------- Antes ainda podíamos ver nos filmes do tipo John Ford, ou em certas novelas da Globo, esse mundão mais vasto. No cinema popular e nas novelas se dava algum espaço para a vida fora da bolhinha elitista das aulas de filosofia e arte. Mas a partir dos anos 90, tanto cinema como TV, foram ignorando e depois matando esse mundo "mundão". Era como se em todo o planeta, toda a Terra, todos fossem niilistas, existencialistas ou rebeldinhos sem documento. Demorou para eu notar que esse mundo, que chamo de "chique inteligente sem razão", é predominante apenas para eles mesmos. É feito pela turminha para consumo da turminha. Quem é de fora até assiste às vezes, mas a turminha ficaria chocada se soubesse o que o MUNDÃO pensa desse povinho chique. -------------- Atletas choram pensando nos pais e citam Deus porque a maioria do povo é assim. Protegem seus pais e se orgulham de sua família. Amam Jesus Cristo e oram para Deus-Pai. Querem filhos. Querem dinheiro. Querem saúde. Mais nada e isso é mais que tudo. Vivem a anos luz da turminha da bolha. E garanto, estão muito mais próximos de viver uma vida plena. Porque vivem em relativa paz com seus instintos, com seus sentimentos e principalmente com seu passado. Não romperam a linha da vida com os dentes do ódio. Nunca acreditaram que para ser livre é preciso negar seu pai. Não foram educados para a tristeza.

BACH, MÚSICA VOCAL. EM CONTATO DIRETO COM DEUS.

Amigos, eis a música vocal de Bach, tipo de música com a qual eu tinha preconceito, achava, sem a conhecer, que ela fosse antiga demais, deprimente, talvez insuportável. Mas ontem de noite eu finalmente a escutei, e agora entendo porque Bach é sempre chamado de o maior compositor da história. -------------- Uma cantata por dia durante vinte anos. Essa foi a produção do mestre. A igreja luterana precisava de uma nova canção para cada dia de missa. E as missas eram diárias. Além disso ele fazia música para batizados, casamentos, enterros, e música profana, para festas. Eu sempre conheci sua produção instrumental, que é maravilhosa porém fria, mas a vocal é milagrosa. ---------------- É a música de Deus. Ela realmente tem o poder de elevar. Ouvindo suas cantatas sentimos como se todo dia fosse natal. O mundo parece certo. Deus surge como inevitável. Há luz na noite, em meio ao nada surge luz nas janelas de uma igreja. E sons que vão nascendo em meio à tempestade. São pessoas que se uniram e se entenderam. A alma vive lá. -------------- Como arte em si ela é tão complexa que não há como a descrever em palavras. Dizem ser matemática pura. Dizem que esbanja lógica. O que ouço é que uma canção como EIN FESTE BURG IST UNSER GOTT ou ZION HORT DIE WACHTER SINGEN é atemporal. Parece antiga como uma catedral e ao mesmo tempo futurista. O cantor entoa uma melodia e o acompanhamento complementa harmonizando com outra melodia. Milagrosamente elas se completam. Eis a arte suprema de Bach. Harmonia vertical, camada sobre camada. O céu é seu alvo, e ele lá chega. PATREM OMNIPOTENTE, dois coros distintos mais vozes em solo e uma orquestra. Música absoluta. Bach não compõe pensando em palavras. É som, som ritmado, som harmônico, som matemático, som divino. Há quem fale em música das esferas, o som que os antigos geômetras diziam ser a harmonia que sustentava o universo em movimento. È mais que isso: é o som da criação. -------------- Não pense em tragédia. Bach acreditava em Deus de uma maneira confiante e alegre, de um modo que nos é hoje impossível. Sua mensagem exulta em luz. Para Bach pensar em Deus não significa sentir dor ou dúvida, é a alegria da vida, a confiança da alma, a vontade de prosseguir rumo ao bem. Em seus momentos de dor, eles ocorrem, sua música promete ressurreição. E ela não tarda. Pois a vida nova reside na própria música de Bach. -------------- Triste a cultura que se previne contra esta música, está morta e morta para sempre. ET RESURREXIT. Eis a música, a mais elevada das artes. Eis Bach, o compositor que não pode ser comparado aos outros.

INTERPRETAÇÃO DO DOGMA DA TRINDADE - C.G. JUNG

Comecei a leitura deste livro, apenas 90 páginas, ontem. Tive um sonho esta noite, sonho que relatei à minha mãe: " Pipoca, minha cachorra, vivia num jardim com outro cachorro, uma pequeno boxer preto. Um gatinho cinza aparecia por lá, eu o alimentava e impedia que Pipoca se aproximasse do gato". Apenas isso. Agora de manhã termino a leitura do livro, e logo leio este trecho: " Sonhos com a trindade são comuns e nascem sempre do mais profundo inconsciente. Sonhos onde vemos ( alguna exemplos )...e dois cáes e um gato...". --------------- Minha relação e crença em Jung não se dá porque o ache bom escritor, não é, ou consolador, não quer ser, mas sim porque empiricamente, dentro do possível, ele passa pelos testes. Jung é real em minha vida. Ele faz sentido empirico. Neste texto ele expõe a ligação, saudável e necessária, dos símbolos cristãos com nossa mente. De um modo que não podemos racionalmente entender, a simbologia cristã, principalmente a católica, satisfaz e pacifica nosso inconsciente coletivo. É um arcabouço de imagens e de mitos que falam fundo dentro daquilo que somos. ----------------- O PAI. O FILHO. O ESPÍRITO SANTO. Não é preciso explicar isso, é necessário crer neles. Do Pai nasce o filho. E da união dos dois surge o Espírito Santo. Eis a trindade. Jung sabiamente diz que nossa vida refaz esse caminho: do meu pai eu surjo. Devo me contrapor à ele, o negar, me fazer filho. Depois, ao tomar consciencia do que sou, me reconcilio com o pai e então estou apto a ser eu-mesmo. Eis o milagre do espírito santo: me torno aquilo que sou. Jung não teme dizer: sem a fé e sua simbologia não há vida mental produtiva. É a religião que nos liga àquilo que é da comunidade desde sempre: a vida do inconsciente coletivo. Do que não tem voz e não se comunica de forma legível. Daquilo que é eterno. ---------------- O texto é fascinante e gostaria de o explicar inteiro. Jung fala da necessária quaternidade, fala de Pitágoras, Platão, do Diabo como o mal que dá validade ao bem e que nos faz ter de escolher. Para Jung, Satã, o anjo que ousou questionar, seria um vértice da trindade, secreto, o pé da cruz. ------------- Jung defende a superioridade da igreja católica sobre os protestantes. Ela, a romana, usa imagens, ritos e palavras que mesmo que não mais as entendamos, falam fundo dentro de nós. Há ainda uma forte crítica ao mundo moderno. Perdemos a capacidade de mergulhar na simbologia. Por orgulho intelectual, não nos subjugamos ao Pai. Evitamos a reconciliação e ficamos presos, para sempre, no papel de filho. Jamais alcançamos o Espírito Santo. Vaidade racional. Orgulho intelectual. Independência ilusória. Por esses valores futeis, deixamos de cumprir a trindade. -------------- Pois ser adulto é se deixar comandar, se permitir obedecer, seguir sem mais questionar. Para Jung, muitas são as armadilhas, pois esse papel, de guia, de comando, pode ser tomado pelo fascismo comunista ou nazista, por falsos profetas ou teorias delirantes. Jung diz que dois mil anos provam que a igreja cristã é o guia mais confiável. A igreja soube escutar e dar voz ao inconsciente coletivo. Ela entendeu a necessidade mais profunda do homem. Por outro lado, as correntes baseadas na razão perdem o caminho rumo ao inconsciente. Pois são todas baseadas na palavra, no discurso, no que se pode ver e provar. -------------- "Atinge-se o estado adulto quando se volta a ser criança, no sentido a que se permite a um outro adulto tomar o comando". Eis a humildade cristã. Eis o NADA SEI de Sócrates. --------------- Evito falar aqui do problema do mal, pois não quero ser leviano e para não o ser teria de copiar palavra por palavra o texto de Jung. Encerro então, dizendo que Jung não tem a vaidade de valorizar sua "sabedoria médica". Ele diz em alto e bom som, que a religião é superior a psicologia, a metafísica mais vasta que a física, e que não é uma questão de aceitar Deus ou não, pois Ele é. Fora da linguagem religiosa a vida deixa de fazer sentido, nossa jornada se torna absurda e o mal se relativiza. Se voce pensou no mundo de 2021, voce acertou. -------------- Boa leitura.

A GRANDE DATA DO SÉCULO XX

Leio um artigo sobre a grande data do século XX. Quando leio o título penso logo em qual será essa data... o tiro no arquiduque que deflagrou a primeira guerra mundial? A bomba de Hiroshima? A chegada do homem à Lua? A queda do muro de Berlin? Mas não, para o autor, a grande data aconteceu logo em 1900 e foi obra de um homem só: Max Planck. Em 1900, esse alemão percebe que alguns átomos sofriam um decaimento sem aparentemente motivo algum. Eles se transformavam, simplesmente se transformavam. Indo mais fundo com suas equações e aparelhos, Planck notou que o átomo que decaía era aleatório, não havia um motivo para sua escolha. Nascia a física quântica. Planck derrubava dois mil anos de física: coisas poderiam ocorrer sem motivo. -------------- Isso foi uma paulada não só na ciência, mas no próprio modo de pensar e entender o mundo. A partir de Planck, filósofos passaram a parecer crianças. Não havia mais a necessidade de uma ação para deflagrar uma reação. Em seu nível mais microscópio, a realidade não funcionava em termos lógicos, ela era aleatória. A vida não surgiu por um motivo, ela surgiu porque surgiu. Ao contrário do que dizia Einstein, Deus joga dados sim. --------------------- Tudo passa a ser uma probabilidade. Nunca uma certeza. Se eu jogar água no fogo há uma probablidade imensa de que o fogo se apague, mas não pode haver a certeza infinita. Parece bobo? Pois não é. Nosso cérebro está geneticamente conformado a só pensar e entender em termos de " se duas vezes foi assim, será sempre assim", ou então " é preciso um porque para aquilo ser como é". Planck jogou o acaso no centro da física e da ciência em geral. --------------------- A vida é então assim: Mozart é um gênio porque ele o é. Um acaso, não há um porque. Um homem se mata porque aconteceu de ele se matar. Sua dor, que em outro seria suportável, era para ele insuportável. Por que? Porque sim. A atual condição absurda do planeta não se deve à um plano chinês ou a uma revolta da natureza. Simplesmente não há motivo. Rolou de ser assim. O vírus é mutável por um acaso biológico e sua cura seria mais um acaso. ------------------ Observe que pensar em termos quânticos joga por terra 99% dos romances psicológicos, todas as teorias da sociologia e grande parte da filosofia. Não houve um motivo para a revolução ter ocorrido na França em 1789 assim como Hitler é inexplicável. A vida macro, assim como a micro, é um lance de dados. O melhor que voce pode fazer é narrar o ocorrido. Explicar não haveria como. ------------------ Insistimos em dizer porque José ama Maria e não ama Isabel. Mudamos essa explicação ao sabor dos dias. Mudamos porque o amor é acaso, não há porque José amar Maria. Ele a ama porque ama. ------------------ O tempo todo átomos estão decaindo e virando outro átomo. Alguns, não todos, e não se sabe quando, nem porque. Planck correu um risco imenso. Mas 2021 tem milhôes de aparelhos e experiências que provam seu acerto. ------------------ A vida? Uma sequência de acasos que ocorreram aleatoriamente. Conviva com isso: Deus seria o único motivo para quem Nele crê. O resto seriam cartas voando no espaço.

SÊNECA

Primeiro que fique claro: a filosofia estóica só se parece com o cristianismo em superfície. Cristo diz que a salvação está em Deus, Sêneca diz que a salvação reside em nós mesmos. O cristianismo, como toda religião, almeja a anulação do ego, o filósofo romano pede que mergulhemos em nós mesmos. ------------------------------------------------------------- Releio Sêneca em momento difícil de minha vida. Por motivos diversos, talvez tenha de me separar das minhas coisas. E no cerne do pensamento de Sêneca, existe a certeza de que as coisas nos escravizam e portanto nos fazem infelizes. Para ele, a receita da felicidade pode se resumir numa frase: Não se apegue. Pois a tristeza nasce do medo de perder. Não se apegue inclusive às pessoas, aos lugares, à própria vida. Tudo que voce possui de fato é voce-mesmo e é isso que te basta. A felicidade é conviver com esse eu-mesmo, enriquecer seu eu do único modo possível: pelo saber, pelo aumento de seus conhecimentos, por experiências. A infelicidade não é medida por aquilo que voce não tem, mas sim por aquilo que voce teme perder. Quem nada tem a perder é feliz. Não há infelicidade maior que o horror à perda. -------------------------- Aquele que teme perder teme a vida. Pois a vida é tempo que passa e tempo significa perda. No correr dos anos ele perde saúde, perde vitalidade, perde amigos que morrem, perde amigos que o traem, perde coisas que se desfazem, perde dinheiro que é gasto, perde sonhos, e por fim, perde a própria vida. Já quem não teme perder, quem nada tem a perder, nada perde. O tempo se torna ganho de experiência, o futuro se faz uma curiosidade, o dinheiro só existe para garantir a subsistência, os amigos passam como etapas da vida, os lugares mudam e são aceitos como fumaça. Quem se apega luta contra o tempo que tudo desfaz e tudo rouba. O desapego é entender que a única coisa que não muda e com que voce pode contar é voce mesmo. -------------------- Sêneca deveria ser obrigatório aos alunos de 16 anos.

DEUS E OS ESCRITORES

Um amigo me manda uma crônica escrita por Antonio Lobo Antunes. Nela, o português fala de ter revisto uma entrevista feita na BBC por Evelyn Waugh. No início, Antonio celebra a alegria de se ver um jornalista inteligente, coisa cada vez mais rara, entrevistando um escritor do tamanho de Waugh. O inglês foi um autor famoso, dono de um caráter muito dificil, e que produziu livros que adoro e que guardo como tesouros. Mal humorado, agressivo, Waugh era amigo de Graham Greene, outro inglês católico. Antonio conta que ao final da entrevista, o entrevistador pergunta, depois de morto, como Waugh gostaria que seus leitores o lembrassem. Segundo Antonio, Waugh faz cara de criança e repete duas vezes, "Que rezem por mim". -------------------------- Eis o momento em que Antonio se emociona. Ele nos conta que Aristoteles relata em certa obra seus 10 autores favoritos. Todos esses dez não têm uma só obra que sobreviveu até nosso tempo. Antonio, dizendo que aquela é a melhor entrevista que já viu, fala que Waugh não espera nada da posteridade. Tudo o que ele deseja é a salvação de sua alma. Em pura sinceridade ele se desnuda, e revela ser um homem antes de um autor. Antonio lembra-se então do momento em que teve uma epifania e sentiu sua eternidade. Como um grão, mas um grão eterno. Um grão sem obra e sem nome, porém eterno como grão, grão que sente paixão, sedento e sem fim.

XAMÃS

Primeiro deve ficar claro que existem várias correntes de xamãs no mundo. Havia xamãs no Ártico. Nas ilhas do Pacífico. Em algumas tribos da Africa. Mas aqui falo do xamanismo indo-europeu. Como a genética afirma, o europeu surgiu de uma tribo oriental, o ramo indo-europeu. Essa tribo, que habitava as fronteiras entre Ìndia, Afeganistão, imigrou para oeste, no processo povoando Grécia, Itália, Alemanha etc. Claro que nesses locais já viviam outras tribos, tribos essas que foram assimiladas, ou simplesmente extintas. Estou falando de cerca de 15 mil anos atrás. Com o passar dos milênios, alguns povos se fixaram às margens do Mediterrâneo, outros foram para as montanhas. Povos do Norte da Africa, povos semíticos, povos vindos do Báltico também se uniram à esses povos. Os celtas são aqueles que rumaram às montanhas. Penetraram no coração do continente. Criaram uma cultura em fina sintonia com a floresta. O xamanismo, vindo da Mongólia, acompanhou esse movimento rumo ao oeste. Indo europeus trouxeram na bagagem toda a crença xamânica. Mas há algo de diferencia o culto a Dionísio grego do culto xamânico celta: a crença na reencarnação. Gregos e romanos, como também judeus, acreditavam no julgamento e na recompensa. Na vida única. Celtas, assim como os brâmanes hindus, acreditavam na reencarnação. --------------------------------------- Tudo tinha uma alma que um dia fora um homem. Ou seria homem um dia. Assim, havia todo um ritual e um modo cuidados ao se matar e comer um javali ou um peixe. Pois a alma do bicho era viva eternamente, e ela poderia se vingar de sua morte. Ou em bom caso, te ajudar. Do mato no chão ao pássaro no céu, tudo tinha sua alma individual. O carvalho, o azevinho, o visco e o cervo eram os mais nobres dentre os seres vivos. O rio e o lago eram as almas mais poderosas e terríveis. A barriga da mulher era um caldeirão onde almas se aninhavam para produzir vida. -------------------------- Veja só, eu ia falar em xamãs e já me perdi! O que ia dizer é como existe até hoje um desejo por êxtase xamânico, mas, barateado, fútil, bobo, sem objetivo. A pessoa que está mais "tomada" em uma rave, o cara mais ansioso por alcool numa festa, aqueles que não param de pular e berrar num show de rock, essas são almas à procura do êxtase. Herança que se debate em mundo que não sabe mais lidar com esse anseio. Mas pior é o solitário ingerindo LSD na esperança de ter algum tipo de viagem. No homem que ingere qualquer veneno pensando poder achar "a saída". Ver "a luz". Menos mal são os fieis que perdem a cabeça numa igreja durante uma canção gospel. Jimi Hendrix ou James Brown foram xamãs populares. O que eles faziam, sem saber, eram cerimônias de xamanismo. A força vital que os guiava em seu início perdeu seu poder por se tornar mecânica. Não há xamanismo com hora marcada. Todos que reclamam do fake do rock de hoje estão na verdade reclamando da morte do xamanismo. Shows do Who em 69 terminavam em fogo e destruição. O rock foi por muito breve momento um centro de transe e de êxtase. Sem controle e sem nada de mecânico, como deve ser. Mas isso morreu. ------------------------- Falo do rock, mas o mesmo se dá em vários outros campos, inclusive no esporte. Arquibancadas inundadas de bebidas e cantos se guerra eram rememorações dos tempos celtas. Hooligans eram guerreiros. O transe vinha em forma de explosão do gol ou briga geral. Lugares numerados acabaram com isso. ------------------------------------- Dizem que o carnaval foi um dia assim. Nunca o vi. Desfile de escola de samba é tão fake quanto dj derramando batidas regadas a extasy. Há um roteiro. E xamãs não conhecem roteiro. ------------------------------- Penso que um show de Charlie Parker em 1945 deve ter sido xamânico. Como foi um show dos Stooges em 1968 ou as primeiras raves em 1987. A batida repetitiva levando à inconsciência de sua presença que leva ao esquecimento de onde se está que traz a sensação de leveza absoluta, à liberação do corpo como coisa autônoma e que afinal induz ao desprendimento da alma. ------------------------------- Não há xamanismo sem música. As primeiras discotheques em 1974 e os cantores soul de 1965 levavam ao esquecimento de sua presença. Mas se havia algo de tipo xamânico não se sabe. -------------------- Voce pode perguntar se há algum recante xamânico hoje. Respondo que o próprio fato de eu aqui estar escrevendo sobre isso JÁ DEPÕE CONTRA SUA EXISTÊNCIA. Xamanismo só é válido quando secreto, quando anônimo, não escrito e não divulgado. Ocorre na escuridão ou no fundo da mata. Quando digo que pode ter ocorrido num show do Who é por ter sido aquele um breve momento em que muita gente estava ansiando pela mesma coisa. Mas, como falei, esse momento tende a se auto consumir rapidamente. Pois sabemos que o xamanismo celta perdeu sua força exatamente quando o estado resolveu promover a religião. No momento em que as legiões de Cesar passam a caçar os xamãs-druidas, a coisa já estava fraca a algum tempo.

OS TEMPLÁRIOS - PIERS PAUL READ

Este livro tem um problema fatal: ele transforma os templários no tema menos interessante de tudo que ele aborda. O autor começa falando dos antecedentes do cristianismo, e isso é muito interessante. Daí ele passa aos primeiros cristãos, e isso é mais interessante ainda. Há uma exposição das várias heresias cristãs, e esse é o mais interessante dos temas, e então vemos o nascimento do islã, interessante mas nem tanto. Quando afinal surgem os templários, na primeira cruzada, nos decepcionamos. O livro cai na monotonia. Piers Paul Read não sabe descrever batalhas, não consegue criar suspense e filosoficamente, em comparação ao que lemos até então, os templários parecem pobres. Os templários eram nobres que foram viver a vida de monges. Com o tempo eles se tornaram cavaleiros religiosos, seguidores de rígidas regras monásticas, que guardavam as rotas dos peregrinos rumo à Jerusalem. Eles eram a guarda mais temida e mais corajosa dentre os cristãos, isso por serem de longe os mais disciplinados. A ordem se tornou rica, começou a emprestar dinheiro aos reis europeus, e não é dificil imaginar que seu fim se deveu à cobiça dos reis. Eles não só deram um calote nos templários como os difamaram e tomaram suas terras. Todas as lendas sobre a ordem templária é difamação pura e simples. O lado bom do autor é que ele nos alerta todo o tempo sobre a diferença fundamental entre 2020 e os anos de 800 à 1.300 = a religião. Nós tendemos a não entender mais a importância que a religião tinha então e transformamos tudo em questão financeira. As cruzadas davam enormes prejuízos à Europa ( sim ! Incrível né ). O que movia os reis e nobres era o medo do inferno. Todos levavam vida de pecado e ir às cruzadas era a garantia de ter seus pecados perdoados. Isso era sério. Era mortal. O que move nossa vida é o dinheiro, mas naquele tempo o que os movia era a religião, e fé era questão de vida eterna. Para nós isso é tão difícil de aceitar como seria para eles entender uma guerra por petróleo. Read dá uma boa explanação sobre Maomé e o islã. Óbvio que ele não os trata como vilões, mas....caramba, é inegável que se trata da religião mais simplificada do mundo. Daí sua popularidade. Já o judaísmo quase é pintado como uma coisa não confiável. O papel dos judeus no livro não fica muito claro. Falei das belas páginas do começo do livro, não falei? São fascinantes. As histórias dos primeiros 500 anos do cristianismo são maravilhosas.

QUEM PERDE GANHA - GRAHAM GREENE...DIVERTIMENTO SOBRE PASCAL

   Por escrever com facilidade, Greene se deu ao luxo de construir duas carreiras. Uma ambiciosa, onde seus livros, pesados, falam sobre Deus e a culpa. Outra, leve, feita de livros que desejam apenas divertir. Este é curto, simples, divertido. Li em apenas um fôlego, 130 páginas curtas. Conta a história de um casal. Ele é um modesto funcionário que se casará. Ela uma menina otimista com momentos de dúvida. O chefe dele, um poderoso dono de empresa, boa vida e culto, temido, dá à ele um casamento e uma lua de mel em Monte Carlo. Mas lá, o casal se perde em meio ao jogo e à sorte. Ele fica rico, muito rico, e o patrão desaparece.
  Oh Graham Greene! Mesmo numa diversão aqui está seu tema de sempre: Deus, sorte, culpa, ingratidão. O pobre noivo constrói um sistema para vencer no cassino. Vence, mas perde a esposa e a felicidade. Como Pascal, que é citado bem de passagem no livro, ele procura febrilmente enfiar a vida e Deus dentro de um sistema. E ao fazer isso, perde o amor. Briga com Deus ( o chefe ), por achar que ele o esqueceu, o abandonou em Monte Carlo, causou todo seu mal.
  Penso que voce não vai achar este livro. É uma edição de 1960, da Civilização Brasileira. Talvez em um sebo, com sorte...Não crie um sistema para o encontrar. Essa a mensagem do livro. Não o procure. Não O procure. Se Ele te esqueceu, conforme-se com esse mistério. Talvez ganhar seja seu azar e ao perder voce ganhe algo. Ninguém sabe.
  É um delícia de livrinho!

O PODER E A GLÓRIA + THE QUIET AMERICAN

   Depois de Conan Doyle e Agatha Christie, somente Shakespeare tem mais textos adaptados ao cinema que Graham Greene. E que estranho momento vive esse autor inglês! Por eu ter nascido nos anos 60, ainda peguei o final da imensa fama de Greene. Entre os anos 40 - 80, Graham Greene foi candidato eterno ao Nobel e junto à Borges, o maior dos derrotados. Para quem frequentava livrarias e cadernos culturais em 1970, 1980, Greene era figura constante. Mesmo aqui neste sub sub continente, vários de seus livros estavam sempre sendo editados. Porém hoje, em 2020, vigésimo ano da Nova Idade Medieval, há montes de jovens leitores que nunca ouviram falar de tal autor. E se conhecem vagamente o nome, é por ter ouvido falar de alguma adaptação para a tela.
   Li O PODER E A GLÓRIA. É meu quinto Greene e o mais difícil de ler. Figura engraçada esse Greene. Ele escrevia muito e dividiu sua obra em dois campos: livros sérios e livros de divertimento. O PODER E A GLÓRIA é dos sérios. O tema é árduo: estamos em algum país da América Central. Houve uma revolução socialista. Todas as igrejas foram queimadas e em seu lugar foram construídos campos de esportes. Todos os padres foram fuzilados. A população, que mal compreende o que se passa, vive em miséria terminal. O livro acompanha essa situação de dor e de inescapável inferno. Como personagens há um ex padre que foi obrigado a casar e se desmoralizar, um tenente que  DESEJA DESTRUIR TODO O PASSADO DO PAÍS E COMEÇAR TUDO DO PONTO ZERO. Há ainda um padre que tenta fugir da nação e se tornou alcoólatra. Em meio a tudo isso, temos ainda um dentista inglês e um funcionário americano de uma empresa que exporta as bananas do país. O texto é escuro, sombrio, quente, úmido, mofado, doentio, sem nenhum alívio.
  Graham Greene se converteu ao catolicismo aos 26 anos de idade. Seus livros têm por tema a dor. A culpa. E a absolvição. Acho que já deu para voce entender porque em 2020 não se lê mais Greene não é? É um autor que odeia profundamente a esquerda. Mas ao mesmo tempo não acredita na direita. Niilista? Seria simples se ele fosse um niilista anarquista. Greene estaria na moda. Mas não. Ele crê na vida como dor. Viver é para ele, sofrer, sofrer para assim poder, quem sabe, se redimir em outra vida. É catolicismo radical. E por ser assim, se aproxima de Dostoievski: A santidade possível vive nos piores dentre nós. Pois são eles os que mais sofrem.
  Aproveitei para ontem rever o filme THE QUIET AMERICAN, feito por Joseph L. Mankiewicz em 1958. Texto de Greene, claro. O filme foi feito em Saigon-Vietnã, antes da guerra, e só por isso já vale ser visto.
  Estamos em 1952, em plena guerra de independência. Tropas francesas, os colonizadores, lutam contra os guerrilheiros do norte, comunistas. Mas o filme não é sobre guerra. É, como só poderia ser em Greene, sobre culpa. Um jornalista inglês, vivido com a maestria discreta habitual por Michael Redgrave, namora uma nativa vietnamita muito mais jovem. Eles se amam. Mas surge um jovem americano e aos poucos ele conquista a menina. O inglês é tomado pelo ódio e acaba por trair o americano, levando-o à morte. No fim ele perde tudo: mulher, honra, sossego, consciência, auto estima. o redor desse drama, a situação trágica do país: de um lado a abusiva e incompetente colonização francesa, do outro os comunistas, matando franceses e vietnamitas aos montes. O jovem americano está no país movido pelo ideal ingênuo de uma terceira via: Liberdade com democracia. Sabemos no que isso ia dar no futuro. Quando o filme foi feito os americanos ainda não estavam lá. Seriam precisos 50 anos de dor para se alcançar o que o país é hoje.
   O inglês não acredita em nada. Velho europeu desencantado, ele zomba da França, teme os comunistas e acha ridículo o americano. O filme é excelente.
   Joseph L. Mankiewicz é outro grande nome esquecido. Foi o único diretor a vencer dois Oscars de diretor seguidos, e em ambos ganhando também pelo roteiro: QUEM É O INFIEL em 1949 e A MALVADA ( ALL ABOUT EVE ) em 1950. Típico americano liberal da época, ele consegue não tomar partido. Mérito de seu bom roteiro.
   Graham Greene voltará um dia? Penso que sim. Quanto maiores os erros do mundo, mais rápido as pessoas olharão para seus pontos de apoio e de estabilidade. E a alta literatura é sempre um desses pontos.

PÁSCOA

   Deus saiu da minha vida quando eu tinha mais ou menos 7 anos. Não me pergunte por que. Mas lembro muito bem que já nessa época eu sentia a distância enorme que havia entre eu e aqueles que pareciam crer. Meus pais não iam à igreja e foi provavelmente isso que me fez ser o que eu era: dividido.
  Estranha situação que só neste exato momento recordo. Meus pais, segundo a moral católica de então, viviam em pecado. Eram casados no civil, mas não no religioso. Apesar de ambos crerem em Deus, não tinham dinheiro para a cerimônia quando se casaram, e depois, quando o dinheiro já havia, meu pai adiava a data indefinidamente. Então eles não se sentiam confortáveis para entrar numa igreja. E ao mesmo tempo queriam que eu crescesse como católico. O que era feito então? Minha tia me levava à missa dos domingos.
  Na mente de uma criança de 7 anos a coisa era confusa. Lá estava eu, dentro de uma imensa igreja azul. Lotada de pessoas de todo tipo. Abafada. Ao meu lado eu via minha tia, véu negro sobre a cabeça, rezando. Eu estava alí, mas por que não meus pais? Agora, tanto tempo depois, é que percebo que seria impossível eu ter fé, a verdadeira fé, nessa situação estranha. Como herança, cresci desde então com a sensação vaga de que Deus não me queria lá. Se meus pais não podiam ou não queriam ir, eu estava no lugar errado.
  Na minha adolescência Deus era um assunto sem lugar e quando virei adulto eu sentia orgulho em me dizer ateu. Tudo mudou quando meu pai faleceu. Em 2008.
  Veja, não foi a dor que me fez mudar. Deus não foi consolo de desespero. Falo isso com segurança, porque meus piores momentos na vida foram muito antes, em 1986, 1987. E não me agarrei à Deus para me consolar. Não consegui nem tentar isso. Simplesmente me era impossível cogitar esse caminho.
  Mas em 2008 algo aconteceu. Não há como explicar. Tudo que consigo dizer é que houve uma tristeza profunda, um desalento sem fim, uma sensação de vida que se perde em vão. Mas ao mesmo tempo tudo isso vinha entrelaçado com doçura, com aceitação da verdade, com profunda humildade. Eu me desarmei e senti que Deus entrava em mim. Aconteceram experiências simples e estranhas, mas não podem ser ditas.
  E assim, por 10 anos eu vivi numa espécie de paz divina. Mas veio 2018, e agora posso confessar que então eu perdi Deus pela segunda vez na minha vida.
  Foi meu segundo encontro com a morte, a morte de uma segunda pessoa central em minha vida e dessa vez o efeito foi contrário. Tudo que houve de significativo em 2008, aqui nada valia. Foi uma experiência do sem sentido, do vazio e de uma profunda raiva. Se a morte do meu pai trouxe paz e doçura, como se ela fosse o capítulo perfeito em um livro correto, esta trouxe perda e desânimo. Como fosse um ruído estridente numa sinfonia perdida.
  Faz quase dois anos já. E nesses dois anos eu nunca mais consegui pensar em Deus. Não sinto por Ele nem medo, nem distância. Não há dúvida e nem certeza. Eu não consigo O sentir. É como uma ausência. Daí a certeza de que O perdi.
  Durante dez anos eu olhava para o céu em meus momentos ruins, e tinha a certeza de estar em Sua companhia. Falava com Ele em pensamentos ao andar na rua. Erguia minha mente à Ele antes de dormir. Nos últimos dois anos não há nem a possibilidade mais remota de eu tentar isso. Meu céu ficou vazio. E isso é pior que o ateísmo, porque como ateu não há vazio pois não há céu. Voce não sente falta do que nunca provou.
  Mas eu senti a doçura da Presença.
  E não a sinto mais.
 Amanhã é Páscoa e eu amaria escrever uma carta para Deus. Falando da saudade que sinto Dele. Do quanto Ele faz falta.
  Talvez Ele não precise de cartas.
  Talvez Ele esteja aqui.

ROGER SCRUTTON

   Roger Scrutton morreu ontem e este texto é escrito sob a influência de um artigo lido ontem. Enviado por um amigo, ele me fez perceber uma contradição no pensamento de Scrutton: ele é conservador, mas possui ao mesmo tempo o ressentimento típico da esquerda. Explico para voce...
  No pensamento da esquerda, como dito pelo próprio Scrutton, há a dor de não se sentir confortável dentro do mundo como ele é. Daí o desejo de o destruir. O ressentimento é aquele de quem vive imerso numa cultura vista como repressora, tola e profundamente enganosa. Scrutton tinha esse sentimento dentro de si, e por isso era um conservador ilegítimo. Várias vezes ele fala do desencanto da vida, da derrota do mundo ideal, do sentimento de fim de época. Ora, nada mais romântico e portanto menos conservador que se sentir ausente da realidade, derrotado, fora de lugar. Roger Scrutton era então um conservador pessimista, algo que nunca existiu.
  Isso se dava por dois motivos: Scrutton duvidava da existência de Deus. E pior, não conseguia crer na eternidade da alma. Um conservador sem Deus e sem alma imortal perde toda sua confiança. O mundo o ameaça e ele se vê preso dentro do mundo inseguro da esquerda. 
  Nada irrita mais um socialista que a confiança risonha do conservador. Para o conservador, o mundo é o que é e deve ser como é. Isso porque ele foi feito por Deus e Deus faz o que deve ser feito. Pobres serão socorridos, o mal será combatido, mas tudo dentro da fé. O conservador não quer destruir o mundo, não deseja reescrever a história, ele pensa em conservar e terminar a obra de Deus. Sua confiança vem de acreditar ser imortal e jamais duvida de que seu pensamento é, portanto, eterno. Chesterton e Burke possuíam essa risonha confiança. Scrutton nunca. Incapaz de crer, ele baseia toda sua fé no amor ao lar inglês, aos costumes antigos, às velhas comunidades. É pouco. E ele sabe disso.
  De todo modo, ler Scrutton, foi e é, para mim, um imenso prazer. Sua escrita é sedutora, e se ele não é um conservador autêntico, ele abre nossos olhos colonizados, para a existência de todo um universo intelectual não explorado. Crescemos neste trópico crendo que a única verdade vivia na esquerda e que o pensamento da direita seria sempre raso, tolo, pouco relevante. Scrutton me fez perceber que na realidade o pensamento da esquerda se tornou automático, preguiçoso, ultrapassado. A esquerda não pensa mais, ela apenas repete slogans.
  Meu sentimento de coração sempre foi conservador porque eu sempre vi a história como a saga de grandes homens e não um movimento exato e constante. Assim como prefiro consertar e reparar que destruir e recomeçar. A tara latino americana pelo eterno recomeço é o que nos faz pobres e vazios de história. Mas, como Scrutton, tenho imensa dificuldades com Deus e a eternidade. Não consigo ter a tranquila fé do bom conservador. A certeza. O sentimento de que tudo é para sempre e tudo é como deve ser.
  Espero que Chesterton esteja certo. E que Scrutton tenha encontrado a eternidade. E esteja dando gargalhadas vendo, afinal, que Marx e Foucault eram apenas dois invejosos.
  Eles eram. Eles são.

NATAL

   O fato de ser escolhido um homem como Jesus Cristo já é por si só um tipo de milagre.
   Não vou escrever nada sobre fé, escrevo apenas sobre aquilo que um ateu pode saber se assim o quiser. Há mais ou menos 2000 anos, no lugar mais pobre do mundo conhecido pelo que seria o Ocidente, um filho de carpinteiro nasce. E é Ele o escolhido para simbolizar e dar significado aos novos tempos.
   Não era filho de nobres. Não era rico. Não foi discípulo de nenhum filósofo influente. Esteve sempre caminhando longe de Roma e longe de Atenas. Não era forte e não manejava espada ou flecha. Percorria o deserto e tinha meia dúzia de seguidores. Era, visto em seu tempo, insignificante.
   Então porque ele? Mesmo não sendo filho de Deus, mesmo não sendo um profeta original, se assim voce preferir pensar, por que ele? Se os evangelhos forem ficção, quem criou uma personagem tão radicalmente original?
   Voce, ateu, pode dizer que Buda já pregara a paz. Mas o Buda falara que o mundo era sonho, ilusão, e este Cristo dizia o contrário, que o mundo era a realidade. O pacifismo de Jesus é oposto ao de Buda. O de Cristo é atuante e vive dentro do mundo. O budismo nega a realidade da vida. Tudo é o que é. Em Cristo tudo é aquilo que fazemos.
  Mais radical ainda, esse é um Deus que morre. Sim, muitos morreram antes, houve deuses despedaçados ou desaparecidos em combate. Mas este Cristo morre como gente. E morre voluntariamente. Mas isso é a Paixão e hoje é dia de Nascimento, da Natalidade.
  Nesse nascimento nasce um mundo onde a bondade é viril, onde a caridade é ativa e onde perder pode ser uma vitória. É a primeira religião que coloca o Amor como centro. Se pensa hoje que toda religião é Amor, mas falar de amor no zoroastrismo, na religião do Olimpo ou nos deuses vikings é absurdo. Nessas religiões, e em todas as outras, o centro da crença é a coragem, a força e o erotismo. Não há sinal de amor. Zeus não ama seu povo. Ele exige respeito e homenagens. Por ser vaidoso e só por isso. O mesmo vale para os deuses astecas ou celtas. São ciumentos. São possessivos. São vaidosos.
  A imagem desta noite é uma estrela no deserto. E uma manjedoura iluminada. Um burrinho, uma vaca e um casal. E uma criança. Todo nosso futuro está aí representado. A criança, a pobreza, os animais. A estrela no deserto. E o casal.
  Então mais uma vez eu te digo: Em meio aos presentes ou a dor de não ter presentes. Em meio aos amigos ou a dor de ter perdido pai e mãe, olhe para o céu e veja a estrela. E nasça mais uma vez.
  Pouco importa se 25 de dezembro era data pagã. O que vale é sua herança cultural. E para nós, todos nós, 25 de dezembro é uma data invulgar.
  Nasça. E deixe-se guiar pela estrela.

NATAL?

   O símbolo é esse: Mesmo que voce seja ateu, o mundo que formou sua mente é cristão. O fato de voce ser contra Deus ou contra Jesus já te coloca dentro da civilização cristã. Então, ateu, leia isto que não vai te fazer mal algum...
   Faz uns 2020 anos, mais ou menos, que no dia 25, talvez, nasceu um homem que se disse filho de Deus. Ele era judeu e pobre. Até aí nada demais. Montes de profetas nasciam na Galileia todo dia. Mas houve algo de muito, muito novo e ousado no que veio depois: Ele não era um super herói.
  Jesus Cristo fez milagres, é o que dizem, mas foram apenas mágicas ou magias modestas se compararmos ao que os deuses faziam até então. Deuses explodiam mundos. Faziam chover fogo. Matavam todos os inimigos. Viravam chuva de ouro ou boi potente. Deuses ficavam invisíveis. E principalmente, jamais provavam a morte. Um deus é imortal. Ele não morre, e portanto, não ressuscita.
  A revolução, a maior revolução da história, é a que diz, pela primeira e única vez, que a fraqueza é uma força. Que amor e caridade são tudo aquilo que Deus quer. E surge na Terra um Deus que é homem e é divino. Jesus dá ao homem o estatuto da dignidade. Não mais a divisão em castas. Não mais a espada como valor supremo. Não mais o culto da morte. E, em ato definitivo, esse Deus morre. Morre não como herói, não na guerra, Ele morre na cruz, como ladrão, como indigente. Uma morte suja, feia, sem glamour. Morre para mostrar assim que mesmo a morte é digna de um Deus, e que ela não é o fim. Que mesmo nós, mortais, podemos vence-la.
  Toda nossa civilização se baseia, filosoficamente, nessa base. Mesmo ao negar e ao trair esse Deus, estamos o tempo todo inseridos nessas ideias. A caridade, o amor, a doação, o auto sacrifício. Olhar o outro, olhar a criação divina, olhar a vida. Pela primeira vez eis uma religião que olha a realidade ao redor como um bem de Deus. Toda religião temia a natureza ou a olhava como ilusória. O cristianismo fala do mundo e do universo como coisas sagradas, coisas reais, coisas divinas. A ciência nasce desse interesse pelo real. No cristianismo a realidade se torna Real de fato.
  Surpreso? Sim, está no cristianismo a base e a liberação da ciência. A estrela e o átomo se fazem dignos de Deus, pois são Dele. E o homem, amorosamente, se debruça sobre o universo.
  Dia 25 é Natal. E cada vez mais vemos pacotes e luzes, e menos presépios e imagens do aniversariante. Nosso mundo caminha para a indiferença, a absoluta falta de paixão. O desinteresse por Deus leva ao desinteresse pelo universo como coisa digna, criação divina. Caminhamos para ver o mundo como abstração. Ilusão. Um tipo de armadilha.
  Acenda uma vela e pense, nem que por um segundo, no aniversariante. Mesmo sendo ateu, reconheça alguma importância histórica nesse "mito", nessa "mentira". O pensamento de Cristo está ao redor de tudo que voce vê e faz.
  Um pouco de modéstia te fará muito bem.

UMA COMPARAÇÃO ENTRE DOIS MUNDOS.

   Leio em seguida a Ilíada este livro de 1440. É um choque absoluto. E serve, muito, para expor o que mudou entre esses dois mundos tão opostos.
   A Imitação de Cristo foi, no começo do livro impresso, um best seller. Todo cristão deveria o conhecer de cor, e toda Europa era então cristã. Poderíamos dizer inclusive que o século XV foi o último século do cristianismo como união europeia. Em seguida viria Lutero.
   Thomas de Kempis nasceu perto de Colônia, na Alemanha. Foi padre agostiniano e morreu aos 91 anos. Seu mosteiro ficava na Holanda e lá ele era responsável por receber os noviços. Seu livro, sucesso desde sempre, ensina a seguir os passos de Cristo. Pode ser resumido em 3 preceitos:
1- Devemos viver dentro de nós mesmos, pois é lá que Deus fala conosco.
2- Devemos estar prontos para a dor, pois viver é sofrer.
3- Devemos negar a vaidade. A humildade é o que nos leva ao caminho.
   Na Ilíada existe dor. Ao contrário do que pensam os anticristãos, a vida na Grécia era tomada pelo medo. Os deuses vigiavam o mundo e esses deuses eram imprevisíveis. É estranho ver que nenhum deles tem uma ética. São deuses imprevisíveis e temperamentais. Tudo o que o homem pode fazer para os agradar é homenageá-los com sacrifícios e templos. Cada dia e cada manifestação da natureza pode ser um presságio. O homem da Ilíada vive assustado e em guerra.
  No cristianismo há uma negação de tudo isso. O cristão conhece a Lei de Deus. São regras claras e se não forem seguidas, voce é livre para as negar, as consequências não virão aqui e agora, elas cairão sobre o homem no futuro. Agradar a Deus é negar o mundo da natureza, é viver dentro de si, isolado do mundo. Não se assuste com esse "negar o mundo". Pode haver caridade, mas o centro dessa fé é a busca por Deus dentro de si mesmo. E Ele se encontra na negação da vida e na negação do eu. Eis a grande mudança: na Grécia e no mundo antigo, o herói é aquele que tem um ego imenso. São vaidosos, arrogantes, violentos, se impõe pela força. Aqui, a partir de Jesus, o herói nega seu próprio valor. Ele é apenas mais um, o último dos últimos. Não tem força física, não tem vaidade, na verdade a odeia, não se vê como nada mais que um pecador, um trapo, um ser feito para padecer. É um tipo de herói não heroico, um herói inconsciente, um herói que se manifesta em bondade e altruísmo por graça de Deus e jamais por mérito próprio.
   Esse cristianismo se perdeu. Mas foi hegemônico por 1000 anos ( de 500dc à 1.500 mais ou menos ). Com a ciência o homem sai de dentro de si e passa a valorizar o olhar sobre as coisas. Conhecer deixa de ser entrar para seu centro e passa a ser ir ao mundo e o explorar. Esse o credo dos últimos 500 anos.
   Um belo livro este.
  

O PARAÍSO À PORTA ( ENSAIO SOBRE UMA ALEGRIA QUE DESCONCERTA ) - FABRICE HADJADJ

   Fechado dentro de si mesmo, o homem procura em seu interior uma luz. Nesse processo de busca, ele vence o ego.
 Adorando à Deus, o crente se ajoelha e em reza se isola do mundo.
 Dizendo que caminhamos para o nada absoluto, o ateu se livra da responsabilidade perante o além. Sua personalidade, mutável, encara o nada como férias eternas. Esse seu desejo.
 Frequentador de ONGS do bem, ele dá grandes contribuições para as crianças da Etiópia. Mas finge não perceber que sua mãe chora no quarto.
 Temente à Deus, ela troca sua obediência por um bom lugar no Céu.
 Hadjadj não poupa os crentes e os ateus, os agnósticos e os gnósticos, os new age e os budistas. Ele segue uma linha clara, nítida, mas não simples, ele fala do judaísmo e do cristianismo. Mas não do que sabemos, dessa simplificação abjeta, supermercado que vende a dor como se fosse o prazer. Ele mostra que na crença judaico-cristã, nasce, pela primeira vez, a aceitação do mundo real, do mundo como ele é. E mais ainda, nasce a aceitação do tempo linear, do começo, do meio e do fim.
 Para os orientais, para os deuses do Olimpo, para os egípcios, zoroastristas e new ages de hoje, o tempo é cíclico. Tudo se repete, as coisas voltam em estações e o tempo linear é uma ilusão. ( New ages adoram pensar assim porque esse modo de ver a vida promete uma segunda chance em tudo ). Com os judeus o tempo começa a correr como o conhecemos. Há um começo do mundo e haverá um fim. As coisas nascem e morrem. E com Jesus Cristo se parte a linha em uma semi-reta, o tempo recomeça, não como ciclo, como nova vida.
 Hadjadj diz que encontrar Deus é encontrar o outro. A iluminação se dá no amor ao vizinho, ao filho, ao desconhecido, à amada. Deus não está neles, mas eles são obras de Deus. Nossa religião, a do ocidente, nunca nega a materialidade e a verdade das coisas. Elas são reais. Uma montanha é uma montanha e um minuto é irrecuperável. Cada pessoa é única. Nunca houve e nem haverá um outro eu. E o paraíso está no presente, neste agora e neste aqui.
 Não descreverei as longas histórias sobre a Bíblia e sobre a história. Leia o livro. Ele é maravilhoso. Hadjadj nunca se exibe. Ele escreve fácil e tem humor. Mas não vulgariza. O pensamento é exigente.
 Belíssimo o retrato de Mozart que ele faz. A dificuldade que temos em aceitar arte feliz feita por um gênio que foi pessoa feliz. Hadjadj defende sua ideia: o mundo tem dor e tem feiúra, mas o fundo da vida é sempre belo e alegre. Não somos infelizes com momentos de alegria. Somos alegres que se deixam levar pelo orgulho, pela vaidade e pelo medo. A vida é inesgotável, é farta, borbulhante, infinita.
 A ideia de vida eterna é amplamente discutida. Ele é radical: a vida é eterna e somos nós mesmos no além. Nada da perda de memória do oriente. Nada de reencarnar. Ele vê nessas crenças um modo comodista de adiar tudo e não fazer nada. E responde aos ateus: acreditar no nada nos livra de toda responsabilidade. Mais, sem Deus nos tornamos donos de nosso corpo e de nossa vida. Nada mais mimado que pensar assim. Para muitos, nada mais assustador que pensar que após a morte há uma continuação. Voce continua tendo de aturar voce-mesmo, sua esposa, seu pai, seus inimigos. No mundo que ama a extrema liberdade de escolha, o nada absoluto se afigura muito mais tranquilo que o Céu infinito.
 Pois o Céu é uma atividade. Uma entrega ao movimento. Um descobrir sem fim. Um agora que se eterniza em usufruto e um aqui que se estende numa observação sem final. Podemos provar um pouco desse mel em nossos raros momentos de êxtase, em que sentimos nossa infinita alegria. A vida e o mundo como possibilidades que não param de se renovar.
 Para Fabrice Hadjadj, todos somos filhos de Deus e portanto todos temos nosso começo Nele. Olhar para uma pessoa é olhar para esse começo. Amar uma pessoa é amar esse começo. Esse é o mistério.
 ( PS: Faz séculos que a Bíblia é lida, relida, interpretada e reinterpretada...lendo este livro começo a entender o porque...o assunto é eterno... )

NATAL

   Nada revela melhor o rancor dos inteligentinhos que o Natal. Eles assumem o papel do ex-namorado que foi ao casamento de sua antiga amada. Ele está lá, bebe, come e ri, mas fica o tempo todo cortando o barato de quem estiver por perto. E "sabe", em seu rancor pobre e ácido, que o casamento nunca dará certo. Incapaz de aceitar o amor dos noivos, ele nega esse amor usando sua "inteligência".
  Recebi ontem, dia 24, um texto de um amigo ateu. Ateu do tipo que prega e que tem fé na não-fé. O texto diz que Elon Musk descobriu que somos programados por ETs. Que eles dirigem nossas vidas. Que vivemos em um mundo ilusório. Virtual. Weeelll....
  Crer nisso é tão absurdo quanto crer na concepção virginal. Com uma diferença que para o ateu faz todo sentido: parece ciência. Mas não é. Trata-se apenas de fé religiosa sem ética. Nessa crença de Elon há muito de budismo, muito de cristianismo e até judaísmo. É uma forma pretensamente nova de contar o que é tão antigo quanto o homem.
  O Natal significa natalidade. É o dia em que se comemora o dom da vida. A capacidade de nascer todo ano. Sobreviver. É a vida nascendo da virgindade. Da pureza. É a realeza se curvando diante da simplicidade. É a benção dos animais na manjedoura. 
  Na verdade o Natal simboliza o sentido que existe na própria vida. Nascer, dar, crer, abraçar, olhar o céu, esperar, unir, seguir, ser humilde, permanecer.
  Elon e meu amigo são apenas crianças.
  Criam fés pretensamente novas.
  Prefiro as antigas. Séculos e multidões podem estar mais próximas da verdade.

ISLÃ

   Doze anos depois estou relendo a biografia que Edward Rice escreveu sobre o aventureiro inglês Richard Francis Burton. Aventureiro é modo de dizer, pois Burton foi soldado, filósofo, escritor, descobridor e o primeiro ocidental a se tornar mestre do sufismo, corrente mais sofisticada e sutil do islã. Mas não vou falar do maravilhoso livro agora ( é a mais fascinante biografia que li e deveria ser obrigatória em dias como os de hoje ). Vou falar do islã.
   Uma das coisas mais legais deste volume é que ele fala do islamismo antes do 11 de setembro. Rice o escreveu nos anos 80. E Burton esteve na India, no Egito, na Somália, em Meca por anos e anos. Ele viu os mestres, ele fez os sacrifícios, ele viveu com mulheres de lá. Ele se tornou um deles. Por curiosidade e por fé. Era um europeu gnóstico. Entrou de cabeça na cabala e depois na religião de Maomé.
  Burton criticava o hinduísmo. O cristianismo. Mas nunca o islã. E um dos preceitos do sufismo é calar sobre sua fé. Não se mostrar diante dos infiéis. Ser invisível.
  O cristianismo, segundo Burton, errou muito em seus primeiros séculos. Errou por não insistir na reza diária como caminho para a concentração e a iluminação. Errou por não observar os horários do dia como momentos sagrados. Errou por não seguir uma receita de alimentos impuros. Errou por divulgar a dúvida e não a absoluta certeza. E exatamente em sua primeira grande crise, o século VI, surge o islã. Maomé traz de volta tudo aquilo que o cristianismo perdera.
  Para o seguidor do islã, a vida não tem questões a serem respondidas. Não há dúvidas. Vivemos num vale de lágrimas. Mas esta vida significa apenas um ponto, uma pulga, em vista da imensidão da eternidade. Estamos aqui para orar à Deus e para amar à Deus. Não para O questionar. Jamais. Todas a respostas estão no Corão. E só nele. Devemos ser limpos. E seguir os preceitos.
  Claro que existem as correntes que se detestam e se negam. Burton conheceu todas elas. E Rice as explica. É um intrincamento de caminhos sutis ou não. Mas o islã tem algo que o cristianismo tenta esconder : proibições. O cristianismo, sempre politico, fez concessões para poder crescer. O islã cresce por apresentar um mundo que não muda nunca. Ele é o que é e nunca mudará. Nega o tempo. Tempo que o cristianismo ama e venera.
  Neste momento de preconceitos de ambos os lados, ler este livro é acima de tudo um ato de paz.

SILÊNCIO...O MAIS DURO FILME DE MARTIN SCORSESE.

   Cada vez menos gente sabe história, então conto aqui o contexto do filme: No século XVII, com medo do protestantismo, Roma dava força total aos jesuítas. Os jesuítas foram uma criação do século XVI que visava converter almas. Guerreiros de Deus, sua missão era levar a fé para o máximo de pessoas pagãs. Assim, eles se espalharam pelo mundo. Futuramente, o próprio catolicismo os tornaria proscritos. Portugal, país ocidental que primeiro tocou o Japão, tomou para sí a missão de catequizar os japoneses. No fundo dessa questão havia o desejo de provar aos protestantes que a igreja de Roma era a verdadeira. Para os marxistas, que tudo gostam de simplificar, tudo era mera questão de mercado. Mas não era só isso. Na verdade o cristianismo começava a duvidar de si-mesmo. Converter era um modo de reafirmar-se. Mas, e o filme mostra isso também, ao ter contato com outras culturas, o jesuíta entrava em questionamento. E, se forte, saía com uma nova certeza.
  Scorsese consegue mostrar tudo isso. E sem nunca parecer didático. O filme, feito sem orgulho, sem espetáculo, humilde, simples e extremamente triste, é difícil de assistir. As cenas de sofrimento são insuportáveis; as torturas absurdas e revoltantes, a dor se espalha por todo lado. Mas Scorsese é honesto. Ele mostra, exibe, fala, e nunca se exibe. O filme é isento de "arte". É uma obra de fé.
  Generoso, o filme pode ser visto como refutação de Deus. Passamos quase 3 horas com o desespero da dúvida. Deus não fala, tudo é dor e silêncio. Mas há o final...O belo e exato final. O fim do filme tudo clareia. Não o contarei. Que assista quem puder.
  O tema do filme é, percebemos então, a humildade. Todo mal vem do orgulho e da vaidade. E um homem só percebe isso quando é humilhado. Scorsese dá uma esperança a nós, seres vazios do século XXI. Na figura do japonês tolo, aquele que peca sem parar e se confessa após cada erro, vejo a nossa época. Somos todos aquele traidor. Todos tentamos manter o que podemos dos dois mundos: o mundo da alma e o mundo da carne. Não somos de todo maus. Apenas confusos e covardes. Ou, é isso que o filme diz, filhos favoritos.
  Para não revelar o final do filme falarei que Bergman tem um filme chamado O Silêncio. Nesse filme um padre se mata por não poder ouvir Deus. Bergman, que foi um homem de fé que acreditava não a possuir, fez um filme que o trai. Ele não tem final. Fica em suspenso. Já Scorsese repete esse desespero. Mas vai além e lhe dá uma nota final. O americano aceita sua crença ancestral. Bergman, sempre adolescente genial, não pode fazer isso. Bergman, que eu adoro, morreu ainda adolescente. Scorsese atinge a velhice. Reconcilia-se.
  Para mim, sangue luso que passou 40 anos brigado com meu passado, o filme mostra além de tudo, mais um dos brilhantes desastres portugueses. Por insistir em catequizar, os lusos perdem o Japão para a Holanda, que desejam apenas vender e comprar. Portugal, um dos mais complicados dos países, não pode e não quer apenas vender. Ele precisa batizar, salvar, mudar a alma do Japão. E, como o filme mostra, os lusos não percebem que um japonês não é um europeu. Ele vê o mundo de outra forma.
  Essa a grande chave do filme. E é a imagem que fica, que me ficou entre lágrimas. Um japonês não consegue ver o mundo sem o molde budista-taoísta. Para ele Deus é a natureza e as estações. Um tipo de nada anímico. Pois para nós, mesmo nós, materialistas herdeiros do ocidente, tudo sempre é tocado por um Deus único e humanizado, que se sacrifica e morre, e ressuscita e pode falar conosco. Essas imagens conduzem a cultura. Inclusive da ciência. Da história. Dos nossos sentimentos. O renascer é a condição de todo herói. E de cada homem vivo.
  Nós sabemos disso. Tudo nos é familiar. E talvez, Scorsese diz isso, sejamos parte da Verdade. O Silêncio da natureza é a voz de Deus.
  Perto deste filme, falho e chato, lindo e inesquecível, todos os filmes do Oscar são obras de crianças.