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INTERPRETAÇÃO DO DOGMA DA TRINDADE - C.G. JUNG

Comecei a leitura deste livro, apenas 90 páginas, ontem. Tive um sonho esta noite, sonho que relatei à minha mãe: " Pipoca, minha cachorra, vivia num jardim com outro cachorro, uma pequeno boxer preto. Um gatinho cinza aparecia por lá, eu o alimentava e impedia que Pipoca se aproximasse do gato". Apenas isso. Agora de manhã termino a leitura do livro, e logo leio este trecho: " Sonhos com a trindade são comuns e nascem sempre do mais profundo inconsciente. Sonhos onde vemos ( alguna exemplos )...e dois cáes e um gato...". --------------- Minha relação e crença em Jung não se dá porque o ache bom escritor, não é, ou consolador, não quer ser, mas sim porque empiricamente, dentro do possível, ele passa pelos testes. Jung é real em minha vida. Ele faz sentido empirico. Neste texto ele expõe a ligação, saudável e necessária, dos símbolos cristãos com nossa mente. De um modo que não podemos racionalmente entender, a simbologia cristã, principalmente a católica, satisfaz e pacifica nosso inconsciente coletivo. É um arcabouço de imagens e de mitos que falam fundo dentro daquilo que somos. ----------------- O PAI. O FILHO. O ESPÍRITO SANTO. Não é preciso explicar isso, é necessário crer neles. Do Pai nasce o filho. E da união dos dois surge o Espírito Santo. Eis a trindade. Jung sabiamente diz que nossa vida refaz esse caminho: do meu pai eu surjo. Devo me contrapor à ele, o negar, me fazer filho. Depois, ao tomar consciencia do que sou, me reconcilio com o pai e então estou apto a ser eu-mesmo. Eis o milagre do espírito santo: me torno aquilo que sou. Jung não teme dizer: sem a fé e sua simbologia não há vida mental produtiva. É a religião que nos liga àquilo que é da comunidade desde sempre: a vida do inconsciente coletivo. Do que não tem voz e não se comunica de forma legível. Daquilo que é eterno. ---------------- O texto é fascinante e gostaria de o explicar inteiro. Jung fala da necessária quaternidade, fala de Pitágoras, Platão, do Diabo como o mal que dá validade ao bem e que nos faz ter de escolher. Para Jung, Satã, o anjo que ousou questionar, seria um vértice da trindade, secreto, o pé da cruz. ------------- Jung defende a superioridade da igreja católica sobre os protestantes. Ela, a romana, usa imagens, ritos e palavras que mesmo que não mais as entendamos, falam fundo dentro de nós. Há ainda uma forte crítica ao mundo moderno. Perdemos a capacidade de mergulhar na simbologia. Por orgulho intelectual, não nos subjugamos ao Pai. Evitamos a reconciliação e ficamos presos, para sempre, no papel de filho. Jamais alcançamos o Espírito Santo. Vaidade racional. Orgulho intelectual. Independência ilusória. Por esses valores futeis, deixamos de cumprir a trindade. -------------- Pois ser adulto é se deixar comandar, se permitir obedecer, seguir sem mais questionar. Para Jung, muitas são as armadilhas, pois esse papel, de guia, de comando, pode ser tomado pelo fascismo comunista ou nazista, por falsos profetas ou teorias delirantes. Jung diz que dois mil anos provam que a igreja cristã é o guia mais confiável. A igreja soube escutar e dar voz ao inconsciente coletivo. Ela entendeu a necessidade mais profunda do homem. Por outro lado, as correntes baseadas na razão perdem o caminho rumo ao inconsciente. Pois são todas baseadas na palavra, no discurso, no que se pode ver e provar. -------------- "Atinge-se o estado adulto quando se volta a ser criança, no sentido a que se permite a um outro adulto tomar o comando". Eis a humildade cristã. Eis o NADA SEI de Sócrates. --------------- Evito falar aqui do problema do mal, pois não quero ser leviano e para não o ser teria de copiar palavra por palavra o texto de Jung. Encerro então, dizendo que Jung não tem a vaidade de valorizar sua "sabedoria médica". Ele diz em alto e bom som, que a religião é superior a psicologia, a metafísica mais vasta que a física, e que não é uma questão de aceitar Deus ou não, pois Ele é. Fora da linguagem religiosa a vida deixa de fazer sentido, nossa jornada se torna absurda e o mal se relativiza. Se voce pensou no mundo de 2021, voce acertou. -------------- Boa leitura.

CERIMÔNIA DE INICIAÇÃO

Tempos atrás eu e um amigo falávamos muito sobre a falta de algum tipo de cerimônia, de momento em que o moleque saía da fase infantil e adentrava na vida adulta. Eu e ele não conversamos mais sobre isso porque se em 2009 essa falta já era grande, agora nem mais se lembra que um dia houve algo assim. Vi um filme, fraco, de Ridley Scott sobre o assunto, e mais uma vez, não há outro modo, somos confrontados com a verdade de que apenas na dor e no enfrentamento pode ocorrer o amadurecimento. Dor para ser superada, enfrentamento da própria infância. A desmistificação da história vivida na meninice e o zeramento da vida. Como superar a dor se tudo hoje exige que a revivamos dia a dia? Como deixar a infância para trás se hoje viver como criança é um tipo de infame nobreza? Tudo nos convida a nunca ser adulto. E a atual "moda" dos 89 gêneros sexuais ou da opção por se ter o sexo que se quiser, é na verdade o prolongamento ao infinito da puberdade. Aos 11 anos somos um dia menino um dia menina um dia assexuado. Testamos, nos perdemos, tememos, não sabemos. Aos 12, 13 nos definimos. A voz, o corpo, o desejo toma seu rumo. A iniciação ajudava a fixar esse momento, convidava à nova vida e principalmente dava confiança para prosseguir. Voce era mais um adulto na tribo. Bem vindo. -------------- Penso neste exato momento: um garoto que em janeiro de 2020 tinha 11 anos e agora tem 12, vivendo essa transição em casa, mascarado, preso, cercado por sinais de medo. A entrada no mundo adulto, em 2019 já quase impossível, agora sem chance alguma. Sempre foi preciso coragem para sair de casa, e agora ser homem é ficar em casa. É isso? ------------- Tudo pode ser apenas um momento, mas se nossa civilização caminha para onde parece ir, a infantilização definitiva, onde a morte não pode existir e a coragem é um mal, então talvez seja não só inevitável, mas até desejável uma era muçulmana. Falo bobagem? Talvez sim. Mas realmente a covardia imberbe, a bondade formatada, a falta de testosterona geral me dá um bode admirável.

ESPAÇO DENTRO DE CASA

Henry James escreveu no começo do século XX suas lembranças da Itália. Um dos fatos mais interessantes é quando ele discorre sobre o espaço interno nas antigas casas de lá. James, escrevendo bem como sempre, descreve a alegria e a beleza de se andar dentro de casa. Ele não nega a beleza superlativa da paisagem campestre da Toscana ou da Emília, mas nada supera a emoção espiritual de se andar por uma longa galeria ou poder tomar posse de uma sala imensa. Não há em todo o mundo nada que se compare remotamente à imensidão das janelas e sacadas da Itália em seu explendor. Cômodos repletos de armários do tamanho de uma sala. Afrescos, tapetes, estátuas, vitrais, tudo criando a emoção de uma renovada descoberta. Estar sentado num sofá e observar a luz do outono cair sobre uma mesa, distante, no portal de outra sala. O eco dos seus próprios passos. O cheiro de objetos escondidos. A cada passo uma nova luz. Henry James percebe, claro, a decadência estética da nova Itália. O mal gosto das roupas, as novas casas minúsculas, o campo sem flores. Ele imagina o quanto as pessoas de 1700, 1750, ficariam espantadas com a feiúrua da Roma de 1905. Mas, ao mesmo tempo, ele não deixa de se encantar com a fartura das cores italianas, as sombras do fim de tarde... Para voce que me lê, é claro que não tenho como falar da emoção de andar na minha casa. Ela é pequena. Mas peço para que voce relembre...como era andar pela sua casa quando voce tinha 4, 5 anos de idade. A sensação de todo dia estar a explorar um lugar que era sempre o mesmo e sempre outro. A luz na sala que mudava da manhã para a tarde, de abril para outubro. O canto escuro debaixo da escada, o interior do guarda roupa, o quintal com insetos desconhecidos. O espaço dentro de casa é o nascedouro do mundo dentro de voce mesmo. Admirar o tamanho de uma sala é dar à sua alma o espaço que ela precisa. Ecos de quem se explora, sombras de quem se procura conhecer.

INCONSCIENTE

Vou considerar apenas o DNA. Nada de alma portanto. Por 200 mil anos, no mínimo, vivemos a experiência de ver lobos trucidarem nossos companheiros. E ao anoitecer sentíamos o pavor indizível da hora da fera. Escondidos em árvores e depois em cavernas, encostados, passávamos a noite escutando urros, gritos, guinchos. Todo amanhecer era a alegria de mais uma vitória. Por 200 mil anos, na verdade mais, matávamos quem roubasse nossos grãos, matávamos por nossa área de caça, matávamos por nossa mulher, tomada. Se esperava de nós que assassinássemos bem. Capturamos bichos. Plantamos muito depois, e mesmo como agricultores, lutávamos para manter a terra. Por 200 mil anos, ou mais, bem mais, jogávamos ao lixo nossos bebês defeituosos. Sobrevivia quem podia ajudar a sobreviver, os doentes atrapalhavam. Nossos corações viviam encharcados de adrenalina, nossos ouvidos sempre alerta, prontos para fugir ou para brigar. Todo o tempo. Não havia família. Enquanto fosse forte um homem procriava com quem pudesse. Quando fraco, que se escondesse. Os filhos eram das mulheres, só ao crescer o pai os tomava e os levava à caça. E a guerra. Não havia propriedade. Tudo era do clã. E o clã tinha seu chefe. Esse chefe era aquele que melhor matava. Simples assim. Para poder comer, ou ter um teto, voce se submetia ao clã. A religião era a explicação da vida. Uma defesa contra o medo. A arte era sempre religiosa. Tudo era exterior. Eternamente em luta, não havia tempo de olhar para dentro. Não mais de 5000 anos de civilização como a conhecemos. E civilizar é sempre reprimir. Voce não vai tomar e estuprar sua vizinha. Voce não vai fugir da defesa do grupo. Será mantida uma lei, e ela tem por objetivo dar rumo e ordem ao grupo. A lei necessita história, tradição, costume. Nossa mente começa a ser ocupada por regras, novos hábitos, obrigações. Para onde vai o homem antigo? Para a caverna da mente, a zona escura, o inconsciente. Não se apaga essa herança por simples vontade. Ficou escrito em algum gene: matar, fugir, se esconder, estuprar, grunhir. Medo. Muito medo. Voltando no tempo somos 100 mil pessoas no planeta. Ou menos, claro. Tivemos as mesmas experiências. Por milênios. Somos todos parentes. Temos portanto o mesmo inconsciente. Coletivo. Esse inconsciente está a espreita. Eis ele surgindo em sonho. Numa doença mental. Num ato gratuito. Na arte. Na fala involuntária. No transe. Num crime. Numa guerra. Saúde é conseguir harmonizar consciente-civilização com o inconsciente-barbárie. Como? Nunca pela palavra. Por atos. O inconsciente não fala, faz. Simbolize.

TIPOS PSiCOLÓGICOS - JUNG

"Em épocas arcaicas não havia individualidade. Rousseau estava errado. O homem primitivo não era livre. Ele sofria a pressão da coletividade de forma absoluta." " Esse poder opressor está vivo dentro de nós. Estado e igreja são a exteriorização do poder que internalizamos em nosso passado mais arcaico. O poder dos dois não é tão forte quanto permitimos que seja". " Para a força coletiva nada é mais odioso que a individualidade. Para o barbarismo tudo tem de ser feito para todos. O indivíduo é uma criação da cultura ". " Para o introvertido, Deus é procurado dentro de si mesmo. Para o extrovertido, Deus se encontra no mundo, Ele é um encontro fora de si". " Duas mentalidades opostas: Uma procura fazer do mundo aquilo que ela pensa ser o certo, outra olha o mundo e procura tirar proveito daquilo que se apresenta. São inconciliáveis. " " O individualismo nasce com a creça cristã de que cada um possui uma fagulha divina e que cada um é responsável por sua salvação. " " Uma das certezas mais ilusórias de nosso tempo é crer que a religião pode ser banida de nossa vida com um simples desejo de negação. Ela faz parte de nosso modo de sentir, pensar, e formar nossa ideia de vida. E assim como o paganismo, ela está incrustada em nosso inconsciente". " Artistas e filósofos, os verdadeiros, trazem sua ideia do inconsciente. Têm acessa á essa fonte. Por isso logo o mundo os segue, pois eles apenas antecipam aquilo que o inconsciente pede à todos". " No mundo tecnológico, QUANTO MAIS O HOMEM COLOCA SUA LIBIDO EM SEUS OBJETOS, MENOS LIBIDO ELE TERÁ EM SI MESMO. Haverá um esvaiziamento interno e um excesso de libido na máquina ". Estes são frases coletadas dessa imensa, difícil, compensadora obra de Jung. Lançada em maio de 1920, temos então seus 100 anos. Dos gregos aos primeiros cristãos, depois Schiller, William James, Nietzsche, Schoppenhauer, Spitteler, a cultura de Jung é imensa. Eis um volume que vale por enciclopédia. Procure e leia.

INFÂNCIA E WORDSWORTH

   Wordsworth teve uma longa vida. 1770 até 1850. Oitenta anos que no século XIX equivaleriam a viver uns 100 hoje. Sua melhor poesia foi feita entre 1790-1820, ou seja, enquanto sua memória ainda estava fresca. Wordsworth não escreve nada sobre sua infância como biografia, mas ele só é poeta quando revive o sentimento de ser uma criança. Mas não pense que ele compactua da moda de então, aquela de que toda criança é inocente. Não. O que o poeta inglês tenta preservar é a sensação de estar vivo DENTRO da vida e não FORA do elan vital. Para Wordsworth a vida só é plena enquanto somos crianças. O hábito mata esse dom. O tempo nos obriga a viver numa eterna repetição,  e essas repetições destroem a memória. Nascemos vindos da divindade. Quanto mais jovens mais podemos sentir essa nossa origem.
  Fazer poesia, para ele, é rememorar. A emoção e o casamento entre criança e natureza, na idade adulta, estão perdidos. Mas calmamente voce pode relembrar e assim reviver, mesmo que a distância e de um modo frio, o que foi aquele encanto natural.
  Wordsworth faz assim dois movimentos na época revolucionários. Primeiro tira o poeta do pedestal do classicismo. Todo ser humano pode ter essa experiência. Pois toda infância vive dentro desse encanto. Segundo fato: Fazer poesia é memória e não arte de pura técnica. Essa é outra pedrada nos clássicos.
  É aceito hoje que todo artista verdadeiro tem acesso à um tipo de espírito da infância. O homem tende a perder esse espírito com a idade. Segundo Wordsworth o que o degrada é a pura e simples repetição. Somos presos numa rotina diária que embota nossa emoção. Horários, estudo, ruídos da cidade, distrações, tudo nos faz ESQUECER. Para ele, a infância é sagrada simplesmente por estar próxima ao outro mundo, o universo de onde viemos. Esse porque é para mim o único ponto discutível do que Wordsworth diz. Para mim o simples fato de sermos jovens cria o encanto. Vemos tudo pela primeira vez, sentimos pela primeira vez. Para esse encanto não é necessária nenhuma memória de outro mundo. Mas, de todo modo, Wordsworth cria uma bela imagem poética. E quem poderá negar essa verdade?
  Desse modo, em nossa vida de adulto, e agora quem fala sou eu e não o poeta inglês, só tem valor poético TUDO AQUILO QUE É ALGUMA RECORDAÇÃO DA INFÂNCIA. Não posso cometer o erro de dizer que minha experiência é a experiência de todos. Mas só consigo habitar o meu mundo de contentamento, paz e sensação de absoluto, quando mergulhado em algum tipo de rememoramento da infância. Ás vezes provo a felicidade total simplesmente por sentir em minha carne uma espécie de calor ou sono COMO DO DA MINHA MAIS REMOTA INFÂNCIA. É como se minha pele ou minha barriga voltasse a sentir o calor de uma tarde de 1970 ou o cheiro de uma fruta sentida em 1968. A sensação é de uma porta que se abre dentro de mim, e então olho dentro daquele mundo outra vez. O que vejo lá dentro não é alegria ou dor, felicidade ou melancolia, é A SIMPLICIDADE ABSOLUTA DE SE ESTAR VIVO. Eu não penso em nada de especial. Nenhum fato dramático é lembrado. O que sucede é somente uma sensação sem história. Um estar aqui. Viver.
  A frase mais famosa de Wordsworth é a que diz O MENINO É PAI DO HOMEM. Isso porque todos nós tivemos um menino antes de ter um homem. Nascemos de um menino, fomos esse menino, ele veio antes e nos abriu as portas. Para não perder todo o encanto da vida, é necessário que esse menino-pai permaneça a nosso lado, mão com mão, sempre.
  Isso me recorda muito as sessões de terapia que tive durante 1986-1989. Quem já fez sabe que 80% das sessões não são proveitosas. Mal nos lembramos delas. Mas que existem tardes em que uma porta se abre. Li mais de uma vez que a linguagem de nosso inconsciente é sempre poética. Nossa mente mais profunda fala e enxerga por poesia. Pois eu diria que ao tocar nosso inconsciente nos tornamos uma criança novamente. Nos tornamos básicos. Puro sentimento. Pura sensação. É aí que mora o pior medo. E a mais bela recordação.
  Wordsworth intuiu isso. Ler esse poeta é sempre uma terapia.

BEM VINDO AO MUNDO REAL

   Conheço críticos que nos anos 80 e 90 diziam que o grande mal da arte brasileira era a subserviência à Caetano Velloso e sua corte. Eles bufavam dizendo que todo novo cantor, banda ou escritor, tinha como ambição máxima receber as bênçãos de Cae e Gil. Diziam que aqui não havia ruptura, fim de ciclo. Que tudo girava em torno da corte baiana.
  Hoje esses mesmos críticos estão alinhados com a corte.
  Este não é um texto a favor ou contra. Juro que tento apenas olhar e descrever. Alguém tem de abrir um olho. Vamos a descrição.
  Quero entender o motivo de tanto ódio. Por que um povo que ignorava Sarney, hoje quer ver morto Bolsonaro. Há algo de psicológico nisso. Há uma doença social. E eu sei, que pelo fato de 99% dos psicólogos sociais serem de esquerda, eles estão analisando a doença de ser Bolsonaro, e ignoram o ódio irracional ao presidente.
  Não digo que ele seja bom. Talvez seja menos que razoável. O que me causa espanto é o tamanho do ódio. Eu vi os governos Figueiredo, Sarney, Collor e todos os demais. Nem Collor foi tão odiado. Por que?
  Dizem que Bolsonaro é machista. Diria antes hetero ostensivo. Não o vi bater em mulher. Não o vi caçar algum direito feminino. Não o vi em orgias com 5 mulheres pagas. Sarney, Collor e Lula pareciam tão heteros quanto ele. O que seria então?
  Dizem que ele é ignorante. Não vai ao teatro e não lê bons livros. Lula não lia nada. Não foi visto em museu ou teatro. Collor só frequentava festas de playboy. Itamar era alegremente bronco. Então onde Bolsonaro peca?
  Já ficou claro não é? Ele cometeu o pecado de não beijar a mão de Caetano e Chico. Claro que estou usando símbolos. Collor e Figueiredo não fizeram isso. Mas o bronco Lula era amado porque foi prestar homenagens a eles. Mesmo não sabendo uma letra de Milton de cor.
  Quem mais odeia Bolsonaro é quem não suporta o fato novo que acontece aqui e agora: a morte do formador de opinião. Quem o detesta são as pessoas que se vêm ameaçadas pela perda de sua importância intelectual. " Como esse bronco ousa me ignorar?"
  O problema não é ele não ler. É ele ignorar quem escreve livros. Lula dava prêmios. Fazia festivais. Artistas são baratos. E Lula é esperto.
  Bolsonaro foi eleito, como Trump, sem o apoio de formadores de opinião. E eles, assustados, não o perdoam por isso. Ele jogou na cara deles o quanto hoje eles são irrelevantes. E eles não podem suportar essa novidade.
  O Brasil sempre teve duas elites que mandaram como reis e duques: Os ricos e os "letrados". Em terra de miseráveis, quem tem dois tostões é nobre e quem leu Jorge Amado se acha especial. Tanto o rico como o letrado têm na ponta da língua a frase: "Voce sabe com quem está falando? Voce não tem nível para me contradizer".
 Bolsonaro e seus eleitores ignoraram os leitores de Chauí. Nem sequer a atacam. Ignoram sua existência. E vivem bem sem ela. Ela então grita.
 Para o ego dos formadores de opinião, isso é insuportável.
 A Globo ataca frontalmente, e na minha opinião se suicida com isso, ao governo não só por uma questão fiscal. Ela sabe que ele põe a perigo seu trono dourado. Mostra que ela já não dita regras. Lula foi ao Fantástico no dia da eleição. Foi dar uma exclusiva para a rainha do país. Bolsonaro rezou. Numa transmissão mambembe, ele transmitiu uma reza. Foi feio. Tosco. Foi Brasil.
 Bolsonaro joga na cara desse povo, os classe média bem educados, esquerdistas no molde Partido Democrata da California, o que é o Brasil. Muito mais que Lula ou Itamar, ele é o tiozão caminhoneiro, o taxista, o guarda no sinal, o empreiteiro, o dono do açougue, o feirante. Lula era o homem do povo para uso de intelectuais culpados, Bolsonaro é o homem do povo que pouco se importa com intelectuais. Ele é absurdamente sincero.
 O ódio a Bolsonaro é revelador. Mostra o preconceito das classes educadas, esnobes, egocêntricas, europeizadas e americanizadas , contra o homem comum, banal, simplório. Ele fala o que pensa e se atrapalha porque fala demais. Ele fala de um modo sujo, mal articulado, feio. Isso é motivo para tanto ódio? Não. Se ele pagasse tributo à realeza seria motivo apenas para risos. Como era o caso de Sarney ou de Itamar. O ódio é aquele do ego ferido. É insuportável para quem o sente.
 Ele revela que seu curso de sociologia pode nada significar. Que suas leituras sobre Heidegger podem ser apenas masturbação. Que o mundo real pouco se importa com voce.
 É claro que eu adoro livros etc etc etc. Mas por Deus! Como é possível tanta crueldade a alguém cujo único pecado é ser um bronco?
 Esse ódio é possível a partir do momento em que ele ameaça seu senso de auto importância.
 A partir do momento em que ele se elege contra todos os seus palpites.
 E expõe, de forma humilhante, que voce não sabe prever, não influi mais e talvez esteja deixando de ser um "nobre leitor" e se tornando apenas mais um na multidão.
 Bem Vindo ao mundo real.
 

THIS HAPPY BREED - DAVID LEAN ( CONSTELAÇÃO FAMILIAR ).

   Infeliz o povo que não consegue mais fazer filmes como este. Pior ainda, infeliz o povo que não vê mais sentido em histórias como esta. Do que trata, e por que "constelações familiares" ?
   Primeira cena do filme: Um jovem casal está de mudança para uma casa simples. É uma daquelas casas inglesas de tijolo marrom, uma fila sem fim de casas iguais: uma sala e uma cozinha; em cima, dois quartos, mais um jardinzinho nos fundos. A mudança é feita eles arrumam e limpam tudo, a casa é bem suja. Um filho e duas filhas, são os Gibbons e a história começa nos anos 20. A Inglaterra se encontra tomada por greves e desemprego.
  Um vizinho faz amizade com eles. Começam os namoros. Casamentos, vinte anos serão exibidos em duas horas de filme. Eles passam pela Segunda Guerra, passam pela morte de um membro da família, e depois de mais um. Uma filha foge de casa, e depois, muito depois retorna. E tudo é regado a chá, muito chá, dor contida, piadas, whisky, mais chá e o jardim do pai. E é aí que desejo chegar:
  Um namorado da filha é um jovem socialista anarquista, do tipo que havia aos montes nas ilhas dos anos 30. Numa discussão com o pai dos Gibbons, ele diz que "o mundo precisa mudar já!" O pai, cuidando das rosas, diz que "a Inglaterra ama jardinagem...e por isso somos do jeito que somos...temos paciência porque sabemos que as coisas têm um tempo para crescer, florir e morrer...quero que o mundo seja melhor...mas sei que a vida não é diferente deste jardim..." Robert Newton é o ator que diz esta frase simples, e muito do seu encanto se deve ao charme desse ator inglês. Talvez voce então já tenha notado o que desejo dizer... O filme, de uma forma discreta, leve e grave, sem apelos, mostra despudoradamente o VALOR SUPREMO DE UMA FAMÍLIA. O que vemos diante de nossos olhos, cheios de maravilhamento, é a mais simples, a mais banal das histórias: vinte anos na vida de uma família absolutamente comum. Nem ricos nem pobres, nem felizes, nem infelizes, sem bandidos ou santos. Banais, banais como todo pai é, banais como toda mãe é.
  Steven Spielberg gosta de dizer que David Lean nunca fez um filme menos que bom. Discordo. Ele tem um filme chato ( A Filha de Ryan ) e cinco obras primas. Este é talvez seu maior e melhor filme. E é o mais simples e modesto. This Happy Breed se tornou nos anos 2000 um clássico tão cult como Coronel Blimp, de Powell. São amados com carinho e com respeito.
  Voce tem de ver este filme. Para entender a IMPORTÂNCIA DE SUA VIDA. A dignidade da vida comum. A beleza do chá banal de toda hora. O pai modela toda a moralidade daquela família. E a mãe dá à todos a força física de uma presença real. O filme, feito em 1949, é retrato perfeito e doloroso de um mundo que morria após a guerra. Um mundo do qual sentimos falta. Não criamos ainda um melhor para colocar no vazio deixado.
  Não veja este filme esperando moral ou beleza fácil. A vida dos Gibbons é árida. Espere dele uma lição. Uma aula. Uma chamada à ação.
  Um dos mais belos filmes já feitos. E o mais comum entre os grandes.

AQUELE ASSUNTO CHATO QUE NINGUÉM FALAVA E AGORA VIROU BANALIDADE.

   Leio que o suicídio já á a terceira causa de mortes nos EUA. Banalizou-se. Aqui, no país da banana, onde trabalho entre crianças e jovens pobres, faz muito tempo que me acostumei com meninos e meninas "treinando" suicídio. Eles cortam os braços quando estão muito tristes ou muito nervosos. Sentem alívio ao fazer isso. Já não me choca mais. Mas ainda procuro as ajudar.
  Nunca tentei me matar. Fingi uma vez, mas acho que esse "teatro" não conta. Foi um ato consciente para tentar fazer uma ex voltar. Nunca mais faço isso. A dor que vi no rosto dela me curou de toda mentira. Não minto mais. Mas vamos ao tema:
  A primeira onda de suicídios da modernidade foi por volta de 1810. Mas tenho dúvidas se essa onda foi assim tão "onda". Acho que foi uma moda entre pretensos poetas. De qualquer modo, foi um sinal. O individualismo em extremo pode dar na hiper vaidade, no superhomem de Nietzsche, ou numa corda com nó. Vivemos um tempo que nos pede a fazer três movimentos fatais: ser original, querer todo o tempo, esquecer o passado.
  Ao lutar por ser único caminhamos para o alto da montanha. E como somos únicos, lá não haverá mais ninguém. No máximo um pobre ou uma pobre serviçal. Ao querer e desejar todo o tempo teremos a recompensa do vazio. Se queremos sem parar estaremos insaciáveis para sempre. Será uma fome sem razão. E ao esquecer o passado jogamos no lixo toda a referência que nos diz de onde viemos, quem somos e a quem devemos. Sem esses laços nos tornamos barcos sem leme e sem ancora. Livres sim, mas sem rumo e sem descanso.
  Bourdain é o símbolo desse mundo. Livre, aventureiro, sempre querendo coisas novas. Sem rumo.
  Mas tudo talvez seja ainda mais simples.
  Eu tinha uma amiga de minha mãe que se chamava Dona Mabília. Velha, muito velha, a casa dela era sempre a mesma. Seja em 1972 ou em 2001, era a mesma horta, os mesmos móveis, as mesmas fotos nas paredes. Até os programas que ela ouvia no rádio eram os mesmos. Quando minha mãe estava triste ela ia à casa de Dona Mabília. Faziam chá e falavam das plantas. Quando eu estava triste ia lá. E sentia que nada mudara. Que a vida continuava a mesma que sempre amei. Era um colo. O calor de uma voz amiga. O cheiro da cozinha fria e imensa, com um fogão Walig e uma geladeira Frigidaire.
  Não há mais colo. Na dor não existe mais uma casa para se ir. Onde ver que a vida continua a mesma, familiar, amiga, conhecida. O aumento de suicídio se liga à diminuição de Donas Mabílias. De avós que cantam, de avôs que fumam charuto, de pais que dão bronca e mingau quente. Ao fim dos bares-casa, das praças-memória, dos cantos-recantos.
  Não estou idealizando. Não penso na figura do avô sábio ou do pai forte. Sei que são raros. Falo da simples existência dessas figuras. Do cheiro da cama do avô. Da loção de barba do pai. Mesmo que frio e ausente, lá está ele. Falo do colo da mãe. Mesmo que ela só fale tolices, o colo está quente, está o mesmo de sempre. Falo do sentimento de que a vida tem uma história, um acontecer corrente, um fio de vidas.
  Podem dizer que estamos construindo uma nova vida, uma nova família, uma nova realidade. Mas assim como o feijão é sempre o mesmo, a água só existe uma e sonhamos de noite os mesmos sonhos dos gregos, a necessidade de um avô rotineiro, uma mãe que canta enquanto cozinha ou de um velho tio esquisito, não muda.
  Somos macacos, somos humanos, somos espírito: precisamos de um lugar seguro para fugir. E de braços conhecidos para nos salvar.

FREUD EDIPIANO: ÚLTIMA AULA DO CURSO SOBRE.

   O professor conta para a sala, mais de 50 pessoas, hipnotizadas, a história do mito de Édipo. E percebo como deveria ser mágica a época em que bons narradores contavam histórias de forma oral, ao lado do fogo ou à beira do rio. O foco da história: Édipo como alguém que faz perguntas, alguém que quer saber. ( Evito dizer à sala que minha visão do mito é a de que ele mata o pai= Deus, e esposa a mãe=ciência, e isso leva à sua cegueira; ou então o pai como Deus e a mãe como a natureza física ).
  Tirando o foco do escândalo, o professor nos leva às 3 fases de uma criança: o tempo do "o quê é isso?", depois o por quê, e afinal o não avassalador. Mas, filosofa natural como toda criança é, quando ela pergunta o quê é o mar, não é ao mar físico que ela se refere, mas sim o quê significa o mar. Ele é água e sal, e tem peixes, mas daí vem a questão: "por quê ele existe?". Lembro bem que minhas questões, aos 3 anos, eram básicas: De onde vim, onde eu estava antes de vir, para onde eu ia, e principalmente: Se o amor de meus pais por mim seria eterno.
  Segundo o professor, essas questões são comuns à todas as crianças em certa época de suas vidas. E em certo momento todas elas são respondidas com o Não. Você não poderá ter o amor de seus pais para sempre, você nunca terá certeza de nada, e há coisas que voce jamais saberá. É esse Não que formula a lei da civilização e é esse Não que dá sentido à procura. Mas...
  Vivemos em um tempo que odeia o Não. Achamos que todo não é arbitrário e que tudo pode se tornar sim. Não aceitamos o impossível. Não aceitamos aquilo que não tem cura, não tem solução, não pode ser vencido. Nem a morte aceitamos mais. Pior, mesmo a fase do Por Quê tem sido asfixiada. Nas redes sociais, na mídia, nas conversas, ninguém mais pergunta o por quê das coisas, o que se deseja é saber o quê é. Pontos de afirmação e nunca interrogações. A civilização, no seu geral, e mais que todos o Brasil, está ancorado na fase dos 12-16 meses de idade: "Quê é isso?", sem conseguir ou desejar alcançar o "Por quê isso?".
  Quanto as escolas...Bem, o necessário seria dizer aos alunos Por Quê é importante ir à escola. E NUNCA responder com coisas que nada significam, tipo: Porque precisa, Porque vai ser útil, Porque um dia voce vai entender. Jovens não se importam com aquilo que não tem valor existencial. A matemática terá valor se ela fizer sentido para sua vida e não se ela for apenas útil. O utilitarismo da escola mata o sentido que ela pode ter. Ou deveria ter.
  Saber tudo o que aqui foi dito nada tem de útil.
  Mas faz todo o sentido para mim.

UMA AULA SOBRE FREUD QUE HABILITA FREUD PARA MIM ( SE É QUE FREUD FOI ASSIM ).

   Vamos direto ao ponto: Nossos instintos estão relegados à simples função vegetativa. Nossos olhos piscam, nosso estômago digere, nosso coração dispara ao sentir medo. E então, falemos do medo. O medo é instintivo a qualquer animal. E quando se sente medo ou se foge ou se ataca. Mas não o homem. Nosso medo precisa ter um porque, precisa ser entendido, combatido e refletido. Então não será mais um instinto, será uma série de narrativas, uma história. O homem é então o único animal que transformou o instinto em palavras. Não se sente medo, se sente medo "de algo", "de um certo modo" e "porque tal coisa representa tal perigo". Conheço bem o medo, não o escolhi à toa. Quando vivenciei o medo sem porque, puro instinto solto, só voltei a sossegar ao saber o porque e o como desse medo "irracional".
  O homem não nega o instinto. Ele simplesmente o perdeu. Na verdade amamos o instinto, idealizamos a vida instintiva, usamos a palavra a toda hora, mas eles foram educados, racionalizados, contidos, e quando as palavras, a razão toma o instinto, ele morre.
  Um aluno pergunta se a linguagem não seria "instintiva". Não, pois instinto não se aprende, e o bebê aprende a falar. ( Instinto é aquilo que não se aprende, que não varia em tempo e lugar, que é comum a todos os homens em qualquer tempo, e que se faz sempre do mesmo modo, sem evolução ou variação. Por exemplo, todo leão caça do mesmo modo, todo lobo vive na mesma ordem social, todo elefante cria os filhos do mesmo modo, todo gato mia nas mesmas situações, não importa se em 500ac ou 2017, todos fazem tudo sempre do mesmo modo ).
  Outro aluno pergunta se os bichos seriam felizes. A resposta é que se ser feliz é viver de acordo com seu sistema vegetativo, sim, animais são plenamente adaptados e felizes, DESDE QUE não tenham contato com humanos, pois nós reprimimos seus instintos.
  Ver um gato dormir, um sabiá comer, um tigre caçar, é ver um ser plenamente livre, em uso completo de tudo aquilo que ele é. Um homem jamais terá essa chance, pois ele dorme pensando, come sonhando com outros planos ou desejos e não caça, e se o fizesse teria montes de vontades e medos misturados ao ato. Nunca somos plenos, pelo simples fato de que pensamos.
  Mas esse fato é inescapável, portanto, podemos viver razoavelmente bem apenas pelo uso das palavras. Se somos "amaldiçoados" pelo conhecimento, é esse conhecimento nossa maior arma. O que nos tirou do Eden é ao mesmo tempo nossa salvação.
  Mas há um fato que se sobressai cada vez mais: nossos instintos, tão fracos, precisam cada vez mais de motivação-pulsão. Comer precisa de variedade, temperos, novidades; o sexo precisa de aditivos, rotatividade, brinquedos, clima; e o próprio instinto de viver e de sobreviver passa a necessitar de motivações, metas e respostas. O sexo instintivo não requer troca de parceiro, ou climas ou imagens; idem para a fome ou a vontade de viver. O instinto requer satisfação simples, e se possível sem variação. Um leão será feliz com a mesma carne por toda a vida e um boi cruzará com qualquer vaca. Mas o homem, com seu instinto fraco-domesticado-mudo ( instinto não fala ), precisa de pimenta e de erotismo.
  As palavras nos levaram ao paradoxo do suicídio, à anorexia, ao tédio e a depressão. O paradoxo de querer morrer, de recusar comida, de sentir vazio perante o universo e a não sentir desejo cercado por coisas que se desejou.
  A linguagem fez de nós ETs em nosso mundo e estrangeiros em nosso corpo. A minhoca em seu jardim está em casa. Completamente em casa. Já nós, quando dizemos "casa", criamos um conceito de "casa", e perdemos essa "casa" para sempre.
  Nosso mundo é feito de palavras. E por isso voce está aqui e nunca ali.

A MINHA PREGUIÇA

   Entre 2 e 7 anos de idade. Eu me exibia. Cantava na sala para meus primos e tias e era aplaudido. Vaidoso, eu dormia muito e comia demais. Minha vida de príncipe era um sonho. Eu despertei meu ser no olhar. Eu via rostos femininos que me olhavam e sorriam para mim. E eu cantava para elas. Ao mesmo tempo eu via. Olhava o mundo com amor porque o mundo me amava. Desenvolvi o olhar então. Mais que a linguagem da fala, aprendi a ler com os olhos. Com eles eu podia gozar o amor por tudo o que eu via. E recebia de volta a luz entre a cortina, o azul da capa de um livro, o branco das nuvens que corriam.
  Mas veio a perda do público. Fui destronado e de príncipe me tornei pajem. Meu irmão veio como um furacão instituindo a república do ruído. Ele chorava, ele nunca dormia, ele ficava doente. Impedia meus pais de dormir. Pior, roubou de mim os olhares que eram só meus. Nasceu em mim a imagem do "herdeiro deserdado", do "nobre decadente". Meu público se foi. Eu não cantava mais. Me vi gaguejando por meses. Perdi a música e perdi a fala. Mas ainda olhava. Amava o mundo com olhos agora melancólicos. Mas ainda amava.
  Então não mais me pus a prova. Pois ao fim, eu sinto sem saber, virá a perda. Escrever um livro infindável é jamais o perder. Nunca sair de uma escola é continuar nela. Esticar a canção para não perder o público. Não encerrar o recital para não correr o risco de ver rostos virados.
  Isto não explica minha depressão. Muito menos minha SP. Mas dá uma luz sobre esse manto de vaidade destronada. Sou essa mistura esquisita de egocentrismo envergonhado e orgulho aviltado. Me sinto roubado. Sempre roubado. E roubo de mim mesmo o que me é de direito.
  Saboto-me.
  É assim.

HAMLET, FREUD E COUTINHO.

   Vivemos num tempo sem tragédias. Temos dramas, temos azar, frustrações, mas não tragédias. Para a tragédia existir é preciso que existam deuses. É necessário o diálogo com algo de superior a voce mesmo, alguma coisa que lhe submeta. Se acima de nós existe apenas o vazio, não há tragédia, há apenas a solidão e o drama individual. Porque o trágico é uma dor que atinge todos nós. Na particularidade da tragédia individual reside a dor de todos. O drama é um drama. A tragédia é um símbolo universal. Dor comum. Comunitária.
  Um escritor da Folha diz que Freud errou porque não há nenhuma narrativa na vida humana. Que ele ( Coutinho ), teve 4 psicanalistas, e com cada um deles a narrativa foi diferente. A vida é um acidente, a narrativa é uma ficção, sempre.
  Coutinho acerta o alvo mas erra o caminho. Freud errou porque confundiu seu particular com o geral. Deu a sua vida a generalidade da verdade. Sua terapia é conversa entre amigos, apenas isso. Substituiu o pastor por um doutor. Igreja para ateus. Mas a narrativa existe, caro Coutinho. Várias narrativas e todas são válidas. Essa confusão não significa que elas sejam falsas. Elas são confusas, apenas. O próprio ato de existir sem narrativa já é um tipo de narrativa.
  Andei revendo o Hamlet de Olivier. Uma narrativa, a de Hamlet, que não é a única possível. Um modo de agir, o de Hamlet, que é apenas um entre vários possíveis. Hamlet é uma virtualidade. E Olivier escolheu o viés freudiano, viés que era moda em 1948. Um caso edipiano. Assim, toda a grandiosidade cosmológica da peça é reduzida a fricotes familiares. O filme é bom porque a fotografia, os sets e a música são sublimes. Mas Olivier errou. Seu Hamlet é um drama e nunca uma tragédia.

AUTOBIOGRAFIA: SEMPRE EM MOVIMENTO, OLIVER SACKS, UMA VIDA.

Oliver Sacks escreve bem, dá prazer ler este livro sobre sua vida. Nasce em Londres, estuda em Oxford, se apaixona por motos. Essa primeira parte é a melhor. Sacks se descobre gay e tem uma vida sexual travada. Corre de moto pela Inglaterra e vira praticante de levantamento de pesos. E cientista. Oliver Sacks escreve diários, montes de textos, e seus livros popularizam a neurologia. Acompanhamos sua trajetória com prazer, ele parece modesto e bem humorado. Nunca é engraçadinho, mas é leve. Se muda para a California e depois para NY. Seu tempo na costa oeste é vibrante. Praia. Ele faz parte em 1960 da turma de Venice Beach. Em NY se fecha mais. O livro descreve a vida em hospitais, as descobertas sobre o cérebro, o funcionamento de drogas e de terapias. Sacks prova de tudo, se vicia em anfetaminas, larga o vicio, larga as motos após acidente, larga os pesos após muita dor. Fica 35 anos sem fazer sexo. Conhece gênios: Crick, Gunn, Edelman. Ama música, poesia, viajar. E escreve. Vira best seller. Tem um irmão esquizo, pais médicos, irmãos médicos. É uma vida útil, plena, criativa, curiosa, jovial.
Adorei ler este bom livro.
Recomendo a todos.

SUICÍDIO E ALMA - JAMES HILLMAN

   Na verdade é um livro indicado para terapeutas. Ele ensina um modo de lidar com pacientes suicidas. E fala, de uma forma interessante, corajosa, do que é esse ato.
   Hillman morreu em 2011 e foi um dos mais lidos junguianos dos anos 60-90. Neste texto ele defende a não-especialização dos psicólogos e, mais ainda, faz uma defesa apaixonada do direito à morte.
  Construímos nossa morte dia a dia. Nossa alma, parte mais importante de nós mesmos, luta por evoluir, crescer, desabrochar. Mas, na vida, só nasce aquilo que se desfaz, aquilo que morre. Para uma nova fase aparecer, para a vida se renovar, é necessário se deixar morrer. O suicida é aquele que não soube simbolizar a morte, que não entendeu a morte e que escapou do desespero. Não existe mudança sem dor, não há morte sem desespero, não se encontra nada sem que se perca tudo. É um fato radical, não existe acordo: crescemos criando mortes. A morte da infância, do amor, dos pais, do passado, das esperanças, das certezas, da fé. E renascemos somente após morrer. O suicida se poupa disso tudo. Ele mata seu corpo por não suportar a morte da alma. Ele não é o grande desesperado. Ele morre antes do grande desespero.
  Nosso mundo, científico, ama a vida. E considera que vida boa é vida longa. Prolonga-se a vida, mesmo que mal vivida. Mais que isso, poupa-se a pessoa de toda morte. Vida sem morte, sem símbolo, sem luto.
  A forma como Hillman explica a influência, nefasta, da medicina sobre a terapia de alma é instigante e esperta. Médicos lidam com sintomas e curam sintomas. Psicólogos têm a ilusão de poder curar sintomas. Se esquecem que o sintoma é a pessoa. Médicos dão diagnósticos e aliviam a dor. Psicólogos querem aliviar e diagnosticar. Diagnóstico em psicoterapia é uma piada. Cada ser é sua dor, cada ser é uma alma única. Pior de tudo, o médico deseja que o doente volte a ser o que ele era antes da doença. Um paciente em terapia não pode voltar a ser o que foi um dia. Isso seria negar sua evolução rumo à individuação. Na fantasia de ser um "médico", psicanalistas vendem a ideia de que uma pessoa é uma origem eterna, um ser criado na infância, e que todo mal vem de lá. Como patologistas, querem crer que uma pessoa pode ser reduzida a pedaços mínimos, partículas mais simples, átomos comuns. Não. O paciente é uma vida que se faz aqui e agora e não no passado. Sua dor é agora, seu sofrimento é agora, seu desespero é uma presente que não passa. Não existe volta "ao início".
  O suicida é o individualismo levado ao extremo, e por isso é tão mal visto pela sociedade. Ele morre quando e onde escolhe, é responsável por seu ato, por seu fim. E para ele esse fim é o fim da morte. A alma, ansiosa por nova vida, leva a destruição do antigo ao seu extremo. Perde o símbolo, torna tudo óbvio, sólido, imediato. Mata o corpo.
  Um terapeuta não tem como impedir um suicida. Mas pode e deve participar de seu ato. Ouvir e lhe abrir caminho para o desespero. A única chance é essa, facilitar o diálogo entre alma e consciente. Respeitando sempre a morte do ser. A sua morte.
  Eu já morri mais de quatro vezes. A última foi em 2010. Todas foram marcadas por desespero, vazio, falta de vontade, medo, sensação de prisão, desperdício. Todas terminaram em renascimento, um novo modo de sentir, de querer, de ver a vida, de aceitar as pessoas. Não há uma receita para renascer. Pois não há uma receita para morrer. O suicídio vem quando a pessoa, mais que viver, perde o dom de morrer. Ela não consegue mais morrer, não consegue sentir a agonia, o desespero, a desesperança. Ela seca dentro de seu corpo e a alma, essa nossa parte que nunca morre e desconhece o tempo, que vive em transformação, reclama a morte, seu direito a mudança radical, ao crescimento. O corpo se rompe. Morre. A alma vence. Sempre vence.
  Para Hillman toda morte é um suicídio. Construímos nossa morte ao comprar um carro, uma moto, ao tomar uma droga, ao começar uma viagem, ao tomar sol. Ao nos apaixonar.
 

A ESCADA E A SACOLA = VIDA.

   A evolução de uma pessoa se dá em 4 degraus básicos, sendo que todos os 4, idealmente, deveriam ser completos em 16 anos. Ou seja, no mundo "perfeito", um adolescente aos 16 seria um homem pronto, um ser no alto de sua escada. Mas, como falei em outro post, cada criança é um gênio em potencial, todas nascem com o impulso da genialidade. Pois a genialidade é uma condição humana, não uma anomalia. Digamos que assim como todo lobinho é um lobo caçador expert de renas; toda criança é um homem adulto, um Beethoven ou um Bohr.
  Mas isso não acontece. Pois nossos lobinhos são treinados como bassets. Ou no máximo huskies. Mas não é disso que falarei hoje. Falarei dos tais degraus.
  Nascemos com plenas sensações. Tato, o senso de calor e frio, o olhar, medo, alegria, prazer, tudo isso está pronto. Pulamos, corremos, choramos, rimos e sonhamos. Somos uma existência que é sensação livre. O calor na barriga ao passear de carrinho, o maravilhamento do primeiro raio, o feitiço das cores... Então subimos ao segundo degrau: a imaginação surge, um degrau que os animais jamais alcançam.
  Imaginamos que há um homem debaixo da cama. Que sobre as nuvens há um deus. Que os brinquedos falam. Que o Scooby Doo existe. Pensamos que nosso pai tem uma vida secreta. Somos tomados por uma imaginação que não cessa. Toda coisa vista, todo som, desperta uma criação.
  O terceiro degrau traz a elaboração. A mente infantil começa a unir a observação com a experiência. O homem debaixo da cama pode até existir, mas ele percebe que nunca o viu e que se ele existisse já o teria visto. Aqui podem nascer os problemas emocionais mais duradouros. A mente e os sentimentos devem saltar da imaginação pura rumo ao pensamento racional. A tendência mais simples seria se agarrar em um ou em outro. É aqui que a criança começa a fingir ser "adulto". Na verdade finge ser aquilo que uma criança pensa ser um adulto.
  No alto da escada nasce o mundo simbólico. É aqui que ela aprende a usar a língua e a escrita como ferramentas e desvenda o segredo do simbolismo verbal. É aqui também que os números se revelam. O mundo e a vida revelam seus sentidos. Nasce a percepção de que tudo é uma linguagem e assim se pode ler o mundo.
  Tudo isso aprendi numa bela aula. O mais importante é dizer que em nosso planeta, muita gente adulta jamais saiu do primeiro degrau. Vivem no plano da pura sensação. São os adultos que bebem, comem, transam, dançam, achando que isso é tudo o que existe.
  Outros atingem o nível dois, e passam a vida criando sintomas, imaginando paranoias, ou sendo aquele tipo de "doido avoado", feliz, mas sem poder sobre si mesmo.
  Muita gente adulta se conforma com o nível 3. Elaboram uma mistura lógica do que seja razão-intuição-imaginação. Mas jamais conseguem entender um só símbolo. Usam a lingua e a escrita como ferramentas. Não percebem nada que não seja óbvio.
  Mas o pior não é parar num degrau. O pior é que a maioria imensa das pessoas "mata" o degrau que deixou para trás.
  Desse modo, o homem ou mulher ignora suas sensações a partir do momento em que aprende a imaginar. Sonha, cria conexões, mas não chora mais, não dança, não briga e não pula.
  Assim como muitos que chegam à elaboração, à lógica, passam a desprezar a imaginação e a sensação. Se tornam frios, racionais, sem brilho, pessoas "adultas".
  O homem em seu potencial genial seria aquele que sobe os degraus acumulando fases e jamais fazendo trocas.
  Não se troca a sensação por imaginação.
  Não se troca imaginação por lógica.
  Os grandes cérebros são lógicos criativos. São sensitivos racionais. São simbolizadores sensuais.
  É isso.

CRIANÇAS

   Não confunda uma pessoa que mantém sua criança viva dentro de si, com uma pessoa infantil. Um adulto infantiloide foi uma criança pouco "criança". Foi uma criança sem a principal característica de uma criança, a curiosidade sem fim.
   O adulto infantil é apenas um chorão. O adulto criança é um curioso. Ele jamais aceita um fim nas coisas. Para ele, tudo tem um depois e depois e mais um depois. Não há solução, dogma ou lei que o satisfaça. Ele pergunta mais e mais e mais.
   Esta foi uma das mais brilhantes aulas que tive. Ela envolveu neurologia, linguística e filosofia. E o assunto era A Criança.
   A criança olha, cheira, ouve e procura. Cada nova planta, bicho, manhã, noite, pessoa, é digna de um interesse profundo, curioso, investigativo, perscrutador. Ela quer entender, entrar, tocar, pegar, comer. Tudo. O cérebro é conectado com todo o FORA. Ele é ainda um vazio que não tem fim e por isso, sente fome.
  A educação, por mais que tente não fazer isso, MATA essa curiosidade. Ela cansa e dá a todo questionamento uma resposta pronta, fechada, definitiva, final. O vazio se enche daquilo que já vem mastigado, dividido, catalogado, pesado e curtido. A curiosidade se vai.
  O CÉREBRO ADORMECE. ( Que bela imagem essa! Um cérebro que dorme ).
  Ergo a mão ao fundo da sala e digo: " Então o gênio é aquele que continua criança! Pois Goethe, Mozart, Michelangelo jamais adormeceram!"
  A mestra diz que é exatamente isso! O gênio é uma criança que nunca se fecha. Por isso eles são vistos, na vida pessoal, como inconsequentes, tolos, perdidos ou bobalhões. Deixam o bom tom, o que é esperado pelos adultos de lado, e continuam querendo ver, cheirar, pegar e ir lá fora. Continuam principalmente dizendo: "Eu não sei", "Porquê sim" e "Não tem motivo". Portanto, nunca confunda um adulto-criança com um maluco doidão ou um intelectual revoltado. Esses falam por e com afirmações. O adulto-criança faz perguntas. E se cala.
  O normal na humanidade deveria ser o que vemos como raro. Todos poderiam ser Mozart. Mas, para poder viver em grupo, todos por um e um por todos ( toda criança é egoísta ), transformamos essas crianças em adultos. Gente previsível, prática e pouco curiosa. E os talentos se tornam, digamos assim, apenas "inteligentes", ou seja, funcionais e razoavelmente criativos. Integrados mesmo em sua loucura tratável.
  Por isso, como educador, devemos tentar salvar pelo menos uma migalha dessa curiosidade. Não a sufocando completamente com verdades absolutas, fórmulas incontestáveis e planos fechados.
 

ESPIRITUALIDADE E TRANSCENDÊNCIA - CARL GUSTAV JUNG

   Brigitte Dorst organiza esta coletânea de textos onde Jung fala sobre o tema da alma. O inconsciente visto como parte atemporal e não-eu da mente. Para quem, como eu, conhece Jung, é um tema repisado. Para os novatos, aconselho muito este volume que saiu agora.
 Jung fala bastante do Zen budismo. E, como penso quase entender o que seja Zen, me abstenho de falar. Pois o Zen é uma sabedoria sem palavras e um ato sem movimento. Ou voce sabe ou não. Inexiste um modo de compartilhar. Sua verdade é tão íntima que não pode sair de dentro daquele que a abrigou.
 O inconsciente junguiano também pode ser descrito assim. Eu o sinto em mim, mas dificilmente conseguirei te transmitir em verbo o que isso é. Melhor esperar que ele se manifeste em voce. Ou não.
 Uma das grandes dificuldades do método de Jung, e que o coloca em desvantagem aparente diante de Freud, é que o suíço não nos dá garantia sobre nada. Tudo é suposição. Ele afirma o que as coisas não são, jamais o que são. E eu adoro essa sua aparente modéstia.
 Uma das poucas afirmações é que toda doença mental é um problema religioso. O doente é alguém que procura sentido na vida, e esse sentido só surge após o reencontro com algum tipo de transcendência, o reencontro com o inconsciente, uma aceitação daquilo que se é. O psicótico é um homem que mergulhou no inconsciente e lá se perdeu. O neurótico vive com o medo de mergulhar. O gênio é aquele que entra e consegue sair. Este pode ler o que todos nós somos.
 Para mim, nada de novo, apenas um belo rememorar. Para voce talvez uma revelação.

O CORPO TRISTE

   Um aluno de 16 anos me procura. No rosto dele uma tristeza indizível. Ele fala querer ficar todo o tempo debaixo de um cobertor. Diz que nada mais lhe dá prazer. Se sente o pior dos seres.
   Eu tive 16 anos um dia. E estive dentro de uma crise como essa. Mas eu era outro e fui salvo por meu corpo. O sol me salvou. O hedonismo do corpo. Ficava o dia todo ao ar livre, corria, andava de skate, ia à praia, via as meninas... Contra a deprê eu me fiz um bicho. Mas eu sei que se isso funcionou para mim, pode nada dizer a ele.
  Mas o que mais posso dizer...O garoto quer uma luz e nada de realmente útil tenho para falar. Não posso cair no chavão... E ele me fala da morte.
  Aos 16 eu pensava todo o tempo na morte. Tudo me parecia fútil, pois tudo morre. Lhe falo que na verdade o problema é viver e não morrer. Que aos 16 eu já estava morto de certo modo, e que a vida, eu a negava por medo. Viver é grande, é vasto, e isso dá medo. ( Falo tudo isso sabendo que nada adianta. Falo ao vazio. Palavras só valem quando vividas e ele nunca as viveu ).
  Queria que ele pudesse ver um filme de John Ford e o entender. Mas sei que Ford seria um tedio para ele. Cercado de discos hippies e de professores frios, ele só entende aquilo que em 2016 é palavra de ordem. Discursos da moda anti-moda. Vazios.
  Queria que ele descobrisse Zorba, mas acho que ele vai achar que Zorba é apenas um velho reaça. Não vai compreender a liberdade do corpo.
  Garoto, voce tem um corpo de 16 anos e lá fora faz sol. Ele quer pular, ficar livre. Ele quer se cansar, suar, gritar e acima de tudo desejar. Garoto, seja inconsequente, faça besteira e viva em grupo. O bando de bobos que voce detesta são exatamente o bando de alegres jovens que seu corpo deseja ser. Olhe-se no espelho e mude sua cara. Seja bonito. Tente ser bonito e pare de cultuar o feio. Deseje e seja desejável. Não pense que é fácil falar, fazer é mais fácil do que voce pensa. Tenha a coragem dos 16 anos. Voce nada tem a perder. Toda ação é um ganho.
  Aja menino. Aja. É primavera. E ter 16 anos em outubro é a mais maravilhosa das alegrias.

O HOMEM QUE PODIA CURAR

   Nunca mais haverá um homem como John Ford. Essa frase foi bastante repetida em 1973, ano de sua morte. E hoje, em 2016, não existe mais o mundo de Ford. Isso porque ninguém retratou melhor o mundo em grupo, a comunidade, o apelo à felicidade que para Ford, existia e só existia na vida em grupo, entre companheiros.
  Veja um filme maravilhoso, como este LONGA VIAGEM DE VOLTA. Temos um bando de homens e suas histórias dentro de um navio cargueiro. O elenco é aquele grupo de atores irlandeses que Ford tanto amava. Alguns deles vindos do Abbey Theatre, de Yeats. Eles não interpretam, eles são as personas. E ao ver o filme, por mais que as histórias pareçam trágicas, o que testemunhamos é a felicidade da vida em grupo. Eles estão vivos de uma maneira que nenhum filme de nosso tempo consegue estar. Perto desse grupo de personagens todos os tipos do cinema atual parecem zumbis, ou pior, robots.
  John Ford amava tudo aquilo que era feito em grupo. Desse modo, ele sempre dá um jeito de colocar em seus filmes cenas de enterros, casamentos, aniversários, natal, nascimentos, e também de brigas e bebedeiras. A alegria da vida reside no grupo e esse grupo é masculino. Ford ama as mulheres, mas em seu mundo são elas que tiram o homem do grupo e o levam à um tipo de reclusão. A reclusão do lar. Neste filme não há mulher, Por isso é um de seus filmes mais eufóricos. Sim, os homens em seus filmes são completos bobalhões, mas são felizes. O corpo lhes é amigo.
  Mesmo em filmes onde há um herói solitário, e penso em RASTROS DE ÓDIO, esse herói é triste, amargurado, por ter se isolado da comunidade ou ter sido banido dela. Ford não dá escolha, a felicidade só pode existir na família, na cidade e na alegre camaradagem entre homens.
  Esse mundo Fordiano está morto e esquecido. E nós deveríamos o resgatar. Hoje o que vemos são homens cuidando de seu nariz, vivendo no lar SEM A MULHER, fugindo de cerimônias em grupo, bebendo com um amigo se tanto, tendo dias de árida solidão. Existências tolhidas, sem cor, silenciosas, discretas, zeradas.
  Se em 1895 cabia aos bons pensadores resgatar a individualidade humana em face da repressão de fábricas e de costumes, cabe a nós, em 2016 resgatar o grupo e colocar nele nossa individualidade. Exageramos na dose e fomos além da individuação. A saudável individuação se dá no grupo, dentro dele e NUNCA fugindo dele. Também nisso os hippies estavam errados. Cair na estrada e formar uma comunidade zumbi levou ao vazio.
  Nunca mais haverá um John Ford. Tanto que quando penso em meus filmes favoritos NUNCA coloca um John Ford entre eles. Assim como Hitchcock, ele tem tantos filmes amados que os deixo de lado para não ser injusto com os outros diretores. John Ford retratou um mundo. E esse mundo é aquele que tem a correção, a alegria, a certeza do que é natural. Esse mundo é grupal.