Otto Wagner



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Gustav Klimt - Música Gustav Mahler



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A UTILIDADE DA BELEZA É A DE DESTRUIR O CONCEITO DE UTILIDADE

   E tudo começou com Beardsley. Com uma linha sinuosa, desenhada a nanquim, preto sobre o branco. Um diabinho e uma mulher nua. Era o começo do fim do século XIX, e como protesto ao automatismo da vida industrial, eles criaram a noção de que só teria valor aquilo que fosse feito manualmente. A revolução seria a revolução da beleza. Se o mundo se tornava cada vez mais feio, sujo, aglomerado, cabia ao homem, a todo homem, se individualizar. Fazer de seu ambiente, de sua vida, testemunho de sua beleza individual. ( Me parece que hoje, burramente, o protesto se dá pelo culto ao feio. Como se não fosse feio aquilo que produzimos naturalmente ).
  O que seria essa beleza? Para o art nouveau inglês, o belo seria noturno, negro, curvilíneo, pecaminoso e satânico. Whistler exemplifica bem esse estilo noturno. Mas Londres não foi solitária. Barcelona, Bruxelas, Paris, Berlin e principalmente Viena logo adotaram o estilo. Beleza para todos! Não vamos esquecer nunca que eles eram socialistas, sua ambição era coletiva e socializante. 
  Uma contradição! Um dos lemas era: Melhor fazer um cinzeiro em dez dias que dez cinzeiros em um dia! E realmente eles levavam até mais de dez dias para fazer um cinzeiro. E essa peça seria única, cheia de criatividade, beleza. E cara...O novo estilo, JUNGSTIL, começou a ser sinal de luxo, status, exclusividade. Mobilia, quadros, roupas, objetos, um simples saleiro, tudo era Jungstil. O jovem estilo. Nada acessível às massas que continuavam em sua pobreza feia do produto anônimo. Mas havia a arquitetura, e com ela a cidade poderia mudar, e com a mudança do ambiente o povo poderia adquirir o senso da beleza!  Maravilhosas fachadas em Viena, em Paris, estações de metrô, postes de luz, gares de trens, bancos, jardins, tudo art nouveau, novo lema: Arte de Hoje para o Tempo de Agora!
  A música do tempo: Debussy! Ravel ! Satie! Curvas, panos, tapetes, cortinas, luzes, ferro fundido, prata, ouro, vitrais, flores, veludo. Poetas do tempo: Rilke, Stefan George, Mallarmée, Valéry. Corpos nús, sexo, oriente, Grécia. Vapores...Luxo, sempre o luxo, a calma, a volúpia. Klimt, Mucha, Otto Wagner, Victor Horta.
  Em Trieste, em 1905, Rilke e Joyce se cruzaram na cidade. E não se reconheceram, claro. Mas veja, uma cidade, média, viu dois gênios respirarem seu ar ao mesmo tempo. Um, Rilke, cultuando a negra pantera que trazia em seu movimento a beleza do sexo e da morte; o outro, Joyce, odiando tudo aquilo e querendo mostrar ao mundo o cuspe, a merda e a vulgaridade da vida real. E quem sabe, achar a beleza maior nessa verdade. 
  Para o Art Nouveau, a beleza era um fim em si. Para Joyce, a verdade era a beleza. Sempre a verdade.
  Como todo movimento novo, ele logo ficou velho. Em dez anos, o esgotamento. E quando a primeira guerra veio, em 1914, culpou-se o Jungstil pela guerra. Falou-se que sua falta de moral, de fibra, sua preguiça seria o ambiente que levou o mundo ao Kaos! Jungstil passou a ser coisa decadente, suja, mortal...
  Por 50 anos, até 1964 mais ou menos, TUDO referente a Klimt, Beardsley, Whistler, foi considerado de segunda categoria. Foi o tempo da ditadura da linha reta. Da Bauhaus, de Mondrian, aqui no nosso Brasil do chato Niemeyer. Sem ornamentos, sem enfeites, sem copiar a natureza. Linhas puras, aço e vidro, regras e réguas. A beleza substituída pela FUNCIONALIDADE. O objeto, a construção, deve cumprir sua função. Tudo o que não tenha uma utilidade é dispensável. ( Oscar Wilde: A arte e a beleza só o são quando completamente inuteis ). 
  Os anos 60 recuperaram a Jungstil. De repente o inutil voltou a ser cultuado. O mundo viu um renascimento do ornamento, do enfeite, do negro, do dúbio, do floral, do véu, o satânico, o exagero. A curva retomou seu posto de rainha de estilo. A vida como arte, o eu como construção consciente de beleza. Se voce quer que eu vulgarize, a música pop de Incredible String Band, Soft Machine, Gong, música floral, cheia de arabescos, surpresas, tintas e noites, discos como o Satanic dos Stones, Sgt Peppers, Forever Changes do Love. Capas, olhos árabes, vitrais art déco, música indiana, marroquina, flamenco...A beleza, a busca da beleza como única fé, a religião do BELO.
  E hoje? E 2015?
  Uma luta neste vale-tudo do mercado que é o mundo. Um planeta que virou um bazar de vidro e pedra. De um lado a hiper-funcionalidade. Beleza sendo conceito relativo, ou pior, futil. Estranhamente esse conceito se tornou quase religioso, pois ele no fundo nega a matéria. Se voce nega a beleza do olhar e do tato, voce está negando o mundo sensual, o mundo da matéria. Voce vive no mundo da função, do pensamento e do fazer imaterial. É quase um universo cego. O Brasil ama esse mundo. Por tradição somos ligados a cegueira. Prédios todos iguais, ruas sem ornamentos, funcionalidade que em nosso trágico caso, nunca funciona. Estamos no pior dos dois mundos.
  E há a luta pela preservação da beleza. Que se transformou no culto ao prazer egoísta. Cultua-se o belo imaginando que a beleza vive no status. Na saúde. No chique. É uma tradição que inexiste no Brasil. Ou melhor, sobre- vive numa natureza que ensina a filosofia da beleza, do excesso, da curva exuberante. Mas nós odiamos essa beleza. Cuspimos nela. A sinuosidade de um riacho, canalizamos. Ele parece ser não funcional.
  Para mim, beleza cura tudo. Essa a sabedoria dos gregos, dos católicos, dos românticos, dos art nouveau, dos fauve. A beleza dá sentido ao que parecia absurdo. Ela nos consola, nos guia, nos justifica. A curva pode mais que a reta. O sinuoso absurdo seduz. 
  John Keats, em 1810 estava certo:
  a thing of beauty is a joy for ever.

JOYCE, RICHARD ELLMAN

   O pai de James Joyce, John Joyce. Que homem! Foi um grande cantor, voz de tenor que se tornou lenda. Herdeiro de várias propriedades, hipotecou tudo, ano a ano, e quando James fez 21 anos, a família estava na absoluta miséria. O pai, John, tinha tantos talentos que jogou fora todos. Sabia navegar, desenhar, inventar, contava histórias, criava ideias. Jogador de rugby, de boxe, nadador mestre. Amigo de todos, mudava de casa como quem penteia o cabelo. Beberrão. Um personagem de John Ford. Real.
  John teve onze filhos. James Joyce foi o primeiro. O pai adorava o filho. O filho amava o pai. Em seus livros existem montes de personagens baseados no pai. James tinha mais seis irmãs e quatro irmãos. O pai ignorava a todos, menos James. A mãe era caseira, chorosa, forte, e morreu aos 44 anos. 
  James Joyce foi educado em escolas jesuítas. Isso serviu para lhe dar agudeza. E também para o fazer romper com o catolicismo. Joyce era egocêntrico, vaidoso, frio e terrivelmente talentoso. Sempre foi o melhor aluno da classe e sempre ofendia os professores, amigos, mestres, outros escritores, com sua mania de falar a verdade, de se achar acima de todos, mais inteligente, mais talentoso, especial. James Joyce se tinha na conta de um gênio desde cedo. Ele foi sempre áspero com Yeats, com Lady Gregory, Synge, todos talentos reconhecidos e que o ajudaram em seus começos. Todos suportavam Joyce porque viam nele o gênio.
  James não gostava de Shakespeare. Seus favoritos eram Ibsen, Tolstoi, Flaubert e principalmente Dante. Seu estilo logo se modelou. Joyce escreveria sobre gente e situações banais, mas mostraria nessa banalidade o extraordinário. Transformaria o homem do século XX, o homem anônimo, no Ulysses urbano.  Realismo extremado pintado como mito grego, lenda etrusca, arte latina. James jamais esqueceu da grandeza de John Joyce. 
  Passou fome em Paris, sempre a procura de trabalho, sempre esnobe, sempre fora do padrão. Richard Ellman não tem medo de mostrar o quanto Joyce era antipático, distante e ferino. Sua voz, era um grande cantor também, bela, feria e encantava. Impressiona a confiança que ele sempre teve em si-mesmo, inabalável. 
   Estou na página 220, Joyce com 22 anos, prestes a descobrir o estilo dos Dublinenses, seu grande livro de contos. Emocionante. Ellman também escreveu biografias de Wilde, Yeats...seu estilo é minucioso, preciso, documentado. Para quem ama literatura, este imenso volume é um paradiso.
  PS: É minha segunda leitura. Dez anos depois.

Giorgio Moroder-Chase



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Giorgio Moroder - First Hand Experience In Second Hand Love [Remastered]...



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ENO, REM, RAY DAVIES E GIORGIO MORODER....DAFT PUNK

   É mais que conhecido o momento em 1977. Brian Eno liga para Bowie e pede para ele ligar o rádio na estação X. Diz que nesse exato instante o futuro está tocando. 
   Foi uma premonição brilhante. I Feel Love de Donna Summer e Giorgio Moroder foi o single mais influente  desde quando James Brown inventou o funk em 1967. Eu me lembro que nesse mesmo ano eu escutava Giorgio no rádio e tentava entender o que era aquilo. Eu pensava que From Here To Eternity tinha instrumentos normais. Mas algo naquela bateria soava diferente. E o baixo...era estranho. Demorou para que eu percebesse que era tudo programado. Tudo teclado. Mas eu adorei. E viajei desde o começo. 
   E recordo agora que Eno dizia que o pop e o rock eram pobres em harmonia e em melodia. Que nada poderia ser esperado de novo nesses campos, mas que ele era potencialmente inovador em timbre. Que a evolução sempre vinha na mudança de timbres. Desde o timbre da guitarra de Link Wray, passando pelo som metálico da guitarra de Jimi Page, o som frio do rock alemão, as gravações hiper trabalhadas dos Beatles e um belo etc. 
   Sempre fui bom, até os 30 anos, em adivinhar o futuro do rock. Lembro que em 1978 todos achavam, os caras que andavam comigo e boa parte do povo do meio, que o futuro seria um rock progressivo, bem tocado e bem gravado. Um tipo de Rush. Eu falava que o futuro era dançante. Que Heart Of Glass seria mais relevante que Supertramp. 
   Depois, em 1980, falavam que o futuro seria punk. Barulhento, simples, pesado. Eu chamava atenção para o funk. Prince. Em 1984 as guitarras estariam com as horas contadas. Só velhos ouviriam guitarras. O futuro era synth eletro. Eu ouvia REM, Lloyd Cole e Prefab Sprout. Guitarras. 
   Meu último acerto foi em 1986. Naquele ano era moda ouvir Smiths e Cure, sons tristes, ingleses, com guitarras. Eu descobria o rock do skate, Red Hot Chilli Peppers e The X. 
   Foi meu último acerto. No fim da década eu estava numa de RAP, mas o futuro era Seattle e Manchester. Depois, em 1996, eu acreditei no eletrônico.
   Acreditei que toda aquela safra iria ser dominante. Que o futuro nos traria timbres novos, viagens doidas, o fim dos vocais, experimentação, desbunde. Errei. A música eletro morreu em tédio. E voltou ao gueto. O que surgiu foi uma geração de cantoras indistintas e de bandinhas que reciclam o pop de Kinks, The Jam e afins. Aff!
   Há excessões! Mas este tempo será lembrado no futuro como o tempo de Katy Perry e de Lady Gaga. 
   Hoje reescutei o Daft Punk de 96 e escutei o de 2014. Giorgio Moroder e Chic sobrevivem no som deles todo o tempo. Era um futuro possível. Continuar do ponto em que Giorgio parou.
   Um aluno meu, de 14 anos, escutava Who e Kinks desde os 12. Guitarrista, nele poderia haver um futuro. De Ray Davies ele poderia chegar a Iggy Pop, Eno, Rap e talves daí criar algo de seu. O que aconteceu? Ele descobriu Zappa e Yes. E hoje seu sonho é ser mais um virtuose da guitarra. Passa dias copiando linhas de Steve Howe e de Zappa. Mais um ano ele descobre John Mclaughlin e será o fim.
   Acho que esse meu aluno revela muito.
  

SOMOS TODOS ROMANOS

   Estou na USP, esse mundo mágico onde todos somos crianças em busca do sentido das coisas, fazendo um novo curso, Italo Calvino. 
   Fico sabendo que a familia inteira de Calvino era formada por cientistas, e que ele foi a ovelha desgarrada. Logo após a segunda guerra, aos 20 anos, ele lança seu primeiro livro, neo realista, e alcança o sucesso. Não, não vou falar sobre esse livro, vou falar sobre a Itália, esse país que equivale a um universo ( ou equivalia ), rico, complexo, desconcertante, e que foi sufocado nos últimos 40 anos. 
   Calvino conta que o pós guerra foi uma explosão de vida. Na rua, nos cafés, nos ônibus, todo mundo narrava histórias da guerra. Inventadas ou não, era uma multidão sem fim de rostos e vozes, cada um deles individualizado, contando dores e humores da guerra. O italiano não é alegre, ele é vivo, essa a verdade. Ao contrário da Alemanha ou do Japão, que morreram e ficaram em luto por décadas após a derrota, a Itália passou a narrar, falar, seja em filmes, canções, discursos, livros, piadas, anedotas, lendas, mitos. Rapidamente a dor foi superada e o apogeu italiano veio. Não vou descrever esse apogeu. Quem assistiu A Doce Vida sabe do que falo. Luxo, miséria, começo da decadência e conforto como nunca antes....está tudo lá, vivo e falastrão, ópera e dor. 
  Somos todos romanos, nós, latinos. Com nossa volúpia e nossa vaidade vã, discursos sem fim, leis e mais leis, corrupção e vida, destruição, recomeços, mulheres e risos. O amor pela comida, pela bebida, pela cama, pelo banheiro, pela praia, pela caminhada à toa, pelo dolce far niente. Commendattore, vossa sinhoria, minha bella, cantare!! Estou criticando? Não! Ë um elogio!
  Em outra aula, outro curso, sobre os começos do Brasil, um autor americano, escreve o elogio da latinidade, especificamente ibérica. A questão é simples: Valeu à pena? Valeu a pena os americanos reprimirem toda sua vida espiritual em troca do desenvolvimento material? ( Ele é ateu. Espírito é criatividade, festa, arte, ritual, vida na rua, familia....). Valeu a pena os ingleses matarem seu espírito celta em troca do inglês eficiente, pontual, quieto? 
  Os negros americanos mantiveram a alma livre e são aqueles que ainda dão vida à América. E os brancos saxões? O que eles têm vivido? 
  Ele fala da brilhante ( isso mesmo ) maneira como os portugueses colonizaram o Brasil. Tentando catequizar os índios, misturar-se à terra, casando-se inter raças, tentando se fundir ao ambiente. Falhas houve muitas. Mas os americanos do norte lutaram para homogeneizar o todo, aparar diferenças, fazer do todo um uno. Valeu a pena? Richard Morse conta ainda que o sistema está esgotado e que talvez venha do mundo latino um novo modo de viver. Ou não. 
  Romanos gostam de dizer que na verdade o Império Romano ainda está de pé. Que todo o modo de pensar e fazer, viver e conhecer do ocidente é romano. O desenvolvimento dos últimos 2000 anos segue um padrão criado em Roma, coliseus, pão e circo, leis, juizes, senadores, guerra, colonias, ateísmo, crenças particulares, sexo, sangue e ambição materialista. A nossa filosofia seria romana, assim como a arte, os esportes, o modo de vida.  Será?
  Calvino crê, como Borges, que a realidade é inacapturável. Podemos crer em certas coisas, experimentar outras, mas a totalidade nos é inalcançável. Cada vez mais, ele era amigo de Borges e os dois trocavam cartas, Calvino foi se tornando esotérico e ao mesmo tempo simplificando a escrita.  Os dois amavam livros de aventuras, raiz da criatividade. Stevenson, Conrad, London e Doyle.
  Material vasto para pensar e fazer. Essas aulas, no reino dos meninos que pensam em pensar, prometem.

O MAL EM SER CRIANÇA PRA SEMPRE. EXISTE?

   Um amigo me pergunta qual seria afinal o mal causado a esses eternos homens-criança que habitam todo o mundo ocidental mais desenvolvido. Ele não escreveu isso no sentido de alguém que acha que ser criança para sempre seja algo de desejável. O que ele interroga é especificamente qual seria o mal, onde ele se manifesta. Minha primeira resposta seria: abra a janela.
 Manifestantes com blusas amarelas querendo derrubar, na raça, um governo corrupto, porém eleito, têm uma atitude infantil. Pensam que politica é um eu quero. Esquecem do processo, dos trâmites legais, da chatice toda de ser adulto. Isso dá a todo ato uma cara de brincadeirinha. Tanto que eu tenho a certeza de que se a policia reprimisse a coisa eles chorariam. E procurariam o colo de alguém. 
  Meu foco não é comentar a politica brasileira. E não pensem que condeno a manifestação contra o PT. Tudo indica que o governo errou e de forma infantil a reação deles é falar que é tudo mentira. Mais um faz de conta. O que digo é que crianças nunca sabem lidar com o mundo material. Não é a praia delas. Acabam bufando e fazendo birra e no fim tudo sai do jeito errado. 
  Mas vamos em frente. Antes de falar o que pode haver de mal na infância eterna, devemos ver o que há de bom em ser adulto. O primeiro fato é esquecer as dores da adolescência. Um adulto olha para a adolescência como águas passadas. O segundo fato é possuir uma certa independência. Não depender de alguém que cuide dele, seja mãe, esposa, psicólogo ou guru. E o principal, um adulto pode jamais vir a saber quem ele seja de fato, mas ele cessou a busca constante pela sua turma. O adulto deixou de se preparar para a vida, ele já mergulhou. 
  Então eu diria que mais que ser dependente ou estar paralisado pelas brigas da adolescência, o eterno criança fica eternamente no quase. Ele olha a vida mas nunca mergulha nela. Vive na expectativa, desgastante, do inicio de sua vida ""de verdade""'
No mínimo isso lhe causará os sintomas clássicos da ansiedade. 
  Posso saber o que seja um adulto por filmes ou livros, professores ou conhecidos, mas eu ainda tive um adulto em casa, meu pai. E ele, pobre homem, foi profundamente odiado por isso. Além de eu ter comprado a ideia de que ficar adulto é negar tudo no pai, eu fui um adversário muito forte. E joguei sempre sujo. Em cada briga, que podiam ser quase comuns aos 14 anos, mas que se tornaram ridiculas aos 30, eu achava que estava caminhando rumo ao mundo do cowboy, o mundo do cara auto-suficiente. Claro que não. Era tudo um brinquedo de gosto ruim. 
   Meu pai trabalhava. E seu mundo era o do trabalho. Meu pai era um cara pronto. Ele tinha arrependimentos, dores e dúvidas, muitas, mas estava pronto. A vida para ele havia começado muito antes de que eu nascesse e sobre isso não havia volta. A corrente do rio da vida o apanhara. E ele procurava nadar. Mas não eu. Meu ideal era nunca sair da margem, ou melhor ainda, trocar de rio quando quisesse.
   E posso então falar de mais um mal:: a sensação engasgante, amarga, que todo cara como eu tem, de que a vida passa e eu fico. Melancolia que pode ser raiz de belas depressões, a sensação de que o trem passa sem voce pode te levar a imagem de que o mundo é algo que foge e sua vida uma estação vazia, pois os outros já partiram.
   Então voce brinca. Trens e rios imaginários. Partidas sempre repetidas, Voce vai à África, ao Japão, em carne e osso, mas a grande viagem voce nunca faz, mergulhar no rio da vida. A vida de adulto, que antes o horrorizava, agora lhe é tão distante que voce nem sabe mais do que se trata. E brinca. Como eu disse, brinca de ter um filho, de ter um casamento, de ter um emprego. Mas tudo pode ser revertido ou anulado. Sem compromisso. Tudo é um ensaio. O rio continua a passar.
  Me lembro que aos 16 anos meu maior medo era: adultos trabalham para sempre. A vida do adulto é dura. Eu não quero isso. Em seguida foi: o adulto é o homem que começou a morrer. A contagem regressiva começa nesse momento.
  O mundo moderno nos dá milhões de fugas para dentro de Neverland. Eu aceitei o convite.
  E a mulher nisso tudo? Ela passa a ser, e me dói dizer, mais um brinquedo. A chamamos para a festa, queremos brincar de ser namorado, de fazer sexo como nos filmes, de ter um grande amor. Quando elas percebem que aquele cara forte, bravo, maduro, decidido, está brincando de parecer adulto, e que ela É A PROVA DE QUE ELE CRESCEU, bem, nesse momento ela foge. A mulher, ter uma, se torna o objeto que prova ao mundo e a ele que o garoto virou homem. Virou?
   Assim como a briga com os mais velhos nunca foi maturidade, ter uma mulher é apenas uma ideia torta de ser GRANDE. Nas sociedades tribais voce não virava homem ao fazer sexo. Voce era primeiro um homem e depois fazia sexo. A mulher era um merecimento. A cereja do bolo. Agora ela é o caminho, a casa, todo o bolo e a cereja. Coitadinha. Coitadão.
   E agora vou parar por aqui porque cansei e vou dormir.

PADRE SÉRGIO- TOLSTOI

   Esta novela de Tolstoi, apenas 70 páginas, foi chamada de patética, fraca, errada, durante décadas. Começou a ser reabilitada no fim do século XX e hoje é chamada de obra-prima. Claro que não é. As melhores novelas de Tolstoi estão muita à frente deste Padre Sérgio. Na verdade ela é uma peça de propaganda religiosa. Uma parábola. E lembra bastante os contos diretos e filosóficos de Voltaire. 
   Um nobre é humilhado por um rival. Se isola do mundo em uma caverna. É tentado por uma mulher fútil. Ao resistir à ela, faz com que essa mulher, arrependida, se torne freira. Sua fama se espalha. Cura doentes. Uma segunda mulher surge. E à essa ele não resiste. Cheio de culpa, foge outra vez. Vai visitar uma velha amiga. E lá ele tem uma revelação. Esse é o enredo. Tolstoi conta tudo isso de um modo que muito agradava Heminguay, direto, objetivo, seco, simples até o osso, sem firulas. Parece fácil escrever assim, puro engano. Escrever muito, descrever demais, isso é fácil, conseguir contar de modo limpo e claro, sem perder o encanto e o estilo, isso é bastante árduo. Requer exercício, prática. 
   O sentido de Padre Sérgio é transparente. Toda sua fé é baseada na vaidade. Por mais que ele tente, ele nunca se livra do orgulho de ser um religioso. Todo seu ato parece ter uma platéia, Deus. Quando ele encontra sua velha amiga, mulher atarefada, que sustenta sozinha várias pessoas, ele percebe ser esse o sentido da vida. Ela diz que se acha uma pessoa má, e que Sérgio complica tudo. São essas duas frases que resumem o livro. Sérgio se acha bom, amante de Deus, e isso é vaidade. Posso dizer que ele não sai de seu mundinho regido pelo eu. A amiga faz o bem todo o tempo, quando pensa em si mesma é para se condenar e acha estar longe de Deus. Essa é a verdadeira religiosa. 
  Tolstoi ao fim da vida fundou uma seita cristã que pregava o fim de toda violência e o fim da igreja. Ele queria o cristianismo de Cristo, sem a carga de teoria e de cerimônias criadas pelos homens. Todos movidos pela ambição e pela vaidade. Gandhi bebeu nessa fonte tolstoiana. 
   Este livro foi filmado no final dos anos 80 pelos irmãos Taviani. Um belo filme. Mas a novela é bem diferente. No filme o padre é quase um santo ingênuo. Aqui ele é um perdido. No momento em que ele perde a fé ele começa o longo processo de encontro com Deus.
   Um passarinho o encontra. Um besouro tromba com seu corpo. Sérgio entende a mensagem.

COMO SER UM HOMEM HOJE?

   Em Rastros de Ódio, o mitico filme de John Ford, Ethan, o personagem de John Wayne, parte em busca de uma menina que foi raptada pelos indios. Com ele vai um jovem mestiço e no filme vemos a transformação desse jovem em homem. O momento de sua transformação seria aquele em que ele se rebela contra Wayne. O filme, feito em 1956, coincide com esse que foi o ano do rock, o ano de Elvis. De repente, com a ajuda dos beats, se vendeu para a primeira geração americana criada em frente à TV, a ideia de que virar adulto era se rebelar contra os adultos. Estranho não? Ser adulto era brigar com um adulto, na maioria das vezes, o pai. As gerações seguintes aceitaram com alegria essa verdade. Essa nova verdade. Para ser um adulto voce tinha de enfrentar o mais velho e além disso criar um modo novo de ser. Voce tinha de nascer outra vez. 
   Nesse processo muitos afundaram, outros se perderam e ficaram brigando para sempre e a maioria simplesmente desistiu. Se para ser adulto eu tenho de ser brigão, rebelde, e ainda criar um novo EU, bem, eu prefiro ficar onde estou. Começou aí a infantilização. O jovem, que tinha de ser herói, entrega os pontos. As mães adoraram isso. Abriram os braços para aquele novo filho, um filho que queria ser novo para sempre. E o filho, perdido entre o dever da rebeldia e a incapacidade de se recriar, ficava num meio termo irritado. Vergonha e prazer. Vergonha de ter desistido, prazer pelo conforto. 
  Essa a minha hipótese. E mais uma vez sou obrigado a jogar a culpa sobre os teens do rock. Os hippies e etc. Vamos voltar ao filme. O jovem, papel de Jeffrey Hunter, amadurece ao se afirmar perante Wayne. Mas, e Ethan? O que ocorre com John Wayne? Ele parte porque odeia os indios. Quer na verdade se vingar. Encontrar a menina é secundário, ele quer o sangue. Mas ao encontrar a menina, agora crescida após anos de busca, Ethan faz o mais belo movimento da história do cinema ( segundo Godard e segundo este que vos fala ), ele a perdoa, a aconchega e a leva de volta para casa. Devolvida a menina à comunidade, o jovem que o acompanhou prestes a se casar, Ethan-Wayne parte. E temos o mais belo final de filme da história, Wayne na porta, indo, mas na verdade sem querer mais partir. John Wayne, e tinha de ser ele, mostra para quem quiser ver, o que significa ser adulto. Ethan começa imaturo e é ele aquele que realmente se transforma. Gosto de pensar que a partir dali ele encontrou uma mulher e foi viver numa cabana de madeira, onde criou dois filhos. 
  Escrevi mais de uma vez aqui que esse filme salvou minha vida. E que sempre que o revejo sinto meu pai próximo de mim. Fosse refeito hoje eu tenho a certeza que todo o foco seria no jovem e o personagem de Wayne seria secundário. 
  Agora falo sobre o cinema de 2015. Gostei da última entrega do Oscar. Mas uma coisa sempre me incomoda. A cada ano que passa os atores parecem mais e mais crianças. Pensava que era pelo fato de que a cada ano fico mais velho. Mas não. Eles são cada vez mais frágeis, delicados, vulneráveis, ou seja, infantis. Sua forma fisica e suas vozes combinam com os filmes que lhes são oferecidos. Filmes para crianças que brincam, sem saber, de ser adultos. Gosto muito, às vezes adoro, dos filmes de Tim Burton por exemplo. Como agora gosto dos filmes de Wes Anderson. São filmes bonitos, às vezes tristes, às vezes cômicos. E sempre profundamente infantis. O visual é o mesmo dos livros para crianças e eles têm uma imensa incapacidade de exibir relações entre homens e mulheres que não se pareça com um cartoon. Ou um conto de fadas. Isso não os desqualifica. São ótimos. E no caso dos dois, são honestos. Nenhum dos dois fica fazendo pose de adulto. São assumidamente infantis. E essa pode ser, eu não sei, uma característica adulta: assumir suas criancices. 
  O trágico é quando um filme infantil é visto como obra de um adulto. Não vou citar Lars Von Trier, um adolescente de 14 anos, embirrado, que brinca de chocar os pais.  O que devo dizer é que a maioria dos filmes de arte de agora são filmes de arte feitos por colegiais. Eles falam daquilo que teens conhecem, tristeza, solidão e raiva, e se perdem completamente quando falam do que teens não sabem, mas imaginam saber, amor, familia, trabalho, morte. Tudo é borrado com as cores de um adolescente egocêntrico que se imagina inteligente, culto e cheio de verdades a serem ditas. Nada é mais infantil que isso. Desse modo temos montes de filmes que brincam em ser Kubrick, Hitchcock ou Bergman. Mal sabem eles que nada foi menos infantil que Kubrick, Hitchcock e Bergman. Se soubessem de seus limites eles imitariam Bunuel, Fellini ou Welles, que foram gênios, mas que sempre mantiveram um pé na infantilidade. No caso dos três, consciente. 
   Preciso falar agora que quando Picasso diz que passou a vida lutando para voltar a ser criança, isso não significa que ele lutou para voltar a colecionar brinquedos ou a brincar de Batman. Como adulto, ele queria poder adentrar o mundo simbólico e sem palavras da criança. Era um adulto vendo o mundo infantil. Não pensem que Lewis Carroll ou James Barrie eram infantis. Walt Disney entendia as crianças. E por isso não poderia ser uma delas.
  Crianças odeiam ser crianças. Teens detestam não ser adultos. Só adultos infantilizados amam essa fase da vida. Ser criança é ter medo. Medo de ser abandonado. Medo de se perder na rua. Ser criança é estar sempre de olho em si-mesmo. Ligado na sua fome, sua sede, sua dor, seu desejo. Não existe o voce. Tudo é eu. O mundo mágico e lindo existe. Mas a criança não pensa nele, ela está dentro dele. É o adulto que percebe sua beleza quando já saiu dele. Ele é real. Tão real que na infância mal se percebe. Adolescentes são como crianças em quase tudo. Menos no contato com o voce. O voce existe e esse ser dá ao adolescente raiva, por ter invadido seu mundo, e desejo, por se parecer com uma porta. O adulto de 2015 muitas vezes fica na ansiedade dessa porta. Com a mão na maçaneta. Sem a abrir. E pode crer, eu sei do que falo.
   Ele usa bermudas. Fala montes de palavrões. Adora brincar. Nada parece muito sério. E é cheio de teorias adultas, verdades filosóficas. Vive mudando de metas. Viaja, experimenta, procura descobrir quem vai ser quando crescer. E tem 45 anos. 
   Mora com uma mulher. Mas não têm filhos. Quem sabe um dia. Moram juntos como quem brinca de casinha. Sem nenhum compromisso do mundo dos adultos. Sem filho, sem papel e sem casa comprada. Tudo provisório. Tudo de brincadeira. A palavra :: para sempre:: os apavora. 
   Não falarei do fim das cerimônias tribais. Dos atos que faziam do menino um adulto. Prefiro falar de duas que viraram brinquedo. 
   Meu irmão serviu o exército. E servir poderia ser um ato de virar adulto. Ele mudou, endureceu. Mas não ficou adulto. Por dois motivos. Primeiro porque servir é um ato sem significado algum. Ninguém mais fala que servir é virar homem. E o principal, voce sai de lá como entrou. O mundo não reconhece em voce um adulto, Na verdade te chama de azarado.
  O outro ato eu o cumpri. Entre católicos, aos 14 anos, voce é crismado. Crisma é o momento em que o menino, que foi batizado quando bebê, confirma a opção dos pais pelo Papa. É quando ele deve pensar na sua fé e a aceitar. Ou não. Eu a fiz como um zumbi. Não fazia a menor ideia do que era aquilo. E nem meus pais sabiam muito bem. 
  O limite do exército seria a guerra. E eu acho que nem a guerra hoje deixa de ter seu aspecto de brinquedo. E o passo após a crisma é o casamento na igreja. Cerimônia que hoje pode ser revertida em divórcio. O casamento é agora uma festinha de conto de fadas.
  A saúde da mente se exerce no equilibrio, impossível, entre o mundo sólido e o mundo interno. Toda dualidade deve ser aceita. Não podemos ser adultos absolutos, isso seria outra doença, mas ser adulto significa ser responsável por decisões, ser capaz de defender e abrigar pessoas, ser parte de uma comunidade que se aceita e não que se impõe. E ao mesmo tempo ter contato com esse mundo criativo e simbólico da infância. Mas sabendo que é o mundo DA infância, vivo e presente, mas nunca o único mundo possível e desejável.
   Nada  mais infantil que um filme de Tarantino, de quem eu também gosto. 
   Você consegue recordar um só casal adulto nos seus filmes? Há apenas um, Bruce Willis e Maria de Medeiros em Pulp Fiction. Ele cuida dela. Ela não é perfeita. Eles estão na cama apenas conversando. Um lapso na obra de Quentin, toda ela feita de mulheres gostosas e perigosas e de homens que falam como garotos na lanchonete da esquina. 
   Em um mundo de Homem de Ferro, onde Batman e James Bond são levados a sério e onde cada vez mais as bandas de rock se parecem com menininhos brincando no quarto,  ser adulto se tornou a maior e a única das rebeliões.

AVONMORE, MAIS DE BRYAN FERRY

   O som de Bryan Ferry começou a ser criado em 1982, no último disco do Roxy Music, o luxuoso Avalon. Esse som, criação única, é um tipo de delicada tapeçaria, pontos musicais que se entrelaçam. Podemos também chamar de flocos de neve em caleidoscópio. É um som frio, cheio de volteios, ângulos que se abrem para serem fechados em seguida, riffs que ameaçam nascer e desaparecem. As batidas são sempre negras, mas elas são partidas, retomadas, perdidas. Em meio a essa massa sonora vagueia a quase sonâmbula voz de Ferry, sussurrante e aliciante. Sempre.
   Desde então ele nunca mais mudou. Disco após disco, ele apenas se contentou em aperfeiçoar essa tapeçaria, às vezes com grande sucesso ( Taxi ), às vezes errando feio ( Olympia ). Mesmo ao gravar seu disco de standards da música pop dos anos 20/30, As Times Goes By, ele conseguiu fazer trompetes e banjos soarem como seu costumeiro tricot. Avonmore não atinge as alturas de Taxi, ou mesmo de Frantic, ( estou falando apenas dessa fase costureira. Os discos solo anteriores a 1982 não contam ). Por outro lado, o novo disco nunca desce a ladeira como o citado Olympia, ponto mais baixo de toda a carreira do romântico maior da Inglaterra. 
   Como é esse som? O clip que postei, apresentação no show de Jay Leno em 1993, duas faixas de Taxi, demonstra esse som em seu modo mais simples. Em disco Bryan chega a usar 3 baixos, 3 baterias e 4 guitarras tocando juntas. É um sinfonia de eletricidade, mas que mesmo com essa montanha de som, soa sempre leve, delicada, fina como gelo. No novo disco ele volta a usar Johnny Marr, Flea, Jonny Greenwood, David Gilmour, Marcus Miller... e claro, o maestro, o grande Nile Rogers. 
   Nile está presente nesse clip de 1993. Egresso da cena disco, lider do delicioso Chic, em seu auge, entre 1982/1990, Nile produziu Bowie, Madonna, Duran Duran, Debbie Harry, Robert Palmer e um imenso etc. A guitarra dele pulsa e ela é a linha que une todos os instrumentos que gemem e arremetem durante as sonhadoras canções de Ferry. Nesse video temos também Robin Trower, guitarrista inglês que por volta de 1975 foi chamado de novo Hendrix. Sua guitarra cheia de ecos e wah wah enfeita e dá feeling ao som. São duas guitarras no palco, no disco são quatro, o efeito se expande. 
   Bryan Ferry abraçou esse estilo e nesses trinta anos jogou fora uma de suas maiores características, a surpresa. Em entrevistas ele diz ter se encontrado após as buscas feitas entre 1972/1982. Esse estilo, em seus auges, é muito sedutor, ele pega nossa alma e a leva para fluir por aí. E tem o espírito de amores perdidos e amores novos. 
   Bryan Ferry não muda. E aqui é um prazer dizer isso. Ferry é Ferry. Again.