HENRI BERGSON: UMA REAÇÃO CONTRA A VOZ COMUM

   Filósofo central da virada do século XIX para o XX, Bergson, Nobel de 1928, sempre correu riscos. Sua filosofia se ergue contra o senso-comum de seu tempo. Ele faz o elogio da ciência, mas não se esquece de falar que à ciência cabe o que é científico. A vida é outra coisa. O que?
   Primeiro a inteligência. A inteligência existe para lidar com a matéria. E a linguagem, atributo básico da inteligência, é ferramenta que possibilita vida em sociedade. Para lidar com a matéria o homem usa sua mente em termos materiais, que seja: espaço e tempo. Uma pedra tem peso, tem tamanho e tem presença. Nossa mão tem tamanho, peso e presença. Nossa inteligência tem o dom de trabalhar sobre essa realidade. Ela entende a vida nesses termos, geometria e tempo. Mas há um problema nisso: a vida não é assim.
   Espaço. Nada no universo é linear. Nossa inteligência se move em linha, como a fala, como a linguagem. Mas o espaço fora de nós nada tem de linear, de ordenado, de sujeito-predicado. É então que Bergson passa a falar do tempo. Mas antes faço um parênteses.
   A sensação espacial-temporal que Bergson revela me é muito conhecida. Várias vezes em minha vida tive essa impressão de que bastaria deixar meu cérebro ir mais fundo, deixar as certezas sumirem, para que então a verdade da vida me fosse dada. Uma sensação de que todas as linhas, mapas e coordenadas poderiam ser apagadas, esquecidas, perdidas. Esse momento, que tanto me é próximo, é aquilo que Bergson chama de intuição. Eis a coragem de sua filosofia: é baseada em intuição e não em razão. Bergson usa a razão para chegar a intuição. Para ele, é no momento fluido do vislumbre criativo que a verdade surge. Ele diz que todo pensador teve um breve momento intuitivo, e que todo seu filosofar posterior é uma tentativa de descrever em palavras "alguma coisa que nega a palavra, que não se presta ao discurso", a intuição primeira.
   O tempo só pode ser apreendido pela razão ( como todo o real ) se for contado e dividido em pequenas unidades. Aprendemos a pensar em termos de um tempo que pode ser contado. Mas "sabemos" que não é assim. Não há um momento que nasce, acontece, termina, e um outro que nasce, acontece e termina. Não há passado e não pode haver uma parada-final para o homem ( como há para as pedras ). O tempo é uma fluidez contínua, um incessante nascer e acumular, um fluxo criativo que nunca cessa, um vir a ser que não pode ser datado, contado ou capturado. Internamente ( e toda a filosofia de Bergson é sobre a interioridade ), o tempo é eterna presença, o ontem é sempre agora. E é isso que é inalcansável para a ciência: a vida é movimento incessante, e a razão só pode trabalhar com aquilo que está estático ( mesmo que seja o movimento, ele será dividido em unidades estáticas ), a fluidez é incompreensível para a razão, mas é intuida pelo espírito. Não há um só átomo parado no universo, nada portanto pode ser entendido sem que se entenda seu movimento. O tempo é essa hiper-fluidez que foge, que carrega o acúmulo de tudo já vivido, que se debruça e se esparrama.
   O conceito de "duração", tão dificil de ser entendido, seria então esse constante fluir. A contagem de tempo e a medição de espaço seriam operações, artificiais, do cérebro-razão, modo de se proteger da insegurança do que escapa do controle, modo de lidar com a técnica-sobrevivência. A duração é o tempo real, tempo criação, mutável eternamente, um incessante nascer.

HENRI BERGSON TALVEZ TENHA ACERTADO

   Um dos aspectos mais enganosos de todo pensador é quando ele generaliza o que é particular. Digamos que um jovem inteligente, por um azar ou acaso da vida, tenha tido um pai extremamente severo e frio. Se pensador, o maior erro que esse homem poderia cometer seria o de formar uma tese geral baseada na frieza de todo pai. Ou digamos que um outro fosse incapaz de sentir amor. Como artista ele teria todo o direito de expressar o desamor da vida, sua má sorte amorosa, ou o pouco amor que é dado a seres como ele. Mas se ele formasse uma teoria em que a ausência de amor fosse lei geral, aí o particular se confundiria com o todo. Muitos se identificariam com a tese do pai frio e com a tese do amor ausente; mas aqueles que discordassem não estariam necessariamente errados. A teoria "chutada" por Mr.X não os teria conquistado porque sua vida nada teria de comum com sua tese. A maioria dos filósofos comete esse erro. Confunde sua visão pessoal de vida com a verdade geral. Generalisa. Faz do particular e original algo de geral e comum. Bergson, dentre várias outras coisas, se debate contra isso. Se ao falar do tempo ( duração ) e do pensamento ele é mais interessante, não deixa de ser fascinante a forma como ele demonstra o quanto há de ressentimento pessoal na filosofia, na sociologia e na psicologia. Pessoas que por serem incapazes de viver ou sentir alguma coisa da vida, passam a crer que não viver e não sentir tal aspecto seja o geral. Transformam a cegueira em falsa visão.
   Toda a teoria de Bergson tem a saudável fonte da dúvida. Ele jamais diz "é assim", ou "deve ser isso". O que ele fala é "talvez seja" ou "pode ser que". Não temo dizer que é o meu filósofo. Dúvidas e ansiedades que tenho desde sempre são compartilhadas por Bergson. O que a mim importa é o que lhe importa. Autor que me surge na hora exata ( intuição? ). Me vem quando posso enfim o entender e ver o que ele viu.
   O que mais se pode querer de alguém que pensa, a não ser pensar com voce sobre aquilo que é seu?

CINEMA TRANSCENDENTAL- CAETANO VELOSO ( O REINO DE EROS )

   Sempre que estou feliz estou em sentimento erótico e sempre que me sinto em Eros ouço música de meu país. Pretensioso? O fato é que o ressentimento baixa de grau e então me permito ser o que sou desde sempre. Voce sabe, por aqui ninguém é mais vítima de ressentimento que Caetano. Tem uns criticos de rock que adoram falar mal dele ( crítico de rock falando de Caetano....é como crítico de cinema falar de teatro ou de pintura palpitar sobre arquitetura. O que um cara que opina sobre Rem e Clash tem a ver com Caetano? ). Ressentimento. Caetano canta muito, fala muito, sabe muito e pior, parece ser feliz. Imperdoável. Lembro que fui adolescente ressentido. Ateu, revoltado, anti-tudo, nada me irritava mais que aqueles bicho-grilos do Objetivo que amavam Caetano. Asquerosos. O que não queria perceber é que o que me irritava é que eles tinham tudo o que eu queria e não tinha. Parecia que eles estavam sempre em paz, rindo, parecia que rolava muito sexo, droga, folias e festas. Estavam sempre cantando, beijando, meio pelados e cheios de sol. Eu me ressentia e criava uma raiva anti-erótica sombria e mortal. Isso tudo mudou quando amei de verdade pela primeira vez e descobri o sol, o suor, eros e a felicidade. Este disco veio junto. Entendi. Não sou brasileiro. O Brasil não é meu país. Eu sou do Brasil. Por mais que engula litros de Henry James e Roxy Music, eu sou daqui. Sem ressentimentos, please.
   As letras. Gringos diziam que era incompreensível como um país de iletrados podia ter uma música popular de letras tão sofisticadas. Tão profundas. É provável que essas letras ainda sejam escritas, mas não são mais populares. Regredimos. O ressentimento vingou-se de sua ignorância. Oração ao Tempo é filosofia profunda em forma de mpb. Caetano diz ter recebido toda a letra de seu inconsciente enquanto fazia a barba. Não vou citar aqui trecho nenhum da letra, seria injusto não citá-la inteira. Não conheço letra popular mais complexa.
   O disco é todo solar. É pele bronzeada com gota de suor. Areia voando e cheiro de mar. Mas é todo voltado pra dentro, é auto-análise, é divagação aprofundada. Pretensioso? Qual o pecado desde que exista prazer? Uma canção de Jorge Mautner: O Vampiro. Eu amava Aninha e a ouvia todo dia. Feliz mas chorando de amor que crescia sem parar. A canção diz tudo. Não há melhor letra sobre a dor de amar e amar cada vez mais. " Voce é o estandarte da agonia/ Que tem a lua e o sol do meio dia". Só voz e violão e solidão. A voz dele parece cantar para mim e só pra mim. Outra canção é Elegia, baseada em John Donne. Erótica. Tropical. Feliz, muito feliz.
   As mais belas rimas estão em Trilhos Urbanos. Todas as palavras se chamam umas às outra e andam como vento em ruas de verão. É uma aula completa sobre ritmo e poética. Tivesse nascido vinte anos antes e Caetano teria sido nosso melhor poeta "de livro". Mas ele cresceu com Caymmi, João e samba e deu no que deu. Além da voz, a voz que nunca desafina.
   Vale dizer que ao escutar tudo isto durante meses todos os dias aos 15 anos o disco gravou-se em mim. E o reencontrando hoje, impregnado neste dia, de Bergson e de uma primavera que promete, percebo ser este disco mais "eu" que tantos outros eus que conheci em discos e livros desde então. Graças aos céus conheci este mundo a tempo. Nas faixas deste disco mora não só meu melhor lado, como brilha ao sol meu mais feliz mundo.
   COMPOSITOR DE DESTINOS/ TAMBOR DE TODOS OS RITMOS/ TEMPO TEMPO TEMPO TEMPO/ ENTRO NUM ACORDO CONTIGO...
  

CLARK GABLE/ WELLMAN/ WELLES/ KEVIN KLINE/ WOODY ALLEN/ ASTAIRE

O GRANDE MOTIM de Frank Lloyd com Clark Gable, Charles Laughton e Franchot Tone
A clássica história do navio Bounty, que no século xviii foi palco de famoso motim. Laughton faz com vivo prazer o capitão cruel e de rígido costume; Gable é o jovial imediato que acaba por apoiar o motim; Tone é um nobre que viaja para pegar experiência. O filme, maravilhosamente bem produzido em padrão MGM, é diversão típica dos anos 30, ou seja, simples, eficiente, inteligente. Caso raro de filme que ganhou Oscar de filme e mais nada. As cenas na ilha onde eles se exilam são belíssimas! O desempenho de Laughton é de não se esquecer. Nota 8.
BEAU GESTE de William Wellman com Gary Cooper, Ray Milland, Robert Preston, Brian Donlevy e Susan Hayward
Outra aventura clássica. Três irmãos de familia nobre-decadente servem na legião estrangeira. É o filme onde se criou a imagem do "sargento durão". Cooper está no auge da fama e nasceu para ser herói. O filme, muito bem dirigido, tem humor, drama e suspense. Wellman, diretor sempre confiável, tem senso de timing, de visual, de leveza. É um mestre. Assistir este filme é como ler uma velha história de HQ. Puro escapismo fofo. Nota 8.
MR. ARKADIN de Orson Welles com Welles, Paola Mori, Patricia Medina, Akim Tamiroff
É um dos vários filmes que Welles fez em condições muito precárias. Ele antecipa muito do clima nouvelle vague, tem às vezes algo de filmes como Alphaville. Welles brinca com a câmera, com os atores, com o enredo ( um tipo de policial complicado ), mas tudo acaba parecendo muito confuso, estranhamente vazio, e em seu pior, pedante. Nota 4.
ANTIGONE de Georges Tzavellas com Irene Papas, Manos Katrakis
A peça de Sofocles sobre a moça que enfrenta o rei para poder honrar seu irmão morto. O filme é belíssimo. Não houve medo algum de ser solene, distanciado, e o texto poético é bastante preservado. Mais uma prova de que grandes peças podem ser grandes filmes. Irene faz Antigone com senso maravilhoso de destino, mas Creon, feito por Katrakis, rouba o filme. É um rosto inesquecível, feito de pedra, cruel e rígido, terrível. As vozes são aterradoras. É um filme inesquecível. Nota 9.
XEQUE-MATE de Caroline Bottaro com Sandrine Bonnaire e Kevin Kline
Kevin sempre foi e é um ótimo ator. Fez então este filme francês, provávelmente por falta de bons papéis em Hollywood. Sandrine é uma camareira de hotel de luxo em cidade de veraneio. Ela se apaixona pelo jogo de xadrez ao vê-lo como algo que simboliza aquilo que ela não tem. É casada e completa o orçamento fazendo faxina na casa de um americano que escreve. Eles jogam xadrez. O filme é muito ruim. Entediante, nada nele faz sentido. Não se entende o porque de sua súbita paixão pelo jogo, o porque do arrogante americano abrir a guarda com ela, o porque de se ter feito tal filme. Não passou por aqui até agora e ficará bem se não passar. Nota Zero.
MEIA-NOITE EM PARIS de Woody Allen com Owen Wilson e Marion Cotillard
Owen está ok. É mais um ator que consegue fazer Woody Allen como o próprio. Marion está bem como a modelo de Picasso. Mas Adrien Brody como Dali está hilário!!!! É um filme que de certa forma celebra a vida. Mas a celebra de forma sem riscos, tudo dá certo sempre. É um prazer apaixonante ver Heminguay falar, Zelda e Scott dançar e Cole Porter tocar piano. Eles são meus mitos e portanto são parte do que me faz estar vivo. Belo filme. Crítica mais longa abaixo. Nota 7.
TRÊS PALAVRINHAS de Richard Thorpe com Fred Astaire, Red Skelton, Vera-Ellen
Longe de ser um grande musical. É do tempo de "vacas magras" de Astaire. Mas...caramba! Como é bom ver um filme de Fred Astaire!!!!! Há um alto astral tão grande e convincente que seus filmes servem como um tipo de mensagem, são como um lembrete daquilo que podemos ser. O que temos de leve, nobre e bonito em nós. Os serviços que Astaire nos fez são inestimáveis. Eis um anjo. Nota 7.

AS AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSEN- RUDOLF ERICH RASPE

Talvez eu quisesse viver em fins do século XVIII.... se eu tivesse sangue azul e vivesse longe da França, claro. Melhor ainda, se fosse ligado ao alto clero!!!! Se uma época tem seu espírito revelado pela literatura que deixa à posteridade, o século XVIII tem na aventura e na busca pelo exótico seu talento mais especial. De Cândido à Tom Jones, de Crusoe à Gulliver, é esta a época dos livros de aventuras, de viagens, de contos filosóficos. O prazer guia a prosa.
Munchausen existiu de fato. Ele foi um militar-nobre, que ao se aposentar ( esteve em duas guerras ), entretia seus constantes convidados ( estamos em século que deplora a solidão ) com as fantasiosas histórias de sua vida. Logo, contos baseados em seus "causos" expalharam-se pela Europa ( nenhum deles escrito por ele mesmo ). Rudolf Erich Raspe, aventureiro que frequentou sua casa, escreve na Inglaterra ( estava vivendo por lá foragido ), as memórias do Barão. Um êxito! Um best-seller!!!! Desde então várias outras versões são coligidas, mas digamos que é esta a mais célebre.
O Barão viaja por mares, ares, chega a ir à Lua, ao inferno, voa pelos céus. A fantasia toma conta do escritor, e assim invade também quem o lê. O personagem é imenso, ele vai caçar e traz centenas de patos, se atira contra inimigos turcos mata logo um batalhão, e se sai voando numa bala de canhão, cai na Lua e conhece os lunáticos. Há uma exuberância em seu modo de narrar que não se esgota.
Nosso tempo precisaria de livros como este, de pura fantasia, de prazer sem propósito "nobre", de total "sem noção". Deixar a criação mandar na ação, ser levado para onde a fantasia desejar, liberar a mente de qualquer decoro ( e de qualquer objetivo simbólico ). Seria pedir demais?

MEIA NOITE EM PARIS- WOODY ALLEN

Quando o personagem de Owen Wilson procura aceitar sua condição temporal, tudo o que ele faz é recordar seus antibióticos. Vivemos a época do medo e é interessante que sempre que tentamos valorizar nosso tempo em relação aos "good old times", tudo o que conseguimos lembrar são nossos medicamentos e as condições de higiene. Woody, neste bom filme, errou em seu final. Ele acomoda as coisas e faz um final Disney. Muito mais interessante seria se o escritor se perdesse para sempre em seu devaneio. De qualquer modo ele encontra uma alma romântica como a dele, que se emociona com Cole Porter e ainda vê a "Paris" na Paris.
Todo amante de arte tem seu tempo mítico. Para quem ama a pintura ( como a personagem de Marion Cotillard ) esse seria a Paris de Gauguin e de Degas. Para um pintor, seria a renascença de Michelangelo. Um filósofo provávelmente iria desejar viver na Grécia de Platão e um músico na era de Mozart e Haydn. Como típico escritor americano, o personagem de Wilson ama a época de Heminguay e Fitzgerald. Woody Allen, que sempre viveu de certa forma nesse mundo de jazz e music hall, faz com que Cole Porter cante ao piano dando as boas vindas à Wilson no paraíso. Zelda e Scott Fitzgerald são seus anfitriões e nada poderia ser melhor. Ao contrário de Arnaldo Jabor, minha maior emoção não foi ver Cole ao piano ( e eu adoro Cole Porter ), mas sim a hora em que Dali, Bunuel e Man Ray sentam-se à mesa ( faltou Lorca ). Adrien Brody faz uma participação hilária ( '- Dali! Sou Dali!!!"), e Man Ray ( Voces que me lêem precisam ver seus curtas ) está lá, com seu olhar duro e curioso. Bunuel permanece silencioso, e é nessa hora que me emociono. Em mim surge uma vontade poderosa, um desejo de estar lá, sentado naquele lugar, desejo de ficar para sempre ali, rodeado por meus mitos.
O filme é exemplar nisso. Wilson, por mais inadaptado que seja, tem em si a possibilidade de ser feliz. Porque ele crê em algo, ele crê na Paris de 1926. Quando ele viaja para lá, tudo o que ele sente é maravilhamento, nunca medo. Mergulha em seu sonho, entra em contato com seus deuses e se encontra, pronto para o necessário retorno. Comparado a sua noiva, ele é vivo, grande, interessante e interessado. Aliás é sintomático observar como sua noiva está o tempo todo comprando coisas ou indo a algum lugar. Ela jamais usufrui, reflete ou espera. Combina com as ruas assépticas de Paris, em oposição as ruas enevoadas e escuras da "Paris".
Tudo fica mais belo com o jazz à Grapelli e Django, e ouvir o veemente Heminguay falar é para mim como encontrar um irmão mais velho. Não sei qual seria meu tempo ideal. Eu adoraria viver nessa Paris de 1926, como amaria a Londres de 1890. A vantagem de meu tempo é o de poder ler sobre Paris e Londres e ver este muito romântico filme. Mas acho dificil que alguém em 2094 sonhe em conhecer a época de Johnathan Frazen e Philip Roth. De Saramago e Llosa.
Mas talvez exista então, em um mundo que será provávelmente mais controlado e frio, o desejo de se visitar a época de Woody Allen.

A PROCURA DO MITO- ROLLO MAY

Nossa era tem feito um trabalho: exterminar mitos. Em louca ânsia de destruição, matamos ( tentamos matar ) tudo aquilo que atende pelo nome de mito ( ou sagrado ). Usamos a palavra mito como se ela fosse um palavrão, como se mito fosse tudo o que é enganoso, falso, ilusório. O mito vive onde não existe o tempo, é eterno e imutável, e é por isso que tendemos a negá-lo e nos rirmos dele, o nosso mundo é seu oposto, temporal, falível e sempre mutável. Numa sociedade que é educada para admirar a linha de montagem, o novo produto e a insatisfação, o mito se faz marginal. Nunca precisamos tanto de mitos. A vida sem eles não tem valor nenhum.
Rollo May fala disso. E fala mais. Começa falando de dois modos de se abordar o sentido da vida. Sartre propõe que esse sentido deve ser dado por nossa força individual. É o que hoje predomina. O individualismo extremo. E há o modo de Kierkegaard, procurar o sentido que existe independente de nós, o sentido oculto, o saber que é dado pelo mito. Essa é a filosofia que nos falta. May logo percebe que a psicologia surge em mundo sem mitos, se eles ainda vivessem não haveria o porque de terapeutas e analistas. Doença mental ou emocional é sempre a falta de um sentido, de um porque, de mitos que guiem e dêem ao ser o sentido do todo, o sentido de fazer parte, de comunhão.
Thomas Mann: "O mito é a verdade eterna em contraste com a verdade empírica, que é falível e mutável."
Nessa primeira parte do livro, Rollo May diz que os mitos conduzem os fatos e não o contrário. Ele explica isso usando como exemplo a descoberta da América. A criação de um clima favorável a esse encontro entre mundos, a Europa se preparando a esse choque, a esse mergulho em mundo novo, a essa transformação. Tudo na renascença prometia essa descoberta. Os novos mitos de então o apontavam. A pergunta que faço é: para o que nosso mundo hoje se prepara? Quais são nossos pobres mitos? Esses fiapos de lendas, de sinais e de crenças nos fazem esperar o que?
May fala então sobre a América. O homem europeu impressionado com o tamanho e o mistério do continente. Se lançando ao deserto, a fronteira. Nasce o mito americano, o homem sem passado, sem história, em constante renovação, em busca pelo novo. Novo lar, novo ambiente, desapegado de raiz, apegado a sua "realização". Eis o problema: se naqueles tempos esse mito era positivo, sua perpetuação fez do americano um homem sem contato com sua subjetividade, sua origem, um ser que valoriza o novo por ser novo ( como se a novidade fosse uma qualidade em si ) e que protege seu individualismo até a solidão absoluta. May cita a antiga cidade européia, em que há sempre a presença da catedral tranquilizadora, ( mesmo para ateus ),tranquilizadora por jamais sair de lá, ser testemunha de sua vida, dar às pessoas um senso de pertencimento, de continuidade, de comunidade. Isso inexiste no "mundo novo".
Que mitos nosso mundo tem criado? Qual o mito americano? Elvis? O self-made-man? Que heróis?
Rollo May sabe que a qualidade de uma civilização está na qualidade do que ela cria. Arte, religião, mitos. Somos produtores de uma arte vulgarizada e banal, que desistiu covardemente do sentido; de uma religião que nega o verdadeiro Deus, que prega o individualismo e a solução mágica; e de mitos que estão presos ao tempo e a razão, e que portanto são anti-mitos. Pois sua função é integrar consciente e inconsciente, dar sinais daquilo que nos é mais precioso, iluminar a treva da ignorância. Conduzir.
O livro faz a análise de algumas obras literárias "mitológicas": O GRANDE GATSBY, A DIVINA COMÉDIA, OS FAUSTOS de MARLOWE, GOETHE e MANN, PEER GYNT e MOBY DICK.
Gatsby como o mito dominante da América moderna. O homem que se faz do nada, que cria sua persona por vontade de ferro, que bem sucedido, dá festas onde nada acontece de verdadeiro, e que apodrece em tédio terminal. Gatsby nada tem de verdadeiro, de humano, de real. É a imagem da solidão, do não se conhecer, do homem que não encara o inferno e assim perde o paraíso. Pois o mito traz isso, o caminho para dentro, e adentrando voce pode encontrar afinal o que está fora; e afundando no inferno voce ascende ao céu. É o único modo.
Rollo May não cita Shakespeare, mas sempre que entro em contato com suas peças é isso que sinto: o quanto perdemos. Paixões intensas que levam ao prazer imenso, dores colossais que dão o conhecimento perseguido, o sentido da vida entre raios. O mito.
Na obra de Dante o livro cresce e nos absorve. Dante como um paciente e Virgilio o conduzindo pelo inferno "em terapia". Ver o mal para então conhecer o bem. Beatriz como a final integração com a mulher verdadeira e completa. Talvez a mais bela obra mitológica. Um poema sobre a saúde da alma. ( Senti isso quando o li no ano passado, uma paz imensa na companhia de Dante. )
Peer Gynt de Ibsen impressiona muito. Uma peça imensa sobre a alma que se perde. Lendo Rollo May dá uma vontade enorme de ler essa obra-prima de Henrik Ibsen. Há tradução?
Fausto somos todos nós. Fausto vende tudo em troca do poder. Renega a Deus e ao amor pelo conhecimento, pela ciência, pela liberdade. Rollo May a descreve com brilho, e percebe as diferenças: em Marlowe, Fausto é a peça que propicia a catarse do homem renascentista, ele é um blasfemador; em Goethe há a catarse do homem iluminista, Fausto precisa do mal, do irracional, da escuridão; e em Mann ele é uma nação tomada pelo mal, ele é a destruição absoluta, o niilismo. Fausto sempre lida com a sombra, com aquilo que negamos, com o que nos dá medo.
No capítulo seguinte temos a noção de tempo. Em nossa era apressada não há espaço para o tempo que amadurece. Em todas essas obras, em todos os mitos ( e há a análise também da BELA ADORMECIDA, o mito do tempo que o amor requer e precisa para poder acontecer ), há a sabedoria do tempo. O tempo como aliado, como processo necessário. As coisas crescem dentro das pessoas e acontecem no mundo após sua maturação. Em época de correria e ansiedade nada cresce em tempo certo, nada amadurece. O tempo se torna irritante, inimigo. Ele se demora e cria tédio, ou passa e traz o apodrecimento.
Há um trecho soberbo de Nietzsche em que ele fala da necessidade da presença do herói. Do quanto dependemos da vinda ocasional desse herói para iluminar nossa vida e dar presença ao mundo. Nossos heróis hoje se escondem em trevas por detrás de máscaras, solitários e pessimistas que trazem confusão em vez de solução. O que esperar deles?
Eu cresci com heróis e mitos. Mitos que me conduziram a ser o que sou e o que me tornarei. Que coloriram minha vida e me abriram para dentro de mim mesmo. Heróis que me deram exemplo e consolo. Errei muito, me perdi, mas minha vida sempre valeu a pena enquanto estive com eles. Me é incompreensível que alguém possa existir sem um mito, um herói, um rito. Pior, sinto pena de quem passa pela vida sem suspeitar de sua existência.
Ler este livro diz muito.

Sir Laurence Olivier receiving an Honorary Oscar®



leia e escreva já!

SER ATOR- LAURENCE OLIVIER ( UMA VIDA DE SORTE )

Laurence Olivier, de certo modo, mudou minha vida. Como aconteceu com várias outras pessoas, foi assistindo seu filme Hamlet que comecei a pressentir a grandeza de Shakespeare ( e consequentemente a presença da poesia como rastro da magnânima presença do Homem ). Neste livro, que não é uma bio mas sim um comentário sobre a arte de ser ator, Olivier explica, dentre outras coisas, como ele tentou traduzir a poesia do bardo em imagens de cinema. As brumas, a câmera rodopiante, as sombras e o foco cambiável. Foram essas imagens, fortemente cinematográficas, que me despertaram.
Olivier foi um gigante. Quem o viu no palco jamais esqueceu. Recordo as entusiásticas narrações de Antonio Candido, de Paulo Francis, de Fernanda Montenegro. Noites em teatro que são lembradas décadas mais tarde. Momentos de iluminação. O livro começa com a história dos atores que fizeram a glória de Shakespeare. Kean, Garrick, e já na era contemporânea a tríade Gielgud, Richardson e Olivier. Laurence confessa sua admiração por John Barrymore e Ronald Colman e suas dificuldades no cinema ( provocadas por seu esnobismo. Cinema para ele não era arte. Isso até conhecer William Wyler, que mudou seu conceito para sempre. )
Os grandes papéis de Shakespeare são analisados. Olivier ama Hamlet, adora Ricardo III, mas confessa jamais ter feito um Otelo satisfatório. Para os que adoram Shakespeare, é meu caso, são depoimentos deliciosos. Aliás, o livro inteiro, leve como uma conversa, é um prazer.
A primeira vez que vi Olivier foi na entrega do Oscar de 1979. Ele recebeu mais uma homenagem e fiquei impressionado com a emoção flagrante no rosto dos seus colegas. Não era comum que alguém fosse aplaudido de pé. Esse ato ainda tinha valor. E eu via aquele senhor tão famoso, sempre chamado de "melhor ator do século" e não conseguia perceber onde estava a tal grandeza. Me parecia que Paul Newman e Peter O'Toole eram bem maiores. Precisei esperar dez anos para ver Hamlet na TV-Hamlet e sentir o segredo.
Há uma previsão que Olivier erra por muito. Ele diz que por ser um veículo visualmente pobre, o futuro da tv seria o diálogo. Ele acreditava que programas de tv seriam diálogos brilhantes...Mas prevê que o cinema seria um tipo de experiência visual sem diálogos ou enredos críveis. É um otimista. Ele espera novos Oliviers. Novos Gielguds, novos Richardsons, Redgrave, Finney, Rodgers.... Aliás, a escalação de seu grupo teatral dos anos 60 é de sonho: Albert Finney, Peter O'Toole, Maggie Smith, Derek Jacobi, Anthony Hopkins, Alan Bates e Joan Plowright.
Com atores como esses Shakespeare não poderia estar mais vivo.
Postei acima a entrega do prêmio honorário a Olivier. É um prazer glorioso ouvir Larry falar. Os erres e as vogais ditas com absoluta clareza. Podemos quase comer o som. E é frustrante observar como o Oscar hoje parece vulgar, caranvalesco, burro. Laurence Olivier tem tempo para falar, Cary Grant tem calma para fazer a apresentação e o público pode reverenciar um gênio em vida. Deguste.

ORSON WELLES/ DEPARDIEU/ WISE/ BURTON/ DE SICA/ PETER SELLERS/ ZULU

ZULU de Cy Endfield com Stanley Baker, Michael Caine, Jack Hawkins e Ulla Jacobson
Um grande clássico do cinema inglês, foi votado recentemente um dos top 40 de toda a história do cine britânico. É diferente de tudo aquilo que voce espera. O excelente roteiro narra a história verídica de um grupo de soldados que em 1875 se defende na Africa de ataque de 4000 zulus. A primeira cena ( excelente ) já revela do que trata o filme: vemos uma longa dança ritual zulu. O filme não toma partido, os zulus não são vistos como "bons selvagens", mas tampouco são vilões. Assim como os soldados ingleses, eles são guerreiros humanos. O desenvolvimento dos personagens é perfeito, todos são bem delineados, nenhum é um herói, mas também não existe o anti-herói, têm falhas e qualidades e todos estão transidos de medo. A ação é muito bem feita, o som percussivo dos zulus vindo em crescendo, a violência explodindo de súbito. E o final é um explendor. Em suma, maravilhoso prazer. É um dos primeiros filmes de Caine, é aqui que ele se torna star ( em 64, ano do filme, ele só perdeu em bilheteria britânica para James Bond e A Hard Days Night ). Caine compõe um tenente afetado, fraco, exitante, mas que acaba por fazer o que dele se espera. Stanley Baker, grande estrela da época, é um oficial que luta para ser duro, tenta ser profissional, mas percebe todo o tempo o absurdo daquela matança. Excelente, tem ainda uma fantástica trilha sonora de John Barry, talvez meu compositor de cinema favorito. Nota 9.
A MARCA DA MALDADE de Orson Welles com Orson Welles, Charlton Heston, Janet Leigh, Marlene Dietrich
Um filme de Tarantino feito em 1958. A primeira cena é antológica: um longo plano sem cortes em que Heston anda por rua da fronteira Mexico/EUA em meio a carros, gente e casas. A câmera sobe, desce, corre e caminha e nenhum corte é feito até acontecer uma explosão. O tipo de esbanjamento de talento que foi inventado por Welles. Se Kane é seu filme mais perfeito é este que dá mais prazer ao ser visto. Fala de crime, do confronto entre um velho policial sem ética ( Welles, em atuação de explendor ) e um policial mexicano honesto ( Heston, muito bem ). Tudo no filme é fatalismo, pessimismo, escuro ( a fotografia é maravilhosa ). E tem algumas linhas de diálogo de cinismo cintilante. É um desses filmes cult-chic que fica bem gostar, mas ele merece toda sua fama. Se voce não penetrou no segredo do genial talento de Welles, este talvez comece a mudar sua opinião. Nota 9.
MAMMUTH de Gustave Kervern e Benoit Delepine com Gerard Depardieu e Isabelle Adjani
Minhas Tardes Com Margueritte é o melhor filme em cartaz. Se voce não o viu por ter ido atrás do hype, sinto muito. Lá Depardieu dá um show e pasmem, é um filme atual que trata de gente comum, sem grandes loucuras e doenças mortais. Mas aqui tudo se desacerta. Ele está ok como um aposentado entediado que parte pelas estradas atrás de papéis que provem onde e quanto tempo trabalhou ( problemas de aposentadoria ). Belo tema que poderia lembrar o Schmidt de Alexander Payne com Nicholson ( Payne é um dos muito bons novos diretores que têm pouco hype por não serem "geniais" ). Mas este Mammuth envereda pelo desejo de ser esquisito, diferente, inesperado, e nessa busca tola por arte, ele se faz previsível e pior, enfadonho. Uma pena.... Nota 2.
CORRA QUE A POLICIA VEM AÍ 2 E 1/2 de David Zucker com Leslie Nielsen e Priscilla Presley
Adoro Nielsen!!!!! Ele surge e já abro um sorriso. É daqueles humoristas que apenas por estarem em cena já fazem graça ( Eddie Murphy foi assim há séculos atrás ). Mas esta segunda aventura do hilário policial está longe da naturalidade da primeira. Aqui voce percebe o riso sendo procurado. Mesmo assim tem algumas cenas de humor antológico. Nota 6.
HELENA DE TROIA de Robert Wise com Rossana Podestá, Jack Sernas e Brigitte Bardot
O filme já começa com um erro: no papel de escrava, a muito jovem BB rouba o filme da insignificante Helena/ Podestá. E todo o resto vai nesse ritmo: o Paris feito por Sernas é patético, a guerra de Troia é constrangedoramente ruim e tudo no filme acaba por se parecer com carnaval na Sapucaí. Mistério: como um diretor tão bom como Wise se meteu nessa embrulhada? Nota Zero.
ALEXANDRE, O GRANDE de Robert Rossen com Richard Burton, Frederic March e Claire Bloom
Excelente. Burton, apesar de sua ridicula peruca, dá dignidade a figura de Alexandre. March, como seu pai, Filipe, está ainda melhor, e o filme é visto como um embate edipiano entre pai e filho. Filipe é todo desejo, virilidade, exuberância; e Alexandre, apesar de suas vitórias, é estranhamente fraco, solitário, travado. Rossen, grande diretor, sabe contar sua história. O filme flui. Não existe aqui aquele excesso de luxo hollywoodiano nos cenários "gregos", tudo é simples, claro e natural. Pode ser visto sem medo, ele se sustém, nada é inverossímel. Nota 8.
O FINO DA VIGARICE de Vittorio de Sica com Peter Sellers, Britt Ekland, Victor Mature, Martin Balsam, Maria Grazia Buccella
Uma comédia onde Peter Sellers faz um gatuno italiano só pode ser coisa boa. E é. Sellers foi um gênio e aqui ele dá uma pequena mostra disso. Faz um italiano típico e não parece forçado ou caricato. Faz rir, pelas situações de humor, não por ridicularizar sua interpretação. O filme trata de um roubo de barras de ouro e de um ladrão, The Fox, que deverá transportar esse ouro para dentro da Itália. Para isso, ele se passa por um famoso diretor de cinema "de arte", e usa a população de vilarejo, ávida por fazer cinema, como cúmplices no crime. Mature é um decadente ator americano canastrão ( ele se auto-parodia. Está ótimo ) e temos ainda todos aqueles hilários atores italianos em pequenos papéis. De Sica deixa Sellers atuar, o modo como ele move suas mãos, os olhares à Mastroianni, são aulas de como imitar sem parodiar. Uma comédia de primeira que tem ainda a bela trilha de Burt Bacharach e a linda Britt Ekland, uma atriz suéca do mal ( casou-se com Sellers e destruiu a carreira dele, e depois casou com Rod Stewart e o transformou num playboy. Os dois foram corneados por Britt ). Ah, o roteiro é de Neil Simon. Nota 7.
COLUMBO ( Box com 3 discos ) com Peter Falk, Leslie Nielsen, Lee Grant, Roddy McDowall...
Columbo é um policial feio e mal vestido, que com tranquilidade vai descobrindo seu criminoso. Quando Wim Wenders fez seu maravilhoso ASAS DO DESEJO ele escolheu Peter Falk/Columbo para ser um anjo. Vendo a série entendemos o porque. Columbo se move no crime, mas ele é sempre uma figura calma, plácida, familiar ( apesar do fedorento charuto ), um anjo que não tem uma só cena de violência. O filme começa sempre com o crime. Vemos quem o cometeu e a engenhosidade da execução. O interesse está em saber como Columbo chegará a solução. Ele então, se aproxima lentamente do crime. Toda a força da série está na composição de Falk e nos diálogos. Columbo vai irritando o criminoso, deixando-o confuso, acuado, temeroso. Columbo é obssessivo, racional, teimoso e fica todo o tempo surgindo onde menos se espera. Uma criação inspirada. Nesta caixa, o primeiro episódio tem direção de Steven Spielberg ( é seu primeiro trabalho ). Não darei nota por não ser cinema ( apesar de as imagens, com menos closes do que se usa hoje, serem quase cinematográficas. Cada episódio dura 80 minutos. )

EDUCAÇÃO

Muito boa a matéria sobre educação na Veja.
Sempre me incomoda essa perda de tempo que há na educação de segundo grau ( ensino médio ). Os alunos têm uma montanha de tópicos dados em extrema superficialidade. Pra que aula de sociologia? Adoro filosofia, mas o que pode ser ensinado a um aluno médio de 15 anos em meio às aulas de química e história? Qual o objetivo das aulas de inglês? Alguém aprendeu inglês no ensino público ( ou mesmo no Objetivo e Mackenzie )?
Tempo jogado fora, paciência dos alunos exaurida, conhecimentos rasos sobre vários assuntos que não importam e pinceladas superficiais sobre o que poderia interessar. Por que? A quem interessa manter esse status?
Na Europa se exigem duas matérias obrigatórias e as outras são escolhidas pelo aluno. Ele monta sua grade. Assim, um jovem que deseja ser engenheiro opta por exatas e um futuro arquiteto dá ênfase em desenho e arte. Seria tão duro aplicar esse tipo de ensino aqui?
Me canso de ver alunos com interesse em exatas sendo massacrados com sociologia, filosofia, artes, inglês e educação física. E alunos que adoram ler tendo de enfrentar fisica, quimica e biologia. Porque não oferecer aos primeiros uma matemática mais profunda, além de mais geometria e fisica e aos segundos dar destaque maior a literatura, história e geografia?
Mesmo no ensino superior isso se percebe. Quando fiz FMU tínhamos uma grade de matérias variadas e dadas de forma superficial. Eu cursei comunicações e duvido que alguém tenha aprendido alguma coisa de sociologia, fotografia ou filosofia com aquelas aulas corridas e vazias. Não teria sido melhor ter se concentrado em gramática e redação? Agora na USP ( em que pese seus vários defeitos ) há a racionalidade de se dar apenas quatro matérias em profundidade. Porque não o mesmo no ensino médio?
Estrangeiros se espantam com o fato do aluno brasileiro ter tanta matéria no currículo e tudo dado tão superficialmente. Noções sofisticadas de ciência apenas para constar, um imenso "já ouvi falar mas nada sei sobre".
Aos 15 anos o aluno deveria chegar ao ensino médio e ter de obrigatório apenas português ( saber ler e compreender á base para tudo ) e matemática ( desenvolver o raciocínio abstrato e racional ). E ter oferecida uma grade opcional que iria de história à física, de química à educação artística. O tempo seria melhor usado e o jovem se sentiria mais motivado.
É possível alguém lá em cima se interessar por essa mudança? Até quando?

A EXPLOSÃO DO DIQUE ( REVOLUÇÃO )

Ontem na tv Cultura foi exibido um documentário sobre Maiakóvski. Revolução russa, arte e poesia. Quem me acompanha sabe que tenho imensas prevenções contra tudo o que é russo. Essa coisa leninista foi valorizada demais nesta terra de Lula e Sarney e isso me causa profundo tédio. Há no Brasil uma idolatria pró-russia, assim como um anti-americanismo irracional e profundamente preconceituoso. Mas não posso cair na armadilha que revelo, há sim na Russia pré-comunista e imediatamente pós-revolucionária algo de novo, de ousado e de muito vivo. A morte-em-vida do comunismo logo destruiu toda essa exuberância, mas é fantástico perceber que coisas tão díspares como o video-clip e a linguística moderna têm sua raiz na terra de Maiakóvski.
O documentário, capitaneado por Cacá Rosset e Zé Celso é mais que fascinante, beira o trágico. Há uma sensação de que agora tal exuberância nos é inalcansável. Pois para ser verdadeiramente revolucionário é preciso abrir mão de tudo que se tem, ou nada possuir de seu. Em mundo século XXI em que não podemos nos separar de nossa rede social, de nosso plano de saúde e de nossa tv a cabo, não há a possibilidade de transformação absoluta a partir da destruição completa daquilo que não nos serve. O máximo que podemos fazer são críticas ao que aí está, críticas que buscam seu aprimoramento e jamais sua destruição. A inflação de vida, a extrema liberdade que vemos nas cenas russas nos são tão distantes quanto uma guerra grega ou uma paisagem em Urano.
Dziga Vertov institui o cinema olho. Câmeras que filmam em absoluta liberdade. Eisenstein cria a montagem criativa. Uma imagem traz uma imagem que se completa em outra imagem e que é reafirmada por mais uma cena. Mas o que mais impressiona são os cartazes revolucionários. Passado um século sua assustadora força permanece. São como capas de discos maravilhosas, peças de propaganda vencedoras em Cannes, posters radicais, imagens de camisetas exclusivamente modernas. Maiakóvski, poeta da vida que se matou aos 36 anos ( de tédio stalinista ), cria slogans: MELHOR MORRER DE VODKA QUE DE TÉDIO; TODO SER HUMANO NASCEU PARA BRILHAR; MEU CORPO ENLOUQUECEU SOU TODO CORAÇÃO; O SOL EXISTE PRA MIM... Além de tudo, ele foi ator, músico, pintor, diretor de cinema, escritor. As fotos em que ele surge ( belo com seu olhar de apaixonado e a cabeça raspada ) são soberbas, há nela a força da vitalidade jamais fake. Que bela época para se viver!
Assistir esse documentário dá uma enorme vontade de escrever, de desenhar, de amar mulheres loucas, de viver, viver revolucionariamente.
Tivemos uma muito minúscula prova do que significa um momento como esse. Foi no final dos anos 70, inicio dos 80. Um dique que represava forças libertárias foi rompido, a abertura politica de Figueiredo rompeu essa represa ( sem querer querendo ) e uma festa se instituiu. É a época do Gabeira de tanga na praia, do topless, do nú frontal; mas é também a época do Asdrubal, do rock brasileiro ( sim, eu sei que Ultraje e Titãs são um porre, mas suas letras não eram melhores que as do Restart, Cine e que tais? ). Um monte de coisa é liberada pela censura, peças/filmes e livros. As pessoas tentam viver vinte anos em um. Cazuza é um belo exemplo dessa era.
Uma pequena pitada de "desrepresamento". Imagine então o que foi o fim de mil anos de servidão. Isso foi Moscou em 1917. Jovens nas ruas criando o conceito do que conhecemos como jovem radical. Melhor, criando uma coisa que ainda não fora rotulada. Criando sem saber estar criando, vivendo sem tédio, sem rumo, sem censura e sem mercado. Não podia durar, mas caralho, aconteceu. MELHOR VIVER DEZ ANOS A MIL QUE CEM ANOS A DEZ.
Os rabugentos da covardia sempre podem dizer: mas deu em que? E os jovens irados devem responder: E voce? Deu onde?