CAMINHANDO NA SUMARÉ COM UM AMIGO ( E "A DOCE VIDA" )

Um helicóptero leva uma estátua de Cristo pelos céus de Roma. No ar, Marcello, um jornalista, vai sorridente, e paquera algumas moças de bikini em terraço ensolarado. Não se deixe enganar, neste filme, que marcou época e criou toda uma moda de paparazzi e azarações, o que Marcello irá testemunhar é um apocalipse.
O filme, três horas de caos, é dividido em blocos. Marcello e um bando de fotógrafos ( o filme criou o termo paparazzo ), andam pelas noites romanas. Sabemos que ele sonhava em ser "um escritor" e que agora se conforma em viver de noticias. Então uma atriz americana chega a Roma, bebe em boate, anda bêbada pela cidade e toma banho numa fonte ( uma das mais famosas cenas do cinema, e que sexy o decote de Anita! ). A desilusão de Marcello começara antes, sua namorada, ciumenta, tentara se matar. Com a estrela americana ele tenta ficar, conhece seu namorado decadente ( um ex-Tarzã ) e conhece a tolice das estrelas.
Depois, e só então, o filme começa a atingir sua grandeza. Duas crianças dizem ter visto Nossa Senhora em descampado periférico romano, sobre uma árvore. A imprensa vai para lá, os paparazzi fotografam os pais das crianças em poses de "milagre", doentes fazem oração, o povo invade tudo. Um circo é armado e as crianças apontam onde a aparição está. Mas chove e todos se vão. Um dos doentes morre, as luzes são desligadas e Marcello parte para outra. Que milagre?
Ele vai a casa de intelectual seu amigo. Lá estão artistas e a familia feliz do amigo. Esse amigo ama seus filhos e é calmo, correto, a imagem que Marcello gostaria de ter. Há uma linda cena desse pai ao berço de seus filhos, amoroso. Mas, mais ao fim do filme, esse homem assassinará seus dois filhos e se matará. Marcello, em cena fortíssima, irá lá reconhecer os corpos, e verá os livros, a sala, a casa de seu amigo sendo profanada pela policia e pela imprensa. O corpo do amigo ao canto, sob um lençol. Quando a esposa volta a casa, há uma cena maravilhosa, dúzias de paparazzi a cercando e fotografando sua dor. O patético em seu auge.
O pai de Marcello vem o visitar. Se encontram na via Appia ( Roma nunca foi tão bela e fútil ), carros, vespas, paqueras. Ele leva o pai a cabaret e o apresenta a moça da noite. Mais tarde ela o chama, o pai passou mal no quarto. Marcello o encontra à janela do quarto, humilhado, impotente, velho...
Ele sai então com Nico ( sim, é a cantora do Velvet Underground, quando ainda era modelo e atriz ). Vão a casa de nobres romanos. Nesse palácio, vemos filhos esquisitos, gays, matronas, travestis, velhos loucos, e uma excursão às ruínas da casa dos fundos do palácio. Em cena de terrível beleza, adentramos a escuridão vazia dessa casa mofada. Lá está uma mulher que Marcello talvez ame, mas ela beija outro, longe de seus olhos, isso logo após dizer que o ama.
Vem então a morte de seu amigo e Marcello vai a orgia. Invade a casa de milionário e com "amigos", bebado, tem noite de violência, ridiculo, gratuidade, vazio. Marcello encontra o nada.
Todos vão para praia, onde magnifico ser marinho é achado morto. A câmera insiste em mostrar seus olhos de vidro. Todos se vão e Marcello vê ao lado uma menina loura que o chama com um aceno. Ele não a entende. O filme termina.
Ontem eu andei por ruas da cidade, de tarde, com um amigo. De certa maneira nosso assunto foi todo o tempo o mesmo: onde encontrar sentido. Comprei um livro que abre seu texto com frase que espelha este filme: Platão podia escrever sobre justiça, beleza e ética porque ele é de um tempo em que o sentido e a existência eram plenas. A preocupação desses filósofos arcaicos era então o estudo da vida cidadã. Hoje, tempo em que nada mais fazemos que destruir todos os mitos, passamos todo o tempo tentando criar sentido, criar razão. Não podemos mais filosofar sobre a beleza, o bem ou a moral, porque não temos o minimo para começar a pensar nesses temas nobres: sentido.
E numa carta a Einstein, Freud diz: " Voce me acusa de tentar criar mitos. Não o nego. Não é isso que sua física também faz? Vivemos tempo que precisa de novos mitos."
A Doce Vida demonstra de forma exemplar o esvaziamento da vida. A jornada de Marcello é perda de inocências, de mitos, de belezas. Sua última chance é a menina que o chama. Mas, infelizmente, Marcello, como nós, não a entende mais. O que lhe resta são orgias de sexo e drogas e o sensacionalismo de eventos vazios. Fellini cria um filme tão rico ( que não é seu melhor ) que poderíamos ficar dias a falar sobre seus símbolos.
Se hoje ir ao cinema é gritar e ter sensações ( o que não deixa de ser legal ), em filmes como este, ir ao cinema equivalia a adentrar uma catedral. Tentar encontrar um mito na morte dos mitos. Procurar sentido na falta de sentido. Não deixa de ser uma jornada heróica. Mas o ser marinho é morto e a menina-anjo nos acena em vão....
Que Bello Federico!!!!!!!

Roxy Music -04- For Your Pleasure [BBC TV '72].mov

E TODAS AS DORES DE AMOR NASCERAM PARA QUE ESTA CANÇÃO FOSSE OUVIDA....

leia e escreva já!

FOR YOUR PLEASURE.... ROXY MUSIC. A BELEZA DA TRISTEZA INFINITA.....

A tristeza é bonita. E não me venham falar de seus porques. A tristeza é bonita se voce souber olhar, ouvir e sentir. Não há motivo. Não é culpa cristã ( quando voce irá crescer. óh tolo infante ), não é repressão ( quando jogarás tuas frases prontas no lixo, óh pequeno inteligentinho ). Eu digo: a tristeza é bela, mas a beleza não é triste. Entendeu ?
Quando a bateria dá alguns toques no silencio absoluto ela anuncia a voz de mr. Ferry. E a voz vem com teclados esparsos que ecoam do fim dos tempos. E tudo aquilo é for your pleasure.
O disco é o segundo do Roxy. 1973. Ano chave em que eles lançariam dois discos da banda e mais um album solo de cada componente. For your pleasure, que é o último com Eno, e Stranded, o primeiro da ditadura Ferry. Os dois são históricos. E escutar aos dois juntos dá uma ideia de tudo o que foi feito desde então no tal pop-rock inglês.
Eu poderia falar da caleidoscópica do the strand. Música que inaugura o atemporalismo premeditado. Música enigma, alegre e rodopiante. Poderia falar de the bogus man, a canção que é simbolo do que é soturno. O gótico, o clima de medo, a tarada voz de Bryan. Eu ainda falaria de editions of you, um hit de coloração matisseana, uma festa de ansiedade rosa-choque. E ainda falaria sobre as canções de névoa branca, os ecos medievais que exalam merlineanos de todo o disco. A profana mistura de rock puro com Sinatra em alma, de rock cabeça alemão com glitter adolescente.
Mas o que faz a coda fatal é a última faixa: for your pleasure é compromisso de amante calejado. Que morre em palavras repetidas e confusão de sons noturnos. Canção que vem de antes que se inventasse a canção. Inumana.
E cada lágrima que derramei um dia por cada mulher adorada fica vingada.
Toda dor de amor existiu para que canções como esta nascessem....

GARGANTUA - FRANÇOIS RABELAIS, UM MALOQUEIRO.

Gargantua nasce filho de rei e cresce como gigante. Come, come e bebe vinho. E tudo no livro de Rabelais se resume a isso: vinho. A lei é: bebamos!!!!!
Dizem que o francês cartesiano é uma farsa. Que Montaigne e Racine não são a alma francesa. Que a verdadeira França está em Rabelais e em Villon. ( E consequentemente em Asterix ). Comida, bebida e escatologia, isso é o que define o francês real. Gargantua tem como palavra mais usada "cu" e há um capítulo sobre a arte de limpar o olho do cu. Rabelais escreveu no inicio do século XVI um livro que é uma das obras capitais do começo da moderna França. O espírito gaulês está todo lá. E ele é anárquico, sujo, glutão e bêbado.
Gargantua cresce, e come 13000 bois, bebe 800 barris de vinho e ao mijar afoga 20000 parisienses. Tudo nesse livro é assim: imenso, exagerado e despudorado. Bebês são fazedores de bosta, reis vivem a peidar, e nas batalhas os soldados morrem com paus enfiados no cu. Rabelais desconhece a palavra pudor e vai desabaladamente contra o tal bom gosto. O livro fede. E é divertido. Escrito antes da divisão da literatura em alta-literatura e baixa-literatura, ele escreve o que o diverte.
Bons tempos em que escritores eram mais que "empurradores de canetas". Eram soldados, navegadores, nobres perseguidos ou ladrões. Nas horas livres, escreviam. O romantismo ainda não criara essa imagem maldita do "escritor como ungido de uma missão". Montaigne ou Machiavel até poderiam se ver como "escritores", mas jamais como "autores". E Rabelais, que teve vida aventurosa e cheia de altos e baixos, escreveu um sucesso: Gargantua, que foi seguido por Pantagruel. Lê-lo é adentrar o fim da idade média. E o que define esse fim é o esculacho.
Marcelo Coelho escreveu nesta semana que Heine às vezes parece brasileiro. Pois Rabelais parece um maloqueiro. Se maloqueiros desejassem ser autor central, todos seriam Rabelais.
No mais vale dizer que o livro é engraçado, ainda, e que seus palavrões ainda causam espanto. A alma francesa tem aqui sua sombra. E veja bem: uma nação que se destaca por seus perfumes, roupas, finésse e que tais, com certeza é porque tem em sua sombra muito cu e muita merda para esconder. Aquilo que mais exibimos SEMPRE revela o que queremos esconder. A França nos exibe Montaigne e Descartes, e esconde as almas ( mas não as obras, pois ambos são clássicos ) de Villon e Rabelais. Tá dito.

MÚSICAS NOVAS....

Simon Reynolds escreve no New York Times: Houve um tempo em que a música pop era algo com o qual voce podia identificar uma época. Assim, os 60 eram identificados pelo soul, pelo folk e pelo psicodélico. Os 70 pelo heavy-metal, o punk , o disco e o rock-progressivo, os anos 80 pelo rap, o tecno e o gótico, os 90 pelo grunge e o eletro. Bom.... Simon continua, e diz que no pop de hoje nada há que identifique este tempo. Tudo é xerox de algo já feito N vezes. Daí vem o fato de que a tecnologia seviu na verdade para estancar o avanço e criar o conceito de ATEMPORALIDADE. Tudo ao mesmo tempo agora. Assim, a molecada se liga em blues dos anos 30, soul dos 60 ou tecno alemão dos anos 70 e apenas recicla o que já existe. Simon ainda fala da mania de se comprar teclados de 1965, ampli valvulados de 1970 e guitarras de 1955.
Engraçado....
Uma das coisas que mais comprovam o tal inconsciente coletivo de Jung é essa coisa com a qual vivo me deparando: voce acha que só voce sente e pensa tal coisa, e aí percebe que existe uma onda mundial pensando exatamente o mesmo que voce. A tal ATEMPORALIDADE da internet, coisa com a qual me pego refletindo todo o tempo. Coisa deliciosa, mas que além de sua delicia tem o poder de destruir toda a espontaniedade em arte. Como?
Primeiro digo que Simon tenta ser otimista. O grunge e a música eletrônica dos anos 90 já não eram tão anos 90 assim. Na verdade vinham dos anos 80. E se voce pensar que os grandes nomes dos anos 90 eram Beastie Boys, Smashing Pumpkins, Oasis, Radiohead ou Pearl Jam, voce vai notar que nenhum deles trouxe algo de realmente novo. O que eles faziam era fazer de outro modo o que já havia sido feito antes. O que acontece então?
Como sou do tempo pré-informação, posso arriscar uma chave. A gente ouvia falar de novas bandas, e lia sobre grupos maravilhosos do passado, mas não tinha como os escutar. Eu fiquei dois anos lendo sobre o Velvet Underground sem ter escutado nada. Até encomendar no Museu do Disco o White-Light e finalmente o escutar ( e pirar ). Ao mesmo tempo lia sobre um tal de punk rock acontecendo, mas também sem poder ouvir disco nenhum ( só os Pistols ). O que essa condição de ilha humana fazia comigo? Fazia com que o vazio de não poder ouvir criasse a imagem do que deveria ter sido o Velvet. Ou do que era o Buzzcocks. Então eu pegava minha banda ( eu tinha uma ) e fazia um som furioso, tipo Velvet ( e que nada tinha de Velvet ). Quando os escutei, finalmente, percebi meu erro. E daí? Tentando criar "meu Velvet" eu fizera meu som.
Hoje um garoto de 12 anos pode escutar tudo o que existe agora e antes ( atemporalidade ). Nada resta para ele imaginar "como teria sido" ou "como deve ser". Ele é esmagado pela ousadia do Velvet, pelo poder do Led ou pela arte de Eno ainda na infancia. Ou pior que isso, é afogado por milhares de suas cópias, milhões de clones e cria a ideia de que "o rock e o pop são isso mesmo". Ele sabe tudo, ouve tudo, vê tudo, onde o espaço para imaginar/criar/errar?
A música de hoje nada cria de novo porque ela está ocupada descobrindo coisas como bossa-nova da letônia, punk das ilhas Fiji ou tecno da Croácia. Gente "nova" fazendo coisas velhas. Vejo ( e olhe que eu procuro...) N bandinhas novas inglesas e TODAS se parecem com Jam/Small Faces/Buzzcocks. Ou, quando piores, vão na linha Roxy/Eno/King Crimsom. Tudo com uma produzidinha à anos 90, claro. Na música negra a coisa é ainda pior. Marvin Gaye e Aretha Franklyn são as únicas referências. E tome Madonna clones.
Voce, menino, talvez não saiba, mas houve um tempo em que o hype não era por um novo nome, era por um novo estilo musical. Kraftwerk ou Mc5 criaram algo de diferente a partir de quase nada. E lembro do que era estranho ouvir Run DMC e Public Enemy em 1986. O que te pergunto é: existe hoje algum som que choque um cara de 30 anos? Não falo de músicas que revoltam por serem ruins, falo que causem reação por serem realmente jovens, inéditas e que ROMPAM com todo o passado. Que joguem Bowie, Dylan, Thom Yorke, Morrissey e Neil Young no lixo. Alguém tem essa ousadia? Como ter, se um moleque um dia vê no YouTube o grupo Love em 1967 fazendo aquilo que ele sonha em fazer?
Eu só consegui conhecer o Love em 1999. Sinal dos tempos. O Love se tornou minha "nova" banda favorita no começo do século XXI. No mundo atemporal, Beatles/Stones/Led e Dylan serão para sempre o máximo. E Velvet/ Stooges/Sabbath e Clash os exemplos a serem seguidos.
PS: No cinema a coisa é ainda mais grave. Ter tudo de todos os tempos, com boa imagem, a disposição, amassa as ambições de todo estudante de cinema. A cópia se torna uma imensa tentação. E Bogart/Brando/Kate e Audrey se fazem mais mitos que nunca.

ELIA KAZAN/ WARREN BEATY/ TOTÓ/ PAUL GIAMATTI/ GAINSBOURG/ MICKEY ROURKE/ RENE CLAIR/ BERGMAN

TOTÓ PROCURA CASA de Mario Monicelli e Steno com O Grande Totó
Que humorista foi esse tal de Totó!!!! Que rosto! Não espere elaboração dele. Não espere "humor sofisticado". Totó é um palhaço, como Mazzaropi, como Renato Aragão, como Buster Keaton e o Jim Carrey dos bons tempos. Seu humor é infantil, direto, simples, e portanto corajoso. Aqui o objetivo é o riso, só o riso, se seu público não ri o humorista falhou, daí sua coragem. Neste filme ( dos primeiros desse fenômeno chamado Monicelli ) ele é um pai de familia sem casa. O filme mostra ele tentando achar lugar para morar ( tenta uma escola, cemitério e até no Coliseu ele se aloja ). Uma chanchadona que é de um doce saudosismo. Totó foi um graaaande comediante! Nota 7.
CLAMOR DO SEXO de Elia Kazan com Warren Beaty e Natalie Wood
Crítica abaixo... É mais um belo retrato da América feita por esse tão importante diretor. Warren está muito bem como o jovem aluno inocente e rico ( é seu primeiro filme ). Natalie não está a sua altura na primeira parte do filme, depois ela cresce e acaba por nos comover. Drama de primeira. Nota 8.
FAY GRIM de Hal Hartley com Parker Posey e Jeff Goldblum
Talvez um Alphaville? Uma brincadeira de Hartley que lamentávelmente não dá certo. Parker está muito sexy ! Mas que roteiro é esse???? Nota 2.
NINHO DE COBRAS de Joseph L. Mankiewicz com Kirk Douglas, Henry Fonda e Warren Oates
Pois bem... este é um filme muuuuito errado! Explico o porque. Temos David Newman e Robert Benton, os dois mais brilhantes roteiristas da época. Eles escrevem uma história sobre um cowboy ladrão e uma prisão de desajustados. O roteiro, típico da época contracultural, atira em xerifes, racistas, mulheres, westerns etc. Mas, chamam para dirigir o filme Joseph L. Mankiewicz, o diretor, excelente, de A Malvada. Um grande nome, mas um estranho no ninho!!! O que acontece então? Nada. O roteiro, cheio de boas ideias, é asfixiado numa direção acadêmica. O resultado é morno. Kirk é perfeito para esse tipo de perverso/espertinho e Fonda brinca com seu tipo de americano/Lincoln. Mas é Hume Cronyn, fazendo uma espécie de debilóide que mais impressiona. Não é uma grande comédia, mas é ok. Nota 6.
PASSION PLAY de Mitch Glazer com Mickey Rourke, Megan Fox e Bill Murray
A capa do dvd promete: Rourke como um trompetista de jazz decadente. O ambiente é Utah. Fox é uma angelical esperança de redenção e Murray um empresário sacana. Atraente né? Pois é um drama risível de tão ruim. Deve ter sido escrito por algum fã de cinema com 8 anos de idade ( o roteiro macaqueia Asas do Desejo e um monte de filmes noir dos anos 40 ), o diretor, é flagrante, pensava estar fazendo um bom filme, deve ser um nerd de 11 anos e quem o produziu crê que o público de cinema é imbecil. Megan Fox é um anjo ( ela tem asas )..... e na última cena Mickey Rourke voa com ela rumo ao céu.... se aqui descrito parece ruim, creia-me, é bem pior na tela. Chega a ser cretino. Sem nota. Faz de conta que jamais o vi.
SLOGAN de Pierre Grimblat com Serge Gainsbourg e Jane Birkin
Um publicitário conhece em Veneza Jane Birkin. Ele é casado. Se amam, mas Jane o abandona. Pois é.... eu gosto muito de Serge e este é o filme em que ele conheceu Jane. Mas que lixo é este? Serge é péssimo ator e Jane chega a rir em cena !!! O filme é constrangedor de tão amador!!! Não é um filme, é muito mais um documentário sobre um flerte. Nota 1.
PORTE DE LILÁS de René Clair com Pierre Brasseur e Henri Vidal
Em favela francesa ( sim, são barracos em ruinas ) um assassino se esconde. Fica no porão de um cantor fracassado e é ajudado por um tolo ingênuo. O filme tem belas imagens, mas se perde em sua excessiva glamurização da pobreza. Clair funciona melhor em fantasias puras, onde ele pode "levantar vôo". Nota 5.
ATRAVÉS DE UM ESPELHO de Ingmar Bergman com Harriet Andersson, Max Von Sydow, Lars Passgard e Gunnar Bjorsson
Uma obra-prima, devastadora. Retrato de uma personalidade em crise ou retrato de nossa condição desde sempre? Bergman nada enfeita, nada exagera, nada dramatiza. Faz o que ele pensa dever ser feito, sem jamais mudar de rumo. É um filme de tristeza polar, mas também de uma beleza profunda, seca, perturbadora. Nota DEZ.
A MINHA VISÃO DO AMOR de Richard J. Lewis com Paul Giamatti, Dustin Hoffman e Rosamund Pike
Uma coleção de clichés. Acompanhamos a vida de um mala por 3 décadas. Cliché: a década de 70 e suas drogas, a esposa doidona, a vida como irresponsável flerte. Segundo cliché: a segunda esposa é uma chata judia à woodyallen... Já a terceira esposa é dos tempos atuais, mais cliché: gente que só pensa em saúde e equilíbrio. No final, supremo cliché: violinos e pianinho enquanto ele sofre de doença incurável.... Os críticos gostaram? Pobre crítica! Paul Giamatti imita Jack Nicholson. Faz exatamente o tipo que ele faz desde 1983. Mas é bom ator. É imitação de bom nível. Dustin nada tem a fazer. Fica lá, como um tipo de velho tarado. A direção é franciscana: pobre. O filme já nasce velho e com cheiro de reprise do SBT. Nota 3.

OS MOEDEIROS FALSOS- ANDRÉ GIDE

Dizem que Aldous Huxley leu este livro antes de escrever CONTRAPONTO. Estranha sina a de Gide. Até os anos 70 ele era tão grande/famoso quanto Mann ou Joyce. Agora, em 2011, há quem goste de livros e não o conheça ( como desconhece Malraux, Claudel ou Colette ). Porque? Eu não sei.
Os Moedeiros é seu grande livro e vale dizer que em 1948 Gide ganharia seu Nobel. O livro é de 1926.... O que havia com a década de 20? Se pensarmos que entre 1921 e 1929 foram lançados os melhores livros de Heminguay, Fitzgerald, Faulkner, Joyce, Eliot, Lorca, Yeats, DH Lawrence, Dos Passos, Stein, Cocteau e ainda as pinturas de Picasso e Matisse, Chagall e Miró.... Que década! E ainda Bunuel, Lang, Murnau, Buster Keaton, Chaplin, Jean Renoir e René Clair... e o jazz, e Cole Porter, Irving Berlin, os Gershwin... Paul Klee e Kandinski.... Murilo Mendes e Oswald, mais Mario de Andrade e Fernando Pessoa... Como seria viver em mundo com tanto talento vivo e produzindo? Thomas Mann e Hesse, Proust e Valéry, Ezra Pound e Kafka. Bem...
Mas o livro....
Gide é moderno. Seu livro não tem enredo. Tem vários personagens que vivem. Gide os segue e cria algo de muito dificil de se fazer ( e o faz bem ) livro dentro do livro: um dos personagens escreve o livro que lemos. Enquanto a história corre, Edouard descreve o livro que prepara, o livro se chama OS MOEDEIROS FALSOS. Assim, enquanto lemos o livro, um dos personagens o comenta. E nos fala aquilo que dá certo, o que foi um erro, que personagens merecem mais espaço, quais devem sumir. Essa técnica, que poderia ser pedante ou hermética, funciona por ser natural em Gide. Não nos chóca, nos surpreende.
A base do livro é Edouard, um escritor que se apaixona por seu sobrinho, um adolescente brilhante. Há ainda Laura, amiga de Edouard que fica grávida de Vincent apesar de casada com outro. Vincent é irmão de Bernard, adolescente amigo de Olivier ( o sobrinho de Edouard ). Bernard foge de casa e prega a anarquia. Mas ao se apaixonar por Laura muda de opinião e seu crescimento espiritual é a melhor coisa do livro. Ele percebe que sua raiva era uma convenção, que ser rebelde pode ser um hábito, uma moda. Sua mudança é maravilhosamente bem escrita. Muitos outros personagens habitam o livro: condes decadentes e sórdidos, escritores vaidosos, putaines bem sucedidas, crianças desequilibradas... O mundo gay é mostrado sem bandeirices ou exageros, há inveja, há paixão, há timidez. André Gide foi militante, seus livros eram abertas confissões sem culpa ( e não vamos esquecer que André Gide, que morreu em 1951, ainda teve tempo de conhecer e ser amigo de Oscar Wilde, o que mostra como Wilde poderia ter vivido mais e o quanto deveria ter produzido ). Há um fato no livro que irritará meus amigos psicólogos. Gide mostra o quanto a psicanálise tem de "otimismo cristão". A fé na compreensão, na ajuda, no descobrimento do bem, na confissão, no "bom espírito". Ele diz que o trabalho desses profissionais é útil como consolo a almas atormentadas, mas não diferente de qualquer outra fé. Se o paciente não possuir a fé cega em seu guia, adeus ciência.
Mas não pense que Gide é um anti-freudiano. Ele usa essa dúvida em relação a tudo. Inclusive as paixões. O quanto não escolhemos aquilo que gostamos, aquilo que desejamos, e mais, o quanto nossos sofrimentos não são papéis que escolhemos seguir. Gide nos joga essa dúvida no meio de seu livro, para ao final demonstrar que pode não ser assim. Talvez não tenhamos poder algum sobre sentimentos, vida, destino, gostos, afetos e repulsões. A vida como escolha de explicações, sempre falhas, consolos, falsas teorias. O que sabemos?
Ah.... esses franceses! É o mesmo tipo de escrita de Camus, Malraux, Sartre ou Lolita Pille. Uma montanha de pensamentos, tudo analisado a exaustão, derrotas e medos, dúvidas, e aquele enorme EU no centro de tudo. Esse tipo de narrativa não conta uma história, ela analisa e reanalisa os personagens, os disseca, os explica, e os faz perder. Me cansa. Nos cansa. É febril.
André Gide pode um dia voltar a moda. Georges Bernanos voltou. E Bernanos e bem mais árduo. Ler Gide não nos faz felizes. Mas pode abrir algumas portas. Vá lá....

AMY WINEHOUSE, EXPLICA-SE?

Terminei um livro de André Gide. Interessante. Ele diz em certo momento que tudo em nossa vida depende de querer acreditar. Voce acredita no que voce escolhe, nunca na verdade. Damos explicações estapafúrdias para aquilo que não tem explicação. Mas, como não suportamos um mundo irracional, criamos crenças para consolo de nossa consciencia. Dito isso....
Amy Winehouse morre e iremos crer que foi "a pressão da fama", que a matou. Que foi o vazio de ter muito jovem "chegado ao topo". Ou que foi "a solidão da fama".... Voce escolhe crer no que preferir engolir. Mas saiba, nada explica. Nada. E é isso que voce teme, ver que a vida não tem razão, ela é feita além de nosso entendimento.
Se a pressão da fama mata, então Os Beatles teriam se matado. Se a chegada ao topo muito rápido mata, então Marlon Brando ou John Travolta teriam se matado. E se a solidão da fama é fatal, bem, Mick Jagger deveria ser um melancólico suicida. Mas não. O que une Morrison a Keith Moon, Gram Parsons a John Bonham ou Hendrix a Kurt Cobain? Nada. Considerar a idade como um sinal é computar só os que morreram aos 27 e esquecer o resto. Amy, uma bela voz, morre porque as pessoas morrem. Morrem de acidentes, de cancer, de droga ou de tédio. Morrem aos 12, aos 30, aos 88. Morrem.
O que me enoja é tratar esse mortos como heróis simplesmente por terem morrido. Hendrix é maior que Jimi Page não por ter morrido. Mas Keith Richards é um herói num nível que Jim Morrison jamais poderia ser. Keith sobreviveu. Ousou ficar velho. E jamais pagou por sua loucura. Não se arrependeu, não se sacrificou. E NUNCA chorou seus erros num disco. Como Iggy, Ozzy, Lou.
Amy deveria ter conversado com os sobreviventes. Só isso.

ATRAVÉS DE UM ESPELHO-INGMAR BERGMAN, O OLHAR IMPASSÍVEL DE DEUS.

Não há maior prazer em arte que ver um mestre dispor de seus elementos e exibi-los a nosso olhar. O que temos aqui é a radiografia de uma crise, e também a questão que funda nossa civilização.
Sven Nykvyst fotografa o filme. Temos a ilha, o universo limitado, o isolamento. Horizonte sem fim. Temos uma familia. Moradores únicos daquele mundo. Últimos ou primeiros seres. O filme, como tudo em Bergman, começa expondo seus personagens, sem apelação, sem atropelos, com musical crescendo.
Karin é a filha. Ela acabou de voltar de hospital. Seu caso psiquiátrico é incurável. Karin está em um de seus bons momentos. Aparentemente. Com ela vem seu namorado, que realmente a ama e sofre com ela. Há um irmão mais jovem, assustado com aquela situação e o pai, escritor famoso e distante da familia. Bergman em 80 minutos nos mostra esse drama cósmico, de quebra ganha seu segundo Oscar e modifica o alcance do cinema para sempre.
O filme é dedicado a esposa de Bergman ( uma das várias ) e é fácil perceber que o pai distante é Bergman. Mas na verdade ele é também Karin e sua loucura, o namorado amoroso e o irmão que odeia as mulheres ( e é fascinado por elas ). O filme em primeira visão é retrato de uma alma ilhada em conflito consigo mesma. Fosse apenas isso seria um ótimo filme, mas sendo muito mais alcança uma estatura de obra-prima ( isso se voce possuir a mente capaz de ver o que lhe é mostrado. Não indico o filme a meninos e inteligentinhos. Fiquem com a tola obviedade pornô de Cisne Negro/Anticristo e que tais ).
Karin começa a voltar a seu mundo dividido. E em quarto da casa "tenta entrar na parede". Alguma coisa a chama. A sutileza impera. Bergman não grava vozes a chamando, não usa trilha sonora de suspense, não exagera coisa alguma. Karin parece "normal", não somos invadidos por sua loucura, somos convidados a compreender e observar. Começamos então a sentir um incômodo imenso, vazio, começamos a sentir, suavemente, a loucura de Karin.
Há uma cena brilhante dentro de um barco encalhado. Chove, e os dois irmãos se escondem lá dentro. A água escorre pela madeira, eles se abraçam e se encolhem. Eis uma das mais belas cenas da história do cinema. O que vemos ali é toda a condição humana, desamparo,crise, e então voce começa a perceber o alcance do filme. A partir daí ( em seus vinte minutos finais ) o que temos é superlativo. Como gênio que é, Bergman traz a tona, sem estardalhaço, a questão fundamental de nossa civilização.
Karin volta ao quarto. A voz que a chama é Deus. E ela quer ir a seu encontro. Uma porta se abre e Ele vem a seu encontro. Karin grita, foge, se apavora. Ela é levada por sua familia e medicada. E diz: Eu vi Deus e Ele é como uma aranha, um terrível animal que me olhou com seu impressionante olhar frio, ausente, vazio. Karin optará por voltar ao hospital. No conflito de seus dois mundos, ela escolhe a loucura.
Mas o filme continua. E é nesse final que o toque do mestre se faz. Mas antes um comentário.
Deus seria uma aranha, a vida a teia em que Ele nos captura. Somos insetos em sua teia, presos. Mas não é apenas isso. O pai, numa cena crucial, diz que observa Karin, sem se envolver em seus problemas. Eis outra imagem de Deus, alguém que nos observa, indiferente, rompido com os homens. O filme tange a ideia de que somos um tipo de experimento que não deu certo, Deus nos virou as costas.
O irmão reclama logo no inicio que o pai não fala com ele, o ignora. Após Karin ir embora, rumo ao hospital, o irmão pergunta ao pai se Deus existe. O pai diz que não sabe, mas que o amor existe, com certeza o amor existe. O irmão pergunta se Deus não seria esse amor. O pai responde que isso não importa, o que interessa é que Karin está cercada pelo amor de sua familia. Esse diálogo, breve, é feito à luz de uma janela. O pai sai de lá e o filho, sózinho, diz com um quase sorriso: "Meu pai falou comigo!" Imediatamente o filme se encerra. Sem música, sem The End, sem nada, simplesmente vem o final. Seco.
Quem já tentou produzir arte, seja romance, pintura ou música, sabe o quanto é dificil chegar a simplicidade plena. Como é árduo conseguir dizer muito falando pouco. Impressionar sem chocar e despertar emoções sem violência. Quando o rapaz diz sua fala final, todo o drama de pais e filhos, de mestres e discípulos, de fiéis e Deus, cai sobre mim. Cubro meus olhos com a mão e choro. E peço a meu pai que fale comigo. Fale comigo como jamais falou. Fale comigo. Eis o drama central de toda a nossa civilização, esse pungente pedido de que alguém fale conosco, nos olhe, preste atenção, afirme que existo.
Karin foi sacrificada ( auto-sacrificada ) para chegarmos a esse encontro de pai e filho. E o mar, liso, vasto, magnífico, a tudo assiste sem se importar. A ilha permanecerá a mesma, mas aqueles quatro seres terão chegado perto de um sentido.
O que mais algum filme pode dizer?

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO- ALDOUS HUXLEY

Nesse mundo a velhice não existe. Fisicamente e mentalmente, voce é o mesmo dos 19 aos 60 anos. Pensar e agir aos 60 como aos 19, eis uma conquista de feliz realidade. Mais, nesse mundo voce deve se portar como adulto no trabalho, e ser uma criança no resto do tempo. Ser uma criança por toda a vida, uma conquista a ser conseguida.
Ser promíscuo é a regra. Quem não possuir cinco ou seis pessoas diferentes por semana será considerado estranho. Pior, uma ameaça ao bem comum. Transar muito e não se apegar, jamais. Saber então que voce e eu somos cambiáveis. Mais que isso: entre o desejo e a satisfação não pode haver um buraco. Ao querer, ser imediatamente satisfeito. Desejo que se demora faz pensar, faz sofrer, faz questionar. Faz com que voce seja diferente.
O passado não existe. O que é velho deve ser esquecido por ser velho. Pois conhecer o passado faz com que tenhamos como comparar e avaliar o presente. Poesia e religião são abolidos então. A realidade é o visível, o não-perceptível não existe. O real pode ser vendido e controlado, o subjetivo não.
A solidão é odiada. Tudo é feito em grupo. Introspecção e silêncio são temidos. Existir é estar em grupo. Quem ama a solidão é defeituoso. Música incessante, ruídos, gente, espaço preenchido.
Todo contato social tem apenas um objetivo: transar. Sai-se para fazer sexo. Qualquer outra coisa seria surpreendente. Conversar, flanar ou fazer nada seria excêntricidade.
As mulheres são todas magras e os homens altos.
A liberdade é plena. Voce é livre para se divertir todo o tempo. O prazer é ilimitado. Para que mais serviria a liberdade?
Nada pode ser arrumado, remendado, construído em casa. Tudo deve ser jogado fora e comprado de novo. Coisas, seres e vidas são trocadas com alegria. A alegria é o único objetivo da vida.
Joga-se, vai-se ao cinema e ingere-se Soma. A vida é isso.
Aldous Huxley não escreveu em 1932 uma obra-prima. O livro não é perfeito. Não é sequer bem escrito ( e ele sabe disso. A leitura da introdução escrita em 1946 é muito reveladora ). Mas é um livro forte, objetivo e de leitura obsessiva. Li-o em poucas horas, com prazer e ao mesmo tempo impressionado pelos acertos de Huxley.
Ele erra ao prever um sistema de castas. O mundo tem uma tendencia contrária: a abolição de diferenças e a absorção de todos os grupos diferentes. Desde que se tornem uma coisa só. O que vemos é a destruição de diferenças, aristocratas, proletários, tendem a sumir. Uma imensa classe média e meia dúzia de donos-do-mundo. E só. Fora disso, vácuo.
Mas não há como não se impressionar com seus acertos. A eterna juventude mental negando o amadurecimento da idade. O passado jogado ao esquecimento ( e tudo isso já é fato. Conheço quem leia apenas a literatura de Salinger pra cá e assista só o cinema de Spielberg em diante. Há quem pense que a música começou com os Beatles. Arte sem passado é arte sem comparação, arte fácil de enganar e de vender, ignorância bem-vinda, onde toda a cópia-pobre parecerá sempre rica-original ).
A poesia, assim como a religião ( verdadeira ), faz das pessoas seres pensativos/distanciados, que não dão coragem-alegria aos outros, e pior, deixam de desejar- consumir. Descobrem que há outra coisa além da matéria. E é o sexo desenfreado que ocupa o vazio deixado pela arte e pela religião. Tudo é o corpo. E o corpo deseja, deseja coisas que podem ser avaliadas, vendidas, estragadas.
No livro surge um selvagem: John. Uma de suas melhores tiradas é essa: tudo o que existe nesse "admirável mundo novo" é destrutível. Muda, se esvai, acaba. Nada é feito para durar, e ao homem nada pode restar a não ser um gozo efêmero. Ele também percebe que a vida pode não ser "busca de felicidade", mas talvez "busca de algo mais".
John conhece textos de Shakespeare. As pessoas riem com Shakespeare. Não conseguem entender mais seu mundo e riem do que não entendem. Têm horror a palavra família e acham a palavra "mãe" pornográfica. Pois em mundo de bebês de laboratório, sexo com procriação é pornografia, coisa de bestas.
Huxley vai fundo em sua raiva. E um dos momentos mais interessantes é quando uma mulher "civilizada" se apaixona pelo selvagem. Como os poetas e a Bíblia, a paixão também foi banida. Mas essa moça sente essa coisa esquisita pelo fato de que o selvagem é "estranho". Ele não a pega e satisfaz logo seus desejos. Ele demora, fala coisas complicadas, sente veneração, culpa. Essa demora, essa não-praticidade desperta nela a paixão. Que logo morre pela incapacidade de ser vivida. O selvagem, cheio de culpa, se refugia em martírio e ritos mal compreendidos.
Na introdução Huxley diz que se reescrevesse o livro faria diferente. Como está, ou o selvagem aceita a loucura da Utopia, ou volta ao barbarismo de onde veio. Huxley crê ser possível uma terceira via, a sanidade, onde a ciência se adapta ao homem e a religião existe para levar a consciência ao limite do conhecimento. Se o reescrevesse faria do livro algo mais filosófico...
Mas do jeito que está, da maneira seca, breve, compacta que está, ele obriga a que nós façamos mentalmente sua parte filosófica, ele nos instiga a pensar e pensar melhor.
Esse futuro de drogas para ser feliz, de imagens para sentir "uma nova sensação", de viagens para transar e de alegria "infinita" é nosso conhecido. A liberdade para ser consumido, as novidades que são vazias, os entorpecentes.... A estranheza que já nos causa quem fala em amor familiar, fidelidade absoluta, tradição artística, deveres e pecados... Ler o livro dá uma perturbadora sensação de que o mundo-pesadelo de Huxley está próximo demais.
Afinal, se meu avô estivesse aqui ele acharia loucura um mundo onde pessoas ficam trancadas em frente a tv vendo pessoas em casa trancada, onde se paga para ver gente em tela grande ser destruída, violada e torturada, mundo em que amigos se encontram para jogar jogos em tela e ficam calados em sua amizade fria, mundo em que lunáticos abrem um lap-top e se absorvem numa virtualidade passiva, e em que espertamente tudo é logo permitido e assimilado, desde que não ponha em risco o consumo e o movimento incessante da roda do futuro.
Admirável mundo novo!!!!

CLAMOR DO SEXO- ELIA KAZAN ( EXEMPLO DO MAIOR DOS PECADOS )

William Inge, no auge do teatro dramático americano, foi um dos grandes. Se Tennessee Willians e Eugene O'Neill dominaram a cena, ele e Arthur Miller vieram logo após. Edward Albee surgiria na sequencia e Thorton Wilder merece um lugar à parte. Neste filme de 1961, Inge consegue tocar num dos mais dificeis temas de qualquer drama: o mal sem intenção, o maior dos pecados: o sofrimento imposto a inocentes.
Estamos em 1928, nos cafundós do Kansas. Bud é o filho bacana do líder local. Dean é sua namorada. Os pais concordam com o namoro, os dois se amam, ninguém tem qualquer doença ou problema econômico e mesmo assim o sofrimento do dois é insuportável. Porque?
O pai de Bud é um ex-jogador de futebol, agora aleijado. Um macho milionário que deseja o "bem" do filho. Eis o primeiro problema: seu ego amassa o amável ego de seu favorito. Segundo problema: Dean é boa aluna e ama seus pais. Mas sua mãe vê nela um bebê e seu pai deixa tudo a cargo da mãe. Dean luta para ser sempre uma "dama", uma lady, o orgulho dos pais. Vem daí um terceiro e atroz problema: o casal se ama, se adora, mas não pode fazer sexo. Bud quer, Dean não. Depois, ao final, Dean quer, mas Bud não pode, afinal, ela não é uma puta...
A conselho do pai, Bud arruma uma amante, "para se aliviar". Bud detesta fazer isso, pois ela "não é Dean ", mas se conforma. Isso destrói Dean. O longo caminho da inocente garota rumo ao inferno, a forma desajeitada como ela tenta se tornar "fácil" é de cortar o coração. ( Confesso que chorei muito... ). Ao fim do filme, sem final feliz, mas doce a seu modo, fica uma terrível lição: nada temos de controlável na vida. Bud e Dean nasceram um para o outro, mas terminam com outras pessoas, distantes, conformados. Tudo dá errado.
Mas o que me emociona no filme não é isso. É o modo como é demonstrado o maior pecado humano ( sim inteligentinho, pecados irremediáveis existem. E são imperdoáveis. ) O pecado da difamação da inocência. O amor dos dois é real, é inocente, é forte. E todos, sem saber e querer, destroem esse amor. Cada palavra da mãe e do pai, sempre bem intencionados, é uma facada, um pecado irremediável. Dean enlouquece e é internada. Bud empobrece e se casa. Nosso coração é cortado ao meio.
Warren Beaty faz Bud. É seu primeiro filme. Quem leu o livro "Sex, drugs e rocknroll" de Peter Biskind, sobre a revolução em Hollywood, sabe o quanto Warren foi/é importante para o cinema que se faz agora. Seu Bud é correto, mas nas cenas finais, na fazenda, é brilhante. Natalie Wood faz Dean. E a partir das cenas de enlouquecimento ela nos dá uma atuação emocionante. O modo como ela olha e conversa com o psiquiatra e a maneira como ela corre e pula nos jardins do hospital são inesquecíveis. Para quem conhece a triste sina que Natalie viveu na vida real, ver o filme é ainda mais cortante.
Mas todo o elenco é superlativo. Não houve diretor de elenco como Kazan. O homem que lançou Montgomery Clift, Brando, James Dean e Warren Beaty, faz um filme de pungente beleza e emoção que se acumula até explodir. Belíssimo!

HISTÓRIAS MEDIEVAIS- HERMANN HESSE

Na década de 1920, Hesse traduziu e comentou uma série de contos medievais de Cesarius Von Heilsterbach, escritos originalmente por volta de 1240. Leio esses contos e me assombro com aquilo que um dia fomos. ( Fomos? )
Todos são contos de feroz moralidade. Não há neles a menor dúvida: o pecado existe e quem peca sofrerá no inferno para sempre. Essa verdade é verdade completamente aceita ( como hoje nos é aceita a evolução do macaco ou o big bang ), nada é questionado. Essa certeza leva então o homem medieval a se preocupar acima de tudo com sua alma, com o possível castigo, com suas culpas e sua vida no além. Tudo é pesado em face do que será, da eternidade. Todo ato, toda obra, toda ação é PARA SEMPRE. Não existe o esquecimento.
Um marxista moderno dirá simploriamente que isso se ajusta ao jogo de poder da classe dominante. Mas o que esse inteligentinho não dirá é que essa classe dominante também sofre essa culpa e esse medo. Montanhas de nobres arrependidos se enfiam em mosteiros, partem para a mendicancia, vão lutar nas cruzadas. O cerne da questão é bem mais complexo.
Um inteligentinho do tipo "numa boa", dirá que tudo era questão de liberdade sexual, que a igreja reprimia a sexualidade, e que essa repressão se tornava culpa. Esquece o inteligentinho que hoje, na era do sexo numa boa, continuamos criando culpas, medos, dores e doenças. E então?
Hesse foi um escritor do tipo mais perigoso que existe ( e que mais falta nos faz hoje ), o escritor que prova de tudo, que procura o que é oculto, o verdadeiro peregrino. Ele sabe que não se explica a idade medieval, o que se faz é se penetrar nela e perceber não seus porques mas seus comos. Como é essa culpa, como é esse pecado, como é essa visão de vida.
A época medieval durou mil anos. Nossa época tem pouco mais de duzentos ( começamos em 1789 ). Não estaria em toda mente européia, reprimida e latente, toda essa imensa história de trevas e de vida? E quanto mais voce, ó doce menino inteligentinho, reprime essa memória, não estaria mais a mercê dela? Pois o que voce vê no cinema, seja Batman, Harry Potter ou Von Trier, não são imagens e mitos medievais pobremente e envergonhadamente reelaborados?
Desconfio muito de todo mocinho anti-medieval. É como alguém de sapatos novos que nega seus pés sujos. E desconfio mais ainda do puro ser racional. Esse tem o fanatismo de monge travestido em objetividade vã. É preciso ser um homem completo, sem amputações. É preciso ter antiguidade, era medieval, renascença e modernidade vivas em si. Negar uma delas é fanatismo, cegueira, e pior, é se fazer refém dela.
Hesse andou por todas essas vias. Se encontrou no hinduismo, no budismo... provou sua vida, abriu suas ideias, tentou ser si-mesmo. Este pequeno livro é parte de seu caminho.