HERMES E AFINS

O homem só pode criar aquilo que já estava em sua mente. Parece um pensamento fácil, mas pense bem: o que vemos é aquilo que já, e desde sempre, estava em nós. Portanto, é impossível ao homem apreender a realidade. Porque só percebemos o que nossa mente consegue ver/entender/criar. Realidade e irrealidade são conceitos que não fazem sentido.
Criamos palavras para dar vida a coisas. E só o que tem um nome é por nós percebido. Mas no momento em que mesmo as palavras perdem seu motivo primal, em que até elas deixam de significar, toda a vida começa a se tornar sem sentido.
Mulher passa em praça etíope. Ela chora e sente fome. Ela sofre de forma total e irrecuperável. Vendo aquela mulher eu a percebo como parte daquela situação. Por detrás de seu sofrimento há toda uma história. Na sombra de seus ossos moram seus companheiros de dor, sua origem, seu terror, seus cantos e sua crença. Agora. Mulher passa em rua de Veneza. Ela usa óculos escuros e um casaco Prada. Em seu caminhar eu nada vejo. Ela não possui história. Nada significa, a não ser uma imagem/sombra que anda e desaparece. Apesar de não sofrer como a etíope ( será? ), ela é um ser de absoluta solidão. Para ela nada pertence, e ela a nada se dá. As ruas de Veneza são indiferentes a sua passagem.
É tudo uma crença. Voce cria aquilo em que acreditar. O problema é quando não se acredita na vida. O inconsciente cria sem parar, cria independente de tempo ou de espaço. Ele prepara o mundo e cria a vida. Nele mora aquilo que chamamos de Deus. Mas há mais:
Todo arquétipo vive nele e arquétipo é Deus. Deuses que tememos olhar, todos eles, de todos os tempos, alguns sem nome. De Dionisio a Odin, de Xangô a Krishna, milhões de seres que criam a terra, que criam a história e que influenciam a vida de todos, criando acidentes, lembranças, sinais. Símbolos que simbolizam aquilo que faz a vida. Símbolos que são tudo aquilo inominado. Deuses que são imortais, que sempre estão presentes, que nos guiam. Saber falar com eles, entender suas mensagens, eis o que é a vida plena.
Nossa vida não é nossa. Nossa mente não é nossa. O que eu sou não sou eu ( tudo o que tento controlar é minha máscara, raiz de minha doença e de minha cegueira ). Porque eu sinto, quando tenho a coragem de me isolar do mundo, ou quando estou tomado pelo amor profundo, ou pelo mais violento ódio, eu sinto que há algo sem nome em mim, algo que vive em meus joelhos, que pensa em meu fígado, que respira pelos meus pés. Eu sinto que há uma vida fora de mim, me cercando, me sussurrando, muda, incompreensível. Sinto que esse eu não é Paulo e não é Tony. Nem homem ele é. Rio que flui, raio que brilha ou pássaro que pousa. Sinto que esse ser é o que é. Inominável. E que ele pode me matar, me enlouquecer, ou dar sentido a vida.
Cada um de nós deve fechar-se em seu abrigo. E mergulhar nesse rio. Porque para salvar o mundo é preciso salvar voce. Individualismo? Cada rio é rio que pertence ao mundo. Iluminar esse rio é iluminar o mundo.
O Oriente ( India e China ) sairá de seu mundo passivo/interior/feminino e se descobrirá ativo. Cabe ao Ocidente a sabedoria de sair de cena e retornar a sua vida passiva/feminina/interior. É preciso que o Oriente se ative e que o Ocidente se recolha em sí. Os símbolos do ocidente precisam ser iluminados.
No Novo México existe um povo ( ainda hoje ) chamado "Pueblo". O chefe diz que os brancos não deveriam acabar com eles. Pois são eles que fazem o sol nascer. Toda manhã eles ajudam o sol a se erguer. Quando eles se forem, será sempre noite. O que pensar? Pode haver povo mais feliz que um povo que crê ser responsável pelo sol? Somos responsáveis por alguma coisa natural? E mais: um povo que acredita ser forte como o sol, que se une ao sol todo dia, que se pensa como um igual ao sol, torna-se ele mesmo, sol.
Sincronicamente captamos no rio do inconsciente mensagens que unem pessoas afim. E de repente me pego falando aquilo que voce queria dizer. E um artista-poeta consegue ser voz de todo um grupo disperso. E vorazes homens de aço começam a devorar o mundo ao mesmo tempo. E eu encontro voce e ouço sua voz e já te conheço. E falo o que voce fala e ouço o que eu queria ouvir. Pegamos do rio a mesma coisa, eu e voce. Alguns pegam a morte, outros a dor. A maioria nem sabe que o rio existe.
Sabendo ou não sabendo, chamando-o ou não, Deus está lá.
Sua ânsia é ansia de rio. Voce se droga para tentar chegar lá. Voce vai a igreja para tentar chegar lá. Pula em baladas futeis, grita em show de rock, paga terapias, engole pilulas. Voce tenta encontar voce. Tenta ver Apolo ou Eros ou Jesus. Não sabe que voce não é, pois na verdade voce está.
Agora, enquanto escrevo isto, sou um velho de 99 anos da Mongólia. Uma hora atrás eu fui um Bem-Te-Vi numa árvore. E acordei cachorro hoje. E saiba, se quando voce me ver eu estiver Tony Roxy ou Paulo Mané... não sou eu, é a persona que criei.
Há tanta coisa pra aprender......

CÍRCULO HERMÉTICO- MIGUEL SERRANO

Estar diante de uma estante de livros, em sebo ou livraria, é como estar num trem: as paisagens vão passando e em algumas eu quero parar. Fuço as prateleiras, leio trechos, admiro capas, tento lembrar quem é aquele autor, me surpreendo. Pego em sebo este livro. Raro volume, manuseado, edição de 1970.
Miguel é um diplomata chileno que no final dos anos 50 privou na Suiça da amizade de Hermann Hesse e de Jung. O livro, breve e sem ambição, é um retrato afetuoso desses dois senhores. Primeiro Hesse.
Fica desse "pássaro" uma imagem de imensa doçura. Hesse morreu conseguindo voltar a ser criança. Ele se maravilha com a vida. Árvores, sol, lua, neve, em seu solitário retiro suiço, o velho escritor andarilho se maravilha em solidão. As lições que ele passa são sublimes. Escreve uma parábola sobre o homem que se tornou árvore e deixou de se transformar. Pois para Hesse, a vida é uma transformação, e só vive essa VIDA quem se deixa ser levado. O homem que é hoje um inseto, depois uma pedra, um cão e uma árvore. Para Hesse, tudo é um círculo e nesse círculo nós não somos o centro ( pois centro não há ), somos parte sendo nada.
Há muito de India e China em Hesse. Ele ama a impessoalidade do Oriente, os templos não assinados, a persona fraca, a passividade. Hesse conta algo interessante: Para um indiano típico, o pensamento é algo que se observa. Ele se coloca na posição passiva, o pensamento acontece independente de sua vontade, então ele assiste seus pensamentos. No ocidente nós somos aquilo que pensamos. Não nos esqueçamos que para a fé cristã, o pecado se faz em pensamento.
Depois o autor conhece Jung em Zurique, Jung já com mais de oitenta anos. De Jung ele absorve a imagem de que toda a transformação psíquica só pode ocorrer através do amor, mas não o amor como o conhecemos, deve ser aquele tipo de amor que enfrenta a morte, que vai além da vida, do medo. Esse amor só existe no que é proibido, no amor que não tem objetivo, no amor onde os dois se fazem um, na cumplicidade contra o mundo. Sem casamento, sem filhos, sem construção alguma. Amor que deverá morrer e matar os amantes, para que assim eles possam morrer em sua persona e mergulhando no inconsciente, renascer como sí-mesmo, satisfeitos com sua unicidade, auto-suficientes.
Conta-se a cerimônia de casamento dos Siddhas na India: os dois jovens, castos, vão à floresta, nús, e lá ficam por meses. Dormem juntos, se banham e trabalham. Moem grãos, confeccionam. Finalmente, ela irá massagear seus chakras, ele irá acariciá-la. Faz-se então a união. União que não é sexual, é muito mais que isso. Ele não irá ejacular, seu sêmem deverá jorrar "para dentro". O amor entre eles não será um amor para fora, será todo para dentro. Um amor que não é morte ( pois não engendra vida ), é um amor que busca o mergulho no incorpóreo, no absoluto. Os dois se separarão após essa noite. Os dois estarão prontos para a auto-suficiência.
Jung fala também que o ocidente viveu um profundo trauma psíquico com o advento do cristianismo. Ao contrário do oriente, que viveu todo o desenvolvimento de suas religiões, as fés e crenças da Europa foram subitamente sublimadas por uma religião importada. Todo o crescimento e amadurecimento dessas religiões nativas foi abortada, reprimida e jogada ao inconsciente. As imagens estão todas trancafiadas, e quanto maior a distância que nossa sociedade vive delas, maiores os surtos de barbarismo.
Comprei também um livro recém lançado de um jovem filósofo francês. Abro o livro e pesco uma frase: " Uma sociedade que se baseie no sexo será sempre uma sociedade incompleta. Pois o sexo é por sua natureza, ser incompleto sempre. Essa sociedade será então marcada pelo vazio, pela ansiedade e pela falta. Sexo só se completa no hermafroditismo, é impossível ser feliz sózinho numa sociedade sexualizada, e pior, é impossível ser feliz a dois numa sociedade sexualizada, pois o eterno flerte torna-se imperativo. Basear uma civilização no sexo é caminhar para a infelicidade. O século XIX, reprimido, deu ao sexo um valor que a repressão lhe fantasiou. Somos os filhos dessa anomalia."

A VIDA É SONHO- CALDERON DE LA BARCA

O enredo: Um rei sabe através dos astros que seu futuro filho será um tirano. Assim que ele nasce, ele o deixa trancafiado em torre e sem saber quem seja. Mas, anos depois, esse rei sente dúvidas e resolve fazer um teste: narcotizar esse filho/prisioneiro e ver como ele se sai ao se tornar rei. Ele despertará e viverá como soberano por um dia. Se for um homem do mal, será novamente adormecido e ao acordar pensará ser tudo um sonho.
O que ocorre? Ele torna-se um rei sem limite, fazendo valer apenas seu desejo. Trancafiado outra vez, pensa que aquele dia foi um sonho, e com pesar, percebe não ter aproveitado aquele momento onírico. Sendo depois libertado por uma revolução popular, ele se tornará um monarca exemplar, pois agora tem a consciência de que "viver é um sonho, e cabe a nós viver o sonho com retidão, estar pronto para o despertar."
Calderon foi o grande dramaturgo espanhol do século XVII. Escreveu muito, teve imenso sucesso e como todo homem de seu tempo, viveu várias vidas ( soldado, poeta, padre ). Não fosse uma peça cheia de simbolismo, A Vida é Sonho tem ainda uma escrita admirável e uma fala que se tornou muito famosa:
Que é a vida? Um frenesí
Que é a vida? Uma ilusão
uma sombra, uma ficção;
O maior bem é tristonho
Porque toda a vida é sonho
e sonhos, sonhos são.

Ora, se a vida é sonho, então toda a ânsia por poder e por coisas transitórias nada vale. O que vale é a preparação para o despertar, levar consigo aquilo que é para sempre, que está além do sonho. Usufruir do sonho seria sonhar bem, e sonhar bem é ter consciência desse sonho onde se está. Século XVII... momento brilhante de nosso caminho rumo ao......

SINDBAD, O MARUJO ( UMA TERRA JOVEM, JOVEM DEMAIS )

Não existe um autor de Sindbad. Como acontece com a Biblia ou com A Ilíada, o texto parece ter se auto-fecundado. É coisa da natureza. E como todo texto fundador, trata-se de uma viagem ( que na verdade são sete ). Tudo é maravilhoso aqui e tudo é estranhamente crível. As aventuras se sucedem e tudo o que voce deseja é ler mais e mais. Prazer de verdade, claro e límpido.
O texto que me chega é o mais fiel possível. Coisa de 770 D/C. Arábia...Bagdá...é surpreendente como eles nessa época estavam muito a frente da Europa. Possuem uma delicadeza, um amor a etiqueta, a limpeza e a educação que deixa a Europa como um tipo de curral de cavaleiros toscos.
O livro me faz pensar, e o pensamento que ele me traz é este:
Em 770.... Quantas tribos existiam no Brasil? Línguas que não mais se falarão e bichos que há muito sumiram de nossa vista. Imagino a floresta sem fim e um indio nadando no Pinheiros. Tribos em Marajó e no sul. E tribos na Argentina e no Perú ( Incas? ). Onças e Botos aos milhões e povos se espalhando pelo México e pelo Canadá. Cada um com sua língua, seu Deus e seu corpo. Contando uma saga e criando mitologias.
Penso que em 770, enquanto em Bagdá se redigia o Sinbad, na Irlanda os monges católicos andavam em pregação. Matilhas de lobos vagavam pela Alemanha e druidas viviam na França. Vikings na Noruega, Saxões na Inglaterra e Íberos na Espanha. Quantos ursos ainda viviam no continente e crenças desapareciam para sempre. Tribos sem fim pela Russia.
Penso na India e na China de 770. Na imensa diversidade de vidas e de vozes. Nas ilhas do Pacifico, nos reinos da Àfrica e na Austrália onde os aborigenes percorriam as estrelas. Maoris na Zelandia, eskimós no norte e os comanches, sioux, arapahos.
Em 770 uma enorme variedade de vozes, de visões sobre a vida, de peles e de rostos. Miscelânea de costumes, modos de ver, jeitos de pensar. Vida sem fim.
Penso que agora todos nós somos poucos. Todos estamos nos tornando coisas uniformes. Como gado de raça: mesmos desejos, mesmos valores, mesmos medos. E sinto que sendo assim somos mais fracos como homens, mais vulneráveis como espécie e muito mais pobres como alma. Mesma música, mesma roupa, mesma comida.
Para onde ir quando a vida entrar em crise?
Porque Sindbad me faz ver que toda crise é solucionada com a redescoberta do reprimido. A era medieval sendo superada pela lembrança da Grécia, a decadencia de Roma revitalizada pela fé católica, o novo sempre vem de uma civilização que se pôs a margem do poder. Mas se tudo for uma só coisa, de onde virá a novidade?
O oriente é o inconsciente do mundo e sempre foi de lá que veio o sopro de vida nova. A Grécia brota da Pérsia, e as religiões ( judaísmo/catolicismo/islamismo ) nasceram por lá. Aliás, religião sempre foi uma coisa muito fraca na Europa. Religião puramente européia é coisa que nunca existiu. Mas, se o mundo perder toda sua diversidade ( e desde 1350 estamos nesse caminho ), se o oriente, a Ásia toda, se tornar uma coisa só, de onde fazer brotar a nova fase, a nova crença, o novo mundo?
Cada ilha do mar da India era uma civilização. Cada canto da Indochina era uma fonte de fé e de filosofia. Pra onde foram esses modos de pensar? Uniformização. Odeio essa palavra.
Sindbad é a celebração desse mundo rico, desse mundo onde cada esquina é outro universo, em que tudo é diferente em cada reino, em cada ser. Sindbad é então a pura celebração de um planeta jovem, exuberante, enérgico, e que ainda se surpreende todo dia.
Sindbad é o homem plenamente saudável.
PS: Começo a pagar uma dívida que tinha comigo-mesmo. Começo a estudar Jung. Uma frase dele me pega ( e é exatamente o que eu já pensava ): O inconsciente é sempre religião. Todo inconsciente é religioso e temer ou não saber ler a simbologia religiosa significa temer ou reprimir a riquesa da vida do inconsciente. Porém, o homem existe para se individualizar, para se tornar um ser-sí-mesmo. Ora, isso só ocorre com o mergulho no inconsciente, com a alfabetização da simbologia religiosa. Mitos, religiões, poemas, essa é a linguagem de todo saber profundo, saber que é a vida da terra. A Europa é o árido mundo sólido do ser, o principio masculino; o oriente é o principio religioso, inconsciente, passivo e simbólico. É de lá que flui a fonte da vida, a fecundação, as novas etapas, a vida. Útero. Sindbad me cai nas mãos na hora exata.

DIA DE FINADOS- CEES NOOTEBOOM

Um homem anda por Berlin filmando aquilo que ninguém filma: pés sobre a calçada, pegadas na neve. Ele é holandês, calado, e adora a solidão. Mas tem 3 amigos, que costumam se encontrar em bar e filosofar sobre a vida e Berlin. Esse holandês conhece uma mulher misteriosa, com quem terá uma relação silenciosa ( o que não impede o sexo ) e a quem seguirá à Espanha. Ao final, ele descobrirá que o que filma é aquilo que jamais muda no tempo do mundo: sombras, pegadas, pedras, vento. Ele, que é viúvo, ansia pelo não-tempo, pelo que perdura.
Com esses temas este poderia ser um livro maravilhoso. Quase chega lá, mas não é. Pois se nos convencemos de sua profundidade, de sua sinceridade ( e de sua contemporaniedade ), nos desiludimos ao ler certos chavões que o texto exibe. Nooteboom escreve algumas linhas de banalidade absoluta, dignas de qualquer livrinho pseudo-artístico, e essas poucas linhas derrubam tudo de sólido e verdadeiro que o livro tem. Nos embrenhamos em toda aquela filosofia pessimista/atéia, e então somos desligados do encanto por frases tipo "Janelas com chuva como lágrimas de solidão"....
Nooteboom é inquieto, levanta questões pertinentes sobre politica, história e filosofia, mas escreve sem a altura que esses temas merecem. É tipico caso de autor de ambição maior que seu talento.
Cees Nooteboom está vivo e é" O" autor da Holanda. Este livro consta dos tais 1000 livros para ler antes de morrer. Waaaal... há melhores.

CEES NOOTEBOOM E MAIS BENJAMIN E AINDA HEGEL

Estou lendo um autor bem interessante: Cees Nooteboom. É o principal autor da Holanda hoje. Escreve filosoficamente, é bastante materialista, mas é um materialismo em crise. Tenta abarcar tudo o que importa agora: a falência da sensibilidade, a vulgarização da história, a falta de rumo da existência, a memória persistente, o fim de tudo todo o tempo. Sobre o livro que leio hoje, falo depois. Quero antes citar algumas coisas de interesse.
O século XX é o século da ironia. Tudo é olhado com dúvida, com distanciamento. Ora, com ironia não se dá um passo. Se voce não se entregar sem reservas a nada, se voce não tiver fé em coisa alguma, nada será feito, produzido, tentado. A vida se torna um sempre "quase", um talvez, um relativo quem sabe ou outra vez. Mas, estranhamente, o século XX é feito e destruído na Alemanha, país desprovido de ironia.
Alemanha é nação da punição. O alemão está sempre se policiando, se vigiando e se punindo por seus erros. É um povo que ama seu sofrimento: Wagner, Beethoven, Nietzsche, Rilke, Freud e Strauss. A imagem de Nietzsche abraçado ao pescoço de um cavalo e pedindo perdão a todos os animais da terra é a imagem da Alemanha. Ela faz a guerra e sofre a derrota, sempre. Sua ânsia é a vontade de perder. Porque isso?
É um país de nevascas, de vales escuros, de florestas eternamente em névoa, de montanhas isoladas. Tudo na Alemanha era mistério: cavernas, bruxas, bosques, mitos, sangue em abundancia. De toda a Europa é o país que pior se adapta a modernidade, a razão fria, ao tempo sem segredos. Mas, como povo guerreiro, ele corre rumo a liderança, sacrificando sua "alma". Dá-se a irrupção sazonal do inconsciente, do espírito, do que foi negado. Já a Holanda é seu oposto: uma nação sem montanhas, sem cavernas, plana e simples, exposta, anti-segredos, reino da burguesia, dos bancos, do pensamento moderno, onde tudo é reto, claro e sem mácula.
Nooteboom fala ainda dos humanos extintos. Características humanas em vias de desaparecer. Humanos tímidos. Ninguém mais é timido. Todos sabem posar para fotos, criar nomes falsos, sair de casa sozinho. O rubor está sumindo, a mocinha de seio rosado e bochecha rosa, olhando para o chão; o mocinho timido, sonhador, romantico velado, gaguejante. A timidez foi morta pelo mundo do espetáculo, pelo show, pela vida em escritório, pelo cinema americano, pelo rocknroll. O respeito é outro valor extinto. Tudo o que importa é a minha verdade, e se a minha verdade é só minha a sua verdade me é irrelevante. Não respeitarei alguém que deseja ser mais verdadeiro que eu mesmo. Não respeitarei ninguém, pois respeito é negação de si mesmo. Esse pensamento torto, bobo, ridiculo se torna dominante com a tecnologia ( onde tudo é relativo e sem hierarquia ) com o fim da timidez ( timidez que traz a vida interior ). Para o futuro haverá a extinção da verdade, do subjetivismo e da solidão.
Tudo isso nas 130 primeiras páginas de Nooteboom.
Uma citação de Walter Benjamim:
"... é assim que o anjo deve ser representado perante a história. Com esse olhar crispado voltado ao passado ( ele fala de uma pintura de Paul Klee ). Onde nós vemos um encadeamento de fatos que significam nossa história, o anjo vê apenas um momento único de catástrofe absoluta. Esse anjo gostaria de ficar e ressuscitar os mortos, abrir a luz nos escombros. Mas do céu desce um vento irresistível que arrasta suas asas ao porvir. Os escombros, o entulho se agiganta a seus pés alcançando montanhas, mas o anjo precisa voar, rumo ao destino. É a essa tragédia que damos o nome de progresso".
Uma citação de Hegel:
" Voce está num trem bem iluminado. Voce observa por toda a viagem o ambiente e seus companheiros de viagem. Rostos, vozes, roupas, gestos. Voce crê então conhecer a realidade daquele vagão. Então voce pede a outra pessoa para descrever aquele vagão, descrevendo inclusive voce. E descobre que a realidade para ela seria uma aberração para voce. Pois ela não considerou nada do que lhe é mais real. Ela não percebeu seus sentimentos, seus desejos, seu passado, aquilo que voce ama em voce e renega em voce. Ela simplesmente não conheceu a realidade. É por isso que toda a história do mundo é impossível de ser apreendida."
Nooteboom, como todo grande artista, vai mais longe: É por isso que a Verdade não existe.

MANDA PRA DEBAIXO DO TAPETE

A ciência nos deu a cura de algumas doenças e remédios pra deprê. Carros e aviões. Mas não nos deu uma forma de lidar com casamentos, amizades, pais e enterros. E é nessa hora, a hora da verdade, que a gente percebe que fomos roubados.
Isabel era minha prima. Mesma idade, a gente cresceu brincando. Ela falava baixo, era vaidosa, boa gente, cheia de amigos. Adorava os pais.
Sexta de noite, voltando do teatro, Isabel levou um tiro no peito. Metade do corpo se esparramou pelo carro. Os assassinos, de moto, se foram... Isabel deixou dois pais. E um lugar vazio.
O corpo, recomposto e maquiado, foi enterrado. E o que é um enterro? Um monte de gente triste, sem saber o que fazer, o que sentir, o que falar. O corpo baixa à terra em meio aos coveiros, e todos ficam aturdidos como bichos que nada entendem. E eu, que em nada creio, penso, cheio de ódio, naquilo que a tal modernidade nos tirou. Roubou de nossa vida o velório em igreja, o padre consolador, o ritual do enterro. Qualquer tribo primitiva sabe como lidar com isso, nós, modernos, não. Assim como não sabemos lidar com nada que realmente importa. Tudo é varrido para debaixo do tapete, para o inconsciente. Afinal, o que nos pedem é seguir em frente, sempre. ( O melhor é continuar a trabalhar!!!! )
Onde a transcendencia? Onde o luto profundo e reparador? Onde a dor da tragédia e a catarse? Tudo o que nos oferecem são flores e trabalho, a vida que segue, um antideprê e uma terapiazinha... e todo o significado da morte e da vida passa a ser não entendido. Nos tornamos menos que bichos, somos um conjunto de células, nosso sentimento e nossa dor é quimica, nada mais que quimica. Óxidos e nitratos que pensam.
É tudo uma merda, uma imensa merda. Sabemos tudo e nada sabemos na hora em que o negócio fica sério. Os pais, desamparados, pessoas da época romântica jogados na era do trabalho, ficam lá, ao lado da cova, agradecendo a quem compareceu ( muitos ) e em desamparo completo. Onde o chefe da taba? Onde o xamã? Onde o consolo que consola? Nada, absolutamente nada. Tudo trancafiado no inconsciente, afinal, toda essa vida religiosa/simbólica apenas atrapalha a caminhada rumo ao futuro/trabalho.
Eu sinto ódio. Muito ódio. A velha Bíblia estava certa, olho por olho. Não me venham com "vejamos", "por outro lado", "a sociedade"; morte se paga com morte, os dois covardes devem pagar, ser enforcados na minha frente, assados em fogo brando. Eles devem pedir perdão de joelhos e serem executados com risos e festa. Te deixo chocado? Falo aquilo que voce não tem coragem de dizer. Aquilo que foi trancafiado no seu cérebro, lá no escuro, junto com sonhos de familia feliz, desejos de liberdade e fé na vida. Os dois foram ruins, e creia, a maldade é incurável e imperdoável. O relativismo da ciência nos roubou também essa certeza.
Uma menina senta-se ao meu lado no velório. Vestido longo, cabelo com tiara, voz fininha. Talvez 7 anos. Ela é exatamente como Isabel foi um dia. Ela precisa ser protegida. Ela precisa ter um final mais digno. Ela é o único sentido que nos resta. A continuação da história.
Minha mãe pega meu braço. O pai de Isabel não quer sair do lado da filha. O céu está azul. Um pássaro passa voando. Algumas pessoas estão no túmulo de Senna.
Se Deus não existe e nunca existiu, eu o invento. Se os anjos fugiram da Terra com desgosto, eu falarei com eles. Se a alma é apenas o sonho de alguém que pensa demais, eu pensarei muito. O vale da morte, a dor de um pai, a saudade de um amigo... apenas isso importa.

VIDA- KEITH RICHARDS, COMENTÁRIO CONTRADITÓRIO

Os Stones fizeram em 1964 um contrato com a Decca muito melhor do que aquele dos Beatles com a EMI. Se tornaram a banda mais rica do mundo e a mais paparicada pelos milionários. Ao mesmo tempo posavam de reis dos revolucionários e dos insatisfeitos do mundo, papel que ficaria muito melhor em qualquer cantor de blues da Geórgia.
A história dos Stones é sempre uma história de muita sorte ( e é isso que irrita aqueles que insistem em crer que arte é sofrimento ). Lendo o livro de Keith, o que vemos é uma vida onde tudo sempre dá certo. Ele não morreu jovem, logo ficou rico, sobreviveu aos punks e aos grunges e tem uma imensa e saudável familia. Chega a dar raiva!
Keith é injusto várias vezes. Resmunga sobre Jagger. Diz que em 1983 Mick tentou tomar os Stones para si, e que em 1985 Jagger cometeu a deslealdade de se lançar em carreira solo. Ora Keith! Voce ficou oito anos como um peso junkie nas costas de Jagger! Quem já conviveu com um viciado sabe o quanto eles são chatos! Jagger levou a banda sózinho entre 73/81. E cá entre nós, sem Mick Jagger nos vocais, voces seriam no máximo um The Who.
Isso é chato no livro. Keith tem um ego do tamanho do de Jagger, mas ele posa de doidão-blueseiro, o rei da honestidade. Será? Se o Mick de 1961 morreu nos Rolls Royce e nas noites de Cannes e Monte Carlo, o Keith timido e humilde de 1962 se foi nas carreiras de pó e nas agulhas de heroína ( e dá uma sensação ruim vê-lo defender o bom consumo de drogas ).
Mas ninguém é perfeito. Mesmo cheirando carreiras nos palcos entre uma música e outra, mesmo tendo feito dois dos piores discos da história ( Dirty Work e Steel Wheels ), mesmo tendo feito aquele show lastimável em Copacabana, quem sabe o que é rocknroll sempre vai entender o porque de sua importância. Eles são espertos, maus, soberbos, egocêntricos, auto-centrados e nada sofridos. E por isso são vencedores, o tipo de cínicos sexies, coisa que os Beatles ou o U2 nunca puderam ser ( estavam ocupados em ser os tais "artistas relevantes" ). Os Stones sempre souberam que rock é irrelevante, que depois de Chuck, Elvis e Little Richard todo o resto foi diluição.
Foda-se! Eu tinha de defender Mick Jagger ( que tem a elegância de se manter calado ). Dizer, que ruim Keith!, que Mick tem o pau pequeno é muuuita sacanagem!
Mas fazer o que? Keith é a própria imagem da coisa, gostar dele é o teste para se saber se voce está por dentro do que seja rocknroll ou se voce está irremediávelmente por fora. Se a sua turma é do carrão/garotinhas/riffs de foder ou quarto/lágrimas/melodias tristonhas.
A gente pode dizer que o cara tem muita, muita sorte...

VIDA, UM LIVRO ( ENERGÉTICO, LIBERTÁRIO, VITAL ) DE KEITH RICHARDS

O maior elogio que se pode fazer a Keith Richards é chamá-lo de negro. O objetivo dos Stones sempre foi esse: ser uma banda de black music, de preferência como as de Muddy Waters ou John Lee Hooker. Em 1965, nos EUA, músicos da Stax lhe disseram pensar que Satisfaction fosse alguma canção americana. Era dificil para aqueles negros crer que aquela música fosse feita por branquelos da terra dos Beatles. Esse foi o maior elogio que KR poderia receber.
Ele sempre foi do blues. Assim como Charlie Watts foi do jazz e Jagger do soul. E mesmo quando ele foi country ou disco, era um tipo de country-blues e disco-blue. Quando em 1973 Keith foi morar na Jamaica, os batedores de tambor das favelas jamaicanas logo o chamaram de negro. Um garoto feio de Dartford-England, nascido em meio ao ruido das bombas nazi, ter conseguido ser um preto do Tennessee e um rasta da Jamaica... bem, é um milagre.
Keith não faz drama com nada. Sua lição é: foda-se! Da infancia rebelde, filho único de mãe alegre que traía o pai com o vizinho mais jovem, aos momentos ( vários ) de quase-morte, nada vira drama, nada é lamentado. Ele é muito forte. Keith Richards é um cowboy, um pirata, e porque não, um herói.
O livro é cheio de momentos curiosos, de coisas que mesmo os fãs não sabiam, e melhor, nada é muito fantástico. Ele não aumenta, não mitifica, escolhe ser simpático, mas nunca hollywoodiano. Ficamos sabendo que Bobby Keys é seu melhor amigo, que Charlie Watts é um dandy que só gosta de jazz. Me chóco ao saber o quanto KR chama Brian Jones de escroto, um cara que se achava o máximo, um músico que deixou de tocar e que se afundava em auto-piedade. Keith conta a noite em que Marlon Brando tentou ir pra cama com ele e Anita ( sua esposa ), e melhor, descreve o clima de Londres em 65/67: Londres com seus pintores Pop, os herdeiros de sangue azul se entupindo de LSD, a descoberta de que tudo era permitido, os escritores, os cineastas, as groupies. Mick Jagger como um atlético conquistador, KR como um cara que precisava de carinho, dormir junto, ter alguma história.
As drogas. Ele passa tempos enormes vivendo por e para elas. Na década de 60 drogas eram coisa desconhecida. Eram usadas como descoberta, afronta, porta para fora da sociedade. Nos anos 70 elas se tornam moda, são usadas como documento para ser "in", e nos 80 são remédios para fazer tudo funcionar. Hoje são coisas para divertir, produto para criar uma sensação rápida e passageira.
Keith nunca demonstra o menor arrependimento. Ele usava drogas porque lhe davam prazer. É só isso, nada mais, e ele deixa isso bem claro. Tomava uma droga para acordar, uma outra pós-café para ficar ligado, droga de trabalho, droga para se acalmar, droga para pensar melhor e droga para ficar 3 dias de pé. Ele diz sentir saudades das drogas antigas, que não são mais fabricadas. Conta que o segredo para ter sobrevivido é nunca ter tomado nada de segunda, sua cocaína era Merck, direto do laboratório, tão pura que flutuava no ar; sua heroína era papoula 100% tailandesa, barbitúricos de farmácias de confiança e por aí vai... não há nada de sofrido, nada de culpa, nada de "agora vi a luz"; e também nada de "veja como sou louco". As loucuras que ele conta são nada glamurosas, e nenhuma é sexual.
Pesada é apenas a história de Anita, a maravilhosa Anita, modelo alemã, ex-Brian Jones ( tem uma história muito boa dela e de Keith fugindo de Brian no Marrocos ), mais doida que KR e que tinha conexões com Andy Warhol, Fellini e Roger Vadim. Nos anos 70 ela entra na paranóia pura e o casamento naufraga. KR é salvo por Patti Hansen, uma saudável modelo americana, sua esposa até hoje. È bonito perceber então, já lá no fim do livro, que Keith nunca mudou. O guitarrista espinhudo do Ed Sullivan Show é o mesmo cara do Piratas do Caribe. Como eu, Keith nada joga fora. Se ele descobre rap, reggae, disco, funk, o que for, ele os adiciona ao que já conhecia; ao contrário de Jagger, que para se reciclar precisa jogar fora o passado, KR preserva e revaloriza sempre tudo o que foi. Ele soma, nunca substitue.
Gram Parsons é o cara a quem ele tece os maiores elogios. É ótimo ler o que ele fala sobre amizade. Assim como é legal ver o que ele diz sobre John Lennon, um cara que aparecia sempre em seu apartamento, que tentava seguir seu ritmo de drogas, mas que sempre terminava a noite no banheiro, desmaiado ao lado do vaso e dizendo: "Onde estou?"
Stones e Beatles se comunicavam sempre: " Hey John, estou com uma nova aqui, voces vão lançar algo agora?...Então espera 3 semanas, eu lanço agora e voces depois." Paul foi procurar Keith quando brigou com Heather Mills ( 2005 ) na Jamaica ( Keith mora lá, vizinho de Bruce Willis ), os dois chegaram a compor juntos e Keith disse a ele que a grande diferença entre Beatles e eles é que os Beatles sempre foram um grupo vocal. Tudo neles tem a voz por base, a parte instrumental só como acompanhamento; os Stones são um grupo instrumental, a base é sempre um riff, uma levada de guitarra. Brancos e negros, certo?
Ele conta como gravaram o Banquete dos Mendigos, em gravadorzinhos Phillips, apenas violões em volume alto que se distorciam pela pouca potência do gravador. Um tipo de som que hoje se perdeu. Conta a saga das gravações de Exile e desce a lenha em Jagger.
Não vou falar dessa parte. Acho dificil. Mas concordo que MJ tentou ser David Bowie na década de 80 ( todos tentaram e se ferraram. Bowie em 1983 estourou como ídolo teen-inteligente, todos os caras de sua geração tentaram operar o mesmo milagre, de Ferry a Rod, de Paul a Eric ). Keith acha um absurdo Jagger querer ser Bowie, pois Jagger é muito melhor que Bowie, o que ele fez foi se rebaixar. Dá pra discordar?
Keith diz sonhar em sempre fazer blues, Jagger odeia recordar Exile ou Let It Bleed.
É lindo ler sobre seu reencontro com o pai, trinta anos sem o ver. O pai, velho, tornou-se um tipo de pirata, um velho de pub, conquistador, forte, duro, o cara. ( Há uma foto linda no livro, os dois juntos ).
Já no fim, quando diz passar muito tempo lendo, Keith toca numa coisa Junguiana, não sei se sem querer. É quando ele fala dos horários. Que é uma besteira da revolução industrial, um conto do vigário, essa coisa de que devemos comer ao meio-dia, dormir oito horas por noite... tipo: hora de comer, hora de acordar, hora de transar...Foda-se, Keith diz que o certo é comer quando dá fome, dormir quando se tem sono e transar quando há desejo. E a droga entra nisso também. Cada um tem seu tempo, seu limite, seu ritmo, cada um é um.
E vem daí aquela fala linda que ele escreve, de que ele sabe ser um simbolo, e que todo cara que se fode trabalhando num emprego de merda, com um horário cruel e uma vida sem sal, tem dentro de si um Keith Richards asfixiado e que cabe a ele representar esse cara que insiste em viver dentro de cada um.
Isso é lindo. E o livro é lindo.
Dá uma puta tristeza quando acaba. A gente pensa: Que merda, eu estava me acostumando a ficar com Keith toda tarde! Que bosta de saudade desse cara do caralho!
Após ler o livro eu não aumento meu amor por Keith Richards. Isso seria impossível. Ele é meu anjo do mal desde 1974. Mas aumentou meu respeito por ele. Keith Richards é um grande cara!

MARIA SCHNEIDER

Existem milhares de Marias hoje. Mas como bem disse Keith, uma coisa é ser doido agora, com mapa e bússola já feitas pelos doidos anteriores; outra bem diferente é ser o navegante sem mapa, vivendo e criando ao mesmo tempo uma rebeldia e uma loucura sem testes feitos por outros. Voce entra na piração e não tem nenhum exemplo pra te guiar. Maria foi dessas.
Ela estava pouco se lixando para o cinema. A menina começou pelo muito alto, pelo perigosamente alto: Brando e Bertolucci em Último Tango.
O mais intenso e enlouquecedor dos atores, no melhor desempenho "bruto" que um homem ousou exibir. Assitir o filme é ver um cara totalmente nú. Brando se exibe inteiro, sem medo e com imenso sofrimento. E Maria peitou o cara. Enfrentou o queridinho da esquerda cinéfila ( Bertolucci ) e o bicho doido gênio ( Brando ). E na sequencia mergulhou em Antonioni ( o niilista ) com Jack Nicholson ( o cínico ) na obra-prima O PASSAGEIRO.
Ela era apenas uma mocinha bem-lôca. Numa época em que ser assim não era moda e portanto nunca era fake. Correu riscos, partiu para excessos e se arrebentou toda. Viveu enfim.
Ter chegado aos 50 e poucos anos foi um milagre.
2011, a mais policiada das épocas não era pra ela. Se houver um além, a gente se vê por lá.

BELEZA E TRISTEZA- KAWABATA ( A BELEZA DO JAPÃO E DAQUI )

Livro final de Kawabata. Quem quiser o conhecer leia O PAÍS DAS NEVES. Ou KYOTO. Este é o pior. Mas aqui se fala do conceito de beleza japonês. A beleza ( sentido absoluto da vida para eles ), como retensão e repressão. O que é belo é aquilo que se liga a depuração máxima, tensão de espera, atenção em seu limite.
O Japão é pequeno. E é frio. Para sobreviver sempre foi preciso saber guardar, saber valorizar o mínimo. Cada flor que nasce é uma paisagem, todo canto de jardim é um deslumbre. O japonês aprende então a olhar o detalhe, a saborear com lentidão tudo que se desvanesce.
Que outro país excursiona para ver uma árvore florir?
Quando japoneses fotografam tudo, não existe ali o deslumbramento, o que mora nesse ato é a tristeza pela beleza que morre. A foto é a tentativa de a guardar viva.
Prende-se o cabelo, disciplina-se o corpo, cria-se um ritual para falar, para caminhar, para decorar, para o chá e a morte. Apruma-se a elegância. Cada gesto é um refinamento ( repressor e anti-natural ) de um ato grosseiro. Congela-se a animalidade e ritualiza-se a carne ( até o suicidio, elegancia na morte, ritualização do inescapável ).
A beleza torna-se tristeza, porque tudo o que é belo passa a ser retensão de impulso. Nada é natural, tudo é calculo. A beleza então confunde-se com melancolia ( e quantos ocidentais não sofrem dessa doença de pensar que a alegria nunca é bela? ).
Na Europa, no mundo árabe, isso não se faz tão acentuadamente. A exuberância é muito maior, a beleza é feita da tensão entre real e ideal; e na África toda beleza é sempre feliz. A exuberância como lei. Quando a imensidão sem fim das Américas nasce, a beleza se torna indomável, tudo o que é bonito é forte, grande, potente e natural.
Quem me conhece sabe que adoro o ritual e a religião do Japão ( religiões ), porque lá vejo o absoluto oposto ao que sou e sinto. Pois sou o desregramento da mata atlântica, o excesso de praias perdidas e o sem fim dos desejos ocidentais.
Nada disse sobre o livro do Kawabata. Mas o livro é bem isso. Falei....

FORA DO AR

Fora do ar a quatro dias. Às vezes fico assim, sem me reconhecer. Ou me sabendo de verdade.
Quando fico nesse estado de foradoarzice sinto tanta vitalidade dentro do meu peito que chego a sentir que a vida é apaixonante. Mas não o apaixonante que a gente fala da boca pra fora. Não. É saber que a vida é leve, que o deixa ir, deixa sangrar mais que vale.
E minha mente se solta e se vai sem saber nada. E meu corpo vai atrás.
Coisas rolam. Coisas vêm. Doce 1983, doce 1992, doce 1998, doce 78. Ver o rio e afundar a cara naquela lama toda. Frases pra voce ( só pra voce baby )
O mundo se divide em quem gosta de cães e quem daria a vida por um deles.
Quem ouve rocknroll e quem se explode ao escutar uma guitarra "mal" tocada.
Tem aqueles que desejam uma mulher bonita, e tem quem possa matar ou se matar por uma bonita mulher em uma noite bonita. O desejo é uma faca guardada, enferrujada.
Alguns são brancos, outros pretos e outros muito escuros.
Tem quem se divirta com alegres diversões. Para outros tudo é diversão, mesmo o abismo.
Certos seres vivem com espelho e outros seguem o ruído. Quebrar o espelho com um grito, isso fazem outros.
Beleza é a razão. Mas há quem ame o feio sujo. Desde que seja um feio elegante e um sujo único.
Há quem perceba a ridicula futilidade da arte. Há quem veja a inutilidade de tudo.
Enquanto todos correm, um anda beeeem devagar
E quando todos seguem os horários de dietas industriais, outros comem quando sentem fome.
Bem.....
Duvide de tudo e diga sempre foda-se.
Jay Leno disse que o triste é que aprendemos a fazer aviões e foguetes
Mas não sabemos fazer um Keith Richards.
No fim de tudo, o mundo se divide em quem detesta Keith
E em quem o adora. ( E são esses os da coluna dois ).
Foda-se o que vou dizer ( estou muito fora do ar ):
Quando nasci eu escutava Ruby Tuesday e quando senti pela primeira vez o ódio pela ordem e pelo progresso, eu cantava Lets spend the night together. E ao descobrir o desejo que arranca a pele e expões a carne eu cantava Satisfaction e caía. Porra, KR estava comigo sempre ( quando a coisa valia a pena ): Na merda em que estive no colegial, um cabeludo em antro de fashions, eu cantava Citadel, e quando afinal achei minha "Anita" ( e botei um A na minha garganta ) era Happy na cabeça. Foda-se, estive no auge com tudo isso, essa básica música de preto que é sempre blues ( blues rock, blues soul, blues country, blues pop e até blues disco ). Eu estive em estradas e camas com You Gotta Move.
Então a coisa é que não é questão de gostar ou desgostar de KR. O fato é que o cara é uma tatto em minha vida, tá sempre lá. E se hoje eu começo a envelhecer, é ainda e agora mais ainda, que KR me mostra como envelhecer sendo o mesmo de sempre.
Porque ele nunca muda. E o negócio que nos maravilha é esse: o velho Keith nunca muda, é o mesmo de 64, de 73 ou de 2000. Fincou o pé na borda e disse: Foda-se, daqui não saio e não mudo.
Tem só mais uma coisa: KR tem consciência clara de tudo. Ele disse:
Enquanto os caras têm de obedecer um chefe, cumprir um horário, jogar fora tudo o que queriam, fingir ser banal; eu fico aqui, lembrando a eles que todos são um pouco Keith, alguns mais, outros menos; mas lembrando que todos nós devemos algo a esse cara. O seu KR está lá...e creia, quanto mais livre voce for, mais perto da tona ele estará.
Portanto eu tou beeem fora do ar. E torça para que eu fique por lá.
PS: Isso foi escrito pra voce.