A CIDADE E AS SERRAS- EÇA DE QUEIRÓS, UM LIVRO PARA OS DIAS DE HOJE

Jacintho tem tudo. Filho de ricos portugueses, vive desde sempre em Paris. Foi Schopenhauriano, Marxista, Nietzschiista, e vários outros istas. Possui todos os aparelhos do mundo. Engenhocas que fazem sua vida confortável e moderna. Dezenas de empregados lhe servem, tem belas mulheres e come nos melhores restaurantes. Festas suntuosas, roupas finas, modismos vários. Mas tudo isso faz de Jacintho um entediado. Tudo o que ele diz é :-Que maçada!!!!
Tem um grande amigo, Zé Fernandes. O Zé ainda tem um pé em Portugal e o acompanha em Paris nas suas peregrinações. Duques disso, marquesas daquilo, patos com laranjas, arroz doce com manjar. O Zé observa Jacintho empalidecer e emagrecer. "Que maçada!!!"
Compram coisas para seu prazer. Maquinitas que umedecem o ar, que refrescam, que fabricam gelo, que falam, que aliviam dores, que tocam música. Mas que graça há ?
Jacintho tem terras em Portugal. O túmulo de seu avô desaba e ele vai lá para o reformar. Manda antes, por comboio, pratas, vitrais, máquinas e tecidos. Precisa de conforto.
Cruzar a Espanha é um horror e que desastre!!!! Sua bagagem se estravia!!!! Espanha e Portugal não são Europa! Que atraso!!!!! Não há telefones e a eletricidade falha. Os comboios não respeitam horários!!!!! Mas eles comem um cabrito divino, um arroz de cabidela dos deuses, um presuntito e um vinhozito....
As terras de Jacintho estão um caos! Ninguém trabalha nesse país? Mas tem um franguinho assado que é o melhor do mundo!!!!! E apesar de reclamar, Jacintho vai ficando....
Se apaixona pelas flores, pelo mato e anda com o Zé filosofando sobre a vida. "O mundo é belo, ó Zé. Os homens estão a o estragar."
Descobre a miséria de seus empregados e os ajuda. Torna-se um idealista ( sempre o fora. Mas a cidade grande mata todo ideal ). Casa-se, engorda e fica bronzeado. Tem dois filhos, é feliz.
Zé dá um pulo à Paris. E vê com horror que a cidade grande é apenas ANSIA POR DINHEIRO E GOZO IMEDIATO. Amigos que só falam de dinheiro e de prazer carnal, mulheres pouco saudáveis e muito pintadas, multidões lutando para acumular e gozar.
Volta a terrinha. Na paz da serra, o homem cresce e pode ser homem.
Escrevesse numa língua mais central ( ingles, frances ou alemão ) Eça seria da estatura de James, Conrad ou Mann. É um gênio, um esteta, um filósofo, um dandy, um poeta. Este tão simples livro, seu penúltimo, é claro como um milagre e dá prazer de comida bem feita. Suas frases dão água na boca, seus capítulos dão fome. Amamos ao Zé e ao Jacintho.
È preciso ler este livro, reler ( é minha segunda leitura em cinco anos ). É prazer de água da serra.
Eça soube que a cura se incia pelo gosto, pela boca, paladar. E depois pelo olho, pelo sol e pela cor. Jacintho, em 1900, sofre da doença de 2010 : depressão entediada. Mas ele é salvo pela vida, pelo reencontro com sua raiz, pela comida, pelo rosto das gentes, pelo despertar do interesse no outro. O livro é remédio, remédio de gosto doce, de fio de ovos.
O livro é Portugal e é Brasil.
Eça de Queirós. Escritorzito que é um santo remedito. Gigante em tempo de gigantes. Frases que são novelos de luz.
Acho que quero mais um bocadito!

TONY CURTIS

Tony Curtis foi, entre 58/65 um dos dois atores mais famosos do mundo ( o outro era Rock Hudson ). Sim, creia-me, em mundo que tinha Brando, Paul Newman, John Wayne e Richard Burton, eram os dois os mais famosos.
Rock fazia um tipo Cary Grant mais pobre, Tony era ele mesmo. Apesar que recordo de sua hilária e genial imitação de Cary em QUANTO MAIS QUENTE MELHOR.
Tony Curtis fica para a história em algumas obras-primas que fez. SPARTACUS, OS VIKINGS, A EMBRIAGUEZ DO SUCESSO ( com a outra grande estrela da época, Burt Lancaster ), além de várias excelentes diversões, sendo A CORRIDA DO SÉCULO a melhor. Quando a nova geração chegou ( Steve McQueen, Clint Eastwood, Jack Nicholson e Warren Beatty ) seu tipo se tornou "careta". Ele não conseguiu se renovar como Newman e afundou. Foi para a tv, e fez com Roger Moore uma série deliciosa ( e que pouco envelheceu ) THE PERSUADERS, onde ele faz um playboy detetive com muito estilo e prazer.
E era isso que Tony tinha de melhor. Ele passava um enorme prazer em atuar. Era bom vê-lo na tela, a gente gostava dele, era divertido.
Minha mãe e minha tia o adoravam. Achavam seu rosto o mais bonito do mundo. ( Não era. Alain Delon foi imbatível ). Recordo de que na minha infância seus filmes não paravam de passar na tv. Comédias e aventuras. Alguns muito ruins, mas sempre com Tony lhes dando a dignidade do prazer.
Fica uma homenagem.

MEU NOME É JOHN FORD ( NA FOLHA BY PEDRO BUTCHER )

Excelente, Folha de domingo, 26/09. Parabéns à Pedro.
Começa com uma visita ao grande diretor, no set de O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA. Quem visita Ford é um garoto de 15 anos. John Ford dá um conselho à esse rapaz: "Não enquadre o ator. Enquadre o horizonte. E quando voce souber se a linha horizontal deve ficar acima ou abaixo do personagem...aí voce será um diretor." O nome do garoto é Steven Spielberg.
Ford foi o melhor diretor nascido na América. Não há como duvidar disso. E mundialmente, somente Hitchcock e Kurosawa podem ser comparados a ele. O segredo de Ford é claramente exposto no artigo. Mas mesmo assim, ainda fica o segredo.
Todo grande artista tem um dom que pode ser explicado, mas não imitado. Voce pode explicar Billy Wilder ou Fellini. Mas por mais que voce fale sobre John Ford, alguma coisa sempre está além, inexplicada. É esse mistério que define o gênio. E sua falta de afetação também.
Ford nunca tentou ser "um artista". Como tod grande escritor, sua preocupação era contar uma história. E como todo grande homem, ele possuia um inabalável senso de moral. A família é o centro de seu universo. Ele crê na família, ele crê no bem ( mas conhece a força do mal ). Seus filmes sempre têm casamentos, enterros, refeições familiares, bailes, cenas de reencontro. Ford sabia que o ser-humano se define nas suas cerimônias. Mas há muito mais, há o herói.
O herói de Ford nunca é simples. Ele sempre é imperfeito. E sempre é alguém ferido, alguém que foi expulso do meio social. E que ansia, sem assumir, a ser aceito. Para Ford, a vida é comunitária. Mas há mais.
O senso estético de Ford. Cada tomada é uma cena perfeita. E um de seus segredos é o de que nada é esfregado em nosso rosto. Ele não filma como quem diz : "Vejam que lindo!!!", ou como quem exige que amemos ou odiemos um personagem. John Ford nos respeita, ele deixa que escolhemos o que pensar, o que sentir e o que admirar. Ele é profundamente democrático. Respeita sua platéia.
Mas nada disso é seu objetivo. O principal em John Ford é sua naturalidade. Não existe peso em seus filmes. Toda sua arte é de instinto, por isso é simples, fácil e agradável. Ele narra, ele exemplifica, e jamais foi didático.
O artigo mostra uma hilária entrevista que Ford deu à Bogdanovich : "-Como o senhor filmou a sequencia elaborada de Three Bad Men?" resposta: "-Com uma câmera."
Há também a citação de uma constatação de Tavernier ( quando crítico dos Cahiers ), a de que é nas retrospectivas que vemos o quão grande um cineasta é. George Cukor ou Minelli, por exemplo, perdem muito se vistos em sequencia. Uma sessão de 3 filmes de Cukor faz com que comecemos a ver seus defeitos. Com Ford é o contrário. Uma longa sequencia de filmes de Ford faz com que admiremos ainda mais sua obra.
Isso ocorreu quando comecei minha coleção de dvds. Alguns diretores ao serem assistidos dia a dia começavam a cansar. Já com Ford ( e Hitchcock também ) quanto mais eu o assistia , mais eu o amava. Sinto saudades de minha semana Ford e de minha semana Hitch.
Butcher conta ainda da companhia Ford. A equipe de técnicos e de atores que ele sempre usava. De seu amor a filmar ao ar livre e do modo como ele filmava. Ford montava o filme na câmera ( como Hitch e Kurosawa ). Não havia muita fita no chão da sala de edição. Fazia isso para que ninguém pudesse mexer em seu filme. Não deixava tomadas extras para o editor trabalhar. Pedro conta que hoje, com a câmera digital, tudo é filmado, quilômetros de filmagem, para deixar o editor ( e o produtor ) com centenas de opções. Que eu saiba, hoje, só Clint monta na câmera.
Há ainda o momento em que Ford enfrentou De Mille no MacCarthismo. Uma descrição que me deixou com lágrimas nos olhos. Não a descreverei, mas cito sua primeira frase ( que diz tudo sobre quem foi John Ford, diretor mais oscarizado da história, até hoje )
"-MEU NOME É JOHN FORD E EU FAÇO WESTERNS. EU NÃO GOSTO DE VOCE."
Macacos me mordam se isso não é atitude!
No fim de tudo, o maior herói de John Ford foi ele próprio.

RAM- PAUL MACCARTNEY- SILLY LOVE SONGS

Paul MacCartney exemplifica à perfeição tudo o que tenho escrito ultimamente ( Amor cortês, individuação, religião ). O fato de o subestimarmos ( desde sempre ) e hiper-valorizarmos Lennon prova nosso vício em colocar a dor como dom supremo. O sofrimento, como os cristãos tão bem o sabem, dá uma aura de superioridade ao artista. E Paul parece à prova de verdadeira dor. Será? Ou não terá ele optado, em ato de nobreza exemplar, pelo riso?
Se acreditarmos em Kierkegaard, Paul, o feliz Paul, estaria num degrau acima de Lennon, Dylan e de outros sofredores. Que culpa ele tem em crer no amor tolo e feliz? No fundo ele é um camponês, e nisso mora todo seu gênio, porque se o rock um dia produziu genialidade é Paul o maior de todos. Ele criou o Pop branco, divulgou o rock sinfônico e é responsável por 75% do que os Beatles venderam. Quando lembramos os anos 60 tendemos a pensar em Dylan, Morrison, Hendrix, Lennon, Who, Reed, grandes mortos ou grandes sofredores. Mas é Paul o centro da década, consequentemente centro da arte Pop. O problema é que ele não parece "heróico". Será?
Ao contrário de Lennon que surgiu e morreu seguindo o modelo Elvis ( acrescentando doses imensas de Dylan no processo ), Paul surge seguindo Buddy Holly e Little Richard, e não se apaixona por Dylan. Ele cai de amores pela black music americana ( Marvin Gaye, Otis Redding, Joe Tex, Wilson Pickett e Aretha ), pelos sons sinfônicos que George Martin lhe mostra e principalmente pelos Beach Boys. RAM é seu segundo album solo e é um disco delicioso.
A capa, com um carneiro, já entrega do que se trata: PET SOUNDS, dos Beach Boys. Paul, que nunca escondeu seu amor pela obra-prima dos californianos, usa aquele tipo de arranjo e de produção multi-facetada, caleidoscópica, que é o que dava aos Beatles toda sua riquesa de arranjos. As músicas são como flashs, polaroides de emoções fugazes, canções de estados sensitivos. Music-Hall, folk britânico, pop americano, doo-wop, tudo cabe aqui. E aqueles arranjos vocais nos quais Paul exibe toda sua maestria ( arranjos de voz como ele fez, só os próprios Beach Boys e os Byrds conseguem ).
O disco começa com simples violão e simples canção de amor. Mas ele foi e é sempre assim. Para ele a vida é simples: uma esposa, filhos, e uma casa no campo. As pessoas tendem a pensar que ele é só isso. Mas é aí que nasce seu heroísmo, o cara que fez Yesterday e Helter Skelter optou pela simplicidade e nessa opção tentou nos mostrar um caminho. Blackbird e Martha são as obras-primas que inauguram sua escolha.
Ram depois envereda pelo blues e chega aos arranjos à Brian Wilson. É aí que o gênio-mago aparece. Uncle Albert é trilha de minha infância ( com Another Day ). Tocava incessantemente no rádio e aos 5 anos me apaixonei pela canção. Eu me emocionava ao ouvi-la e se tornou padrão daquilo que considero canção-criativa ( e feliz ). Ela muda de clima e de andamento cinco vezes!!!!! Linda!!!!! Na sequência ele faz um rock mais azedo e completa o album com sua costumeira habilidade em ser belo e aparentemente fácil.
Mas nunca é. Tente compor uma canção à MacCartney. Tente arranjar quatro vozes em ondas de idas e vindas. Tente harmonizar guitarras com metais e teclados. É preciso saber tudo de musica, de melodia. É preciso ter gosto. E principalmente, ouvido. Nisso tudo, ele é imbatível.
Sempre lhe faltou sexo. Paul está longe do perigo. Nada nele remete à James Brown, Sly Stone ou Mick Jagger. Paul seria puro espírito. Nada carnal. Mais uma vez eu digo: e daí ?
O movimento de individuação é maravilhosamente exemplificado pelos Beatles. Sua separação, em busca de sua afirmação individual, teve toda a tragédia amarga da vida de todo homem adulto. Ringo cresceu e optou pelo que podia ser: embaixador eterno da beatlemania. George mergulhou na religião e se tornou um espiritualizado bon-vivant. John levou sua rebeldia de Elvis+Dylan vida afora, mas que ironia, terminou como um tipo de Paul in New York -amor, esposa e filhos. Paul não brigou com seu passado. Se tornou filho de seus pais, sobrinho de seus tios e carinhoso pai de família. O Mr.Feel Good. Seus discos continuaram a ser filhos dos Beatles.
Qual o problema?
RAM é feliz e é criativo. Porque não dizer: ele é um herói por ter sobrevivido são, sorridente e sem pretensão. O que mais um menino caipira de Liverpool pode querer e poder ser?
I LOVE PAUL !

AMOR

Para amar é preciso coragem. Porque amor é unir os radicalmente diferentes. Não pode haver amor sem o atrito da diferença.
Então todo amor é ato de heroísmo. Um desafio e uma viagem para lugar distante. Amor não é encontrar a alma gêmea, amor é unir-se ao que te é estrangeiro. Completar o que te falta.
O carinha do clube Paulistano que namora a menina do mesmo clube, que vive no mesmo bairro, que tem a mesma cor de olhos e se veste no mesmo shopping... isso pode ser amor mas não é O amor. Porque O amor te leva a desvendar um mistério, te leva a novos mundos e novas etapas.
Mas o amor pode ser também exercido a sós. E nós o exercemos sempre que procuramos uma conexão com alguma coisa que nos é alienígena, e que portanto nos pode completar, nos desvenda e nos amplia, e lança um desafio.
Portanto se voce é prosa entre na poesia e se voce é verso mergulhe na narrativa racional. Para quem conhece o açucar, sal; para quem vive no mato, a cidade. O que sabe escutar, falar; o que faz aritmética, enlouquecer. Para medrosos, o risco e para brancos, o negro. Os risonhos conhecerão o drama, os chorões mergulharão no riso. Água e fogo, ar com terra.
O amor é encruzilhada no escuro, é maré que leva ao oceano e é navio rumo a novo mundo.
Para amar há que se ter coragem.

LACAN FALA BOBAGEM

Todo menino desde o nascimento tem de refazer, em poucos meses, toda a história feita em milhões de anos, por seus antepassados. Deixar de ser parte da mãe e ir para fora, nascer, deixar de ser da mãe e ser do mundo, deixar de ser bichinho e ser pensante, deixar de ser parte de uma família e ser só, deixar de ser do mundo e ser de sí-mesmo, deixar de ser da natureza e ser estrangeiro em seu planeta, deixar de ser ....
Responder a questão, quem eu sou, sabendo ser irrespondível.
Um amigo me disse que Lacan concluiu ser a religião imorredoura. Como ateu puro, Lacan sempre confundiu religião com igreja. A igreja não morre porque o homem precisa de algo que lhe dê consolo e direção. A igreja é um partido político, uma terapia psicológica, uma distração, mas não é necessariamente religião. ( Embora se possa ter uma experiência religiosa numa igreja. Como se pode ter em qualquer lugar. )
A religião acabou, como força cotidiana acessível, por volta de 1300 ( e não é tanto tempo assim. Quanto tempo houve antes??? ). Ela termina no momento em que o homem se estilhaça em fragmentos, pois como o nome diz, a experiência religiosa era a força que mantinha o homem unido em seus múltiplos aspectos.
Com o fim do mundo religioso o perigo não é mais exterior ao ser, ele passa a ser um dos aspectos desse ser. O bem, assim como o mal, está dentro do homem, o amor e o egoísmo são opções do homem, e daí vem o caminho para a individuação final e para a solidão abissal. Se tudo está em mim, então eu sou meu mundo. Esse modo de pensar é o menos religioso possível.
Não posso transmitir o que seria uma experiência religiosa. É sentimento maior que o sentir e mais sensacional que a sensação. É exatamente como deixar de ser, se esquecer, perder-se de sua identidade, unir-se a tudo a seu redor.
Estar sem ser. Pertencer e libertar-se.
É liberar sem forçar. Encontrar o que não existe.
A igreja ( todas elas ) está muito longe disso.

UMA VISÃO- WILLIAM BUTLER YEATS ( ESPÍRITO, HISTÓRIA E SÍMBOLO )

Yeats já era o mais famoso poeta de língua inglesa quando lançou este livro ( que na verdade são 3 volumes ). O tema aqui exposto irá interessá-lo por toda a década de 20.
Casou-se tarde, e no quarto dia de sua lua de mel, sua esposa começou a receber espíritos. Toda a primeira parte é consagrada a esses fenômenos e aquilo que as entidades lhe falaram. Yeats descreve os odores misteriosos que anunciam as visitas ( rosas ) e as luzes e assobios que os acompanham. Durante meses a esposa psicografava enormes textos exotéricos sobre o que significa a vida, a história e o que acontece com nossas almas nesta e em todas as outras vidas. O poeta mergulha de cabeça em todo esse simbolismo sem medo nenhum, jamais apelando para soluções fáceis como dizer que tudo é loucura ou auto-hipnose. Como todo poeta ou amante, ele foge das facilidades e dos rótulos prontos.
No segundo volume é passada toda a mensagem desses seres etéreos. A base é a reencarnação, mas ao contrário do espiritismo, é uma reencarnação não cristã, e inversamente ao hinduísmo, não se apega ao karma. É leitura complexa, cansativa, muito difícil, com trechos completamente obscuros. Mas mesmo assim se depreende:
1- Que a história do homem é a história de sua individuação. Nosso caminho é estrada que vai do anonimato ao apego egocêntrico, da arte anônima a assinatura, do não-eu dos animais à afirmação do eu-sou-único, do grupo a auto-suficiência. Mas esse processo é cíclico, e nele se caminha para a decadência, momento em que a civilização se desagrega. Cada indivíduo perde o interesse pelo todo. Fato observado no fim do Egito, na Grécia, em Roma e Bizâncio.
2- Nada é resolvido nesta vida. Todo aprendizado é feito na revisão da vida vivida. Nossa existência sólida é apenas um ensaio, um sonho, uma tênue viagem.
3- Uma belíssima imagem: O Espírito é nosso futuro, nossos desejos são o presente, nossa matéria é nosso passado. Considero essa divisão maravilhosamente bem pensada. A alma como a aspiração, o desejo como a prisão do eterno agora, e nosso corpo e as coisas que nos cercam como envelhecidos e falíveis objetos do sempre passado.
4- Yeats cita Hegel: a Ásia é o mundo da natureza, a história do Ocidente é a história da fuga da natureza. Fuga essa que foi razoávelmente bem sucedida na Grécia e plenamente realizada pelo cristianismo, religião que separa definitivamente o homem da natureza.
5- Imagem da ciência e do intelecto: A ciência quando analisa um pássaro sempre enxergará um esqueleto seco numa praia. O pássaro que voa, come, defeca e copula é inalcansável pela razão, pois o intelecto para apreender algo precisa primeiro matar.

No terceiro livro Yeats analisa a evolução histórica na visão desse movimento de individuação e decadência. Ele cita Bizâncio como um apogeu humano e a criação de Merlin e do amor cortês como outro. Desde a renascença estaria havendo essa queda, essa desvalorização do coletivo e do sagrado, e o crescimento do individual e do corriqueiro.
Não importa se foram espíritos ou não, as idéias aqui escritas trazem outras idéias embutidas. O texto é inesgotável, fluido, fertilizador. São metáforas sobre metáforas, visões sobre visões, e o que mais surpreende é a coragem de Yeats em expor sua crença, suas experiências, sua mulher.
Verdade ou não, que importa?
O que é verdadeiro sob o céu que se move?

O HOMEM DOS OLHOS FRIOS-ANTHONY MANN ( HERÓIS )

Interessante pensar que os heróis de cinema de hoje são pistoleiros sem diálogos ou personagens de cartoon sem ideais. Os tipos feitos por Jason Statham, Vin Diesel, Daniel Craig ou Matt Damon não têm nada a dizer. Neles não existe um passado, uma história a ser superada, um destino a ser vencido. São heróis sem heroísmo, bonecos histéricos que se movem, saltam e correm sem transformação nenhuma. Eles não crescem, apenas se movem. Produtos que vendem ação.
Neste filme temos um herói. Um homem que foi alguém e que aprendeu a nunca confiar em ninguém. Ele perdeu tudo e agora vive dentro das regras do mundo. Mas vive no limite dessas regras, ele vê de fora, transita por dentro e por fora. Sabe exatamente o que esse mundo é.
A primeira cena do filme já nos pega. Ele vem em seu cavalo com um morto na garupa. Toda a cidade o observa. O sol castiga as ruas poeirentas. Ele desce e leva o corpo ao xerife de lá. O herói é um caçador de recompensas, ele mata para ganhar dinheiro, e o povo "honesto" da cidade o detesta por isso. Todos serão ríspidos e duros com ele.
O filme desenvolve a relação desse homem com o xerife dessa cidade, um inseguro e nada heróico jovem. Ele fará desse jovem seu discípulo e Mann é muito feliz no desenvolvimento dessa relação. Ela é silenciosa, travada, natural.
Mas há mais. O roteiro ( Dudley Nichols, perfeito ) toca na relação racista da cidade com os índios e o herói faz amizade com família segregada.
Há algo de muito nobre nesse homem ( como há em todo herói verdadeiro ), é a consciência que ele demonstra, lacônica, de não poder mais perder tempo com tolices como o racismo ou a vingança. Ele não deixou de ser racista por ter sido educado ou convencido a não ser, ele simplesmente percebeu que a vida é muito mais que isso. Nele existe a consciência do valor da vida e do "não-valor" dos homens.
Henry Fonda faz esse herói. Nenhum ator de seu tempo ou de hoje é como Henry Fonda. Ele é um homem inteiro, ele é o sonho dos americanos, nobre e democrata. Tem os olhos do que seria um líder perfeito. Algo nele é etéreo, suave, evanescente; mas é a suavidade da força que não se verga, do silêncio indomado. Sua atuação, já maduro, é comovente. Veja este filme e 12 HOMENS E UMA SENTENÇA e se convença de sua genialidade. ( Mas há ainda os filmes que fez com Ford, Lang e Hitchcock ).
Anthony Perkins faz o jovem xerife. Perkins, que será sempre Norman Bates, tinha uma fragilidade fascinante, e aqui essa sua "fraqueza" cai a perfeição. Ele gagueja, exita, treme, até finalmente acertar.
A fotografia, como em todo filme de Mann, tem um cuidado especial. Loyal Griggs capta as sombras prateadas das ruas e o brilho radiante do sol. A música, de Elmer Bernstein, é usada com economia, o que ajuda muito o filme.
Anthony Mann nunca errou. Todos os seus filmes são bons. Ele fazia filmes simples, porém cheios de simbolismo clássico. Equivalem às tragédias gregas, a fábulas morais, a exemplos de ensino e provação. Ele dava dignidade a tudo em que trabalhava. Ele era um homem tão vasto quanto eram vastos seus heróis. O cinema teve muita sorte em o ter, e eu tenho a sorte de poder assisti-lo.

BERGMAN/ JOHN FORD/ BOORMAN/ GODARD/ CHABROL/ CAROL REED/ ANTHONY MANN

PERSONA de Ingmar Bergman com Bibi Andersson e Liv Ullman
Dificil classificar este filme. Todas as notas que dou têm relação com o prazer. Não dou um dez porque o filme é importante ou complexo. O dez é dado ao filme que me dá um supremo prazer, seja estético, seja emotivo, seja moral. Mas como falar de Persona? O filme tem a profundidade simbólica dos melhores sonhos, mas ao mesmo tempo é árido. Nenhum prazer existe em sua visão. Assistir este filme é sentir desconforto, medo e até mesmo angústia. Não há como em outros filmes do mestre, o alívio prazeroso da bela imagem e dos atores geniais. Aqui tudo é dor. Impossível a mim dar uma nota.
OS DEZ MANDAMENTOS de Cecil B.de Mille com Charlton Heston, Yul Brynner e Anne Baxter
Aqui tudo é circo. Cecil se despede do cinema com imensa produção. São milhares de figurantes, bichos e cenários gigantes. Heston é Moisés e Brynner é o faraó. Anne está uma delícia como Nefertiti. Tem tudo nesse enredo de crioulo doido: tempestades, milagres, a voz de Deus, escravos, estupro e lutas. Profundo como um episódio de cartoon. Estranhamente é ainda divertido em sua cafonice esperta. Nota 6.
A VIDA ÍNTIMA DE SHERLOCK HOLMES de Billy Wilder com Robert Stephens e Colin Blakely
Na primeira parte vemos Holmes como um tipo de dandy gay viciado em cocaína. Watson é seu simplório amigo que como bom vitoriano finge nada perceber. É um tipo de comédia suave. Mas quando acontece o crime e Holmes passa a tentar o resolver o filme se perde. O caso é óbvio e simples demais para um detetive tão genial. È um dos últimos filmes de Billy e foi imenso fracasso. Nota 4.
DEPOIS DO VENDAVAL de John Ford com John Wayne, Maureen O'Hara e Victor McLaglen
Deixa eu contar: este é o filme favorito de meu pai. Assisti com ele quando eu tinha 10 anos de idade, na Globo, sábado às 21 horas. Lembro que achei o filme muito bobo, muito alegre e muito cheio de socos. Na adolescência passei a detestar esse tipo de filme ( como detestei tudo que lembrasse meu pai ). Mas após os 30 anos comecei a aceitar esses filmes, a ver sua poesia, seu imenso valor mitico. É o maior sucesso em bilheteria de Ford e ganhou Oscar. Conta a história de americano que vai a Irlanda ( Galway ) comprar casa que foi de seu pai. Lá, ele se enamora de vizinha ( Maureen maravilhosa ) e briga com grande valentão do lugar. O filme mostra a Irlanda do folclore, onde todos bebem e brigam, riem e fazem tudo beeeem devagar. Ford cria seu universo fordiano, mundo onde os mitos e os símbolos vivem. O filme é de uma comovente simplicidade e de uma esfusiante beleza. Wayne irrompe como rei da masculinidade e Maureen é a fêmea ideal. Lembrete de outro mundo possível ( extinto? ). Nota DEZ!!!!!!!!!!!!!!!
XEQUE-MATE de Paul McGuiguan com Josh Hartnett e Lucy Liu
O que significa este filme? O ponto mais baixo em que uma diversão pode chegar? Observem: um filme ruim, antes, era um filme mal feito. Um filme ruim agora, como é este, é um filme mau. Violência pornográfica, roteiro imbecil e atores deploráveis ( o tal Josh mal sabe falar ). Há participações de atores de verdade ( infelizmente muito curtas ): Ben Kingsley e Morgan Freeman e de dois bons tipos: Bruce Willis e Stanley Tucci. Mas este lixo é inominável. Nota ZERO.
EXCALIBUR de John Boorman com Helen Mirren, Cherie Lunghi, Liam Neeson, Nicol Williamson
Uma fascinante viagem por mundo interior. Percebemos por entre as brumas nosso mundo e nossos símbolos mais imorredouros. Jung mora em cada personagem. Quando esta saga termina, sentimos que alguma coisa nos foi fixada. Há uma riquesa imensa nestas imagens. As cenas de Lancelot são as melhores, exemplos simples do que é o amor cortês. Nota 8.
FEDORA de Billy Wilder com William Holden e Marthe Keller
Último filme de Billy. Sem dúvida é o pior filme já feito por um grande diretor. Chega a dar pena. Trata-se de uma gororoba mal temperada sobre atriz anciã que tenta voltar ao cinema. Diálogos risíveis e interpretações lamentáveis. Nota Zero.
BANDE À PART de Jean-Luc Godard com Anna Karina, Sammi Frey e Claude Brasseur
Liberdade em forma de filme. Jean-Luc pega tudo que esperamos e nos devolve transformado. Os atores brincam e nos encantam, Anna dá um show no papel de uma bobona. O filme é leve, jovem, solto e soberbamente anárquico- mas atenção! É para amantes de cinema, sua magia está no filme em sí, não em sua "história". Nota 9.
ALPHAVILLE de Jean-Luc Godard com Anna Karina e Eddie Constantine
Godard consegue nos levar à ficção científica sem criar cenários ou efeitos. Ele filma a Paris de 1965 de um modo "esquisito", e nos faz crer que aquilo é um "outro mundo". Em que pese essa habilidade, este é de todos os seus filmes da primeira fase ( a fase Anna Karina ), o menos interessante. Um James Bond de vanguarda, ou um Godard em sci-fi. Nota 4.
MULHERES FÁCEIS de Claude Chabrol com Bernadette Lafond e Stephane Audran
É a história de 4 moças em Paris. Seus amores ( ou não ), bebedeiras, orgias e seu trabalho alienante. O filme é bastante ousado para a época e tem um final hitchcockiano. Lafond é uma comediante maravilhosa, tudo nela é ironia. Chabrol jamais foi um gênio, mas era um cineasta seguro, afiado, instigante. Nota 7.
O ÍDOLO CAÍDO de Carol Reed com Ralph Richardson e Michele Morgan
Na embaixada da França em Londres, um menino apegado a mordomo, presencia sua infidelidade e no processo descobre o que significa a palavra "verdade". Este filme, feito por um dos 3 maiores diretores ingleses, é uma obra-prima de suspense. O final me deixou com o coração na mão!!!! Detestamos o menino cada vez mais e nos compadecemos do mordomo e de sua amante. Cenários belos e labirínticos e fotografia exemplar de Georges Périnal. O grande ator shakespeareano, Ralph Richardson, mostra todo o medo e toda a aceitação do destino do patético mordomo. O filme, original e asfixiante, é uma jóia do melhor momento do cinema inglês. Veja e se apaixone por esse muito grande diretor. Nota DEZ!!!!
O HOMEM DOS OLHOS FRIOS de Anthony Mann com Henry Fonda e Anthony Perkins
Mann nunca errava???? A primeira cena deste western já é antológica, um passeio em grua, num preto e branco brilhante, pela cidade. Mas o filme é todo assim, uma aula de cinema. Fonda está estupendo como o herói amargo e quieto, exemplo de virilidade bem resolvida. Seus olhos são os olhos de um anjo caído. Tudo neste filme caminha para seu final catártico. Quem desejar saber o que é um herói e para que serve uma aventura, que veja este monumento. Anthony Mann, mestre de westerns que se fazem mitos, dava estatura de arte filosófica a filmes aparentemente banais. Um diretor perfeito. Nota DEZ!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

ZORBA,O GREGO-NIKOS KAZANTZAKIS, NADA COMO O SOL

Foi um tempo de deserto, o tempo em que li Zorba pela primeira vez. O sol me fazia suar muito e eu conhecia Zorba do jeito certo, debaixo do sol. Era um tempo em que minha caixa de proteção havia se quebrado e medo + dúvida me seguiam sem trégua. Mas eu conheci esse grego antigo como a vida e passei a sentir a existência como alguma dádiva. Nunca mais fui o mesmo.
Um intelectual inglês viaja à Grécia. Lá ele irá administrar uma mina que herdou. No barco que cruza o mar ele conhece Alexis Zorba, um grego sem cultura. Um grego que lutou em guerras, que matou, que chorou, um homem que viveu. Zorba é o homem antes da cultura, antes da separação ( traumática ) entre homem e natureza. Zorba não questiona o que a vida é ou pode ser, Zorba aceita e deseja.
Os dois se tornam amigos e o velho grego lhe ensina a comer, beber, brigar e principalmente a amar. A vida se dá para o "empurrador de canetas". Ele passa a entender que o vinho é um milagre, que a morte é para ser odiada, que toda mulher deve ser amada.
Zorba diz que tudo o que não pode ser dito deve ser dançado. Ele dançou a dor quando seu filho morreu. Ele dança a alegria de ser seu amigo. Zorba está além e antes da palavra.
A mina se torna um fiasco maravilhoso e os dois se separam. O inglês nunca se tornará Zorba, ele surgiu tarde demais em sua vida. O grego o convidará para ver "uma pedra", mas o empurrador de canetas ( hoje seria um apertador de botões ) não vai. Na versão de cinema tudo termina com a maravilhosa dança de Anthony Quinn, ator que se tornaria desde então Zorba para sempre.
Mas quando li o livro pensei todo o tempo em meu avô como Zorba. Um homem de pedras e de sol na cara, em lombo de burrico, com vinho e azeitonas. Sólido como o para sempre.
Releio Zorba a cada sete, oito anos. Esqueço às vezes o quanto ele me fez bem. Mais que isso, deu valor a minha hombridade, salvou-me de uma aridez snob. Fertilizou minha cabeça dura.
Porque ele me fez amar a mulher que tem sabor, que goza em despudor, que ri alto e chora berrando. Me fez saber o que o sol é: o rei dentre os reis e mágico incenso da mente. Me fez aceitar minha cara mediterrânea, meu peito cabeludo, meus dentes afiados e minhas mãos que são patas. Deu sabor de sol à minha vida.
Dei a mão ao velho Zorba e não mais a larguei.
Kazantzakis, solitário caçador de sentido, angustiado indagador, criou/encontrou Zorba e deu a si-mesmo e ao mundo um Homem.
Meu melhor é Zorba. O resto nada vale.

JUVENTUDE HOJE

Belo artigo numa revista de psicologia e educação ( eu não sabia que Freud dizia existirem três profissões impossíveis : psicólogo, governante e educador... uma piadinha da qual discordo ).
Waaaal.... esse artigo discorre longamente sobre a situação do adolescente hoje. E ao contrário do que pensamos, sempre existiu uma certa delinquencia juvenil.
Na Itália da renascença são relatados casos de grupos de jovens que se embriagavam, faziam arruaças na rua e praticavam o sexo livre. Assim como na Alemanha do século XVIII, onde existia um grupo que pregava a volta à natureza, o anti-materialismo e o repúdio ao progresso.
Mais importante é o grupo dos Apaches. Era um grupo parisiense, andavam com um cinto azul que os identificava. Suas atividades eram noticias que corriam mundo ( era 1900 ). Anarquistas, praticavam furtos, assassinatos, sabotagens e dominavam bairros.
Se toda essa delinquencia não é novidade, o que distingue o jovem de hoje? No que ele se difere? O mais óbvio é o fato de que ele é agora "único detentor do desejo". Todos os desejos passam a ser ligados a idéia de juventude. Mas é uma imagem de juventude "estranha".
Se observarmos todos os mitos jovens, de Romeu e Julieta à Alexandre Magno, veremos que o que lhes dá valor é a pureza, o idealismo e a busca por um novo mundo. Pois nossa idéia de jovem é agora exatamente o oposto disso. Jovem é aquele que se define como esperto, cínico e desencantado.
O artigo termina dizendo que a juventude só vale a pena se houver uma nova proposta, uma coragem idealista, uma disposição à tentativa.
Recordo que escrevi uma vez que neste nosso mundo juvenil, de filmes infantis e música corriqueira, nada era mais velho que a adolescência. Superficialmente as pessoas falam que o mundo se infantilizou. Não. Na verdade ele está senil.
Falta de coragem, ausência de sonhos, simplificação da vida, passatempos de casa de repouso, saudosismo, respeito a tradição, fé em ciência salvadora e em religiões consoladoras. Filmes que distraem, livros que ajudam. Tudo é sintoma de almas gagás.
Duas citações de Herbert Marcuse:
"a sexualidade foi liberada, mas ela serve à higiene, á saúde, estando divorciada do prazer explosivo. Sexualidade limitada que aspira à aceitação. Ao ser como todos são. Antes, as relações sexuais no campo permitiam que os interesses pelo mundo se expandissem; no motel, esses interresses são restrigidos ao ato em sí."
Em outro texto voltado ao nazismo, Marcuse notou que a liberdade sexual, voltada para a promiscuidade e a infidelidade, cumpriu um papel importante: não permitir que as pessoas criassem vínculos duradouros, tornando-as assim, substituíveis.
Como é mostrado no filme Cabaret, nos anos 20 o sexo livre tem seu nascimento revolucionário, mas ele é logo usado pelos nazis. Hitler estimula a promiscuidade como forma de desvalorizar as relações de grupo, os afetos, os vínculos. Tornar homens descartáveis.
Quanto ao sexo no campo, transar em motel sempre me deu engodo exatamente por isso ( embora eu não o soubesse ). Cercado por todo aquele cenário de sexo, mirando eu-mesmo em espelhos, o sexo feito ali é muito mais banal, é um exercicio de saúde, uma performance esperada. O oposto de sexo na praia, na rua ou no jardim. Nesses locais, o ato se liga a um rompimento do banal, ao novo, ao inesperado. Há a sensação de aventura, e com ela uma ligação com o meio. Seu corpo se lambuza de areia, de grama, voce é assistido pelo céu, pelo sol ou pela lua. Há uma expansão de voce com ela.
Por fim, discorre-se sobre maio de 68 ( sempre ele ) e seus slogans vencedores: "é proibido proibir" e o derrotado: "a imaginação no poder".
A juventude nunca mais aceitou a proibição explícita. Mas a reação da sociedade ( quanto maior o perigo de anarquia, maior a reação repressiva ) fez dessa não proibição um convite ao eterno novo: novos amigos, novos parceiros, novos objetos. A imaginação, atributo principal de toda revolução e de todo jovem, tornou-se meretriz do que já existe. Nada de imaginativo, apenas novas roupas para velhos reis.
E meninas de 10 anos já se pintam como senhoras de 30. Meninos de 15 estão desencantados como senhores de 40. Botox, plásticas, dietas e drogas. Coisas de velhos precoces, não de jovens corpos sedentos de vida e cheios de ideais.
Onde ser livre?

OS PAPÉIS DE ASPERN- HENRY JAMES- O DESEJO E A DERROTA

Henry James é genial pelo modo "como"escreve, e não "sobre" o que escreve. Por isso ele conquista àqueles que já descobriram os prazeres do estilo e sabem que enredo é coisa banal. Engenho é o que faz de um autor algo precioso.
Nesta novela (130 páginas), James conta a história de uma crítico literário americano. Apaixonado por romântico poeta falecido, ele descobre que uma de suas amantes ainda vive, em Veneza, e melhor, ela possui cartas do tal poeta ( o poeta é uma mistura de Byron e Shelley ). O livro narra a estratégia desse crítico para se apossar das cartas. Pois a velha senhora, já enferma, pensa em as queimar, e a filha dessa antiga amante, submissa a mãe, nada pode fazer.
O livro se passa em tempo em que ainda se valorizava o privado. É fato que preciosas cartas de poetas, dramaturgos ou políticos dos séculos xvii e xviii jamais vieram a ser publicadas. Os donos de tais cartas morriam com elas, sem aceitar dinheiro ou suborno para as ceder. James, escrevendo em fins do século xix, já vive a era de diários e cartas expostas.
Mas James vai mais longe. A novela acaba se tornando testemunho sobre um vilão ( o crítico é um vilão ) que nada tem de conscientemente ruim. Ele deseja algo a que dá muito valor ( as cartas ) por boa razão ( ele ama a poesia e o autor ). Mas tudo o que ele faz, sem o saber e sem planejar, é destrutivo. Ele desperta amor na solteirona, filha da antiga amante do poeta. Toca-a profundamente, e não tem a mínima consciência disso.
As duas mulheres nada têm de "poético". A velha pensa apenas em dinheiro, em dar segurança a filha. E a tal "moça" é uma passiva e raquítica senhora de meia-idade que vê no crítico a salvação de sua vida.
Ele a ilude, sem perceber, e quase rouba as cartas, sem que se considere um gatuno. Quando toma consciência do amor da solteirona fica assombrado. Acredita nada ter feito para a seduzir. Mas nós sabemos que não foi bem assim.
Henry James, que foi irmão de famoso filósofo e psicólogo americano ( William James, criador do pragmatismo ) penetra com soberba facilidade nos pensamentos e nas contradições dos personagens. Eles pensam uma coisa e fazem outra, sentem de um modo e comunicam de outro. Não são donos de seus desejos, de seu futuro e nem sequer sabem o que fizeram. Vitorianos pretensamente racionais, fazem tudo ao acaso, ao sabor do improviso. Controle só existe na arte, da qual James é mestre maior.
Ao lado de Proust e Mann, Tolstoi e Joyce, narrador supremo dos últimos 150 anos. Mestre.