STAR WARS- JEAN COCTEAU- PIERCE BROSNAN- DEADPOOL- MAGGIE SMITH

Voltei a ter tempo livre para ver alguns filmes. Então vamos lá...
   STAR WARS-O DESPERTAR DA FORÇA de J J Abrams
O diretor Abrams possui um dom que me agrada muito: ele faz com que os efeitos digitais não pareçam digitais e sim se pareçam com coisas naturais, os velhos efeitos com stunts. Melhor ainda, ele ama cenas de ação ensolaradas, cores claras, vivas, alegres. Há uma convenção, tola, de que toda cena de ação atualmente deva ser dark. Pois Abrams sempre vai contra isso. Seus filmes são mais felizes, leves que a média. Este é uma grande aventura com sabor de anos 50. Às vezes lembra Lawrence da Arábia ( que é de 1962, eu sei ), o deserto, o clima; depois vai às aventuras de pirata com Burt Lancaster e aos filmes de Ray Harryhausen. Bem legal. Harrison Ford volta e volta bem. Carrie Fisher volta melhor ainda. Tem até Max Von Sydow, o ator de O Sétimo Selo, do Bergman. A trilha sonora de John Willians é ótima e a fotografia é lindíssima. Nota 8.
   ENSINA-ME O AMOR de Tim Vaughan com Pierce Brosnan, Salma Hayek e Jessica Alba.
Sempre bom ver Pierce num filme. Ele sabe atuar e consegue parecer estiloso e real ao mesmo tempo. Aqui ele é um professor que se envolve com irmã da esposa. Malcolm McDowell aparece como o pai de Pierce. Tem poema de Yeats sendo recitado. O filme nada tem de especial, mas também nunca ofende. Nada de idiota, o que hoje já é um alivio. Salma continua uma beleza. Nota 5.
   DEADPOOL de Tim Miller com Ryan Reynolds
Um super-herói ruim...Nem tanto...talvez um super-herói demente...também não...é um filme estranho. Tem cenas de violência mas parece infantil, é um herói nada heroico. Sei lá! O filme é bem feito, engraçado às vezes, mas esquecemos dele depois de dois dias. Nota 5.
   ZOOLANDER 2
Ben Stiller e Owen Wilson voltam a atacar. Owen Wilson....como pode isso!!! O filme é tão bobo, tão sem graça, tão insuportável...Um lixo.
   A SENHORA DA VAN de Nicholas Hytner com Maggie Smith, Alex Jennings e Jim Broadbent.
Dizem ser uma história real. Nos anos 50 uma mulher atropela alguém dentro de uma van. Ela pira e passa a viver dentro dessa van. Nos anos 70 ela estaciona na rua de um escritor gay. E ele passa a cuidar dela. Maggie Smith está realmente suja! Faz um retrato exato de uma moradora de rua. A gente quase sente o cheiro. Alex Jennings, sutil e contido, lhe faz um par a altura. O autor real, Alan Bennet, aparece como ele mesmo ao final. O humor é bem negro e o drama quando vem é pesado. O retrato da sociedade inglesa é perfeito. Nota 6.
   O SANGUE DE UM POETA de Jean Cocteau
Feito em 1930, este é o primeiro filme de Cocteau, na época já um autor famoso. Não procure entender, são imagens de sonho, de passagem para o mundo da inconsciência.
   TESTAMENTO DE ORFEU de Jean Cocteau
E aqui, em 1959, seu último filme. Feito para a TV, é apenas um blá blá blá sobre sua obra surrealista. Tem momentos muito bons, outros bem chatos. Ele foi um grande diretor, mas aqui, já doente, vemos apenas isso, um testamento sendo lido e exibido. Picasso, Yul Brynner e Jean Marais aparecem no filme.

O MACACO MUTANTE

   Ando lendo algumas coisas sobre a origem do homem. Como tudo que se propõe a ser científico, nenhuma conclusão é tirada, e observo que todas as descobertas podem ser ficções, meros desejos transformados em pistas. Mas, se tratados como boa ficção, as tais descobertas são inspiradoras. E é para isso que leio ciência, e tenho lido muito, para aumentar minha criatividade. Essas descobertas, que são na verdade criações, aumentam a percepção de nossa própria invenção. Foi assim com Freud em 1900, é assim com a física quântica hoje; eles abrem possibilidades de novos modos de narrar. E isso, ao contrário do que deseja a ciência, nada tem a ver com a "verdade". São "verdades", outras verdades.
  O símio que viria a ser o homem teria se originado de uma única tribo africana. O que faria de nós todos um tipo de família. As uniões entre irmãos, primos e afins fez com que muitas mutações dessem em nada, mas algumas foram uteis e passaram a ser encorajadas. Essa tribo migrou para onde hoje é a Europa, e na região da atual Hungria, teve um salto evolutivo súbito. A linguagem simbólica passa a ser utilizada. Logo surge a palavra. E com ela o que conhecemos como modo humano de pensar. Essa tribo africana, que agora é europeia, convive com os neandertais, mais toscos, e que desaparecem a seguir. Os homo sapiens se espalham pela Asia, e o resto todos sabem.
  Muito bacana né. Mas porque houve a escolha ninguém explica. Como mutações foram encorajadas se símios mal sabem o que seja "escolher". O que provocou esse súbito salto que fez com que de repente os ainda amacacados passassem a pensar em termos de futuro, passado, escolhas, representações simbólicas, vida e morte, religião e arte... E, o mais perturbador, por que essa coisa de se colocar a Europa como centro do salto simbólico...
  Na realidade acho tudo mera aposta, apenas isso. O que me atrai é entrar dentro da ficção e como se tudo isso fosse um romance, aceitar esse mundo e passar a lidar com ele. Então vamos lá:
  Dentro dessa tribo, não mais que 500 macacos, um nasceu por acaso com forte propensão ao isolamento, outro era hiper agressivo, e uma tinha as mãos deformadas. Desses mutantes sobreviventes se originaram aquilo que chamaríamos de artistas, filósofos e inventores. A história humana se confunde então com algo não muito mais sofisticado que os X Men ou os bruxos de Harry Potter. Legal isso né não...
  Um Ser criador, que fabricou um ser original que deu origem ao homem, e que por seu erro nos fez piores do que poderíamos ter sido, me parece algo bem mais sofisticado ou no mínimo tão crível quanto a tribo mutante africana. Mas se eu endossar esse Ser serei chamado por meus colegas de mais um "mero crente", enquanto que se eu endossar a hipótese do macaco mutante ou do ET emigrante serei muito mais estimulado. Coisas do século XXI, o século sem vergonha onde tudo pode ser levado a sério desde que pareça NOVO.
   Mas é uma bela e estimulante ficção essa coisa do X Monkey!

ESTUDOS SOBRE ARTE- GOETHE

   Não preciso falar do estilo de Goethe, é sempre prazeroso e admirável; mas preciso contar que este livro é árduo. Ler sobre as opiniões de Goethe sobre arquitetura e pintura, escultura e estética, é em seu melhor entender que mesmo uma mente titânica como a do alemão, erra e erra muito; e por outro lado observar que todos somos vítimas de nosso tempo; por maior que seja nosso espírito ele se molda a sua época.
  Goethe começa elogiando a correção dos gregos, depois elogia o exagero gótico e por fim retorna a clareza dos antigos. Beleza para ele é equilíbrio, perfeição é exatidão e nobreza vem do saber fazer. Talvez seja isso mesmo, mas as ideias se repetem a exaustão. E depois ele se contradiz, conscientemente, ao elogiar o caráter alemão gótico.
  Certo é que ele mantém sempre seus olhos em Atenas e isso evita sua confusão.
  Nada prazeroso, este é um livro que, vergonha minha, já joguei fora.

O PRELÚDIO- WILLIAM WORDSWORTH. VIAGEM, CRESCIMENTO E REVOLUÇÃO.

   Se Yeats é o poeta que melhor expressa meu intelecto, então Wordsworth é aquele que fala dos meus olhos. Este poeta, símbolo maior do romantismo, escreveu na virada do século XVIII para o XIX aquilo que meus olhos percebem hoje. Ele olhava. Toda sua poesia é uma grande observação sobre as coisas. E a maneira como ele enxerga é "grande".
  Wordsworth nasceu na região dos lagos, o norte da Inglaterra. Fascinado por tudo o que viu desde cedo, ele passou sua longa vida recordando cenas, descrevendo paisagens, desnudando observações. Das várias ideias sublimes que o poeta teve, talvez a maior seja a de que a inspiração vem da memória e que a impotência criativa pode ser curada ao se relembrar um momento de epifania. Wordsworth nunca chega a ser místico, mas a alma das coisas está sempre presente.
  Nesta obra, longa e colorida, ele, como é seu hábito, caminha. Percorre o norte, mas também anda pelos Alpes, pela França, Londres e Paris. Devemos lembrar que é exatamente nessa época que é instituído o turismo. Wordsworth foi dos primeiros, senão o primeiro, a escrever sobre os Alpes como lugar de lazer, de prazer, de fruição. Depois ele anda pela França e descreve Paris, a cidade em tempos de revolução. O poeta fala do novo tempo, da liberdade, das ruas e das pessoas simples. Uma de suas várias fés e a de que o povo simples está muito mais perto da verdade que os letrados catedráticos. Nisso Wordsworth é profundamente democrático, e assim podemos entender porque Whitman é seu discípulo. Como o inglês mais velho, o americano caminha, ama a estrada e o povo, a liberdade. As diferenças são aquelas de país e de geração: Whitman ama a ideia de democracia, Wordsworth ama a democracia como modo de vida; Whitman viaja para ver gente, Wordsworth viaja para encontrar a verdade; o americano se entrega às pessoas, Wordsworth se dá a paisagem. São irmãos. O americano na versão protestante, da exaltação ao modo do púlpito e o inglês ao modo discreto, a reserva do homem do senso-comum.
  O poema caminha também como uma quase auto-biografia. Ele fala da escola, da vida livre nos campos, das viagens e da maturidade. Reporta a revolução francesa, e também a industrialização de Londres. Se perde na metrópole, vê os tipos, os personagens, volta a sua vida interior, perde a inspiração, a recupera.
  Diário íntimo, relato de excursão a pé, documento histórico. Esta obra, longa e clara, é um dos tesouros do mundo. Ler é um prazer.

ALI

   Uma questão que fica sem resposta desde o século XVII é o que faz um gênio surgir. Mais que isso, o por que de ele nascer exatamente no momento em que nasce. ALI mudou o mundo com sua presença ou o mundo preparou o surgimento de um Muhammad Ali...essa a questão. Na verdade há uma mistura das duas coisas. O mundo em seu desenvolvimento histórico pede pelo surgimento de um homem que ocupe um lugar e cumpra um dever; e nasce uma pessoa que sente, intui e percebe o momento em que vive. Essa pessoa se ergue, levanta a cabeça e segue. Cumpre a missão. Ocupa aquele lugar.
   A geração nascida nos anos 40 é tão especial por ser a geração das oportunidades. Sim, parece um papo muito americano-capitalista, e é. Foi a primeira geração, em toda a história do mundo, a ter livre acesso a informação, a ter tempo livre, a viver dentro dos trinta anos mais prósperos do ocidente. Eles cresceram junto com o crescimento da TV, cinema a cores, rádio, imprensa underground, gravadoras de discos, voos internacionais. Mais importante que tudo, foi a geração que viveu em um planeta onde a maior parte das pessoas tinha menos de 30 anos. Baby Boomers.
   O otimismo imperava, mesmo que irado. É preciso ser um otimista para crer na paz, no direito, no amor. E na igualdade racial. ALI foi tão especial por, assim como Pelé, atender ao chamado do esporte, mas diferente de qualquer outro esportista, a atender também ao chamado de seu povo e de sua época. O futebol precisava em 1960 de um jovem mito. Pelé surgiu. Precisava o automobilismo de um jovem mártir e Jim Clark foi esse cara. Assim como o tênis, o golfe, o basquete, o ciclismo, todo esporte teve seu CARA na explosão da TV. E desse modo, Os Beatles também são filhos desse momento. O mundo queria um mito do rock. Uma fábrica de hits. A trilha sonora de um sonho. ALI se encaixa nesse panorama, mas ele o transcendeu. Foi além do que o mundo queria. Esfregou seu ego, preto e vaidoso, falastrão e sem censura, na cara de todos. Ao contrário de Pelé, Clark, ou mesmo Eddy Merckx, Rod Laver, Palmer e Chamberlain, ALI saiu do mundo da competição esportiva e se fez um porta voz de uma era. Por isso de todos eles é o único que pode-se dizer que mudou mais que sua profissão, mudou um mundo.
  Olhe para um rapper e voce verá muito de ALI. Olhe para Obama e voce verá um filho de ALI. Ele abriu caminho, dividiu mares, e o mais importante, soube unir quando foi preciso. Foi sábio.
  Muita gente no esporte depois de ALI e sua geração tentou ser mito. Para os brasileiros, Senna é um mito. Para os argentinos, Maradona. Para os italianos, Pantani. Mas nada do que Senna falou tem qualquer relevância, nada do que Maradona disse tem seriedade e nada do que qualquer outro esportista disse vai além do prosaico. ALI foi um grande Homem. Muito mais que um boxeador.
  Que Deus lhe dê a paz merecida.

WALT NO SEU DIA DE ANOS

   Walt Whitman é, com Rimbaud e Baudelaire, o mais celebrado do poetas. Portanto no dia de seu aniversário, 31, não me sinto em dívida para o homenagear. Penso que muito mais relevante é dar graças ao mundo que ele amava.
 O mundo aberto, das estradas sem fronteira, onde os caminhos vazios se abrem para quem quiser os percorrer. O mundo das pessoas anônimas, que vivem sua vida corporal, com seus músculos retesados, suor escorrendo, faces sujas de trabalho. A liberdade de ser vários em um, de se contradizer, de negar aquilo que se acabou de falar, de gostar de tudo, de comer, beber e amar o mundo. A vida de Walt é a celebração da vida e é por isso que essa poesia do otimismo, do emigrante, do nativo que sabe estar em seu lugar, moldou os EUA, o país do otimismo institucionalizado. Ao contrário do europeu, sempre hesitante, sempre relativista, o americano bota as mãos e toma posse, constrói, vai adiante sempre, marcha ao futuro, pensa pouco no passado, caminha o caminho adiante, vai.
 A gente nunca sabe se um poeta molda um país ou se percebe a alma de uma nação e a traduz antes de que ela seja percebida. Walt dá voz e estatuto à América. Ele e Mark Twain são o lado solar do país. ( Hawthorne e Melville expõe o lado escuro da nação ).
 Descobrir Whitman quando o descobri foi fundamental para minha vida. Ele me revitalizou, me deu voz, me levou pra frente. Desde então outros poetas eu conheci. Hoje amo mais a Yeats, Keats, Eliot e Stevens. Mas foi Walt que me fez descobrir a poesia. Foi com ele que aprendi a ler poemas do jeito certo. Ele me pariu.

A GERAÇÃO QUE FAZ DE CONTA

   A minha é a geração do faz de conta. Conheço quem faça de conta ser um beat. Outro finge e acredita ser Keith Richards. O desejo e a imaginação se tornaram coisas mágicas, reais...faz de conta né. Assim mulheres fazem de conta ser diva e casais fingem e têm fé em ser Brad e Angelina. Vários fazem de conta ser escritor ( e nunca escrevem ), outros brincam de fazer cinema ( e nunca filmam nada ). Eu fiz de conta ser Heminguay. Depois Yeats. Gosto de fingir ser medieval.
   Pessoas fazem de conta ser budista, católico, ateu, existencialista.
   O Brasil sempre acreditou nesse faz de conta. A gente gosta de crer na culpa de Portugal, da Inglaterra e dos EUA. Adoramos fazer de conta que somos inocentes. E alegres opa! É nóis!
   Há toda uma geração que inveja a geração que tinha vinte anos nos anos 60. Essa geração ama fazer de conta que Oasis foi Beatles, Radiohead Pink Floyd e que o Blur foi Stones. Vão a festivais brincar de Woodstock. Caem na estrada brincando de ser estradeiro e ecológico.
   Esses brincalhões brincam. Fazem de conta. Forçam a barra.
   É fácil ser estradeiro com GPS e celular. Fácil imitar Bukowski ou Kerouac. ( Difícil seria brincar de Proust ou de Nabokov...mas aí não vale, brincar tem de ser moleza né ). Fácil ser gay em mundo cheio de politicamente corretos. ( Talvez não tão fácil, mas bem menos difícil ). Faz de conta que este blog será lido. Faz de conta que voce lê.
   O tal Golpe é uma das mais tolas brincadeirinhas. Ninguém foi censurado, ninguém foi exilado, ninguém foi apagado, o exército não saiu à rua, todos podem ir e vir, não se cassou ninguém. Pode-se pregar revolução, xingar, chamar pra briga e tudo bem. Mas...minha geração quer sentir o sabor de estar em 1968 ( óh 68....quanta inveja....como eu queria ter nascido em 48... ). Então faz de conta que a gente é revolucionário, faz de conta que é um golpe e faz de conta que a gente corre perigo. Um barato ser rebelde sem o risco de ser morto.
  Na verdade, se voce pensar um pouco, todas essas brincadeiras desvalorizam os verdadeiros rebeldes e os verdadeiros mortos.
  Na USP se vende por 25 paus camisetas com a palavra GOLPE!
  É isso aí.
  PS: A geração mais nova adora fazer de conta que vive num filme pornô. Ou num mangá.
  
 

FRANÇOIS VILLON, BALADA DOS ENFORCADOS E OUTROS POEMAS.

   Menino órfão, solto nas ruas de Paris no século XV, Villon teve a sorte de ser adotado e de estudar. Religioso, caiu no mundo do roubo nas ruas, foi preso várias vezes, escapou, rodou cidades, foi perdoado, roubou de novo, sumiu. E escrevia poesia.
   Em boa tradução de Péricles Eugênio da Silva Mendes, sua poesia, visual, sensual, nos dá a chance de saborear a vida das ruas, das tabernas e também da corte europeia de então. Cheio de prazer por viver, consciente todo o tempo da precariedade da vida, pensador sobre as coisas do tempo, Villon é moderno, atemporal, cantante e bastante visual.
   Leia correndo. Esta edição de bolso, da Hedra, é fácil de achar.

AS METAMORFOSES, OVÍDIO...DEUSES, HERÓIS, LUTA E SEXO.

   É um mundo irrecuperável. Jamais saberemos como eram os homens que cantavam estas histórias. Mas podemos os intuir. Por exemplo, eles riam de cenas que hoje nos causam horror. E achavam natural atos como vingança, tortura e estupro. Não necessariamente justos, naturais.
  Certo também que os sentimentos eram expressos de um modo que hoje seria chamado de histérico. Dor e alegria eram plena e completamente exteriorizados. A vida interior era muito menos secreta. A vida era vivida em público, a solidão era castigo.
  E existiam os deuses. Muitos, muitos deuses. Se Netuno era o deus do mar, ainda tínhamos deuses das ondas, das praias, dos rios, dos lagos, das fontes. O que me leva a perceber que toda ação da natureza tinha uma força que a movia, essa força era um deus. Deuses vingativos, ciumentos, cruéis e muito, muito amorais. Eles exigiam respeito, obediência completa, e muitas oferendas.
  Os homens tinham alma, mas ao morrer todos iam para o Hades, o inferno.  E os animais eram todos feios, feras, bestas. A hospitalidade era divina, e negar hospedagem era um dos maiores pecados. Estrangeiros eram bárbaros, a cidade era um orgulho e os antepassados deviam ser venerados.
  E nasciam heróis. Homens com sangue de deus.
  E este livro, delicioso, uma das obras mais divertidas que li na vida, fala deles. E dos deuses.
  São várias histórias de humanos envolvidos com deuses, amados e vingados por eles, transformados em árvores, bichos, pedras. Daí o nome Metamorfoses. Cenas de extrema violência descritas em detalhe: sangue e tripas, miolos que escorrem, olhos que são arrancados. E sexo, deuses que seduzem moças virgens, heróis que estupram, raptam. E nós lemos tudo isso, com prazer. A tradução, de Vera Lúcia Magyar, conseguiu manter ritmo, as cenas fluem, rodam, avançam. Sagas que são canções.
  Ovídio conviveu com os nobres romanos. Sua vida transcorreu no tempo em que Jesus vivia na Galiléia. É o auge do império Romano. A confiança é total. Há uma certeza de eternidade em cada cena. O poder da permanência.
  Ainda se discute, hoje, se os romanos realmente acreditavam nos deuses. Dizem agora que o único deus que era levado a sério era Lares, deusa protetora do lar. Penso que a forma cristã como entendemos a fé seria para eles incompreensível. Assim como nunca vamos compreender deuses tão imorais. O modo como os romanos se relacionavam com eles nos será sempre mistério. O que sabemos é que cumpriam rituais, sacrificavam bichos e faziam pedidos. No mais...não sabemos.
  Todos deveriam ler este livro.

MOBY DICK, HERMAN MELVILLE

   Meu nome é Ismael.
   É desse modo que começa esse romance. Um dos 3 melhores começos de livro que já li. Moby Dick é vasto como um país, e assim como Whitman na poesia e Emerson no ensaio, Melville faz no romance o parto da América. Na busca febril de Ahab pela baleia se antecipa a busca de uma nação pelo controle do irracional, pelo poder sobre a natureza e da riqueza mítica.
 A linguagem é a língua "americana", ou seja, a língua do púlpito. A leitura em voz alta seria ideal, mas se você ler silenciosamente, imagine sempre um leitor no alto de um estrado e vários ouvintes em bancos de madeira. Melville escreve não para o leitor, ele escreve para Deus, e esse Deus é vingativo, cruel, duro, como o mar.
 Este livro parece escrito com lama, lodo, sangue e gordura de baleia. É desagradável, muitas vezes chato, fechado em seu mundo escuro, frio e tenebroso, violento. A luz custa a surgir e quando surge logo morre.
 Moby Dick, como todo grande livro, é um universo completo, ele se basta e apesar de muito influente não deixa filhos. Único.
 PS: Os outros inicios são os de Anna Karenina e de O Caminho de Swann.

TEMPO

   Vivi noites que repercutem como séculos. E vivi anos que nada deixaram atrás de si.
Vamos então ter a coragem de dar ouvido à nossa intuição e perceber, entender, aceitar que o tempo é outra coisa bem diversa daquela que a gente é ensinada a acatar. Com absoluta certeza não se trata de uma reta e muito menos de um peso.
  Aquela noite, 15, 20 anos atrás, durou anos, e aqueles anos, 15, 20 anos atrás duraram dias.
 Uma vida pode durar milênios, ou durar meses, segundos, um nada.
 ( Mas estou barateando a coisa enquanto falo em dias, anos ou milênios. É difícil fugir das armadilhas da linguagem ).
 A língua foi criada para contar cabras e para narrar guerras. Ela foi forçada a falar de sentimentos e de intuição.
 Aquela noite não pode ser descrita com linhas e letras. Talvez possa ser cantada em pura melodia.
 E é só.

A METAFÍSICA DA AÇÃO- PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO ESCREVE SOBRE HENRI BERGSON

   Operar com o real obriga nossa mente a separar artificialmente os objetos de nós mesmos. Para usar e agir sobre a matéria temos de isolar as coisas-objetos em entidades separadas. Essa "ilusão" utilitária, faz com que nossos estados emocionais sejam também vistos como acontecimentos independentes. Como pérolas num colar, cada estado emocional se torna um mundo em si-mesmo. Mas para manter essas "pérolas" unidas é preciso um fio, esse fio se torna o tempo, e assim caímos em mais uma ilusão, aquela que diz ser o tempo uma linha que une fatos da vida.
  Bergson dá uma visão inversa: o tempo é a própria substância onde os acontecimentos ocorrem. Sem o tempo nada haveria. Ele não une nada, não pode ser utilizado para nenhum fim, não pode ser percebido, contado ou medido; é onde estamos, o que nos envolve e dele só temos consciência no tênue momento da intuição.
  Eu jamais escreveria sobre Bérgson se não tivesse tido essa intuição. Duas ou três vezes em mais de 50 anos de vida eu a senti. E por mais que tente a descrever eu não posso. Isso porque as palavras, ferramentas uteis, nada têm a dizer sobre o tempo. Palavras falam de coisas e de atos uteis. Palavras falam da nossa ação sobre o real. A vida, a realidade, são construídos enquanto são vividos, estão no tempo. Portanto não há como sairmos dele para o observar. Palavras nos aprisionam em esquemas asfixiadores, fechados, lutam para acalmar a razão. A razão, o mais útil dos instrumentos, precisa agir sobre aquilo que é real. O homem, único ser que consegue analisar com palavras a própria palavra, que pode pensar o pensamento, que consegue não reagir aos estímulos do corpo, não consegue sair do tempo, cessar o tempo, medir o tempo. É aí que Bergson situa toda sua filosofia da ação e da liberdade.
  O corpo é real. O corpo é presente. A memória não. Daí um dos nossos nós. A memória está e não está, existe e não existe, vem e vai, some e renasce. O cérebro, que para o filósofo francês, é antes um fio condutor e nunca uma máquina produtora, recolhe da memória aquilo que nos é prático, aquilo que serve para uma ação. O resto, memória que jamais desparece, fica em reserva, no sonho, no delírio, na intuição.
  Algumas frases de Bérgson são admiráveis: " Para deixar o espírito agir a liberdade faz do corpo um intermediário". " O cérebro não teria por função pensar, mas fazer com que o pensamento não se perca em sonho."
  Ele vai de Darwin á Kant, e aqui neste livro é Bérgson comentado por Merleau-Ponty e Lebrun. Se fala de William James, Barthes, Jankélevitch e Deleuze. Não se fecha nada, tudo fica em aberto, nenhuma verdade é revelada. Pode-se dizer que é o filósofo da ação, do agir, do fazer.
  O autor, Pablo Enrique Abraham Zunino, tenta abarcar amplas fatias do pensamento de nosso filósofo, quase consegue. Melhor ler diretamente Bérgson. Ele escrevia muito bem. Ganhou até o Nobel. Escrevo mais abaixo.