POLIEDRO- MURILO MENDES

   Murilo Mendes é meu poeta brasileiro. Estou lendo sua obra em prosa. Mas a questão é: ele escreve prosa? Poliedro é verso? No livro ele descreve seres e coisas. Laranja, Bicho Preguiça. Uma Girafa. Tomate. E vai por aí.... Lembro criança. Sim, criança. Criança vê naturalmente e sem esforço o que o poeta vê aqui, em Poliedro. Eu fui criança bem criança e sei que é assim. O Limão é O Limão, único entre limões. E a gente o vê como aquilo que ele é: Coisa única e particular entre coisas que são todas únicas. A gente só coloca Tudo num lugar comum quando se cansa de ver e começa a ficar Velho. Enquanto o Olho é novo tudo é novo.
   Poliedro então voce lê vendo. Porque lendo voce olha as letras e vê nas palavras aquilo que está sendo visto por aquele que escreve. E fala. É prosa? Como pode ser prosa se a gente sente o cheiro das coisas e se cada palavra é investida de Vida? 
   Tem outros livros de Murilo aqui. Um é sobre lugares da Europa. Outro só para a Espanha. E um outro para a Itália. Ele viveu lá. E conheceu De Chirico, Arp, Moravia, Cocteau, Miró. 
   Murilo Mendes me pega porque ler Murilo é comer palavras. Elas surgem redondas e deslizam goela adentro. São ácidas, são doces, gordurosas ou refrescantes. Sempre frutas. Às vezes peixe. Nunca flores. Cozinheiro ele as prepara em caldeirão. Borbulham ao fogo da mente mineira. O aroma se espalha por montanhas e se deixa levar pelo vento. 
   Aqui no Caxingui eu as recolho. E engulo. E essas palavras-condimentos, que em outras cozinhas eram comida fria e esquecida, aqui nos Poliedros são novidades frescas das hortas e fazendas de Murilo Mendes. 
   Dizem os sábios que um dia, quando o homem era jovem ( agora somos velhos ), as palavras tinham essa força. Pouco usadas, ainda cantadas, elas eram veneradas por seu poder de trazer à mente-vida as coisas ausentes. Jogo de memória, feitiço, a palavra pedra fazia com que a pedra voltasse a sua presença anterior. Mas então a palavra desgastou-se e a pedra falada se fez apenas um som indistinto, pálida lembrança da lembrança de uma tradução do que fora um dia A Pedra. Pois Murilo faz da pedra vulgar de cada dia a Pedra original e jovem de tempos nunca perdidos. Com a voz e com a escrita ele dá vida.
   Poliedro é maternidade de sentidos.

SEXTA DA PAIXÃO, VAMOS AO SHOPPING COMPRAR UM CELULAR NOVO?

   Na TV Fátima Bernardes balança as cadeiras ao som do pagode. O mundo não pode parar, afinal, servos que somos do trabalho e do consumo, obedecemos às ordens do relógio e do calendário: Tempo de trabalhar, Tempo de Gastar. E isso é tudo. A vida resumida a dois atos que se complementam, o resto pode ser chamado de "sonho", "irrazão" ou "saudosismo".
   Antes desse tempo havia o calendário da religião. Éramos então servos da igreja e nosso tempo era por ela ditado. Hoje seria o dia do arrependimento, da dor, do silêncio. Pouco me importa se esse calendário era melhor ou pior, o fato é que não podemos mais ter um dia de recolhimento e de silêncio. É proibido. Penso outras coisas...
   Jovens "rebeldes" hoje irão gastar seu dinheiro em cerveja e no Lolla. Rebeldia né? Gastar mil reais, consumir bandas pop e posar de anti-capitalista. No dia em que era antes proibido ouvir música. Mais que "triste", o antigo mundo cristão condenava o consumo. O movimento ateu está intimamente ligado a "felicidade" de gastar. Situação insustentável de Roma: protestantes jamais tiveram problemas com o capital, católicos lidam com esse problema: como cultuar um Deus pobre e despojado e acumular bens ao mesmo tempo? 
   Houve o momento em que o centro de uma cidade era a catedral. Depois passou a ser o palácio do rei. No século XIX passa a ser o banco e a bolsa de valores. Hoje é o shopping center. Da catedral ao shopping center se fez um trajeto puramente racional. O trabalho e o consumo são os prazeres possíveis da razão. Sexta-Feira Santa não pode ser recolhimento. Tem de se gastar.
   Não creio, como Unamuno, em fé sem dúvida. Um ateu que não vacila ou um religioso que não faz exames de consciência nada valem. Estão mortos. ( E lembro da frase dita por Bob Dylan em 1965: Voces estão ocupados em morrer, eu me ocupo em nascer! ), bem, já fui um ateu radical, hoje sou um homem ocupado em tentar nascer. Não consigo crer. Não consigo descrer. É uma posição terrível. Conheço os dois mundos: O Ressentimento perante o crente, a raiva inconfessável que o ateu sente perante a certeza contente do crente, e o não querer discutir nada, o autoritarismo do carola. Me ocupo em nascer: Não me preocupo em conhecer Deus ou em saber sua não-existência. Procuro conhecer as coisas que são o que são. Tento não me fechar ao novo. E esse novo pode vir de 500 a/c ou de Toledo em 1600.  Questiono. E desprezo todo homem de certezas e de verdades.
   Um oriental não compreende como é possível um deus vir à Terra para se deixar matar. Porque ele não saiu da cruz e matou seus rivais? Eu também não sei. E pouco me importo em saber. O que me interessa é o fato de SER. Foi assim. Tendo Cristo existido ou não, foi assim. E é esse auto-sacrificio que chamamos de AMOR.  Jesus na cruz nega seu ego, sua máscara, e se dá em negação de si. Esse é um conceito oriental. Jesus nega a ilusão de seu Eu e se funde à vida morrendo. Surge na Páscoa revivido, livre de ilusão, unido ao Todo.  Até aí eu posso entender com minha razão. Daí para a frente preciso ter a humildade de confessar: Não sei, frase tão dificil de ser dita por um inteligentinho, Não sei. A razão entende o que é da razão. E o que não é de sua alçada que tenha a humildade de dizer sua incompetência.
   É Sexta-Feira Santa. Eu vou ouvir música, vou rir, vou gastar dinheiro. Mas pensem no que este dia já foi, no que poderia ser e naquilo que nos foi ROUBADO.  O recolhimento, a confissão, a negação, a fé.

ESPELHO DO MAR- JOSEPH CONRAD

   Conrad é sempre vasto. O texto é caudaloso, tempestuoso e filosófico. Ele navega entre vagalhões, desce, afunda, sobe, flui e se joga. Como pode um polonês ter tal dominio sobre o inglês? 
   Conrad foi marinheiro. Começa a escrever só aos 36 anos. Por vinte anos foi homem do mar. Saído da terra natal, fez-se súdito da marinha mercante inglesa. Conheceu o mundo: Àfrica, India, Taiti, Hawaii, EUA, Chile, Austrália. Mais que tudo, viu o mar.
   Ao fim da vida ele escreve este livro. Autobiografia que se recusa a falar de si-mesmo. Aqui ele conta o mar. Cada parte é um aspecto da vida marinheira: portos, estaleiros, velas, barcos novos, tempestades, âncoras, cordas, correntes, neblina, carga. Descreve. O livro é quase uma enciclopédia da vida ao mar. Termos técnicos, ele ensina. E pouco diz de si. 
   Na introdução ele conta: O livro é uma homenagem aos homens e aos barcos que ele conheceu no mar. Barcos a vela, nervosos, barcos que seguem o vento.
   Joseph Conrad define o que é arte: "Atividade em que não sabemos para onde vamos e se lá iremos chegar." Portanto, navegar a vela é arte, o navio a vapor não. O vapor segue horário, rota, rotina, ele é indústria e ciência exata. A vela é arte: improvisa, se arrisca, nunca sabe o que vai dar.
   Enigma Conrad. Um autor de livros de aventura que são tão complexos quanto Henry James e tão filosóficos quanto Thomas Mann. Para muitos é o maior escritor que a Inglaterra já teve. Polonês. Eslavo.
   Para quem ama o mar eis um livro obrigatório.

HOMENAGEM À ITÁLIA- PARTE DOIS

   Ingleses são comerciantes. Seu modo correto, sua voz parcimoniosa é aquela do vendedor de tecidos. Nunca pense que aquele modo reservado é timidez ou fineza. Eles são empregados de armarinhos: marinheiros mercantes, publicitários, astros pop: comerciantes. Já os franceses medem tudo. Esquadrinham o pensamento, dividem as ações. esperam colher novidades em data certa. São agricultores. A alma da França está sempre pensando nos melões, nos cogumelos e nas vagens. Alemães caçam. Farejam e armam o laço. Miram e atiram. Ficam quietos, aguardam. Pegam o javali e o transformam em linguiças. Portugueses são marinheiros-pescadores. Partem ao mar e desejam não ter ido. Sentem saudades. E nós, brasileiros, somos bandeirantes. Nosso sonho é topar com a mina de prata, nossa fortuna será a da sorte e não a do engenho. Exploramos. 
   E a Itália? 
   A Itália não é. Ela se afirma pela negação. E nesse "não sou e não quero" ela está sempre certa. Deixem a Itália ser a Itália! Ela não vende tecidos, os veste. Não planta, come. Jamais caça, pinta o bosque em telas coloridas. Não navega, canta ao mar. Não descobre minas, as inventa. Italianos....
   Doce Vida de Fellini.... cafés nas calçadas e máquinas estacionadas. Gente que flana, gente que vê. A fantasia como a maior e melhor das realidades. Vale a pena viver sem ser felliniano? Claro que não! A procura do amor e tudo terminando em ópera. 
   Não façam de Roma uma Berlin ! 
   Italianos pensam com a barriga: estômago, fígado e rins. Quem pode dizer que a vesícula é menos que a cabeça? Italianos são sempre grandes e trazem o rei na barriga.
   Uma questão: Existe a palavra simpatia na Inglaterra? Existe um alemão simpático? Para entender a Itália ou a latinidade é preciso saber o que seja "simpatia". Isso explica tudo, de Sophia Loren a Da Vinci, de Berlusconi a Monicelli e Totó. 
   Se o mundo fosse italiano e não americano teríamos a simpatia como conceito central e não a eficiência. Iríamos valorizar o prazer e não a vitória. Dolce far niente e jamais time is money.
   Há algo mais italiano que Mastroianni em Divórcio a Italiana? O homem latino apaixonado pela prima e tramando a morte da esposa. A vaidade do galo, sua comicidade hedonista. E o que falar de Gassman em Brancaleone? Os discursos pomposos que nada significam, a poesia de se crer em algo que se faz verdade. Os amigos de Eternos Desconhecidos, homens que perdem tudo por um prato de spaguetti.  ( Uma certeza: quem não ama o cinema italiano nada sabe de cinema. Pior, está morto para a vida: A Doce Vida ).
   Uvas na feira. E o pão estalando. O bambolear da morena farta que anda com seu vestido leve. Um elegante ajeita seu bigode. Roupas ao varal. Tomates e cheiro de limão. 
   Dante, Petrarca, Cavalcanti....O amor nasceu na Itália. O amor de Clara e Francisco, de Beatriz e Dante. Não qualquer amor. Não falo do amor grego que é amizade ou do amor celta que é familia. Falo de Amore. Que canta, espera, promete...
   A Itália nunca será Europa. Como a Grécia e a Irlanda, ela é uma ilha. E será sempre Roma: imperial, católica, auto-centrada, hedonista, vaidosa, contraditória, mafiosa. Lá a Mamma nunca ficará só.
   E quem pode dizer que eles não estão certos?
   Se voce sente que esquece o que seja Viver...Viva a Itália!

HANSON/ DIANE LANE/ DICKENS/ BIG WAVES/WESTERNS RUINS/ PARKER

   PARKER de Taylor Hackford com Jason Statham, Jennifer Lopez, Nick Nolte
Hackford é o tipo do profissional pra toda obra. Ele pouco se preocupa em "provar" sua inteligência ou seu talento artistico. Ele filma em função do roteiro, ele conta uma história, narra. Foi assim com Ray, com A Força do Destino ou Advogado do Diabo. Aqui, usando o carismático Statham, o que se narra é uma ótima história de malandragem. Ação, suspense e humor. Que mais voce quer? Eis o cinema ao estilo Curtiz, Hawks e Sturges. Pura eficiência. Vamos deixar de ser idiotas. Cinema também é e sobretudo é, circo. Amar o cinema é amar tudo o que ele tem de mais vital, de mais verdadeiro. A emoção, o objetivo alcançado, a alegria do fazer, a satisfação do público que ainda crê nessa arte tão mal entendida. Há quem procure num filme filosofia. Ora, deixe de ser preguiçoso e vá ler Kant ou Hegel. Há quem procure no cinema Anna Karenina ou Morte em Veneza. Deixe de ser preguiçoso e vá ler os livros de Mann e Tolstoi. Cinema é imagem em movimento, cinema é fantasia, magia que pode ser alegre, triste, perturbadora ou futil, mas que deve ser sempre movimento, cinema. Hawks, Hitchcock e Ford me ensinaram isso. Nota 8.
   O VALE DA VINGANÇA  de Richard Thorpe com Burt Lancaster e Robert Walker
Um faroeste ruim. E assim como acontece com musicais, um faroeste quando é ruim é o pior tipo de filme que há. O que é um faroeste ruim? É um filme sem ação, sem nada de mitológico, arrumadinho, limpo, higiênico. Burt está mal utilizado e o filme é um tédio. Nota 2.
   OBRIGADO A MATAR de Joseph H. Lewis com Randolph Scott
Outro mal faroeste. Nada acontece nesta pseudo-aventura sobre ex-matador agora da paz. Lewis foi um diretor B que os Cahiers adoravam. Ele não é aquilo que os franceses gostariam que fosse. Nota 1.
   HERANÇA SAGRADA de Douglas Sirk com Rock Hudson e Barbara Rush
Ross Hunter produz na Universal este western em que Hudson faz um indio pacifico. Sua luta é contra seus companheiros comanches, ainda em guerra. Sirk dirige e carrega no drama familiar, sua especialidade. A fotografia é belíssima. O filme acaba poe ser comum, indefinido entre ação e drama. Nota 4.
   O AMANTE DA RAINHA
Filme dinamarquês. Indicado ao Oscar 2012. Fala de um rei meio insano e de sua rainha inglesa, do bem. Ela se envolve com um médico moderninho. Hum... e daí? O filme é horrivelmente tolo. Nada consegue mostrar da época observada. O rei é um maluquinho de 2012, assim como a rainha parece saída de algum café de Copenhaguen. Pior é o médico: sociólogo da Vila Madalena, nada nele é de verdade. Iluministas não eram como esse bobinho, reis loucos não eram como esse tontinho e rainhas esclarecidas não se portavam como essa dondoca do Arouche. Queres conhecer de verdade a época retratada? Barry Lyndon de Kubrick ou Ligações Perigosas de Frears é vosso filme. Ah sim! Este filme poderia ser uma deleitosa fantasia como o Anna Karenina de Joe Wright, um show de técnica que nunca tenta ser retrato fiel de 1880. Mas esta tolice nada tem de deleite, muito menos de show. Zero.
   TUDO POR UM SONHO de Curtis Hanson e Michael Apted com Gerard Butler, Abigail Spencer
História real sobre um garoto dos anos 80 que se torna um surfista de big waves ( Maverick ). Na verdade o filme tem o esquema de um western: o veterano amargo que ensina o novato empolgado. Butler está bem como o rei veterano e anti-social das big waves. Ele produziu o filme com Hanson. É um filme modesto, simples e sincero. Nada de especial, mas tem cenas no mar incríveis e sem efeitos digitais. Hanson foi o grande diretor de Garotos Incríveis e de LA Confidential. Apted teve fama nos anos 80 de muito bom diretor. Porque dois diretores? Brigas? Filme ok. Nota 5.
   SOB O SOL DA TOSCANA de Audrey Wells com Diane Lane e Raoul Bova
Li o livro e gostei. O filme foge do livro, muda tudo. Coisas do cinema.... Lane, sempre adorável e bonita, ( a acompanho desde 1979!!! Ela começou em Pequeno Romance com Laurence Olivier aos 13 anos.... ) bem, aqui ela é uma mulher que leva um pé do marido e acaba na Itália, onde compra casa caindo aos pedaços. Assim como acontece com os livros de Peter Mayle, vemos uma americana em contato com uma cultura mais antiga, mais relax, muito mais sensual. O filme é lindo de se olhar e nunca ofende a inteligência. Nota 6.
   GRANDES ESPERANÇAS de Adolfo Cuáron com Ethan Hawke, Gwyneth Paltrow e Anne Bancroft
Assisti em 2000 e não gostei. Dei mais uma chance ontem...Em 1945 David Lean fez um belíssimo filme sobre este livro de Dickens. E quando Lean fazia um filme belo, bem, era um filme muito belo! Cuáron refilma o livro colocando-o no sul dos EUA nos tempos de hoje. Cuáron se humilha... coitado. O filme é muito, muito ruim. Pior ainda, ele é risivel. Quando a grande Anne Bancroft começa a dançar em sua casa de mulher louca tudo o que queremos fazer é rir e desligar o DVD. Robert de Niro também comparece como um ladrão fugitivo. Um dos maiores fiascos da história dos filmes.

   

POEMAS CLÁSSICOS CHINESES- LI BAI, DU FU, WANG WEI

   Fenômeno universal, como a música, a religião e a saga, não existe sociedade sem poesia. Fácil observar, povos vários desconhecem a prosa, todos praticam o verso. E aqui temos 3 poetas centrais da China: Li Bai, Du Fu e Wang Wei. Traduzidos do chinês, edição bilingue, preço acessível. 
   Escritos todos em torno dos anos de 700/800 de nossa era, eles apresentam imensas diferenças daquilo que se fazia/faz no ocidente. Os chineses são muito mais simples, diretos e depurados. Pouco mergulham em questões do céu ou da alma. Influenciados pelo budismo, observam seu redor e o descrevem. Na descrição da chuva, da folha que amarela ou da neve reside toda a simbologia da vida e da morte. São circulares, nada nesses poemas corre, não procuram algo de sensacional. A influencia de Confucio é ainda maior. Os poemas têm um pé plantado na sociedade. Estranho, todo poeta chinês, em oposição ao europeu que sempre procurou a glória, se afasta do mundo e como monge, vive na montanha em absoluta solidão. Pena Octavio Paz não ter analisado a poesia da China. Eles provam em definitivo a raiz comum de Deus e da musa poética. Vinte, trinta anos em absoluto isolamento, vivendo em estado de fome, de ansiedade e de súbitas iluminações. Escrevendo milhares de páginas. Acima de tudo, vendo, observando, saindo de si.
   Li Bai é o mais feliz. Du Fu é trágico e na China de hoje é conhecido como Shakespeare na Inglaterra. Wang Wei é a sintese dos dois.

   O cavalo empertigado
   Marcha
   Sobre as folhas caídas. 
   Meu relho no ar roça as nuvens.
   Bela, a menina que abre a cortina de pérolas.
   aponta ao longe, com um sorriso
   A casa vermelha
   É lá que eu moro.
                                     Li Bai.

    Não procure sentidos nesses versos. Eles nada mais simbolizam que aquilo que aparentam ser. Ao contrário da tradição da Europa, nada há escondido. Cavalo que é cavalo, menina que é menina. O que importa aqui é a sensação que sua leitura, calma e quieta, traz. Para serem lidos em voz alta, com atenção, eles existem como possibilidade de se produzir algo. Ou não. Como um peixe que pula no ar, cabe a você saber apreciar o peixe que salta, ou o ignorar.
   
   Gosto do monte Tong
    porque ele me deixa alegre.
   Fico por aqui bem uns mil anos.
   Danço ao meu gosto
   Minha manga solta roça de uma só vez
   Todos os pinheiros aqui de cima.
                                           
                                            Li Bai.

                                          

UNAMUNO, FORASTIERI E LIMOGES

   "Ninguém me convenceu racionalmente da existência de Deus, mas tampouco de sua inexistência. Os argumentos dos ateus me parecem de uma superficialidade e futilidade ainda maiores que de seus contraditores. A vida é dúvida e a fé sem a dúvida não é nada senão a morte."
   Miguel de Unamuno disse isso. O mais central dos intelectuais espanhóis do século XX ( 1864-1936 ), dono de imensa produção, reitor da universidade de Salamanca, perdeu o posto por obra do franquismo. Uma peça baseada em obra desse titã está em cartaz. São Manuel Bueno, Mártir, esse o nome do espetáculo que mistura bonecos, efeitos e magia. Para Unamuno a fé só tem valor se for constantemente posta em dúvida. Acomodar-se na fé, tê-la como indiscutível nada tem de válido. Torna-se um tipo de vicio, nunca virtude. O homem de fé vive em dúvida, sua sina é a insegurança. Essa a vida que vale a pena, a vida que é viva. O ateísmo seria uma licença para a superficialidade, um modo de levar a vida em infantilismo inconsequente. Não a liberdade, pois nada há de livre em ser dirigido pela biologia, mas sim um tipo de playground das ideias onde vale tudo pois tudo é uma brincadeira. Quando Unamuno diz que o ateísmo é futil ele fala que o ateu se ocupa daquilo que seria futil perante um valor maior: o dinheiro, a moda, a diversão, as explicações de ocasião. Negam-se as grandes questões: o que é a vida? Porque o nada criou o ser? Como se dá o infinito? O que é o movimento? 
   Mais um belo pensamento de André Forastieri no Face. Ele recorda o momento 1988/1993, toda uma geração que aprendeu a aceitar coisas que antes eram opostas. Gente que misturava Star Trek com Rimbaud, Husker Du e Poe, quadrinhos com Melville. André lamenta que hoje o compartilhamento esteja vencendo again. Desse modo, fãs de séries de TV só se ligam nesse mundo, assim como roqueiros só ouvem rock e caras que adoram quadrinhos não leiam mais Jack London ou  
Heminguay. É um fato. A diversidade durou muito pouco e foi um período maravilhoso. O povo misturava jazz com rap e cinema mudo com Ridley Scott. Isso acabou. Hoje é cada um em seu quadrado.
   Atenção: Mesmo com toda essa diversidade tem duas coisas que até a geração de André não aceitou: MPB e filmes musicais. Esses os párias da coisa. Um dia escreverei porque. 
   Mostra de Bowie no melhor museu de Londres bate recorde. David está e esteve sempre tão acima do nível intelectual dos rockers que isso não me surpreende. Seus fãs vão a museus. Os fãs dos outros vão a cafés ou baladas.
   Visita a casa de uma prima minha. Não ia a séculos. Frequentei muito quando era criança. Porcelanas de Limoges, bronzes ingleses, relógios do século XIX, móveis dos anos 20, prataria leve de Firenze. Muranos e Art Déco. Foram alguns de meus brinquedos aos 8 anos de idade. Vixe! Sou o conflito entre essa casa de luxo e calma ( quando cheguei ela ouvia ópera ) e my little rocknroll. 
   Hèllas!

DA MATTA, STROKES E VISCONTI: ARISTOCRATAS VERSUS MODERNINHOS.

   Boa coluna ontem no Estadão. Roberto da Matta fala, como eu, que Argo é "bom", apenas isso. Mas ele fala algo que sempre tenho pudor em falar. Que para quem conhece Wyler, Clair, Ford, Hitch, Wilder e Truffaut, filmes como Argo sempre parecerão "bons", apenas isso. Eu evito falar desse modo porque tenho medo de parecer muito snob. Aristocrático. É óbvio que senti vontade de dizer, ao seu tempo, que Cisne Negro só podia impressionar aquelas crianças que conheciam o cinema de 1990 pra cá. Ou que Anti-Cristo era um tipo de rebuliço de butique. Imagens bobas que nada trazem de novo. Por isso que ás vezes prefiro um bom Jason Statham ou Bruce Willis. São assumidamente pop. Não fingem ares de importância. Filmes como os citados são tipicas obras de pseudo-arte para burgueses desconfortados. Modernismo completamente inofensivo. Não cheira e não fede. 
   Como é o "novo" disco dos Strokes. Antes eles imitavam Velvet e Modern Lovers. Agora sentiram vontade de chocar seus fãs e tascaram uma novidade. Novidade??? Críticos mal informados falam em Bowie e Pet Shop Boys. Necas! É euro-disco. Giorgio Moroder. Estranho tempo o nosso! As novidades são citações de citações. Nada há de sincero no disco. Eles querem causar. E vender, claro. 
   De qualquer modo eles tentam respirar. Eu abomino bandas que passam toda a vida fazendo o mesmo. Escritores e cineastas too. Não suporto Philip Roth por isso. Sempre a mesma coisa. Ramones é um nó. E Springsteen se plagia desde 1980. Gosto dos mutantes que se mudam. Acho que é minha alma bowieana. Segundo Paz, isso é o poético. Changes. ( Ouvi o novo Bowie. Primeiro lugar nas paradas. É bom? É Bowie. Nome que é adjetivo. )
   Acabo de sair de uma aula sobre a arte atual. Um nada em meio ao vácuo. A arte que se faz agora é produto fácil até quando tenta ser ofensiva. Chuta santos e dogmas, mas nada consegue trazer de original. A saída seria não ansiar pela novidade. Tentar a excelência, a perfeição, o sublime. Romper com o compromisso da surpresa e buscar o eternamente correto. Alguns fazem isso. Mas não atingem o centro dos holofotes. A vitrine. O mercado pede o sensacional, seja grotesco, eufórico ou deprimente. O mercado nega o sublime e o refinado. Há público domesticado para quadrinhos Marvel ( eufórico ) ou para Haneke ( o deprimente ) mas não para o sublime. Nosso tempo será um buraco na história da arte.
   O que não impede que haja alguém fazendo coisa maravilhosa. Mas essa arte não está em evidência. E pior que isso, quando voce topa com ela não lhe dá o estatuto de real valor. Foi sempre assim? Não seja tolo! Se Van Gogh foi renegado, ao mesmo tempo se amava Monet, Manet e Degas. Se Caravaggio foi perseguido, Rafael e Rubens não. Se Max Ophuls se deu mal em 1955, o mundo amava Hitch, Ford e Visconti. 
   O que ficará de 2013? Com certeza não será Roth, Strokes ou Fincher. Quem viver mais 50 anos verá.

O ARCO E A LIRA- OCTÁVIO PAZ, O SIGNIFICADO DA VIDA

   Paz fala do que seria a poesia. Mas ao falar de poesia ele fala do poético. E poético é arte poética mas principalmente vida não racional. A vida é apenas razão? Se fosse apenas isso a Suécia seria o paraíso na Terra. Basta voce ver um filme suéco. Não é um paraíso. É um buraco. A Suécia exemplifica a armadilha da razão: A falta de sentido. É estranho isso! Sem a boa compreensão das forças irracionais, sem a sabedoria de se unir a razão à irrazão, o que resta na vida é o não-sentido. Psiquiatras agradecem. 
   Nosso mundo irracional tem três grandes forças: Amor, Religião e Poesia. Nada há de racional em nenhuma das três, e todas nascem da mesma fonte. A tragédia da modernidade é a de tentar eliminar ou racionalizar as três irrazões. O amor racional não pode ser amor. Se torna tédio, comodismo ou pior, sexo sem compromisso. A religião domesticada se faz politica. Pior que isso, uma farsa. A poesia racional anda em circulos. O poeta, envergonhado de sua irrazão, de sua "tolice", passa a vida analisando a poesia. Procura se justificar. Tenta fazer poesia util, verdadeira, científica. Se perde.
   Porque existem essas irrazões? A pergunta é outra: Porque existe a razão? O que ela nos dá de realmente feliz? Vida sem transformação não é vida. A vida é um tentar ser alguma coisa maior. Vivemos para tentar viver. Somos um nada a procura de Ser. Isso é o que nos define: Um ser em construção. Construção que nunca poderá terminar, se definir, ter um alvo. A razão não suporta indefinições. Ela precisa de clareza, de certezas. Uma pessoa muito racional ao se deparar com o incerto opta até mesmo pela morte. Ela não aceita o "não tem porque e não há explicação". O estado de desequilíbrio lhe e´insuportável por colocar em cheque suas crenças. A crença única no porque, na clara EXPLICAÇÃO. Causa e efeito, fora disso, a morte.
   No amor não existe causa e efeito. Como não há na religião ou na poesia. Porque? Não sei. Como? Não importa. No reino dessas verdades a única coisa que vale é a experiência transcendental, o "É". Para a razão é incompreensível. Logo, inexistente.
   A poesia luta por fazer a palavra voltar a ter sentido. Tenta, e muitas vezes consegue, fazer da palavra uma nova vida. Dar cor, sabor às palavras. Trazer o insuspeito à vida, já que vida é texto. A poesia tem o compromisso de tirar do leitor a certeza, fermentar dúvida, crise, fazê-lo caminhar. A grande poesia nos esvazia e em seguida nos prepara. Faz com que sejamos mais "eu mesmo". Um eu que logo se desvanece. Transcende. 
   Poesia contra técnica.
   Na técnica a palavra, como a vida, é humilhada. Assim como na prosa. O material vira uma coisa só. Perde sua pluralidade natural. Se torna útil. Assim, madeira é parte da árvore. Madeira será cadeira, porta ou lenha. E estará presa apenas a isso. Para sempre. No mundo poético, madeira pode ser um ser vivo. Ou uma canção. Madeira pode ser uma cor. Pode ser uma pista. Um enigma. Veja: Na vida da técnica, o homem é um bicho que pensa. Teia de células e de desejo, ele crescerá, decairá e morrerá. No universo poético o homem é um zilhão de possibilidades. De filho de deuses a vilão diabólico, de nada absoluto a louco vadio, de robot danado a estrela cadente, na poesia o homem é livre, é irrespondível e indefinido. Para sempre.
   Dante Alighieri era livre. Recebia inspiração e a traduzia em palavras. Nada fazia com que ele duvidasse dela. Aceito por todos, o poeta era um cidadão "útil", o homem que eternizava o momento, que cantava a vida. A partir da tomada de poder burguesa os valores se invertem. O burguês despreza o aristocrata. Vê neles o supra-sumo da inutilidade. Aristocratas não trabalham, não produzem riqueza, não suam e labutam no dia a dia. Pior, aristocratas vêem no burguês um tolo, um feio, um absurdo. Poetas são aristocratas. Poetas acreditam em destino, em inspiração. Poetas desprezam o tempo, o lugar, a produção contada e pesada. No mundo do valor que se vende, poetas são párias, vagabundos, inuteis. 
   Baudelaire é um maldito então. Onde Dante era um privilegiado, Shelley ou Rimbaud são bandidos. O poeta passa a brigar com sua inspiração. Tenta torná-la razão, fazer dela coisa util, coisa chã. Analisa a poesia, analisa seu ato, passa a chamar sua arte de TRABALHO. Nasce a bobagem de "90% transpiração"... Tudo para tentar ser aceito pelo burguês, pelo mundo da técnica, da venda, o mundo sem religião ( com igrejas ), e sem amor ( com sexo ). No lugar da poesia, prosa, muita prosa.
   A questão do livro é: Vale a pena viver sem o Sobrenatural? Um mundo feito apenas de razão, vale a pena? Paz nunca é ingênuo. Ele sabe que jamais voltaremos ao mundo de Dante. O Sobrenatural era um fato tão corriqueiro quanto respirar ou comer. Hoje precisamos lutar para fazê-lo existir. Se precisamos pensar e lembrar do Sobrenatural, isso mostra que ele não é mais cotidiano, foi banido e exilado. ( Tentamos lembrar dele em drogas, filmes fantásticos, aventuras arriscadas, visões do espaço mais distante ). Mas a questão é: Valeu a pena renegar o Sobrenatural?
   O que de maior e melhor pode ser obtido pela técnica e pela razão? Fácil responder: a vida eterna. Apaixonada por si-mesma, pelo EU, o único sonho da razão é não deixar de existir. Todo o desenvolvimento da técnica se reduz a isso, vencer a morte. A razão tem como único fim a sobrevivência de si-mesma. Pois a razão se volta "para dentro", conhece apenas aquilo que reflete o seu próprio ser. 
   O que existe de mais negativo para o eu-mesmo que o amor? Que a religião? Ou a poesia? 
   No amor nos damos ao outro e nos sacrificamos por ele. Na religião admitimos nada ser, nada poder e nada saber. E na poesia nos perdemos em simbolos, visões e sensações, saímos de dentro de nós e nos misturamos ao todo. Saiba ( E sei por experiência própria, sou hiper centrado ), a razão abomina se dar, ser humilde ou se deixar perder.
   Sempre desconfiei de pessoas que não toleram poesia. Este livro, magnífico, mostra porque.
   

DE ONDE NASCEM OS SONHOS

   Foi tema de uma aula, hoje. Eu a reconto:
   - O João está mal que vai morrer....
   - Vamos visitar, ver o que ele tem a dizer.
   João está à cama. Ao seu redor alguns parentes. Pela janela aberta ele pode ver o alto das casas da sua rua. Uma mosca voa pelo quarto. A dor é dura. João quer falar. Fala. Pouco se pode saber do que ele fala. Mas o fato é que ele falou. Enquanto isso, na sala, sente-se saudade do João que ainda não foi. Sua última sentença foi esta: Me fui como vim. Proteja meus filhos.
   Faz-se o caminho então. João nasceu em familia. Como todos, veio de mãe em meio a um parto. Como todos, foi criança de bairro e brincou. Fez parte de uma escola, de uma igreja, de uma vila. Cresceu e fez sentido. E morreu como nasceu, em meio a gente, tentando dizer a conclusão da vida, fechando o círculo. 
   ( Sociedades decadentes nunca sabem o que fazer com seus mortos. Pior, nunca sabem simbolizar a morte. Sociedades decadentes dizem que a morte é a morte que é a morte como a vida é apenas viver. Sociedades decadentes pegam seus moribundos e os arrancam de nossa visão. E jogam seus corpos numa vala que significa esquecimento rápido. Numa sociedade podre o esquecimento se deseja mas ele nunca vem... )
   Eu não sabia que o hai kai nasceu como poema da hora de morrer. O hai kai ( ou hai ku ) é a sentença final que um homem deixa como herança aos seus. É a sentença que simboliza aquilo que ele foi. E será. 
   Havia no Japão um pobre desgraçado. Inútil. Numa noite de neve terrível, num celeiro escondido, só, ele morreu. Foi morto pela neve que caía.  De manhã acharam seu corpo e na mão um papel. Nele se lia:
    " Há que dar graças
      Essa neve veio do Céu."
   
   Nossa arte, pobre, tem apenas um sentido: Buscar um sentido. Nossos artistas são como cegos que tateiam procurando algo que lhes dê esperança. Um escritor escreve sabendo que seu texto será sem sentido. O mesmo sente um músico ou um pintor. 

  Se passaram séculos. Mas nosso modelo mítico de felicidade continua habitando o tempo clássico. Seja Grécia, Roma ou Jerusalém.
   Voce pensa em democracia ou em Julio César. Voce pensa em Platão ou em Hércules. Se voce é crente pensa em Jesus, se é ateu pensa em Marco Aurélio. Nossos modelos são Aquiles ou Heitor, Helena ou Afrodite, Sêneca e Ovidio. Sonhando com musas, deuses, ou guerras, ou heróis ou o nascimento da ciência, da filosofia e do direito. Sonhando.
   

PINHEIROS

   Pinheiros sempre foi sujo. E todas as minhas lembranças antigas são em chuva ou garoa. O frio cortante do fim de tarde em que meu pai trazia um autorama debaixo do braço. O ônibus lotado e ele se equilibrando de pé. Eu achando que fosse ele o cara mais forte do mundo e uma ansiedade doida para chegar em casa logo e poder brincar. Cômicos ônibus de então que tinham janelas pequenas e anúncios pregados nas paredes. O cobrador passava com bilhetes nas mãos, a gente tinha de comprar e depositar esses bilhetes nas mãos do motorista ao sair.
   Chuva na Teodoro Sampaio e eu ia com a familia comprar um fogão vermelho na loja Gabriel Gonçalves. Mas lembro agora, mais antiga é a lembrança de meu primeiro surto de "jovem aristocrata". Eu insisti em ter luvas brancas e obriguei minha mãe a andar por ruas e ruas atrás das luvas brancas. Ela achou. Comprou e eu nunca as usei. Em 1973 meu pai comprou um bar na esquina da Teodoro com a Cunha Gago. Perto tinha a loja Yaohan, uma tentativa dessa rede do Japão de criar raiz por aqui. No telhado tinha um parque com escorregadores. A Big loja vendia de roupas a perfumes. Um tipo de Mappin. Lá comprei meu primeiro LP: Caribou do Elton John. A loja durou até 1980. Hoje no lugar tem uma coisa feia pacas que nem sei o que é. 
   Estudei em Pinheiros, no Objetivo. Fui da primeira turma. Era uma escola, só durante esse primeiro ano de funcionamento, mágica. Poucas classes, os alunos e funcionários tinham uma cumplicidade de "coisa pequena". Após as aulas ficávamos o resto do dia jogando volei lá dentro. Me apaixonei pela Aninha e descia do ônibus na rua Pinheiros só para ver ela sair de sua casa. A seguia de longe, incapaz de falar com ela. O Objetivo era na Ferreira de Araújo, eu a seguia por quarteirões. Por dias. Acho que nunca gostei tanto de alguém. Foi por ela que comecei um  diário. O impulso era o de guardar a lembrança daqueles dias "gloriosos". Amor puro é diferente. Eu era feliz e sabia que era. Mesmo sem falar com ela. Poder me sentir amando, era esse o grande objetivo. E eu a amava, tinha porque viver.
   Matava aula em fliperamas. O maior era na Faria Lima, no Cal Center. A Faria Lima tinha botecos ainda. E era uma avenida larga e curta. Terminava logo após a esquina com a Cidade Jardim. Sim, era isso mesmo! De súbito a avenida terminava, alguns sobrados obstruiam a avenida. Um deles era o Regine's, uma boate cor de rosa choque. Pinheiros na verdade era um tipo de vila. O Iguatemi, pequeno, recebia só gente que se conhecia. Moradores próximos. Lembro que eu via as mesmas caras nos cinemas e nas lojas. Tinha mãe que usava o shopping como quintal, os filhos pequenos passavam o dia lá.
    Minha mãe fazia ginástica todo dia na Silhouette, que ficava quase em frente ao shopping. Eu às vezes a esperava na rua. Fazia hora nas ruas que cruzam a Gabriel. Adorava ver a saída do colégio inglês, me alucinava com as meninas de saia xadrez e gravatas vermelhas. Lindas!
    Veio então uma fase chata no bairro e chata em minha vida. De comprar discos no Eric e de andar mal humorado pelas ruas. Tive uma banda ridicula que ensaiava na Fradique Coutinho. Era um caos sem graça. Fazíamos new wave em tempos de no wave. 
    Esse bairro que lembro existe. Ao contrário do Itaim Bibi, Pinheiros pouco mudou. As ruas que andei são em 2013 o que foram em 1983. Talvez mais cheias, muito mais sujas, mas as casas e as lojas estão de pé. O que mudou mais fui eu que não consigo mais amar por amar e correr atrás de Aninhas que não sabem quem eu sou. O amor tem hoje para mim sempre um objetivo de ganho, um alvo. A felicidade de ser feliz por estar amando, sem me importar com o que acontecerá depois, isso morreu em mim.
    Espero que os moleques de Pinheiros, eles que estão soltos por aí, preservem esse dom de amar à toa, de se atirar sem razão, de sentir e não pensar "pra que". Que eles saibam que é esse o paraíso e que a serpente se chama "querer ter".

SINATRA, INCONSCIENTE, LINGUA E MEUS BISAVÔS

   Felicidade é dirigir segunda-feira com Sinatra no som. Aristocrata da voz, dicção perfeita, suas frases se modulam como ritmo e como harmonia. A voz se sacode. E meu carro desliza entre carros que ouvem noticias ( que são sempre as mesmas ) e cds ( que são sempre os mesmos ). Sinatra na segunda é ser mais.
   Cientistas vasculharam todo o cérebro e alardeiam: Não encontramos o inconsciente. Tudo é mecanismo consciente. O cérebro reage a fatos "conscientemente", aquilo que não faz parte da intenção não existe. Weeellll...cientistas não entenderam que o inconsciente é uma questão de fé. Ele nunca será encontrado fisicamente, assim como jamais se achará o lugar da "alma". Humanidades, seja poesia, psicologia ou filosofia, lidam com possibilidades, com aquilo que pode ser, ou não. Não são ciências porque, como diz Henri Bergson, lidam com o movimento, com o ser e deixar de ser, com aquilo que era e não é mais. A ciência só lida com um momento congelado no tempo, com partículas, frações. Jamais acharão a alma porque ela é um movimento incessante, uma dinâmica. O trágico é quando uma humanidade deseja se fazer ciência. Ela se trai, admite sua pequenês e deixa de ver o processo. Passa a congelar seu saber, deixa de mudar, de evoluir. Nunca se faz ciência de fato, se faz coisa morta.
   Conversando com um amigo falamos da ancestralidade. Um dos modos de se reequilibrar ( se é que isso existe ), é reconciliar sua ancestralidade dentro de si. Ir em busca das raízes-vivas, forças que pulsam dentro de voce. As vozes que falam de onde voce veio. Um dos grandes erros da modernidade é essa crença na rebelião contra a origem. Quem disse que ser adulto é negar sua origem? Porque? Ora, o desinteresse por ancestralidade tem a mesma raiz do desinteresse por estética ou pela poesia. Burgueses odiavam tudo o que era aristocrático. Burgueses desconhecem sua linhagem, sua ancestralidade. Assim como eles abominam a poesia por não a compreender e ridicularizam a estética por desconfiar do próprio gosto, eles criaram o desprezo pelos antepassados por terem vergonha de suas raízes. Mas assim como sentimos o amor  poéticamente e ansiamos pelo que é belo estéticamente, vivemos a verdade daquilo que é nossa origem. Negar tudo isso, esconder sua raiz é negar sua profundidade.
   Voce aprende linguística no primeiro ano para depois saber que a sintaxe nega mais da metade daquilo que os linguistas postulam. Isso é humanidades.
   Sim, as fissuras em meu cérebro aumentam com minhas leituras. Ok. É um fato. Mas o que desejo saber é: Que processo transforma pensamento em palavra? E que via faz de uma palavra uma ranhura? Quero saber da coisa acontecendo e não das conclusões sobre o processo encerrado ( que serão desmentidas em dez anos ). 
   Minha professora quase diz que a linguagem nasce como cheiro. Sonho de todo poeta: Fazer de seu texto um perfume.
   Valeu.