HISTÓRIA DE NATAL

   Cada um se vira com a história que lhe cabe. O homem precisa de narração, tanto como de ar. Perder o sentido da vida é perder a capacidade de narrar sua própria existência. Judeus que sobreviveram ao holocausto viam a dor como parte de uma saga. Indios morrem quando perdem o fio de sua narrativa.
   Há histórias para todos. O orgulho romântico nos faz "escolher" uma história. Criamos desde então a ilusão de que podemos "saltar fora" da linha e inaugurar uma nova história. Não é bem assim que a História funciona. Mas ok, é legal tentar...
   Na sede de narração, de sentido, o século XX criou centenas de novas histórias. Para todos os gostos. Nietzsche ressuscitou o paganismo e idolatrou o barbarismo. Os poetas celtas tentaram misturar fadas com cristianismo. Criaram-se mitos de raças, de revoluções definitivas, e até tentou-se criar uma história sem narração. Se fez muito jogo de palavras, negou-se muito. Hobbits, Batman, Arquétipos, Complexos de Édipo, Feiticeiras. Cada um criou sua historinha pessoal e lutou para fazer dela um credo universal. O Ocidente até importou sagas do Oriente para tentar se refundar.
   Mas a sede de narração não pode morrer.
   E temos a Grande História. A primeira história que nega a violência. Sim, o cristianismo reprime a violência que nos é natural. É a religião que tem um herói que é herói por não lutar e não matar. Um herói que vai ao meio do povo e lá ensina. Em meio a Hércules, Davi e César, Jesus é o primeiro a exaltar a doçura. Sua mensagem irrita os amargos e os violentos. Paz na Terra. Eis a história central do Ocidente. Hoje é o dia de recontar.
   Não estou falando como homem de fé. Essa graça não me foi dada. Falo como alguém que perdeu esse preconceito. O preconceito contra o que é do povo. Eu dizia, sem pensar: " A Igreja nos deu a culpa!", "A Igreja tem corruptos!"
   Temos a culpa se cometemos o mal. O remorso não é uma criação dos católicos. Eles apenas dirigiram essa dor para outro foco. Antes voce se culpava por não ser corajoso, cidadão ou viril. Agora o foco se tornou a bondade, o perdão e a placidez. Sim, sentimos culpa quando fazemos atos de bárbaros. Não podemos mais matar e roubar impunemente. A culpa nos persegue.
   Não sei se Jesus foi o Cristo. E na verdade isso não tem importãncia nenhuma. O que me causa maravilhamento é a força dessa história. A forma como ela penetrou em cada ato dos últimos 2000 anos. No modo como amamos, como vemos o que seja bom, em nossa arte, em nossa relação com o Cosmos. Dois mil anos atrás, no meio da mais pobre das colônias romanas, um homem veio do deserto e começou a falar. Nunca de vingança. Nada de guerra. Não formou exército. Falava de amor. Apenas de amor. E demonstrou em ato que se voce quer ser feliz voce deve simplesmente amar. E ser um filho. Um pai. E espírito.
   Deixar de admirar profundamente essa mensagem e essa história é jogar fora o que há de mais nosso.
   Um Bom Natal.

ENTÃO TÁ, JEEVES!- P.G. WODEHOUSE

   Wodehouse escreveu 90 livros. Na Inglaterra todos os seus livros estão em catálogo. No Brasil a editora Globo lançou três títulos em 2003/2004. E só. Mais que atestar a pobreza de nossos catálogos, essa miséria demonstra o quanto Wodehouse está distante de nós. O estilo em que ele escreve, o humor, a inteligência esparramada que ele esbanja, tudo isso me parece terrivelmente distante deste trópico. Ou não?
   Wodehouse viveu 93 anos. Morreu, rico e famoso, em 1975. Foi eleito pelos leitores o maior humorista do século XX. Como todo escritor famoso, foi chamado nos anos 30/40 para ajudar em alguns roteiros de Hollywood. Sua obra-prima é a criação dos personagens Bertie Wooster e Jeeves. Quando Ruy Castro elencou as personalidades principais de "seu" século XX, lá estava o nome de Wodehouse. Na época, 1993, eu não o conhecia e estranhei. Hoje ele é um dos meus mais queridos. Mas como diria aquele cara que não sei o nome, vamos aos fatos.
   Bertie Wooster é um jovem dandy que não tem consciência do quanto pode ser pateta. Segundo sua tia, trata-se de um completo asno. Elegante, vaidoso, vive se metendo na vida dos outros. Se alguém briga com a noiva, lá vai Bertie tentar reverter a situação. Se um gatinho se perde, Bertie vai procurá-lo. Claro que por se achar um gênio, Bertie fará tudo de um modo complicado, tirará as piores conclusões possíveis e não conseguirá ver um palmo além de seu ego. Jeeves é o mordomo de Bertie, uma rocha gelada que é o perfeito oposto do infantil Bertie Wooster.
   Wodehouse povoa os livros de personagens tirados dos mais representativos tipos da elite inglesa. Barões que nada falam, duquesas que gritam como estivadores, colecionadores de salamandras, virginais herdeiras sem cérebro. Os nomes são maravilhosos: Fink-Nottle, Augustus Basset, Byng-Styffy... Tudo isso com alguns dos melhores diálogos que já li. As frases voam em conversas que cintilam, rodopiam, bailam e fazem sorrir todo o tempo. Wodehouse tinha um talento para a frase esperta, leve, que invejo. Se eu pudesse escolher um modo, um estilo de escrita, seria o dele. Dizem que ele chegou a terminar livros em quatro dias. Isso é talento natural.
   Neste livro tudo começa com uma temporada em Cannes e um paletó branco. Paletó que Bertie adora e que o sóbrio Jeeves não aprova. Logo teremos casais que se separam, salamandras, poesia barata e até uma corrida de bicicleta.  Personagens glutões, asininos, ingênuos ou simplesmente idiotas. Devo dizer, uma festa.
   A tradução é soberba! Beth Vieira verte as gírias da classe alta britãnica para um português meio anos 50 que é uma delicia! Exemplo de tradução que mantém ritmo, humor e muito calor.
   PS: Comento este livro após sua releitura, feita agora, entre 19 e 21 deste mês. Originalmente eu o lera em Janeiro de 2004. Não perdeu nada! Quero reler os outros dois!!!

ESPORTE, FILMES DO MAL, MILAGRES, ANOS 20

    Símbolo maior da decadência, esporte tem se tornado cada vez mais uma mera disputa, uma batalha pela honra. Quando na verdade ele foi sempre um prazer. A sensação que tenho é a de que as pessoas sofrem com o esporte. Porque?
    Um filme, banal e bastante elogiado pela Folha quando em cartaz, talvez dê uma pista. LOOPER de Rian Johnson ( é com i ), como todo filme de agora, pega um tema pobre e o complica para parecer complexo. Mas o que salta aos olhos é a extrema feiúra do filme. Cores podres, atores sujos, muita violência e nenhuma esperança. O comum de hoje. Vamos pensar um pouco?
    O cinema dos anos 50 omitia sexo das telas. Fazia com que as pessoas acreditassem que sexo, drogas, sangue e taras não faziam parte da vida "normal". Era aceita a ideia de que a vida seria um drama, mas um drama onde apenas amor e dinheiro poderiam ter valor. Os filmes de então, hiper-coloridos, bem arrumados e muito clean, falavam todo o tempo sobre esses valores: amor, dinheiro e suas consequências, familia, honra, solidão. Esse é um exemplo. O cinema dos anos 30 nega a deselegância, o dos 60 começa a desconstruir o mundo e o dos 70 exagera no fel.
    Se hoje todo filme dito sério tem sempre uma postura de pesadelo, com cores cinzas, sombras, gente miserávelmente solitária e violência cotidiana, mais que ser um retrato da vida de agora, ele passa a ideia de que a vida é isso mesmo e que tudo o que fica de fora é bobagem. Nos acostuma a pensar o mundo como um lixo, o homem como uma besta e a vida como uma luta sem fim. O que fica de fora desses filmes, beleza, elegãncia, civilidade, humor, passa a ser considerado futil, irreal ou pior, datado.
   O mal existe baby. Esses filmes são obras do mal. E da burrice também.
   Uma amiga me liga chorando. Um amigo fala comigo após um porre de bourbon. Uma amiga chora on line. Todos têm menos de 20 anos. Todos vêm neste old man Zorba, o Grego. Não percebem eles que tudo o que lhes falta é humor?
    Mick Jagger é um milagre. Aos quase 70 anos ele pulou e cantou, muito bem, por duas horas. Continua tendo suprema energia. Claro que não é mais sexy, mas é vivo, muito vivo. A banda está em excelente forma. Sua versão de Jack Flash é a melhor em anos. E que surpresa! Lady Gaga canta bem! Gimme Shelter foi revitalizado por ela. E que bela homenagem a Mick Taylor! Afinal, dos 5 melhores discos da banda, quatro tinham Taylor. É o maior show da Terra.
    Sempre falam, sem pensar, que o capitalismo muda tudo sem parar. Depende. Tem coisas que o capitalismo preserva em eterno agora. Não, não falo apenas de Stones e de Disney. Repare no livro que acabei de ler: ACHADOS DA GERAÇÃO PERDIDA de Suzanne Rodriguez-Hunter. Fala do que a geração que vivia em Paris, entre 1909-1930 comia e bebia. Tem até receitas. Estão todos lá:  Man Ray, Kiki, Picasso, Cocteau, Cole Porter, Heminguay, Gertrude Stein, Joyce, Fitzgerald....Pois é, mais anos 20 pra galera.
    Os loucos anos 20 viraram moda na década de 60 e desde então só tem crescido. Assim como o glamour dos anos 50, a rebeldia dos 60 ou a doideira dos 70, tudo foi empacotado e preservado. O capitalismo não é uma destruição sem fim, é um museu que vende lembranças.

AUTOBIOGRAFIA- GILBERT KEITH CHESTERTON, UM PERFEITO RETRATO DA INFÂNCIA

   Nada de datas aqui. Esta biografia é mais um tipo de conversa que um relato de uma vida. Chesterton vai falando de seus amigos, conta um ou outro acontecimento e só. Se voce quer ler uma bio convencional, esta não. Porém...não me diga que voce não sabe quem é Chesterton? Acima de tudo foi um polemista. Jornalista, mantinha na imprensa polêmicas com Shaw e Wells. Chamava-os de amigos, amigos que tinham só um problema: não sabiam pensar.
 Chesterton começou a se destacar na guerra dos Boêrs. Toda a nação, inclusive Shaw e Wells, eram pró-Inglaterra, pró-guerra; pois Chesterton foi pró-Holanda. Ele dizia que a guerra só era justa quando defensiva, guerra colonial jamais. Ele se dizia um nacionalista anti-imperialista. O império destruiria a alma do povo inglês, do gentil e calmo povo inglês.
 Chesterton em politica tinha uma posição original, era a favor da propriedade, da propriedade do pobre. O pobre deveria ter seu corpo, seu mundo preservado. Ter direito ao tempo, a sua tradição, a seu modo de viver. Ele odiava a ganância, a americanização, o acúmulo de coisas que traziam mais coisas que tentavam consertar as outras coisas. Percebia a morte da fruição, do prazer com aquilo que se tem. Para ele o maior dos temas filosóficos era o da satisfação: conseguir ter satisfação com a satisfação. Saber usufruir da satisfação no momento presente. Para ele, como penso também, o materialismo, de forma perversa, fechou nossos olhos para a realidade. Estranho não? O que deveria ser uma filosofia ancorada no real, nos cegou para a realidade do visível e do agora. Somos incapazes de ver uma flor como aquilo que ela é. Vemos uma espécie, uma metáfora, um ser mortal, um orgão, um detalhe insignificante, um nome, mas jamais uma simples e bela flor.
  Autor policial, contista, romancista, jornalista, radialista, Chesterton foi famoso, feliz, otimista, péssimo aluno. Odiava escolas, honrarias e agnósticos. Para ele a religião era o centro do humano, todos os valores que definem o que é ser homem sendo herdeiros de verdades da religião. Mas, negando a moda de seu tempo, Chesterton não idolatrava religiões exóticas, espíritas ou mágicas, ele se converteu ao catolicismo romano, certo de que nada pode ser melhor que uma fé que nos renova a cada missa. Ele via na confissão, ato que só existe no catolicismo, a oportunidade maravilhosa de remissão, de retorno a pureza, algo que nenhuma outra fé ou ciência pode ousar prometer. O catolicismo ousa, é a mais ousada das práticas. E liberal. Chesterton graceja, afinal ele é um humorista, ao contar que católicos podem fumar, beber e comer carne. Mas não se iluda, sua fé é verdadeira, séria e bastante lógica.
  O começo do livro tem impressões vagas sobre a infância. Nunca li nada que descrevesse melhor o que recordo da "minha" infância. A ideia é simples e contrária ao estabelecido: crianças nunca vivem num mundo de fantasia. Adultos moram no mundo das ideias, num mundo de padrões pré-moldados e de modas filosóficas. A criança vive no aqui e no agora. Ela vê cada coisa como ela é e tem plena presença no tempo que dura. Adultos que perdem o contato com esse mundo perdem o contato com a realidade. Imagem que recordo de minha meninice: a luz branca de que fala Chesterton, luz que banha as coisas de uma presença definitiva e inquestionável. É na adolescencia que enlouquecemos e perdemos a realidade. Passamos a descrer de tudo, dos sentidos, da lei, da história, das crianças e dos adultos. Para ele, ser teen é ser snob ( e ele foi um teen muuuuuito teen ), é se achar superior a tudo, não se interessar por nada.
  Chesterton diz que adultos felizes brincam. Sabem que o mundo adulto nada significa diante da infância. Lá estão os fatos, não como raízes da vida adulta, mas como fatos mais verdadeiros.
  Ele foi um aluno preguiçoso, péssimo. Desconfiava de tudo, inclusive da desconfiança. E cedo descobriu o prazer da discussão. E de Zola e Flaubert, de Wilde a Baudelaire, ele percebeu que ser moderno é simplesmente ser um ingênuo pessimista. Todo modernismo está cheio de tristeza e de pessimismo, mas, e daí vem a ingenuidade, o artista moderno não crê no mal, ele vê o mundo em relatividade, o bem e o mal como coisas sem valor. Chesterton vai contra isso. Ele afirma que o mal existe, e mais que isso, que somos livres para escolher. Que se escolhemos o mal, a culpa é toda nossa. Ela não é da familia ou do meio, é de quem a executa.
  Chesterton tem uma hierarquia de bens, sendo a familia o bem supremo. Para ele, não roubamos e não mentimos por honra da familia. Sem ela, tudo rui e tudo se torna relativo. Como eu, ele se coloca contra os pessimistas, percebendo que eles fogem da realidade ao afirmar uma ideia a priori. O pessimismo é uma capa de covardia que traveste um assustado e espantado ser em artista moderno.
  Uma observação de Chesterton: toda criança brinca dentro de limites e de regras. Cria um espaço. A liberdade deve ser assim, a liberdade sem limites "dentro" de nós e fora, a segurança de um limite. Cidades grandes fazem exatamente o oposto, criam limites internos no cidadão e acabam com as barreiras corporais.
  Ele lamenta a Inglaterra numa bela imagem: ela deixou de ser um país de casas e jardins e se tornou uma nação de lojas e de bancos.
  Bedford Park, bairro londrino onde viviam os excêntricos. Casas tortas, disformes, gente com roupas cuidadosas vestidas descuidadamente, bairro que deveria ser o futuro, onde vivia seu amigo Yeats. Chesterton fala que a era vitoriana foi a era do agnosticismo, onde Thomas Huxley percebeu que todos acreditavam no Império por não ter mais nada em que acreditar. É no século XIX que surge a figura do ateu respeitável: centrado, pessimista, descrente do homem, sem entusiasmo, muito cheio de talentos mas sem gênio. Participante e bastante monótono. Entediado. Em oposição a esse homem vitoriano, Chesterton coloca Willie Yeats, o homem medieval, que seria encantado, vagando otimista, crendo no homem, cheio de entusiasmo, individualista e usufruindo A EXPERIÊNCIA DE VIVER: MEDO E ÊXTASE.
  Ele ainda falará de seus amigos, de politica, do que seja a maturidade e de sua obra. Mas o melhor é essa primeira parte. Um homem que amava comer, beber, fumar e sua familia, um humorista, um católico inglês, um patriota que era pró-Irlanda, e que temia a Alemanha ( um país bárbaro para ele ) e amava a França. Uma bio caótica, gorda, vagueante, sinuosa.
   ATENÇÃO: Cuidado com essa edição, nova, da Ecclesiae. Ela é péssima! Tem erros e mais erros de pontuação, de concordância e de tradução. Uma segunda edição será bem vinda.
 

12.12.12, O SHOW DE SANDY

   Pra variar, The Who roubou o show. E também para variar, os Stones foram muito antipáticos. Entraram, tocaram duas músicas e ciao. Nada de gracinhas, de piadinhas ou de "amo voces". Porém, como aconteceu no rocknroll Circus, em 1969, Pete e Roger roubaram a noite de Mick e Keith.. Em meio a Dave Grohl, Kanye West, Alicia Keys, Clapton, Roger Waters, Paul MacCartney, Bruce e Chris Martin, o duo Who disparou fogos de emoção e de verdade numa noite so boring. Why?
   Ficou muito claro ontem: eles sempre dão o máximo. Todo show deles parece ser sempre decisivo. Os Stones desde a excursão de 1981 repetem os mesmos gestos, só o cenário muda. O Who também, repete seu show desde a morte de Keith Moon. Mas há uma diferença: O Who parece de verdade, os Stones parecem frios. Lá está Roger rodando o microfone, Pete girando o braço e Baba O'Riley mais uma vez. Mas puta que pariu, há emoção genuína ali! E é soberbo ver aquele bando de ricos executivos e vips em geral,  pularem e cantarem em coro sobre a "waste land".
   Chesterton fala que deixou de ser agnóstico, crença oficial da Europa moderna, quando percebeu que todo agnóstico, e ateu também, permanece envergonhadamente a ter sua experiência de religião.  Mesmo sem perceber, o desejo por religião, por contato divino, está presente, por exemplo, no fanatismo de um petista por Lula, nos delirios de sentido que um apreciador de arte vê em Kafka ou em Baudelaire. Esse impulso, humano e tão só humano, se revela nas experiências com drogas, em viagens de "descoberta", em fãs de Dylan ou de Thom Yorke, em corintianos e boquistas. Há religião desvirtuada, religião sofista, em livros de auto-ajuda, em sociologia, e é bastante óbvia no existencialismo. O sucesso de filmes como Avatar ou  Hobbits revela esse impulso, mas qualquer ser sem preconceito percebe que um ateu como Trier passa todo o tempo pregando à moda de um pastor.  Não conheço psicólogo ou psicanalista que não se pareça com um padre ( essa série da tv, chata de doer, se passa numa igreja, voce nunca notou? ).  Toda a obra de Freud é mera tentativa de tomar o lugar dos profetas. Pois um show do Who é isso. Religião para ateus. Igreja para pessoas "inteligentes e modernas". Chesterton diz que esses ateus , homens de boa intenção mas sem visão, estão mais próximos de Deus que ratos de sacristia, espertalhões que usam a igreja.  Um show do The Who emociona por essa proximidade com o Bem.
   No mundo de 2012 existem 3 coisas imperdoáveis.
   Uma é parecer velho. E ter orgulho desse parecer.
   A segunda é desvalorizar o sexo.
   E a terceira é se confessar como um "estúpido" católico.
   É bacana ser budista, feiticeiro, ateu ou agnóstico. Católico nunca!
   Amar o sexo sobre todas as coisas, ou ver nele o maior dos problemas é sinal de inteligência.
   Estar sempre de olho no futuro e ligado ao agora é demonstrar vitalidade.
   The Who é velho, nada sexy e chega a ser quase papista. Libera em nós aquilo que reprimimos: nosso impulso humano.  Nosso olhar para o céu.
   Sim baby, sou um pecador em seu mundo. Sou velho e tenho valores velhos. Achei até que Roger Daltrey é bonito. Acho que amor nada tem a ver com sexo. E que voce pode viver sem um e nunca sem o outro.
   Não baby, ainda não consigo me ajoelhar numa igreja. Meu orgulho me impede. Mas me ajoelho diante de Pete e Roger.
   Sacou?

TED/ MIIKE/ ON THE ROAD/ ASTAIRE/ CLINT EASTWOOD

   PRIVILÉGIO de Peter Watkins com Paul Jones e Jean Shrimpton
Jean era linda. O grande David Bailey diz que foi a única modelo com alma que ele conheceu. Fora isso, nada mais importa neste filme. Envelheceu mal, envinagrou. Fala de um astro pop que é usado pela midia como um tipo de messias. E depois é descartado. Chatésimo! Nota 1.
   13 ASSASSINOS de Takashi Miike
Ao estilo de Kurosawa, Miike faz seu filme de samurai. O sangue abunda, as imagens são bonitas, mas em sua tentativa de ser Kurosawa, ele erra no principal: não consegue criar vida. Seus personagens são menos que nada. Muita gente hoje imita Hitchcock, Ford e na Escandinávia há uma praga Bergman. Mas se esquecem de criar gente, de dar caráter aos tipos. Imitam o mais fácil, a fotografia e o tema. E dentro desse pacote nada encontramos. Fuja. Nota 1.
   ON THE ROAD de Walter Salles com Sam Riley e Kristen Stewart
Como desgostar deste filme? Ele faz a lição de casa direitinho. Tem bons atores, cenas de estrada excelentes, jazz, sublimes canções de blues. Só não tem o principal, loucura. Salles é um nerd do cinema, o filme mostra sua alma de bom moço. Não há maldade. O filme tem a cara de um filme, dos mais comuns, feito em 1970. Vanishing Point, que é incomum, é mais beat que isto. Não gosto do livro. Não gosto de Ginsberg e muito menos de Burroughs. Os beats criaram a ideia, boba, de que escrever tudo seria escrever bem. O grande filme da geração beat foi feito cinco anos atrás: Não Estou Lá, de Todd Haynes. Mas este filme está longe de ser ruim. Aliás, Salles não consegue fazer filme ruim. Como bom nerd, ele faz tudo direitinho. Nota 5.
   PAPAI PERNILONGO de Jean Negulesco com Fred Astaire e Leslie Caron
Um milionário adota uma menina sem que ela saiba. Hoje ele seria um pedófilo. Não é um bom musical. Só uma das canções é boa e Fred dança menos do que seria desejável. O roteiro é simples demais, nada excita ou surpreende. Porém, tem duas cenas com Astaire que provam, mais uma vez, sua absoluta genialidade. Nota 5.
   TED de Seth MacFarlane com Mark Wahlberg e Mila Kunis
É um desses filmes que parecem bobos, mas que falam de algo de muito sério. Afinal, a maioria dos namoros termina por causa de um "ursinho" malvado, que o cara carrega desde sempre. Velho problema, a namorada força a que ele se torne adulto, e depois sente falta do jovem que ele fora um dia. Ted é personagem maravilhoso. A gente quer mais é ver suas cenas. E aquela da festa com Flash Gordon é do caramba! O filme começa devagar e me incomoda essa mania americana de piadas com puns e com fezes. Mas do meio pro fim o filme cresce e posso dizer: que boa diversão! Nota 7.
   O DOMADOR DE MOTINS de Edwin L. Marin com Randolph Scott
Voce que tem preconceito contra westerns. Este filme confirma seus pensamentos. É chato. Esse tipo de western, que nada tem de livre ou de verdadeiramente cowboy, mata toda a chance de novos amantes desse gênero. Socorro! ZERO
   ESCALADO PARA MORRER de Clint Eastwood com Ele e George Kennedy
Ridiculo. É um dos filmes esquecidos de Clint. Feito um ano antes do ótimo Josey Wales, tem jeito de James Bond. Clint tem o pior desempenho de sua carreira como um assassino que também é professor e alpinista. Nada interessa, as mortes são sem sentido e a aventura dá tédio. Nota 1.

LADIES AND GENTLEMEN...

Ontem vi Dionisios em minha sala
jogando pétalas de rosas vermelhas sobre meu chão
E vi o sonho de Robert Johnson
sorrir ao fim de minha festa.
Dionísios se encarnara em moleque perigoso
que mexia os braço em compassos de blue.
E sorria onde tudo parecia anarquia e solidão
berrando yeah ao cair da gota do sacrifício.

E o sonho de Yeats era a perfeição do fim dos dias
refletindo beleza irreflexiva nas pontas dos cabelos doidos.
Jogando olhares de elfo em desejos desobedientes
desafiando as caras entediadas ( óh chatos! ), em poses de pavão.

Ontem fui com Dionisios em toda a noite
e prometi mais uma vez a prece nunca perdida.
Eis minha vela acesa vertendo a cera do verso e da confissão
a vida me beija e o sonho alcança minha asa que se abre.

Ver todos em completo êxtase carnal
penetrando dentro da seiva que pulsa entre os cinco
Quatro sentidos e uma intuição
como cinco pedras vão cinco espinhos.

Abra-me e leve-me estrela das vagas noites
Vagabundeie-me.

       escrito sobre a influência de Rolling Stones em 1972.
       Jagger e Richards aos 28 anos. Amém.

PARA MEU AMIGO LÉO, 461 OCEAN BOULEVARD-ERIC CLAPTON, NA BEIRA DO OLHO

   Amigo, a gente sabe que não dá pra passar pela vida impune. E que enquanto a corda não aperta forte, enquanto a gente não vê o diabo cara a cara, acordar e viver pode ser uma coisa adiada. Tem quem nunca acorde, e se distraia com doces  e amargas construções de desocupados. Mas a vida é uma coisa muito séria.
   Eu acho que voce viu o diabo muito cedo. E que desde então voce faz hora. Cara, seu negócio está na estrada! Voce nasceu pra viajar. Todo o resto, trabalho, mulheres, teses, filosofices, são mata-tempo. Voce sabe disso.
   Vi o demo com 23 anos e desde então tento travar trégua com o dito cujo. Não faço a menor ideia de qual seja a minha estrada. A vida é maravilhosa, um inexplicável milagre, o que me aflige é ela ser tão curta. Voce sabe, eu posso ver elfos na Paulista porque eu sou um elfo.
   Eric Clapton tem a alma de quem optou pelo encontro. Foi lá no cú do Judas e voltou. Ele não foi um desesperado por ter lido Sartre ou ter estudado demais. Não. Ele esteve lá, cara a cara e desabou. Voce conhece esse desabamento. Se não conhecesse não seria fã de Whitman.
   Vivemos em tempos tristes. Tristeza é confundida com inteligência.
   Este é o disco de 1974, de quando Eric voltou após os quatro anos de heroína. Mal ele sabia o que ainda iria ocorrer. Well...se Layla é o mais apaixonado dos discos, aqui temos uma pausa na vida. O disco é uma prece, calma, um pedido de paz, sem mais dor.
   Eu o comprei em 1991, e após o doloroso ano de 1990, ele veio como uma canção de recomeço. É isso! O disco tem espirito de retorno. Ele acalma, ilumina.
   A primeira música é uma tradicional canção folk, aqui com percussão, teclado, e a guitarra "feminina" de Eric. Seu timbre é sempre sinuoso, suave, relaxado. Give Me Strenght, a segunda canção, composição de Clapton, é sublime. Não há como a descrever. Religiosa. E assim segue o resto do disco. Blues quase alegres, canções pensativas, um reggae quebrado, um hino à esperança, e ao final um rock que tem um solo que te enlouquece.
   É o disco mais "The Band" de Eric. Tem a simplicidade sincera da banda canadense. A alma que parece se erguer, que ilumina. Um modo sem afetação de cantar e de tocar.
   Amigo, acho que voce vai conseguir entender do que o disco trata.
   É sobre a espera.

OSCAR NIEMEYER, SCOLA E MONTAGEM

   Niemeyer odiava tudo o que fosse natural. Em seus projetos, e o Memorial é um belo exemplo, tudo é exato, concreto, árido. Ele fez projetos que não respiram. Minha opinião é a mesma de Robert Hughes, Niemeyer era um arquiteto ditatorial. Seus enormes templos de cimento, sem árvores, esmagam a individualidade. Equivalem a uma tropa unida. Pior, são velhos, secos, enrugados. Temos de conviver com a feiúra de Brasilia, com seu futurismo fascista, suas linhas racionais, a ausência de acaso, de arabescos. Niemeyer abominava a cor, é sempre o cinza, o branco, o nada.´O Sambódromo chega a ser cômico de tão ruim. E a marquise do Ibirapuera tem um peso que nos esmaga. Não é preciso falar da leveza da Ópera de Sidney para mostrar a verdadeira boa arquitetura. Basta olhar para o Rio e ver como o espírito da capital era outro. Tudo questão de cor, de natureza, de curvas ao acaso. Niemeyer fez uma cidade no árido, árida. Chamo isso de burrice.
   Ettore Scola diz que o cinema da Itália está tão ruim porque o italiano não ama mais a Itália. Talvez. Scola fez alguns filmes maravilhosos, mas acho que ele exagera. Amar o país não é condição para boa arte. O ódio também inspira.
   Leio numa revista de matemática um artigo sobre cinema. Matemáticos falando de cinema pode ser uma coisa bem interessante. Falam de montagem. Que hoje cada tomada tem em média 5 segundos. E que 5 segundos, matematicamente, é o tempo que uma pessoa leva para ver sem pensar. Se a cada 5 segundos voce faz um corte, uma mudança de tomada, o público fica num estado de quase hipnoze, não raciocina, acompanha sem perder o interesse "na própria montagem." Qualquer coisa montada em tomadas de 5 segundos "parece interessante". O que faz com que "os filmes ruins de hoje sejam mais fáceis de ver que os filmes ruins de antigamente."
   Pra mim filmes ruins são sempre ruins e insuportáveis. E o excesso de montagem não me prende, pelo contrário, não poder pensar e apreciar uma cena me desliga, fico ausente da ação. Talvez seja pela minha idade, mas penso que é uma questão de costume. De qualquer modo é um texto muito bom. Porém, eles erram feio ao falar que "hoje essa montagem é feita conscientemente. Cortes de 5 segundos são espalhados igualmente por todo o filme. Antigamente os cortes eram aleatórios, em alguns momentos eles eram acumulados e em outros eram raros."
   Eis a diferença entre ciência e arte. O autor não percebe que os cortes são irregulares no cinema antigo, porque são feitos em função do roteiro. Quando a história pede muitos cortes eles acontecem, quando não são necessários, não são feitos. Hoje o roteiro é escravo da montagem. Até em cenas "paradonas", como uma conversa num trem, temos milhares de movimentos de câmera e de cortes. Tudo para prender o cara na poltrona.
   Dado interessante no texto: Goldfinger, de 1965, tem mais ação que Solace. Mas Solace "parece" mais movimentado. Ação é uma atividade que ocorre no filme: luta, tiro, correria, Goldfinger tem mais disso. Movimerto são os cortes. Solace é então mais "fácil" de assistir.
   Conclusão do texto: um filme dito dificil de 2012 é muito mais fácil de se assistir que um filme fácil pop de 1950.
   Será?

FLORENÇA, UM CASO DELICADO- DAVID LEAVITT

   Em 1966 houve uma grande enchente em Florença. O Arno transbordou e pinturas, esculturas, livros, todos ficaram debaixo das águas barrentas. Na época o senador Edward Kennedy estava lá. Ele ficou abismado com o que viu: milhares de jovens, voluntários vindos de todo o mundo, debaixo d'água, em fila, salvando a arte de Florença. No frio de novembro, sob chuva, eles vinham de todo lugar, sem dinheiro e sem planos, para tentar dar vida ao que se perdia. Acampavam no campo, comiam o que os italianos lhes podiam dar, eram aventureiros. O livro de David Leavitt termina narrando essa saga. E começa com um dado: apesar de ser uma cidade média ( em termos brasileiros ela tem o tamanho de Santos ), Florença possui um quarto de toda a arte superior do mundo. Isso mesmo, em pintura, arquitetura e escultura, de cada quatro obras-primas do mundo, uma está na pequena Firenze. Daí a ocorrência da Síndrome de Stendhal, mal que foi descrito em 1980, tendo por base uma lembrança do autor francês quando lá esteve. Que sintomas são esses? Falta de ar, vertigens e confusão mental. Às vezes, desmaio. Confundido pela profusão de obras acachapantes, a personalidade do pobre visitante, acostumado a mediocridade segura, se aturde e como que se desfaz. A pessoa tem então uma cruel percepção de sua insignificância. Perde  a persona.
   David Leavitt é um autor quarentão gay militante. Seu livro não é a história da cidade. O que ele conta é o porque dela atrair tantos ingleses "esquisitos". O motivo é simples. Na época vitoriana, ser gay era crime na Inglaterra. Voce podia incluisve ser dedurado e preso. Na Itália, desde sempre, atos homossexuais eram tolerados. Dessa forma, levas e levas de ingleses, desde 1860, aportaram na cidade. Dentre 800.000 habitantes, 200.000 têm origem ou cidadania inglesa ou americana.  É a vida desse mundo, feito de fofocas, arte e vagabundagem que Leavitt trata. Se na Inglaterra, arte era o que tinha utilidade ou relevância social, na Florença dos estetas, arte é gozo.
   O livro mostra, deliciosamente, a vida de seus duques e condes italianos, amorais que se unem aos ingleses desbundados. Festas e decadência. Tudo a sombra do David de Michelangelo.
   A mais bela cena do livro é sobre a segunda-guerra. A população da cidade escondeu as obras de arte em sitios e palácios da periferia para as salvar dos bombardeios. Leavitt nos conta a história de um grupo de soldados americanos, que ao adentrar um palácio vazio, para pernoitar, se surpreende. Um deles entra num quarto e grita: "Giotto!!!", outro da cozinha berra: "Há um Donatello aqui!!!", e por fim o sargento, lá do porão, ri e comemora: " A Primavera de Botticelli!!!!!"  É uma história verídica.
   Aldous Huxley odiou Florença. Reclamava dos sodomitas e das lésbicas. Logo se mudou para Roma. Forster escreveu seu melhor livro lá. Mas ficou pouco tempo. Henry James tinha uma relação de amor e ódio com a cidade. Mas também preferia Roma. Lawrence idem. O que Leavitt nos revela é que a cidade tem um efeito maléfico sobre a inspiração. Cercado de tanta arte, o autor desiste de produzir com uma sensação de não valer a pena tentar. Daí a grande quantidade de "artistas" que "quase" foram grandes que lá moraram. Os realmente grandes logo partiam.
   Florença viveu duzentos anos de grandeza e cinquenta de soberba genialidade. E depois, apenas lembranças. Tudo na cidade é melancólico. Há nela um ar de "perda de inocência". Os ingleses, que mesmo após décadas na cidade continuavam com seus chás e jardins sem história, viviam como em teatro, criando tipos e compondo um cotidiano que logo seria feito biografia. Uma imensa quantidade de auto-biografias saiu da cidade. De certo modo o livro de David é mais uma. Pequena e boa.
   PS: O jardim inglês é sem história porque ele é feito de grama, arbustos e rosas. O jardim italiano é feito de fontes, estátuas e caminhos. O percurso narra uma história dentro do jardim. Quando os ingleses compravam uma villa a primeira coisa que faziam era destruir o jardim italiano e fazer um inglês. Esse foi o maior sintoma de seu auto-encarceramento. Eles fugiam das prisões inglesas, mas carregavam a Inglaterra na cabeça. Transavam com adolescentes italianos, mas detestavam alcachofras, azeite e saladas, e aniquilavam vinhedos para construir uma quadra de tênis. 
   Bem, uma coisa os britãnicos trouxeram de melhor: os cães. Italianos achavam estranhíssimo o amor que os ingleses davam a seus cães. Para italianos, cães só prestam se forem úteis. Não são melhores que um burro ou uma cabra. Para ingleses, e alemães, são seres que devem ser amados. E amados por serem companheiros. Nessa visão conflitante se revela toda a diferença entre saxões e latinos. Os individualistas saxões e os hiper-sociáveis latinos, uns com suas etiquetas e cachorrinhos, outros com suas festas e grupos de amigos. Firenze vive essa mistura. Fascinante.

FICAR VELHO É FODA

Passei todo o ano doente. Com a sensação de que a gripe ia me pegar. E me escondia. Nos banheiros, na biblioteca, na praça. Foi a mais forte experiência de inadequação que vivi. O inferno na Terra. Um tipo de anjo caído do paraíso. Porque apenas seis meses antes eu morava no céu. Era percebido, desejado, respeitado. E agora eu virara um tipo de pária. Só, ignorado, auto-sacrificado. Odiava tudo com todas as minhas fés.
No banheiro eu rabiscava as paredes. Na biblioteca eu me perdia nos longos corredores de livros mofados. Meus cabelos, longos, estavam sempre sujos e por mais que eu lavasse eram oleosos. Eu teimava em usar um paletó de couro, gelado. E naquele inverno apavorante, cheio de vento e umidade, ele era como um tipo de placa de aço. Minha garganta doía toda manhã.
No mundo inteiro eu tinha só dois amigos. Um era um garoto ansioso, sujo e fedido, que tinha o rosto cheio de espinhas e a expressão mais masturbatória que já vi. A gente ia ao cinema, um pulgueiro, ver filmes de sexo e olhar pras vagabundas da rua. Depois ficava conversando de madrugada, na calçada. O outro amigo era um idealista. Ele adorava Jimi Hendrix, adorava tanto que se parecia com ele. Caminhávamos pela cidade, com pressa. Sonhávamos em montar uma loja de discos. E bêbados, imitávamos uma banda de rock. Com uma vassoura na mão ele era Jimi, e eu, com um tubo de desodorante como microfone, copiava todos os trejeitos de Mick Jagger em It's Only Rocknroll. Todo esse universo de fantasia era destruído quando eu chegava em minha nova escola- um lugar que era a ilha da disco music. Menos pra ela...
Ela gostava de exibir a calcinha. E o namorado, um magrelo com cara de raposa, estava sempre rindo, com os dentes amarelos. Ela não era bonita. Era sublime. Baixava um pedaço do jeans justo e mostrava o começo da calcinha roxa. Eram duas aberrações naquele ambiente tão banal. E eu, tímido, seguia os dois, calado, sempre por perto, sombra. Matavam aula para beber nos botecos do centro. Eu não ia. Andava pelas ruas geladas e esperava. Uma manhã ela me deu um beijo. Seco e breve. Desandei.
Suado e cheio de raiva eu chegava em casa. Um lugar sempre vazio, minha mãe ia à ginástica e meu irmão estudava todo o dia. Botava os discos e delirava. Ouça:
Existe uma época pra tudo. A gente aprende quando fica velho- O tempo pra amar por exemplo. A gente pode amar a vida toda, claro, mas tem um tempo que é o melhor tempo de amor que voce terá. Assim como há o melhor tempo de ter raiva, de odiar ou de sonhar. E acontece na vida também o grande tempo de leitura, de ver filmes e de ouvir música. A vida toda eu fiz tudo isso, mas jamais existiu época melhor pra escutar um disco que esse ano de 1979. Eu tinha um tipo de alucinação com os discos. Enquanto escutava criava histórias, via cenas de romance, me inspirava e fazia parte do que ouvia. Não acontecia de ser 'eu' ouvindo o disco, era 'nós' na música. Meu mundo era aquilo, e doía. Escutava com raiva.
Sticky Fingers é doente. Cheira a ampolas usadas, a algodão com álcool. E é todo desespero. Os solos de Mick Taylor são todos sublimes- e voce sabe- sublime é a beleza terrível. Se na capa há uma pistola escondida num jeans justo ( Warhol ), aqui, nos sulcos, há a tentação da morte. Não só em Sister Morphine, a mais seca das canções drogadas, mas em Moonlight Mile, a mais triste canção de Jagger.
Por isso é dificil escutar isso agora, em 2012. Porque minha raiva se foi. minha solidão virou conforto e a menina da calcinha foi esquecida.
Ficar velho é foda. Voce percebe que a vida é uma sucessão de traições. Ouvir os discos daquele tempo, e são poucos, dói muito. Porque em todo esse tempo eu traí aquele moleque. Todos os sonhos e todas as raivas foram despedaçadas. E as ruas geladas nunca mais foram visitadas...
Ou não.
Talvez ter feito o moleque sobreviver, e hoje, aqui, poder escrever isto para voces, seja uma vitória. Meu compromisso em 1979, agora percebo, era com Brian Jones, e ele morreu. Eu queria ser ele, na verdade eu o era. A vitória foi ter passado por aquele inferno e ter vencido.
PS: Hoje eu sei- e sei por ter lido a bela bio de Eric Clapton.