CECILIA MEIRELES

    Cecilia Meireles é uma daquelas autoras que deveriam ser hoje muito lidas. Para nosso tempo é ela um antídoto. Não porque seja ela "antiga", mas sim porque ela se debate com nossos problemas e dá a eles escapes poéticos. Cecilia era um anjo, era linda e tinha uma vocação poética gigantesca. Ela olha as coisas com olhos de eternidade. Seu mundo, que é o meu, não é feito de homens e de História, é antes mundo de pedras, formigas, ventos e de solidão, uma solidão que não é sózinha pois habitada pelo amor às coisas. Sagrado.
   Este minúsculo livreto contém crônicas de Cecilia. Mas serão crônicas ou poemas? São peças de sentimentos de poesia, diário sem data de vida em olhares claros. E como ela sabe olhar! Vê a vidinha boa de um cão amigo num tempo em que o amor aos cães ainda era esquisito. Aliás ela antecipa todo o tempo a onda verde, ela chora matas perdidas e paisagens corrompidas.
   E ela olha albuns de fotografias, vê o valor nos trabalhadores braçais, se indaga sobre a vida dos peões, imagina a existência dos bichos. Fala dos brinquedos e dos Natais mudados. Cecilia nos anos 50 já lamenta o comercialismo do Natal e pede o resgate do simbolismo original. E fala ainda da morte dos lutos, do fogo na floresta, chora um gato morto por moleques e se espanta com a dor de ter visto um cachorro doente e abandonado na rua. O sentimento dela vem dessas coisas, pois ela mesma sabe, ela é o cachorro velho e abandonado, ela é o gato judiado, ela é a floresta que queima. E é também a criança do Natal, a alegria dos brinquedos, as fitas que enfeitam os vestidos.
   É doce ler Cecilia, é doce é triste. É lindo.

Kinks - Waterloo Sunset [Excellent quality]



leia e escreva já!

ENCERRAMENTO: OLIMPÍADAS 2012, A FESTA

   Prefiro ignorar o fato de que George Michael parece hoje um cover de si-mesmo. Ou da assustadoramente ruim coisa pomposa chamada Muse. A forçada de barra com cantores pseudo-novos e com uma cantora ( quem? ) deixando Brian May constrangido com sua interpretação fake e vergonhosa de We Will Rock You. Os novos ingleses têm cara de almofadas.
   Prefiro dizer que o cara que escolheu os artistas acertou na mosca ao abrir com Ray Davies. O inventor do mais inglês dos estilos de rock abre a festa com Waterloo Sunset. Velho e desafinado. Mas andando pelo palco e sendo lembrado por bilhão de pessoas. Ah que justiça! Viva! The Kinks.
   E tudo termina com a mais amada e heróica das bandas inglesas: The Who. faz-se a ponte. De Kinks a Who, passando por Oasis, Queen, Lennon e Fatboy Slim. A entrada de Pete Townshend e Roger Daltrey com Baba O"Riley é sempre um êxtase. Assisti a festa com casal de amigos. Vibraram como eu. Ficamos horas falando do Who. É o teste do rock: Gostar deles é gostar de rock.
   O Brasil entrou simplesinho, simpatiquinho. Tom Jobim dizia que o Brasil tinha de se fazer digno da Bossa Nova. Se tivesse entrado com harmonias de Jobim seria lindo. Mas ficou uma coisa meio de samba e indio pra turista. O Brasil quer ser moderno e não toca em Jobim e Carmem Miranda. Tasca samba e indio. Estranho.
   Me falaram que teria Bowie. Ele foi homenageado. Mas não veio. Onde está Bowie?
   A cerimônia pedia o Queen e clamava por Bowie. Que pena....Mas vieram as Spice e os Pet Shop...triste consolo....
   O melhor? Ver Eric Idle. Aplaudido e com todo o povo cantando a canção da Vida de Brian. Caramba! Eles amam os Monty Python !!!! Só isso valeu  o show.
   Repito tudo o que disse antes. A festa deixa a sensação de que a Inglaterra virou um mero estado dos USA. Mas pelo menos souberam escolher. Ray Davies e Who.
  
  

MASTROIANNI/ SEAN PENN/ MARILYN/ GERMI/ RENOIR/ JACQUES TATI

   QUINTETO IRREVERENTE de Mario Monicelli com Ugo Tognazzi, Philippe Noiret, Gastone Moschin
Delicioso! É a continuação de Amici Mei, sucesso feito sete anos antes. Os velhos amigos continuam aprontando suas pegadinhas de adolescentes eternos. Monicelli tinha o segredo da comédia. O filme é feliz. Se voce tem amigos antigos irá se identificar com algumas situações. Maravilhoso tempo de comédias adultas. Comédias que falam de coisas sérias sem jamais parecerem forçadas. Tognazzi dá um de seus shows habituais. É um filme que mostra a alma masculina de forma bem verdadeira. Nota 7.
   A VALSA DOS TOUREIROS de John Guillermin com Peter Sellers
Um dos vários desastres que Sellers estrelou. Tudo dá errado inclusive ele. Zero. PS Eu adoro Sellers.
   O SACI de Rodolfo Nanni
Uma raridade ( que com o dvd deixou de o ser ). É o primeiro filme infantil feito no Brasil. Conta o episódio do Saci no Sitio do Pica Pau Amarelo. Simples, bem feito, tem um gosto de nostalgia, de pé no chão. Ele captura maravilhosamente a infância como ela é. Ou era? Nanni virou professor de cinema na FAAP. Há uma boa entrevista com ele feita em 2006. Nota 6.
   O PRÍNCIPE ENCANTADO de Laurence Olivier com Marilyn Monroe e Laurence Olivier
Este é o filme cujos bastidores foram dramatizados em 2011 no filme que deu indicação ao Oscar para Michelle Williams. Aqui vemos Monroe como uma corista que é convidada por duque do leste europeu para jantar na embaixada. Os dois não combinam, se agridem, e quase se apaixonam ao final. Esse fim não é doce demais, chega a ser azedo. Olivier tem seu filme roubado por Marilyn que está muito inspirada. Ela entra em cena e o filme é só ela. Olivier se exercita em um de seus prazeres: inventar sotaques. Peça de Rattigan que aqui se deixa ver com prazer. Para quem gosta de Marilyn ou de coisas very british é obrigatório. Nota 6.
   DOIS VIGARISTAS EM NOVA YORK de Mark Rydell com James Caan, Diane Keaton, Elliot Gould e Michael Caine.
Poderia ser ótimo, mas tudo falha. Porque? Os personagens são mal escritos. Caan e Gould, no auge da fama, são dois malandros atrapalhados que tentam dar um golpe em Caine, o maior malandro da América. Keaton faz seu tipo habitual, uma feminista histérica. Caine está bem, faz um super star do roubo. Quando o excelente Golpe de Mestre ganhou um monte de Oscars e dinheiro em 1973, uma fila de produtores se formou. Todos queriam fazer o seu Golpe de Mestre. Este é um deles. Nota 1.
   DIVÓRCIO À ITALIANA de Pietro Germi com Marcello Mastroianni, Daniela Rocca e Stefania Sandrelli
Como é bom ver Marcello!!! Aqui ele é um siciliano, nobre decadente, que é casado com repulsiva esposa melosa. Ele se apaixona por sua jovem prima e vizinha. O filme, dirigido pelo expert Germi, é cheio de cortes abruptos, frases ferinas e varia entre o humor amargo e cenas patéticas. Marcello tem uma de suas grandes atuações. Seu tipo, de bigodinho fino, cabelo empastado, ansioso de desejo, atrapalhado, é inesquecível. Uma obra-prima de criação e de estilo de interpretar. Mas o filme é muito mais. Temos a trilha sonora de Rustichelli e um roteiro brilhante que foi indicado ao Oscar ( e na época era muito raro indicarem qualquer coisa não anglo-americana ). Nota 9.
   A REGRA DO JOGO de Jean Renoir com Gaston Modot e Marcel Dalio
O revejo para celebrar a lista da Sound and Sight em que ele é o quarto melhor filme. Tenho uma relação complicada com este filme. Quando o vi pela primeira vez não gostei. Na segunda vez eu gostei um pouco. Agora foi a terceira. E finalmente entendo onde está seu gigantismo. Vemos um aviador que quebra um recorde mundial. Logo o tema muda, é a relação de um casal muito rico que se trai amoralmente. Então vamos ao campo e o tema se torna uma caça aos coelhos. Mas surge um malandro e agora o foco é nos amores desse malandro com uma empregada casada. Vem então o tema da vingança e nessa altura já não sabemos do que trata o filme e esquecemos do tal piloto de avião. E é isso: o filme é o primeiro a não ter personagem central, tema ou enredo. Não tem hierarquia, não tem foco, nem moralidade. É absolutamente livre. Influência gigantesca sobre o cinema feito após 1960 ( que é quando ele é descoberto. Em seu tempo ninguém deu bola pra ele ). Sempre que voce assistir um filme com dúzias de personagens com histórias entrelaçadas e sem qualquer sentido de objetivo central, saiba, o diretor tem este filme como cartilha. Nota 9.
   AS FÉRIAS DE MONSIEUR HULOT de Jacques Tati
Falar o que? Nada acontece neste filme, mas e daí? Queremos que esse nada jamais termine. O que amamos é ver Hulot, ver aquela praia e conviver com aqueles personagens. Este filme, ainda hoje hiper original, é um dos mais prazerosos filmes já feitos. Tudo aqui é felicidade. Hulot vai passar férias na praia, e nós vamos com ele. É um dos mais amados filmes do cinema. Eu realmente o irei rever por toda a vida.. Nota MIL.
   AQUI É O MEU LUGAR de Paolo Sorrentino com Sean Penn, Frances McDormand e David Byrne
Sobre um astro dark do rock dos anos 80 perdido no mundo de hoje. Penn está ótimo. Ele faz uma mistura de Ozzy com Robert Smith e algo de Edward Mãos de Tesoura velho. Mas o filme é um lixo insuportável. A trilha sonora, fraca, é de David Byrne e ele aparece como ele-mesmo, um tipo de grã-mestre da arte...Como se pode fazer um filme tão boçal, morto, flácido, tolo, sem porque? Como pode algum crítico o elogiar? Arghhhhh!!!!!
  

ULYSSES, BARBARA GANCIA, HAVAIANAS, ROBERTO CARLOS E MONKEES

   Paulo Coelho não gosta de Joyce. Seria surpreendente se ele gostasse. Porque tanto blá blá blá? Paulinho conseguiu o que desejava. Ele vingou aqueles que não conseguem ler Joyce. Que leiam Coelho.
   A Cinemateca produz uma multi-facetada mostra de filmes silenciosos. É sua chance, voce pequeno preconceituoso, de descobrir as delicias do mais cinematográfico dos tipos de filme. Imagem pura, ação sem diálogos, filmes que independem da lingua do país em que foram feitos, o mais pop dos estilos. E com trilha sonora improvisada ao vivo. Vão passar O Gabinete do Dr Caligaris. Tenho péssimas lembranças desse filme. Assisti aos 16 anos, e apesar de ter o dvd, nunca tive coragem de reve-lo. Hiper doentio, me dá um medo horroroso. Ver esse filme de Robert Wienne é como entrar na mente de um louco.
   Os Monkees, amados, vão excursionar. Se viessem ao Brasil eu iria. E teria de levar calmantes, balão de oxigenio e lenços à mão. Sem Davy Jones não será a mesma coisa. Mas lá estarão Peter, Mickey e Michael. E aquele monte de canções estupendas. Monkees é a única banda fake que virou lenda. E seu programa de Tv era anarquia pura. Ácido para crianças.
   Roberto Carlos foi o cantor da primeira canção que cantei na vida. O tempo voa e ele permanece de pé. Assim como MacCartney consegue, sem esforço, ser a alma em música da Inglaterra viva, com tudo de bom e ruim que ela tem ( comodismo, romantismo simplificado, humor, harmonia e hierarquia ), Roberto é o Brasil. Ele é doce demais, suave demais, sentimental demais, saudosista demais e carola demais. E ao mesmo tempo é profundamente verdadeiro, sincero, comovente e consolador. Ele não ousa. Ele executa. Ouvir coisas como Detalhes ou A Beira do Caminho é tomar contato com os arquétipos imorredouros de uma nação. O tempo voa e ele cresce. No deserto da canção romântica deste mundo velho e cínico, Roberto Carlos é bálsamo de esperança.
   Barbara Gancia é sempre ótima. Um texto dela: "Onde estão os Ricos?" Brilhante e hilariante. Ela toca com pé de chumbo e humor de veludo em assunto que muito me interessa. Ou seja: Com essas camisetas simplesinhas, essas bermudas horrorosas e chinelos fedidos, ainda existem ricos? O que define a riquesa? Afinal, hoje todos se vestem como pobres, assistem coisas de pobre e falam como pobres. Existem ricos, ricos de verdade? Onde estão esses endinheirados que se vestem como ricos, se divertem entre ricos e usufruem apenas do que é exclusivo? Barbara fala das imagens do Brasil de 1950, onde, ao contrário de hoje, todos parecem ricos. Ternos de linho e camisas brancas alinhadas. O pobre virou lei geral?
   Dou meu palpite: Ditadura da democracia. Ser rico é uma vergonha. Ser feliz é ser personagem da novela das oito. E rico de novela se comporta e goza a vida como pobre. A única diferença entre classes é que eles assistem Batman em poltronas melhores e usam a mesma bermuda de pobre comprada em loja mais cara. Fora isso, é o mesmo mundo de churrasco, balada e chinelo.
  Pense nisso: Na vida ou voce crê em tudo ou em nada. Isso é coerência. Crer em tudo: Anjos, física nuclear, na história, no marxismo, na psicanálise, em Jung e nas religiões. Porque tudo é uma questão de fé e se voce admite uma, creia, voce admite a validade de qualquer outra construção da mente criativa. Ou descrer de tudo. Religião, história, poesia, Freud e Marx, Kant e Goethe, admitir que tudo é vã construção da razão FANTASIOSA e assim se despir de toda crença e se guiar apenas por SUA EXPERIÊNCIA DE VIDA. Esse é o pensamento do mais importante filósofo vivo. E ele é tão bom que deixa a hipótese em aberto. Creia em tudo ou creia em nada. Mas jamais cometa a bobagem de crer em uma coisa e negar outra, ou negar tudo menos uma única teoria. Voce deve ir fundo. Ser um homem aberto a tudo, ou ser um homem descrente de tudo.
   Pra finalizar: Eu adoro a Inglaterra. E abomino os ingleses vivos.

O DESEJO DE PINTAR - CHARLES BAUDELAIRE

   Mario Vale, pintor e desenhista, executa belas imagens e ainda traduz o poeta francês, primeiro homem de nosso tempo, neste livreto bonito e puro. São textos em prosa com alma de poesia, ou poemas não acabados. Vale pega-os, verte-os e pinta-os. Nós os lemos. E se os lermos com vagar, entramos na coisa.
   Baudelaire foi o primeiro flanêur. Como costumo fazer em meus dias tontos, ele andava pelas ruas de Paris, aterrado, abismado e maravilhado. Em meio a podre febre moderna, recolhia fragmentos de beleza, e eternizava essa beleza secreta e morta em textos que propunham o spleen. Duende. Doente.
   Chineses usam gatos como relógios. Percebem as horas nas pupilas brancas dos felinos quietos. Porque o tempo é uma pupila de gato chinês: sempre o mesmo e só usa o relógio-nosso quem é escravo do tempo.
   E o amor faz de nós, enfim, livres do senhor das horas.
   Um anjo-poeta perde a sua aura. Rico poema prosado, em que há reflexos da atual teoria Benjaminiana da perda da aura da arte e ainda dos anjos de Asas do Desejo, o mais Baudelaire dos filmes, feito estranhamente pelo hiper-alemão Wenders. O anjo perde a aura e contente vive a sujeira do mundo real.
   Baudelaire tinha medo e asco do pó e da velocidade. Era um dandy. Cáspite!!! O homem era um dandy, um poeta sem asas e um flanêur!!!! Ele era o nobre possível em tempos que abominam tudo o que é especial.
   Vê paisagens em janelas fechadas e ama a morte. Foi Baudelaire a base de Freud para o impulso da morte. Para o poeta, a morte é amor, amor é desejo de morrer sob o olhar de quem amamos. Todo apaixonado é um suicida. Crer em psicanálise é acreditar em Baudelaire.
   Para ele, voce cria a verdade ao criar a fantasia. Fantasia que é muito mais real que aquilo que vive fora de nós. Porque na verdade o fora não vive. Quem pode provar a verdade de qualquer coisa que não seja nossa?
   Então ele anda pela vida recolhendo imaginações e vendo a si-mesmo em tudo. Sua poesia é desejo de provar a vida. Impossível. Quem nunca desejou pintar....viveu?

A HISTÓRIA DAS AVENTURAS DE JOSEPH ANDREWS E SEU AMIGO O SENHOR ABRAHAM ADAMS - HENRY FIELDING

   Momento do nascimento do romance, a Inglaterra de 1750 via em meio a revolução industrial, o surgimento da classe média. Povo que era alfabetizado e que com algum tempo livre adquiria o hábito da leitura. Se hoje tememos que os livros se tornem passado, é aqui que eles surgem como objeto cotidiano. Mas o que é o romance?
   Romance é o relato que narra a evolução de um ser, e ele se faz exatamente na Inglaterra por ser ela a nação de Locke. A filosofia do papel em branco, do homem não como ser predestinado, mas sim como ente em formação. Ou seja, o homem como personagem daquilo que seria um romance. Lendo o romance o leitor lê a vida de outro que poderia ou pode vir a ser sua vida também. Esses livros se tornam febre e Fielding é um dos grandes. Um profissional, pois também é aqui que nasce o autor como profissão.
   Tom Jones é o grande livro de Fielding e este Joseph Andrews surge antes. Mas é um tipo de ensaio de Tom, ensaio que homenageia o Quixote de Cervantes e ataca com humor os livros lacrimosos de Richardson. Sempre um humorista, aqui são narradas as aventuras de Andrews, jovem muito belo, que ao ser assediado sexualmente por senhoras ricas, foge para salvar sua castidade e leva consigo sua amada Fanny e seu amigo, o pastor Adams. Adams se torna então o centro do livro. Um ingênuo.
   Estalagens, estradas campestres, brigas, cerveja, duelos, o livro tem o clima britânico de então. Mas atente, nada de psicologismos. Os personagens de Fielding são tipos, nunca pretendem a profundidade. O autor fala pelos personagens, não cria gente real, exibe ação.
   Bela edição de luxo, ilustrada, da editora Ateliê Editorial, digna da importância do livro.

OLIMPÍADAS 2012

   As Olimpíadas melhoraram muito.  ( Voces acham que eu penso que o agora é sempre pior ? Não. Existem coisas que melhoraram e o esporte é junto à medicina o mais evoluído ).  Nos anos 80 as Olimpíadas eram assustadoras. Os grandes esportistas cheiravam à falsidade. Eram arrogantes, agressivos, neuróticos ao extremo. Ainda havia a rivalidade USA URSS e isso contagiava os jogos. E principalmente, o doping corria solto. Todos os recordes eram batidos dia a dia, sem parar, e os atletas tinham corpos monstruosos. Eles não se falavam, não relaxavam, não pareciam humanos. Ben Johnson, Florence Griffith Joyner...
   Usain Bolt seria impossível em 1984 ou 1988. Ele é relaxado, sorridente e tem um físico normal. Seus músculos não estão prestes a explodir. ( Tenho de dizer: Neste exato momento toca Bowie no ginásio, Boys Keep Swinging... ).  Mas não é só Bolt. Phelps nada tem de anormal, "apenas" seus recordes. Ele parece um estudante americano de Ohio ou Arkansas. Mas em 1988 não era assim. Eles rangiam dentes, faziam poses de deuses, se cutucavam.
   Como li em algum lugar, o esporte ocupa o lugar da arte e da religião. Dois bilhões de almas se ligaram em todo o mundo para ver Bolt vencer. Não há Oscar ou lider religioso que consiga isso. Se nossos artistas se chamam Coetzee, Scorsese ou Dylan ( e eles são grandes ), Michael Jordan, Senna ou Valentino Rossi são mitos maiores. Brad Pitt desaparece ao lado de Bolt.
   É exatamente na década de 60 que esse processo começa. Nessa década o mundo ainda produz mitos da arte como Beatles ou Kubrick, mas é o fim desse ciclo. É também aí que nascem os primeiros mitos mundiais do esporte: Pelé e Cassius Clay. E com eles vêm Jim Clark, Rod Laver, Wilt Chamberlain e Beckembauer. Nos anos 70 o esporte se torna estilo de vida, toda a moda e toda a estética se torna esportiva. Mark Spitz, Crujff, Dr, J, Magic Johnson, Nadia Comaneci, Niki Lauda, John McEnroe, Shaun Tomson, Borg....se abrem as portas, welcome ao mundo esportivo.
   Tudo isso tem a ver com a morte da fé. A fé se transfere da alma para o corpo. Religião, que é fé no não-visivel, e arte, que é fé no símbolo, perdem seu trono. O mundo é agora o corporal, o músculo e a vitória sobre o real. Ruim isso? Não. Se voce tiver olhos para perceber irá ver a arte e a transcendência que podem viver em cada movimento "real".  Não é por acaso que o boxe se presta a tantos contos e filmes maravilhosos. O esporte pode ser uma metáfora completa não só sobre a carne, mas também sobre a estética e a alma.
   Nesse sentido, Bolt é um criador.
   Um último adendo.
   O que um grego pensaria sobre tudo isto? A tocha olímpica, os saltos, as lanças e a luta....Creio que ficaria extasiado. E surpreso por ver os bárbaros tão vencedores e os helenos tão perdedores.

ABRA OS OLHOS E DEIXE-OS GUIAR

   Coisa rara em SP, seus olhos têm a chance de se deleitar e quem sabe, aprenderem a ver. Fotos de Fellini no Sesc-Pinheiros. Basta a foto da equipe de frente para o mar. Ela já fala tudo sobre o mundo do mestre de Rimini. O homem perante o nada que em mundo felliniano é sempre belo. Mas há mais: Jasper Johns no Tomie Otake. Para os olhos entenderem o nascimento da vulgaridade como centro do mundo-idiota. Jasper percebeu: o futuro é dos imbecis. Eles crescem porque pais idiotas têm mais filhos. Temos ainda os impressionistas no CCBB. Monet e a beleza absoluta da cor e do quase invisível, Renoir é a alegria de se estar vivo. Mas tem mais. Até Cézanne foi convidado. Dá pra perder? Só se voce for uma besta.
   Mas tudo cessa diante de Caravaggio no Masp. Como sempre a quantidade de obras é minima e voce sai do caixote da Paulista com frustração. Mas basta um Caravaggio para mudar para sempre seu entendimento do que seja arte. Ela é muito mais do que o mercado tenta nos fazer comprar.
   Após tudo isso, aproveite a lista da Sight and Sound e alugue Aurora de FW Murnau. Não existe filme que tenha maior gama de informação poética. Puramente visual.
   Delicie-se.

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM ESPORTE ESTÉTICO

   Li em algum lugar que em mundo sem religião e vazio de sentido o esporte se torna uma última tentativa de redenção. A nobreza de se tentar ser o melhor dentro de regras e de competição justa. Um objetivo que na verdade nada significa, uma realização que assume sua transitoriedade e seu futuro esquecimento. O esporte só poderia se tornar tão importante em realidade vazia onde a transcendencia se torna impossível e o tédio impera. O que seria passatempo fútil toma o posto de centro da vida, poder econômico e ícone de realização. Não mais um nobre e não mais um mártir, o herói é o homem que salta mais alto ou corre mais depressa. Mas se o esporte é central somente em universo vazio de sentido, podemos entender que ocasionalmente ele pode exibir uma fagulha de arte ou de espiritualidade. E nesses momentos ele vem como nostalgia. É como se por um segundo pudessemos pressentir alguma coisa que foi um dia. Uma imagem que não se verbaliza, mas que nos toca.
   Ésportes coletivos são dos mais pobres em sentido. O que eles simbolizam é apenas uma guerra tribal, ou mais óbvio, brincadeiras de pátio escolar ( que é onde eles nasceram ). O sentido que recorda arte e espírito se encontra mais facilmente nos esportes individuais. Eles trazem a marca do herói solitário, da responsabilidade por seus erros, da força perante o mundo adverso. Podem às vezes ser cheios de lembranças de sentidos perdidos, de atos esquecidos, emoções eufóricas.
   Existe toda uma educação estética no hipismo. Ele nos convida, como acontece com o melhor cinema, a admitir a existência de um outro modo de olhar e de vivenciar o tempo. Nele tudo é atenção ao detalhe. O que vemos é o mais belo dos animais sendo guiado pelo mais inteligente, mas nunca numa relação de mestre e servo, e sim numa parceria onde cada um dá o melhor que pode oferecer. As longas pernas se fazem energia e voam ou se disciplinam enquanto os olhos escuros arregalam-se em atenção absoluta. O sol brilha sobre o pelo do animal que é a obra-prima da elegãncia natural. E vence aquele que mais educado for. Cada pegada deve ser exata, cada movimento a repetição de uma exatidão, cada reação nervosa uma conclusão. A harmonia chega a ser musical, musica em que o som é a respiração do cavalo e seu trote ritmado. Tudo nesse esporte é arte, e essa arte nos ensina a ver. Usufruir.
   As provas hípicas são feitas em Greenwich Park. Para não se danificar o gramado, construiu-se uma plataforma a quatro metros de altura, onde a areia foi colocada e a pista construída. O gramado existe, cultivado e sempre verde, desde 1495. Em Londres, a mais de cinco séculos, se cuida de um gramado. Jamais se construiu nada naquele espaço, jamais se modificou seu design. E é lá que correm e trotam os cavalos.
   Nada pode dizer mais sobre o que seja a Inglaterra.

SIGHT AND SOUND, NOVA LISTA DOS 50 MELHORES FILMES

   Um amigo me envia a nova lista da revista inglesa Sight and Sound, nela os 50 melhores filmes da história do cinema. Pela primeira vez Kane não é o primeiro ( é o segundo ). Tentativa de ser diferente? Não sei. Kane está longe de ser meu filme favorito, mas ainda é o mais influente. Porque? Porque em duas horas ele exibe TODOS os tipos de cinema, todos os estilos, tanto do passado, como daquilo que se faria desde então. É por esse motivo que Kane é o filme de quem conhece e compreende o cinema. Ele recapitula e antecipa o próprio cinema.
   Mas quem venceu desta vez? VERTIGO de Hitchcock. E já aviso, ele é um de meus mais amados filmes. Faz tempo que Vertigo vem crescendo em todas as listas. Ele se beneficia do dvd. As novas gerações se surpreendem ao vê-lo, o adoram. Ele toca nos temas que são mais relevantes em 2012: solidão, real e imaginário, compulsão sexual, fetichismo e sadismo. Tudo isso com a técnica perfeita do gênio inglês. Vertigo ser o number one não surpreende ninguém. Ele é magnífico.
   A lista, como já disse, é influenciada pela voga do dvd. Filmes que eram famosos como lenda, ao serem vistos em casa, confirmam ou não sua fama. Vendo a lista em seu todo, três diretores sobressaem como renascidos em revisão: Tarkovsky, Ozu e Dreyer. Três filmes de cada um deles se colocam entre os 50 e o russo tem muito destaque. Devo dizer que dos 50 só não assisti um, História do Cinema de Godard, aliás vivemos um tempo godardiano, sua obra é bem representada.
   A lista nada tem de Tarantino, Woody Allen, Joel Coen, Clint ou PT Anderson. Os diretores em atividade representados são Wong Kar Wai, Lynch, Bela Tarr, Scorsese e Kiarostami. Estão longe de serem meus favoritos.
   Mas é uma boa lista. Apesar de não dar o destaque a Bergman que eu daria ( temos Persona em 18 e só ), vemos Ozu em terceiro, Murnau em quinto e Rastros de Ódio de Ford num belo sétimo lugar. Fellini está em décimo e Os Sete Samurais de Kurosawa é o 17. É bacana ver Bresson e seu Balthazar entre os topo 20 e meu querido L'Atalante de Vigo em 12. 
   Listas nunca são como voce gostaria, mas esta não me causa revolta ou hilariedade. Sóbria, essa a palavra que a define.
   1 VERTIGO - HITCHCOCK
   2 KANE - WELLES
   3 TOKYO STORY - OZU
   4 A REGRA DO JOGO - RENOIR
   5 SUNRISE - MURNAU
   6 2001 - KUBRICK
   7 RASTROS DE ÓDIO - FORD
   8 CÂMERA - DZIGA VERTOV
   9 JOANA D'ARC - DREYER
   10 OITO E MEIO - FELLINI
   11 POTEMKIN - EISENSTEINE
   12 O ATALANTE - VIGO
   13 ACOSSADO - GODARD
   14 APOCALYPSE NOW - COPPOLLA
   15 LATE SPRING - OZU
   16 AU HAZARD DU BALTHAZAR - BRESSON
   17 OS SETE SAMURAIS - KUROSAWA
   18 PERSONA - BERGMAN
   19 O ESPELHO - TARKOVSKI
   20 CANTANDO NA CHUVA - DONEN
   21 L'AVVENTURA - ANTONIONI
   22 O DESPREZO - GODARD
   23 O PODEROSO CHEFÃO - COPPOLLA
   24 A PALAVRA - DREYER
   25 IN THE MOOD - WONG KAR WAI
   26 RASHOMON - KUROSAWA
   27 ANDREI RUBLOV - TARKOVSKI
   28 MULLHOLLNAD DRIVE - LYNCH
   29 STALKER - TARKOVSKI
   30 SHOAH - LANZMANN
   31 O CHEFÃO II - COPPOLLA
   32 TAXI DRIVER - SCORSESE
   33 LADRÕES DE BICICLETA - DE SICA
   34 A GENERAL - KEATON
   35 METROPOLIS - LANG
   36 PSYCHO - HITCHCOCK
   37 JEANNE DIELMAN - AKERMAN
   38 SANTANGO - BELA TARR
   39 OS INCOMPREENDIDOS - TRUFFAUT
   40 VIAGEM À ITÁLIA - ROSSELINI
   41 PATHER PANCHALI - SATYAJIT RAY
   42 SOME LIKE IT HOT - WILDER
   43 GERTRUD - DREYER
   44 PIERROT LE FOU - GODARD
   45 PLAY TIME - JACQUES TATI
   46 CLOSE UP - KIAROSTAMI
   47 A BATALHA DE ARGEL - PONTECORVO
   48 LUZES DA CIDADE - CHAPLIN
   49 CONTOS DA LUA VAGA - MIZOGUCHI
   50 HISTÓRIA DO CINEMA - GODARD
        Devemos lembrar que filmes recentes tendem a cair sempre de posição, assim que seu impacto vai se extinguindo. Dificilmente veremos Lynch em listas futuras. O tempo é sempre o melhor juiz de toda arte. Vencer a passagem do tempo é o grande mérito.
        Como vivemos em tempos pouco imaginativos, Bunuel fica de fora. Assim como a elegãncia de Visconti ou de Resnais. Não são bons anos para requinte ou para delicadeza.
        Destaquemos a definitiva consagração de Ozu e os vários criticos discípulos de Godard se fazendo notar. Toda escolha reflete o momento em que ela é feita. O modo de filmar godardiano é hoje muito valorizado. Esta lista confirma isso.

GORE VIDAL, O ÚLTIMO ARISTOCRATA

   Gore Vidal foi o último americano aristocrata. Ele tinha uma nostalgia crítica daquilo que a América um dia fora e daquilo que poderia  ter sido. A América que ele amava não era aquela dos cowboys e nem a dos soldados heróis da segunda guerra. Era o país idealizado pelos fundadores. Ao ler Gore Vidal, indicado por Paulo Francis, em 1988, toda a minha ideia sobre o que fosse a História mudou.
   Imagine. Um grupo de intelectuais é incumbido de pensar e idealizar um país recém fundado. Isso é a América em seu apogeu. Franklyn, Jefferson, Paine...todos iluministas bem formados, todos liberais modernos, recebem a missão de fazer um país. Pela primeira vez, e pela única até hoje, uma nação nasce por ato de inteligência e não pelo acaso da história. Os EUA surgem como proposta, como ato humano, como obra da mente. Contrário da Europa, feita ao acaso de escombros do imperio dos romanos, os EUA são construídos pela vontade. Planejados. A terra da liberdade e dos ideais. Mas Gore Vidal logo nos alerta. Essa nação é traída. Ela desvia sua direção e se faz nação do militarismo. Primeiro sinal: a guerra contra a Espanha em fins do século XIX. O país tinha entre seus compromissos o não envolvimento em questões internacionais. Mas os militares se fazem poderosos. Nasce o país que conhecemos, uma ideia iluminista maculada pela realidade.
   Vidal escrevia bem. Tinha um estilo leve, direto, e desfiava uma corrente de informações enciclopédicas. Sua familia era daquelas que podemos chamar de aristocracia americana. Os filhos de Harvard, da politica liberal tradicional, da região de Boston e Philadelphia. Exemplo de elegãncia, tinha um caso de amor com a Itália. Para Gore, a terra de Dante era a única nação onde um homem com educação e senso de beleza poderia viver. Era apaixonado pela luz romana, pelos mármores envelhecidos, pela comida e o vinho. Gore Vidal era resenha constante nos jornais dos anos 80/90. Me mostrou que era possível cultivar a mente e ser feliz. Não foi pouca coisa. Eu pensava que todo intelectual era como Sartre. Um tipo de ratinho feio. Vidal era solar.
   Claro que ele tinha defeitos. O pior era a vaidade. Se ele era chamado de "Montaigne americano" ( e ele adorava esse rótulo ), devemos lembrar que Montaigne era genuinamente modesto. Um Montaigne vaidoso nega o próprio Montaigne.
   Seus livros históricos são excelentes. JULIANO deve ser lido por todos. E ele ainda frequentava Hollywood ( num tempo em que intelectuais sérios ainda acreditavam em cinema ). Assim como Aldous Huxley e Faulkner, ele se arriscou em alguns roteiros, o mais famoso sendo Ben Hur. Foi Vidal quem ressaltou a pulsão gay do herói. É hilária a história de como ele conseguiu enganar Charlton Heston, que não percebeu as pistas sobre a homossexualidade do filme.
   Gore Vidal morre, e preciso dizer, mais uma vez, que em mundo de Miami onipresente, Vidal estava sem lugar. Mais que um autor, um questionador. Um chato charmoso. Um belo de um escritor.