O ARTISTA- MICHEL HAZANAVICIUS

   Absurdamente corajoso!!!    Existem duas cenas que definem este filme. Numa delas, o ator/artista, deprimido, vai ao cinema, e ri com o filme, sonoro, da atriz que ele ajudara. Na outra cena, já ao fim do filme, a arma desse ator dispara, o cachorro se finge de morto, e o que era muito triste se torna muito engraçado. Essas duas transições, do drama à comédia, são um dos segredos perdidos do cinema atual. O fato deste filme conseguir fazer isso de uma forma tão natural atesta talento de quem o escreveu e dirigiu, no caso, Michel Hazanavicius.
   Não é filme para agradar o grande público. Ele nada tem daquilo que garante interesse. Não tem violência, não tem sexo, nenhum tiro, nenhuma perseguição de carro. Não fala de politica e não é "rebelde". Mais que isso, não é barulhento, não é colorido, não tem efeitos especiais. Então o que ele tem? Nada?
   Ele não tem cor e não tem diálogos. Um suicidio de quem o produziu. Assistir à um filme silencioso é tão dificil para quem não está acostumado, como é assistir a ópera ou ballet para quem não frequenta grandes teatros. Isso faz com que este filme seja algo de muito raro: um filme excêntrico que recebe atenção da midia graças a suas premiações. Mas voltando a questão, o que ele tem?
   Genuino amor ao cinema. Tirando todo artificio dos filmes, o que resta é cinema puro, uma história contada em imagens. E indo ainda mais fundo em sua proposta, o filme conta uma história que tem o odor e o gosto de 1927.
   Douglas Fairbanks é o modelo de Jean Dujardim. Fairbanks foi um semi-deus neste planeta. O inventor do herói de capa e espada, do pirata sorridente, do atleta bem-humorado. Mas, em 27, com a invenção do cinema sonoro, seus filmes se tornaram velhos, passados, falidos.  Alcoólatra, logo iria encontrar a morte ainda jovem. Dujardim, numa atuação de gênio, tem o tipo de Fairbanks, mas seu sorriso tem a maravilhosa alegria de Gene Kelly também. O filme é todo dele. É um ator que flutua do cômico ao drama com imensa facilidade. Sua atuação é a garantia do filme. Com ator menos dotado nada aconteceria.
   É triste dizer que não há mais películas para filmes em P/B. Se compararmos a riquesa do preto e branco clássico com a pobresa do que vemos aqui, perceberemos que este filme pode deseducar as novas gerações. Elas pensarão que o luxuoso P/B era só o que se vê aqui. Muito pouco. É uma fotografia sem cor, nunca em preto e branco. Mas não pense que é um filme de visual pobre. Os atores se movem com admirável fluência e os sets são muito detalhistas, pesquisados. Aqui nada há do visual miserável da TV.
   A história é simples: o super-star que não acredita no futuro ( filmes falados ), e vê sua carreira se encerrar. Uma atriz que ele ajudou se faz estrela e o resgata do limbo. Bérenice Bejo também brilha intensamente. Pena os dois não terem mais cenas juntos.
   Esse amor de que falei se revela no carinho com que os atores são tratados, na história que une montes de filmes clássicos e na coragem de se fazer algo tão contrário a tudo que é feito hoje. Ele não se parece com filme nenhum feito de 1940 pra cá. Tem a pureza visual dos filmes dos anos 20 com a ingenuidade moral dos anos 30. ( É claro que nem todo filme dos anos 20 era puro. Lang e Pabst nada têm de puro. E é óbvio que Lubistch ou Mae West nada tinham de ingênuo. Falo do cinema mais característico da época ).
   É apenas um poema de amor ao cinema. Um parênteses que nos recorda aquilo que fomos e que jamais voltaremos a ser. Todo cinéfilo se sentirá em casa com este filme. E todo não-cinéfilo se sentirá desconfortável. No mundo ideal ele seria um esmagador sucesso e o estilo de Fairbanks se faria moda. Os filmes recordariam que é possível se fazer um sucesso sem violência e sem palavrões. Mas não. Será apenas mais um desse filmes "de criticos", que tanto irritam o povão e que quando vencem o Oscar são imediatamente esquecidos ( vide O DISCURSO DO REI ).
   Raras vezes nos últimos anos um filme foi tão corajoso, e raras vezes mereceu tanto ser chamado de "Um Belo Filme".

ROMA NO MASP

   Fico pensando no ano de 4012.... Pessoas andando e olhando com respeito:
   Para uma garrafa de vidro de Guaraná, uma escova de dentes verde e para um pedaço de parede com grafiti onde se lê: vote em Carlos Daniel.
   Olharão com interesse para uma caneta da Copa da África do Sul e para uma página de papel com uma foto da Luana Piovani pelada. Uma calça jeans esfarrapada e uma capa do vinil do Jorge Ben.
   Um garfo de plástico e um pôster do Hawaii. Uma foto do marceneiro Zé da Moóca e um lápis preto.
   Swatch de plástico vermelho e um livro rasgado de Harold Robbins.
    Daqui a 2000 anos olharão para pedaços de túmulos e não entenderão nada. E para cruzes cristãs e nada vão lembrar. E uma moeda de niquel.
    Nossos objetos terão a honra de viver por vinte séculos?
    Vejo a exposição sobre a Roma Imperial e penso isso. Mas penso mais. Que há um patético em se olhar para um garfo, para uma lasca de parede, para uma urna funerária. Aquilo tudo não é obra de um artista, é artesanato, coisas úteis e arte é inutil. Admiramos o lixo de Roma, os restos. E também constato que fora de seu ambiente aquilo tudo se torna mudo. Uma estátua de Nero longe de Roma é como um tigre no zoo de Londres. Saímos da avendia Paulista e nos vemos diante de um bronze de 2000 anos de idade. Não há como entrar no espirito daqueles objetos. Eles estão isolados, exilados de seu mundo. Mortos.
    Sinto mais uma vez o quanto sou romântico. Preciso do grande nome de um artista, de um rastro de um ego imenso. Preciso de Arte e não de artesanato. Preciso ver El Greco, preciso das imagens religiosas da Espanha católica. E dos retratos de Gainsborough, de Watteau. Preciso lembrar de Modigliani. Na frieza dos mármores de Roma eu nada vi. São objetos de vidas que se foram. Mas a menina de Renoir não é um objeto. É vida para sempre. Ela vive, ela me alegra, ela é a beleza.
   Vá ver as coisas que eram cotidianas na cidade de Roma e na vida romana. Mas aproveite e reveja a arte não cotidiana de seres nossos irmãos. Saia de um mundo morto e respire a vida das telas de Monet e de Rafael. E perceba mais uma vez: arte é vida e vida é para sempre.

A HISTÓRIA DA ARQUITETURA- JONATHAN GLANCEY

   Acabou de sair este livro, bastante ilustrado, que engloba de forma simples e direta, toda a história da arquitetura. Desde a Mesopotâmia até o século XXI. Algumas fotos são de tirar o fôlego, outras são enervantes. A pior das imagens é uma que mostra o centro de São Paulo. O inferno feito pelo homem. Não é um lugar para gente viver, é uma máquina de trabalhar e de dormir, um kaos que obriga a que os humanos à ele se adaptem e não o inverso, que seria o correto.
   Impossível destacar a mais bela construção. A MESQUITA DE DJENNE,  em Mali, do século XIV, toda feita em tom de areia queimada, tem o visual de uma construção de outro planeta. Todo seu desenho lembra filmes de sci-fi, um monumento à invenção dos homens. E se SP é o inferno, a VILLA DE ADRIANO pode ser o paraíso. Dificil existir algo de mais bonito feito por nós. Colunas, estátuas e água formando um ambiente de absoluta paz e de harmonia celeste. Eis um ambiente onde tudo convida a felicidade.E o que dizer de CHARTRES, uma gloriosa tentativa de se alcançar a Deus. Uma afirmação de que nada somos e que tudo fazemos para ser mais que esse nada. A arte perdida de se tecer em pedra. Pedra que se faz renda e renda que se faz luz. O PALAZZO DEL TE em Mântua, ícone do renascimento, a beleza sóbria, limpa, refinada, brancos e ocres, retidão e curvas perfeitas, um convite ao olhar sem fim.... Posso ficar aqui por linhas e mais linhas falando das maravilhas que existem aqui. Mas faço questão de citar textualmente um trecho da introdução. Para mim ninguém define melhor a arquitetura:
   " No inicio do século XXI há muito mais pessoas e exponencialmente arquitetos do que já houve em qualquer outro tempo. Isso certamente não levou a um aumento na qualidade da arquitetura. Por que? Porque não construimos mais para ligar a humanidade a Deus ou para dar sentido a nosso lugar no Cosmos, mas por qualquer uma das razões banais, mundanas, vaidosas e lucrativas que reduzem a arquitetura a um empreendimento vulgar e terreno. É paradoxal que JUSTAMENTE NA ÉPOCA DA HISTÓRIA EM QUE A TECNOLOGIA PERMITE QUE AS CONSTRUÇÕES SEJAM MAIS EMOCIONANTES DO QUE NUNCA, EXISTAM TANTAS QUE SEJAM TÃO INSÍPIDAS E DEGRADANTES. Na verdade, o papel do arquiteto decaiu. Para sobreviver, para continuar a entusiasmar como fizeram as grandes mesquitas e templos ao longo dos milênios, os arquitetos precisam redescobrir o campo elevado da imaginação, ser os xamãs e os mágicos que seus predecessores foram antes da revolução industrial, quando construir tornou-se fácil demais..... mas naturalmente temos a arquitetura que merecemos. Se queremos naturalmente VIVER VIDAS BANAIS, ENTÃO O MUNDO SEM ARTE DO SHOPPING CENTER, O MUNDO DO PARQUE TEMÁTICO E DO CENTRO DE LAZER, O MUNDO FURTIVO DO CONDOMINIO FECHADO, COM SUAS 3 GARAGENS PROJETADAS EM PÚDICOS ESTILOS TRADICIONAIS, JUNTAMENTE COM O MUNDO DOS ESTACIONAMENTOS COMERCIAIS...É uma grande distância dos deuses e da arquitetura como gostaríamos que fosse. Uma história que foi contada a 10.000 anos."
   A magnífica grandesa do homem. A ansiosa busca por Deus. A afirmação de uma inteligência. A magia do inesperado. Glancey nos mostra que isso ainda existe no mundo de hoje. Mas se torna cada vez mais excessão, e não regra. Nossa arquitetura, pelo contrário, tem afirmado a insignificãncia do homem, a negação do divino e o tédio da preguiça. Se deslumbrar com a beleza dessas fotos e com o texto de Glancey é entender o porque do erro e onde pode estar a solução.
   Somos onde vivemos. Pense nisso. O banal é lar de mentes banais. O confuso dá nascimento a confusão, o medíocre cria mediocridade e o insípido é lar de insipidez. O brasileiro tem por tradição dar pouco valor ao visual de suas casas. Por que? Caixas com grades onde o carro da familia toma o lugar do jardim. Apartamentos clean onde não há espaço para se receber amigos. Decoração tecnológica onde nada é criativo e nada tem a marca do caráter de quem lá vive. Casas sem nada que revele uma história, uma alma. Casas que poderiam ser de qualquer um. Casas anônimas. Quem vive nelas? Anônimos.
   Somos onde vivemos.

Trailer: Lenny. de Bob Fosse



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LENNY, UM FILME DE BOB FOSSE ( A REALIDADE DO CINEMA )

   Numa crítica da Veja sobre o DVD de "PARCEIROS DA NOITE", filme de 1979 sobre o mundo hardcore-gay, com Al Pacino, fala-se que o filme exibe uma coisa que sumiu do cinema atual: a realidade. Hoje vemos violência chocante, dramas contundentes, sexo doentio, emoções aviltantes, mas não a tal realidade. A realidade é feita de cenários comuns, nem bonitos e nem imundos, de tempos longos e mortos e de pessoas complexas. LENNY, feito em 1974, portanto do período mais realista do cinema, é de verdade.
   Lenny Bruce foi um humorista, tipo stand-up, que ajudou, e muito, a quebrar o puritanismo americano. Nos anos 50, enquanto na França, Itália ou mesmo no Brasil, se escutavam palavrões no teatro, Lenny era perseguido nos EUA por falar de masturbação, homossexualismo e falar palavras como "cocksucker". Casado com uma stripper, viciado em heroína, morto ainda jovem, Lenny acabou se tornando um tipo de herói outsider no momento em que as coisas mudaram. Bob Dylan e Leonard Cohen o têm como mito.
   O filme nada glamuriza. E nem faz dele um trapo. Nada de cenas bem-loucas e nada de sofrimento cruel. É um cara de verdade, às vezes legal e às vezes um crápula. Miles Davis cedeu 3 músicas para o filme, é um dos filmes mais jazz que já vi. Talvez seja o mais jazzy.
   Bob Fosse foi um gênio. Surgiu como coreógrafo nos anos 50. No musical "KISS ME KATE", há um número coreografado pelo jovem Fosse. Já antecipa tudo o que ele traria à Broadway: sexo, leveza, esperteza, malandragem. Ele logo estourou no teatro e começa no cinema em 1968, com CHARITY, uma homenagem á Fellini. Fracasso de público, é um grande filme. Em 1972 ele faz um filme barato, um tal de CABARET. Sucesso absoluto, é o filme que melhor exibe o clima da Alemanha nazista. Com esse filme, Fosse ganha o Oscar de direção, vencendo "apenas" Coppolla em O PODEROSO CHEFÃO. Bob Fosse nesse ano conquista um recorde que nunca será batido, ganha os 3 maiores prêmios numa mesma temporada: o Oscar no cinema, o Tony na Broadway por PIPPIN' e o Emmy na TV pelo show LIZA COM Z. Mas o que ningém sabia é que Fosse era muuuuito INTENSO demais. Mulheres, cigarros, álcool, insônia, anfetaminas, estimulantes. Faria apenas mais 3 filmes, este LENNY, e depois venceria Cannes com ALL THAT JAZZ ( o filme que vi mais vezes na minha vida ). O final seria com seu maior fracasso, STAR 80, um lixo. Na Broadway continuaria vitorioso, até ter um enfarte em 1987 e falecer. Junto a John Huston, Bob Fosse é o cara que eu queria ter sido.
   Dustin Hoffman faz Lenny. E sabemos que trabalhar com Dustin em 74 era um inferno. Exageradamente perfeccionista, ele exigia inúmeras refilmagens, discutia os motivos dos diálogos e se trancava para estudar a psicologia do papel. Em ALL THAT JAZZ, Fosse mostra o clima insuportável das filmagens de Lenny. Ele sofreu um enfarte ao fim da montagem, exatamente como em JAZZ. Mas valeu a pena, o que vemos é Dustin Hoffman se tornar Lenny diante de nossos olhos. Cada cena que passa é mais um passo na direção da total transformação e ao fim do filme não há mais Dustin, o que há é Lenny.
   O filme mostra o ambiente que Fosse melhor conhecia: espeluncas, bares pequenos, cheios de putas, cafetões, músicos de jazz, ladrões e fracassados. Feito em P/B, tem uma fotografia granulada, cheia de closes, rostos sem maquiagem, feios, gordurosos, enrugados. É um filme desagradável, crú, sem nada de "bonito". Mas é belo, forte, vivo. Tem uma cena, ao final, em que Lenny entra em cena drogado e não consegue dizer coisa com coisa, que é feita sem um só corte. São cerca de 10 minutos de câmera parada e nem uma só concessão. Dustin se desnuda, a ausência de cortes faz com que a alma de Lenny se revele.
   Valerie Perrine, atriz que tinha tudo pra se fazer star mas que não deu certo, está soberba como a stripper. Decadente, sexy, tem uma cena ao telefone, patética, que lhe garantiu um lugar de destaque. É chocantemente real.
   Longe da perfeição ( o filme jamais exibe o porquê de Lenny ser tão genial ), é um filme que se arrisca, que aposta, que faz o que quer sem pensar nas consequências. Como foi Lenny Bruce. Como foi Bob Fosse.

Gilberto Gil - "Babá Alapalá"



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REFAVELA- GILBERTO GIL ( O MUNDO NOVO É UM MUNDO NEGRO )

   A gente não percebe porque se acostumou, mas se um homem do século XIX ( ou mesmo de 1910 ), viesse cair em Paris hoje, ou New York ou Londres ou Sidney ou meu bairro em São Paulo; o que esse homem do passado mais estranharia? Os prédios? Os carros, as telas acesas?  Não meus caros, seriam os negros. E mesmo em cidades desde sempre negras, como Rio ou New Orleans, esses homens estranhariam negros vivendo e tendo o poder de brancos. A grande revolução do século XX foi a cultura negra se fazer dominante, o homem negro ser, e será cada vez mais, a cara do planeta. Este disco, uma obra-prima irretocável, é uma espécie de biblia desse momento histórico.
   Gilberto Gil foi à Africa e voltou mudado. Não se ia muito a Africa em 1975 e a miséria lá, se hoje revolta, imagine então. Ele voltou ainda mais negro do que sempre fora e aqui ele faz uma coisa que antecipa a moda de dez anos depois: um disco world music. Em 1976 não existia nem o termo. Os criticos não sabiam como classificar este disco, foi mal falado. É genial. World Music com muita testosterona. É reggae, é batuque africano, é funk, é musica de terreiro, é filhos de Gandhi. Gil sempre foi um duende, sua alma é dionisíaca ( Caetano é Apolo ), aqui ele está em casa, feliz, solto, explosivo.
   Refavela a música, começa com lindos acordes e vai num rápido crescendo de percussão. Um monte de instrumentos, uma festa, e um refrão harmônico que é um êxtase. Uma alegria colorida que canta a favela paradoxal. Lugar feliz de miséria e dor. Toda a criatividade de um talento imenso está aqui em pleno poder. Este aliás é seu último grande disco.
   Aqui e Agora. Uma divagação mistica, daquelas que ele tão bem sabia fazer. Gil não é exatamente religioso porque ele não fala de religião. Para ele a religião é coisa resolvida, ele vive nela e pronto. Aqui ele fala do espaço e do tempo, com calma, com tranquilidade. Uma canção suave, soft, de belíssima harmonia.
   Norte da Saudade é reggae primitivo. De sertão, tosco e com um baixo ( Rubão ) absurdamente bom. A banda que o acompanha suinga, ginga e cria sem parar. Jogo de cintura, muito suór e sangue na veia.
   Ilê Ayê fala exatamente da negritude. Rápida, quase agressiva, tem uma levada que não é funk, não é samba, não é reggae, é o que? Um momento de criação solar.
   Babá Alapalá. Uma obra-prima. Isto é uma obra-prima. Ela desliza pelo ar, primitiva e sofisticada. É como um tesouro. O baixo e a percussão mandam, a voz inspiradíssima. Seu corpo vai junto. O disco anuncia: não mais melodia, ritmo e dança, música é milagre, uma coisa que é um nada invisível e que faz a cabeça pensar e o corpo pirar. Como diria o grande Ezequiel Neves: Descaralhante!
   Sandra é linda. Uma canção com letra que é poesia literária, múltipla de sentidos e uma melodia que se parece a hino de harmonização. Ela hipnotiza. Me recordo de aos 18 anos ficar tardes e tardes, ao pôr-do-sol,  cantando essa melodia.
   Era Nova é quase psicodélica. Bastante "mutante", ela tem três andamentos e uma letra complexa, e ao mesmo tempo, festiva. Aliás o disco inteiro é feliz, alegre, otimista.
   Samba do Avião. E ele transforma uma bossa de Tom Jobim em música de Cameroon. Fica bom pra caramba!
   Balafon é mais uma obra-prima. Um primor de ritmo africano, de alegria esfuziante. Impossível voce não sair rebolando pelo quarto, pela sala ou pelo carro. Uma música tão maravilhosa que ela deveria ser vendida nas farmácias, para doentes e perdidos. Voce a escuta e vê trilhas africanas diante de seus pés. E sorrisos bonitos.
   Patuscada de Gandhi. A mais simples das músicas. Uma batucada, meio terreiro, dos Filhos de Gandhi. É preciosa e muito rebolativa. Em 1981, eu, Mauro e Dió destruímos a sala de casa ouvindo isso. Acho que a escutamos dez vezes e ainda ligamos pros amigos pra mostrar nosso novo arranjo. Foi uma das mais brilhantes noites da minha vida.
   Nos anos 80, como aconteceu com todo mundo, de MacCartney a Lou Reed, passando por Bowie e Neil Young; Gilberto Gil se tornou fã de si-mesmo e isso o levou a ser uma caricatura. Seus discos se tornaram hiper-produzidos, preguiçosos e bobos. Mas é impressionante o nível de genialidade que ele demonstrava nos anos 70. Assim como Caetano, Jorge Ben, Tim Maia, Ney Matogrosso, Novos Baianos e tantos outros, Gil cria sem parar, mistura tudo, absorve o ambiente e nos dá uma salada que nunca desanda. Essa linha de evolução seria rompida pelos próprios criadores a partir de 82/83 e nunca mais seria retomada. A música feita no Brasil passaria a ser de segunda categoria, cópia de cópias ou saudosas tentativas de revivier o já ido. Chico Science tentou retomar e até conseguiu. Seu primeiro disco é filho direto de REFAVELA. Mas Chico morreu e o mangue beat se perdeu na nascente.
   De qualquer modo, aqui está o material. O futuro preto e gingado. E genial. Maravilhosa refavela!

Firenze



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FLORENÇA, UM CASO DELICADO- DAVID LEAVITT ( A CIDADE E SUA SÍNDROME )

   Florença é uma cidade pequena. Ela pode ser toda percorrida a pé. E nesse espaço pequeno ela comporta um quinto de toda a arte do mundo. Um quinto! Isso provoca uma síndrome conhecida como "Síndrome de Stendhal", o autor francês teria sido o primeiro a descrevê-la. Ela ocorre quando após horas vendo tantas maravilhas, achatado e asfixiado pelo tamanho do que há de genial naquilo tudo, o pobre visitante perde a noção de onde está, quem é e o que faz ali. Uma sensação de que não se é nada, de que a própria vida nada é, de que as obras são maiores que tudo, faz com que a consciência se esfarele. Vem a palpitação, as vertigens e o desmaio.  Eis a tal síndrome. E creia, ela não ocorreu só com um romancista francês de mente criativa, ela aconteceu inúmeras vezes. Inclusive neste ano. Vivi uma coisa parecida em Chartres. Um maravilhamento tão intenso que é como se não pudéssemos mais existir. A completa perda do senso do eu-presente.
   David Leavitt é um atual bom autor americano. E ele sabe que essa sensação era cotidiana na Renascença. O mundo moderno, não tendo a coragem de vivenciá-la, a nega. De que modo? Vulgarizando a arte. Michelangelo em canecas, bonés e chaveiros. Michelangelo como um artista pop.
   O livro não é uma descrição da cidade. Volume da Cia das Letras, da mesma coleção do Flanêur, Florença não é cidade de flanêur. Nela os passeios têm objetivo, é uma cidade pequena, e onde cada rua é uma história. David Leavitt se prende então a história recente da cidade, de 1850 para cá, e eu não sabia: ela é uma cidade "inglesa" e é um tipo de consulado gay.
   Inglesa porque desde 1850 todo inglês perseguido por ser excêntrico acabou indo viver em Florença. Em 1920 eram 50.000 numa cidade de 450.000 habitantes. Eram escritores, pintores, poetas e simples vagabundos. A tragédia deles, é que quase todos perderam o que tinham de talento na cidade. Vivendo em lugar onde tudo podia ser feito ( e esse tudo ia desde se casar com sua tia a ter amantes de 12 anos ), eles perdiam a garra e acabavam se tornando um tipo de playboys ultra-esnobes, fofocando uns dos outros todo dia, e escrevendo livros enfadonhos sobre seus casos. E.M. Forster foi o único que não perdeu seu dom, simplesmente por não ter se misturado a colônia inglesa. Os ingleses eram capazes de ficar trinta anos na cidade e continuar tomando chá e comendo sanduíches de pepino. Vinho, café e feijão, jamais! Foster se misturou, provou a cidade, conheceu a vida. David Leavitt dá breves relatos de vários desses autores. Muitos foram amigos de Oscar Wilde, e nem todos eram gays. Huxley esteve por lá, assim como Berenson, que viveu meia vida na cidade.
   Florença é considerada a mais esnobe cidade da Itália. A lingua italiana nasceu na cidade e o visitante fica impressionado com a quantidade de nomes famosos que são relembrados em cada esquina. O rio Arno, que corta a cidade em duas, é hoje um pardacento rio imundo, mas mesmo assim as pessoas se encantam com sua cor de café com leite. Se o visitante não se cercar das amarras de sua fraqueza, a cidade o deixará enfeitiçado. Ela coloca todos de joelhos.
   Em 1966 uma terrível inundação pegou a cidade inteira. Na TV da Itália, tudo o que se falava era do número de carros levados pelas águas do Arno. Mas, sem internet e sem ninguém planejar, uma quantidade enorme de jovens estudantes da Inglaterra, da Alemanha e até dos EUA se dirigiu para a cidade. O que eles foram fazer? Salvar o tesouro artístico da cidade. Eram filas de jovens, água suja até a barriga, passando de mão em mão, livros, quadros, estatuetas para lugar seguro. Há uma outra história tão bela quanto essa que se passou em 1945. Uma tropa de americanos veio libertar a cidade. Tudo pacificado, eles entram numa granja na periferia de Florença. Três oficiais entram num quarto e acendem a luz. Um deles diz: - Major! Giotto!, o outro fala: - Aqui!!! Botticelli!!! , ao que o major diz: -"E aqui um....Leonardo!!!!...
   As obras eram escondidas em casas humildes durante a guerra para não serem levadas pelos alemães. Naquele quarto simples, 45 milhões de dólares, em valores de 1945, estavam nas paredes.
   Florença é isso. Uma cidade agarrada a seu passado. Consciente do que foi e que estranhamente sabe que desde 1850 tem como moradores famosos, estrangeiros. A cidade parou de produzir nativos de brilho. Mas, orgulhosa, assoberbada, ela exibe a maior abundância de arte por metro quadrado em todo o globo.
   É um belo livrinho!

OSCAR 2012

   Leio que todos os concorrentes são fracos de bilheteria. Alguns são mais que isso, fracassos. O filme francês tem sido vítima de um fenômeno que atesta a ignorãncia do público atual do cinema. As pessoas saem no meio do filme "por não suportarem assistir um filme em preto e branco". Nos EUA inclusive vaiam as legendas. Não entendem legendas em filme. Mas não só ele. Os filmes de Scorsese, de Alexander Payne ( diretor que adoro ) e etc.... Todos fracassos. Mas há mais um sinal: em 1972 a média de idade dos concorrentes a melhor diretor era 35 anos. Este ano é de 61. E não é um fenômeno isolado, a média é maior de 50 desde a década de 80.
   O filme de Meryl Streep também é um pavoroso fiasco de bilheteria. Assim como no ano passado o ótimo filme sobre o rei George não interessou ninguém ( provávelmente por ninguém saber quem era o tal George e o tal Edward ), agora parece que já não sabem quem foi Thatcher. Chegaremos a um tempo em que dez anos atrás será "antiguidade". O DISCURSO DO REI merecia ser visto por todos. Não o viram. Era elegante demais para um público que só compreende emoções violentas.
   George Clooney x Brad Pitt. Belo enfrentamento. Vai dar Pitt. O filme é um lixo.
   Gostaria que Max Von Sydow fosse o melhor coadjuvante. Há quem o chame de "o maior ator vivo". Basta dizer que é ele o herói do SÉTIMO SELO de Bergman. Depois do gênio sueco, esteve em filmes de Woody Allen, Scorsese e que tais. É o único gênio indicado.
   Uma banda brasileira que faz covers de músicas de filmes disse algo que nunca notei: desde os anos 80 tem diminuído a quantidade de hits vindos do cinema. As superproduções têm usado temas antigos, tipo Ac/Dc no Homem de Ferro. Se a gente parar percebe, de Footloose à Eye of Tiger, passando por todos James Bond e Rocky, Dama de Vermelho e De Volta para o Futuro, há uma imensa quantidade de músicas famosas dos 80's.
   O que notei é que filmes que unam sucesso popular e qualidade artistica não existem mais. Falo de grande sucesso popular, não de filmes que apenas se pagam. Os concorrentes deste ano deram prejuízo.
   Um dia veremos um Oscar só de blockbusters. Ou ele se tornará um saudosista prêmio festivo.

Pop Will Eat Itself - Def Con One (Including the Twilight Zone)



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THIS IS THE DAY...THIS IS THE HOUR...THIS IS THIS! - POP WILL EAT ITSELF ( O FUTURO DEVERIA TER SIDO ASSIM )

   Era 1988. Auge dos HQ. Alan Moore e Frank Miller, Lobo Solitário e Ranxerox. E tinha umas revistas que misturavam tudo: politica com sexo, surf com beatnicks. Mais... séries de TV antigas com alta tecnologia e desenhos do Coelho Pernalonga com NWA. Skate, muito skate e bicicross, e ainda John Lee Hooker com Jon Spencer. Jerry Lee Lewis misturado com Cabaret Voltaire e Sonic Youth com Elvis. Nietzsche e Wolverine mais Poe com Agente 86. O anúncio do anos 90 era a mistura desenfreada de tudo o que tivesse adrenalina. Este disco representa muito esse tempo. Ouvi pra caramba por todo o ano de 1989. E se acertei antes, ao dizer em 84 que o REM ia estourar, e em 85 que os RED HOT estavam adiante da década, errei com esta banda. Eu tinha certeza de que o futuro seria assim. Jamais poderia prever que o futuro seria uma bando de grupos de frescos deprimidos.
   Eles nunca são tristes, eles são confusos. Colocam percussão eletrônica de fundo e jogam em cima um monte de ruídos e de guitarras hard. Vão falando: Dirty Harry e Bruce Lee, Watchmen e Big Mac. O disco tem de ser escutado inteiro. Ainda hoje o que procuro no rock é a evolução disto. Quando encontro ( Gorillaz é um exemplo, Prodigy foi outro ) a coisa me interessa. Quando é aquela coisinha flácida de inglês dodói ( Coldplay e que tais ) tou fora. Este disco é poderoso.
   Tem palavras de ordem, influências de Beastie Boys, de Public Enemy e de tudo o que se fazia em Manchester então. É contemporâneo aos Happy Mondays. Muitos bons tempos aqueles. O que define esse som, uma palavra: detonação. Eles todos detonavam.
   Na época eu tinha um puta amigo chamado Mauricio Nazário. Ele ouvia hardcore, Jerry Lee Lewis e Rap. Lia muita HQ e livros dos beats mais Whitman e Poe. Andava de skate e bike ( vinha até Sp desde o ABC de bike ), e tinha um sonho: ser um skatista nos EUA. Se mandou em 1993. Ano passado na Sportv ouvi falar dele. Mauricio Nazário é um brasileiro que é árbitro de snowboard no Colorado. É cartola da federação americana de Snow.... Este disco era um dos que ele gostava. E fui eu quem apresentou a ele ( ele me apresentou o Sonic Youth ). Toda essa salada que foi/é a vida do Mauricio é o som deste disco. Muita coisa, muita informação, muitas possibilidades. Deixa detonar.
   Os PWEI fizeram algum sucesso na Inglaterra. Mas logo naufragaram. Em 91 ninguém lembrava mais dos caras. Ficou este disco. Tem de ser conhecido.