ATRAVÉS DE UM ESPELHO-INGMAR BERGMAN, O OLHAR IMPASSÍVEL DE DEUS.

Não há maior prazer em arte que ver um mestre dispor de seus elementos e exibi-los a nosso olhar. O que temos aqui é a radiografia de uma crise, e também a questão que funda nossa civilização.
Sven Nykvyst fotografa o filme. Temos a ilha, o universo limitado, o isolamento. Horizonte sem fim. Temos uma familia. Moradores únicos daquele mundo. Últimos ou primeiros seres. O filme, como tudo em Bergman, começa expondo seus personagens, sem apelação, sem atropelos, com musical crescendo.
Karin é a filha. Ela acabou de voltar de hospital. Seu caso psiquiátrico é incurável. Karin está em um de seus bons momentos. Aparentemente. Com ela vem seu namorado, que realmente a ama e sofre com ela. Há um irmão mais jovem, assustado com aquela situação e o pai, escritor famoso e distante da familia. Bergman em 80 minutos nos mostra esse drama cósmico, de quebra ganha seu segundo Oscar e modifica o alcance do cinema para sempre.
O filme é dedicado a esposa de Bergman ( uma das várias ) e é fácil perceber que o pai distante é Bergman. Mas na verdade ele é também Karin e sua loucura, o namorado amoroso e o irmão que odeia as mulheres ( e é fascinado por elas ). O filme em primeira visão é retrato de uma alma ilhada em conflito consigo mesma. Fosse apenas isso seria um ótimo filme, mas sendo muito mais alcança uma estatura de obra-prima ( isso se voce possuir a mente capaz de ver o que lhe é mostrado. Não indico o filme a meninos e inteligentinhos. Fiquem com a tola obviedade pornô de Cisne Negro/Anticristo e que tais ).
Karin começa a voltar a seu mundo dividido. E em quarto da casa "tenta entrar na parede". Alguma coisa a chama. A sutileza impera. Bergman não grava vozes a chamando, não usa trilha sonora de suspense, não exagera coisa alguma. Karin parece "normal", não somos invadidos por sua loucura, somos convidados a compreender e observar. Começamos então a sentir um incômodo imenso, vazio, começamos a sentir, suavemente, a loucura de Karin.
Há uma cena brilhante dentro de um barco encalhado. Chove, e os dois irmãos se escondem lá dentro. A água escorre pela madeira, eles se abraçam e se encolhem. Eis uma das mais belas cenas da história do cinema. O que vemos ali é toda a condição humana, desamparo,crise, e então voce começa a perceber o alcance do filme. A partir daí ( em seus vinte minutos finais ) o que temos é superlativo. Como gênio que é, Bergman traz a tona, sem estardalhaço, a questão fundamental de nossa civilização.
Karin volta ao quarto. A voz que a chama é Deus. E ela quer ir a seu encontro. Uma porta se abre e Ele vem a seu encontro. Karin grita, foge, se apavora. Ela é levada por sua familia e medicada. E diz: Eu vi Deus e Ele é como uma aranha, um terrível animal que me olhou com seu impressionante olhar frio, ausente, vazio. Karin optará por voltar ao hospital. No conflito de seus dois mundos, ela escolhe a loucura.
Mas o filme continua. E é nesse final que o toque do mestre se faz. Mas antes um comentário.
Deus seria uma aranha, a vida a teia em que Ele nos captura. Somos insetos em sua teia, presos. Mas não é apenas isso. O pai, numa cena crucial, diz que observa Karin, sem se envolver em seus problemas. Eis outra imagem de Deus, alguém que nos observa, indiferente, rompido com os homens. O filme tange a ideia de que somos um tipo de experimento que não deu certo, Deus nos virou as costas.
O irmão reclama logo no inicio que o pai não fala com ele, o ignora. Após Karin ir embora, rumo ao hospital, o irmão pergunta ao pai se Deus existe. O pai diz que não sabe, mas que o amor existe, com certeza o amor existe. O irmão pergunta se Deus não seria esse amor. O pai responde que isso não importa, o que interessa é que Karin está cercada pelo amor de sua familia. Esse diálogo, breve, é feito à luz de uma janela. O pai sai de lá e o filho, sózinho, diz com um quase sorriso: "Meu pai falou comigo!" Imediatamente o filme se encerra. Sem música, sem The End, sem nada, simplesmente vem o final. Seco.
Quem já tentou produzir arte, seja romance, pintura ou música, sabe o quanto é dificil chegar a simplicidade plena. Como é árduo conseguir dizer muito falando pouco. Impressionar sem chocar e despertar emoções sem violência. Quando o rapaz diz sua fala final, todo o drama de pais e filhos, de mestres e discípulos, de fiéis e Deus, cai sobre mim. Cubro meus olhos com a mão e choro. E peço a meu pai que fale comigo. Fale comigo como jamais falou. Fale comigo. Eis o drama central de toda a nossa civilização, esse pungente pedido de que alguém fale conosco, nos olhe, preste atenção, afirme que existo.
Karin foi sacrificada ( auto-sacrificada ) para chegarmos a esse encontro de pai e filho. E o mar, liso, vasto, magnífico, a tudo assiste sem se importar. A ilha permanecerá a mesma, mas aqueles quatro seres terão chegado perto de um sentido.
O que mais algum filme pode dizer?

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO- ALDOUS HUXLEY

Nesse mundo a velhice não existe. Fisicamente e mentalmente, voce é o mesmo dos 19 aos 60 anos. Pensar e agir aos 60 como aos 19, eis uma conquista de feliz realidade. Mais, nesse mundo voce deve se portar como adulto no trabalho, e ser uma criança no resto do tempo. Ser uma criança por toda a vida, uma conquista a ser conseguida.
Ser promíscuo é a regra. Quem não possuir cinco ou seis pessoas diferentes por semana será considerado estranho. Pior, uma ameaça ao bem comum. Transar muito e não se apegar, jamais. Saber então que voce e eu somos cambiáveis. Mais que isso: entre o desejo e a satisfação não pode haver um buraco. Ao querer, ser imediatamente satisfeito. Desejo que se demora faz pensar, faz sofrer, faz questionar. Faz com que voce seja diferente.
O passado não existe. O que é velho deve ser esquecido por ser velho. Pois conhecer o passado faz com que tenhamos como comparar e avaliar o presente. Poesia e religião são abolidos então. A realidade é o visível, o não-perceptível não existe. O real pode ser vendido e controlado, o subjetivo não.
A solidão é odiada. Tudo é feito em grupo. Introspecção e silêncio são temidos. Existir é estar em grupo. Quem ama a solidão é defeituoso. Música incessante, ruídos, gente, espaço preenchido.
Todo contato social tem apenas um objetivo: transar. Sai-se para fazer sexo. Qualquer outra coisa seria surpreendente. Conversar, flanar ou fazer nada seria excêntricidade.
As mulheres são todas magras e os homens altos.
A liberdade é plena. Voce é livre para se divertir todo o tempo. O prazer é ilimitado. Para que mais serviria a liberdade?
Nada pode ser arrumado, remendado, construído em casa. Tudo deve ser jogado fora e comprado de novo. Coisas, seres e vidas são trocadas com alegria. A alegria é o único objetivo da vida.
Joga-se, vai-se ao cinema e ingere-se Soma. A vida é isso.
Aldous Huxley não escreveu em 1932 uma obra-prima. O livro não é perfeito. Não é sequer bem escrito ( e ele sabe disso. A leitura da introdução escrita em 1946 é muito reveladora ). Mas é um livro forte, objetivo e de leitura obsessiva. Li-o em poucas horas, com prazer e ao mesmo tempo impressionado pelos acertos de Huxley.
Ele erra ao prever um sistema de castas. O mundo tem uma tendencia contrária: a abolição de diferenças e a absorção de todos os grupos diferentes. Desde que se tornem uma coisa só. O que vemos é a destruição de diferenças, aristocratas, proletários, tendem a sumir. Uma imensa classe média e meia dúzia de donos-do-mundo. E só. Fora disso, vácuo.
Mas não há como não se impressionar com seus acertos. A eterna juventude mental negando o amadurecimento da idade. O passado jogado ao esquecimento ( e tudo isso já é fato. Conheço quem leia apenas a literatura de Salinger pra cá e assista só o cinema de Spielberg em diante. Há quem pense que a música começou com os Beatles. Arte sem passado é arte sem comparação, arte fácil de enganar e de vender, ignorância bem-vinda, onde toda a cópia-pobre parecerá sempre rica-original ).
A poesia, assim como a religião ( verdadeira ), faz das pessoas seres pensativos/distanciados, que não dão coragem-alegria aos outros, e pior, deixam de desejar- consumir. Descobrem que há outra coisa além da matéria. E é o sexo desenfreado que ocupa o vazio deixado pela arte e pela religião. Tudo é o corpo. E o corpo deseja, deseja coisas que podem ser avaliadas, vendidas, estragadas.
No livro surge um selvagem: John. Uma de suas melhores tiradas é essa: tudo o que existe nesse "admirável mundo novo" é destrutível. Muda, se esvai, acaba. Nada é feito para durar, e ao homem nada pode restar a não ser um gozo efêmero. Ele também percebe que a vida pode não ser "busca de felicidade", mas talvez "busca de algo mais".
John conhece textos de Shakespeare. As pessoas riem com Shakespeare. Não conseguem entender mais seu mundo e riem do que não entendem. Têm horror a palavra família e acham a palavra "mãe" pornográfica. Pois em mundo de bebês de laboratório, sexo com procriação é pornografia, coisa de bestas.
Huxley vai fundo em sua raiva. E um dos momentos mais interessantes é quando uma mulher "civilizada" se apaixona pelo selvagem. Como os poetas e a Bíblia, a paixão também foi banida. Mas essa moça sente essa coisa esquisita pelo fato de que o selvagem é "estranho". Ele não a pega e satisfaz logo seus desejos. Ele demora, fala coisas complicadas, sente veneração, culpa. Essa demora, essa não-praticidade desperta nela a paixão. Que logo morre pela incapacidade de ser vivida. O selvagem, cheio de culpa, se refugia em martírio e ritos mal compreendidos.
Na introdução Huxley diz que se reescrevesse o livro faria diferente. Como está, ou o selvagem aceita a loucura da Utopia, ou volta ao barbarismo de onde veio. Huxley crê ser possível uma terceira via, a sanidade, onde a ciência se adapta ao homem e a religião existe para levar a consciência ao limite do conhecimento. Se o reescrevesse faria do livro algo mais filosófico...
Mas do jeito que está, da maneira seca, breve, compacta que está, ele obriga a que nós façamos mentalmente sua parte filosófica, ele nos instiga a pensar e pensar melhor.
Esse futuro de drogas para ser feliz, de imagens para sentir "uma nova sensação", de viagens para transar e de alegria "infinita" é nosso conhecido. A liberdade para ser consumido, as novidades que são vazias, os entorpecentes.... A estranheza que já nos causa quem fala em amor familiar, fidelidade absoluta, tradição artística, deveres e pecados... Ler o livro dá uma perturbadora sensação de que o mundo-pesadelo de Huxley está próximo demais.
Afinal, se meu avô estivesse aqui ele acharia loucura um mundo onde pessoas ficam trancadas em frente a tv vendo pessoas em casa trancada, onde se paga para ver gente em tela grande ser destruída, violada e torturada, mundo em que amigos se encontram para jogar jogos em tela e ficam calados em sua amizade fria, mundo em que lunáticos abrem um lap-top e se absorvem numa virtualidade passiva, e em que espertamente tudo é logo permitido e assimilado, desde que não ponha em risco o consumo e o movimento incessante da roda do futuro.
Admirável mundo novo!!!!

CLAMOR DO SEXO- ELIA KAZAN ( EXEMPLO DO MAIOR DOS PECADOS )

William Inge, no auge do teatro dramático americano, foi um dos grandes. Se Tennessee Willians e Eugene O'Neill dominaram a cena, ele e Arthur Miller vieram logo após. Edward Albee surgiria na sequencia e Thorton Wilder merece um lugar à parte. Neste filme de 1961, Inge consegue tocar num dos mais dificeis temas de qualquer drama: o mal sem intenção, o maior dos pecados: o sofrimento imposto a inocentes.
Estamos em 1928, nos cafundós do Kansas. Bud é o filho bacana do líder local. Dean é sua namorada. Os pais concordam com o namoro, os dois se amam, ninguém tem qualquer doença ou problema econômico e mesmo assim o sofrimento do dois é insuportável. Porque?
O pai de Bud é um ex-jogador de futebol, agora aleijado. Um macho milionário que deseja o "bem" do filho. Eis o primeiro problema: seu ego amassa o amável ego de seu favorito. Segundo problema: Dean é boa aluna e ama seus pais. Mas sua mãe vê nela um bebê e seu pai deixa tudo a cargo da mãe. Dean luta para ser sempre uma "dama", uma lady, o orgulho dos pais. Vem daí um terceiro e atroz problema: o casal se ama, se adora, mas não pode fazer sexo. Bud quer, Dean não. Depois, ao final, Dean quer, mas Bud não pode, afinal, ela não é uma puta...
A conselho do pai, Bud arruma uma amante, "para se aliviar". Bud detesta fazer isso, pois ela "não é Dean ", mas se conforma. Isso destrói Dean. O longo caminho da inocente garota rumo ao inferno, a forma desajeitada como ela tenta se tornar "fácil" é de cortar o coração. ( Confesso que chorei muito... ). Ao fim do filme, sem final feliz, mas doce a seu modo, fica uma terrível lição: nada temos de controlável na vida. Bud e Dean nasceram um para o outro, mas terminam com outras pessoas, distantes, conformados. Tudo dá errado.
Mas o que me emociona no filme não é isso. É o modo como é demonstrado o maior pecado humano ( sim inteligentinho, pecados irremediáveis existem. E são imperdoáveis. ) O pecado da difamação da inocência. O amor dos dois é real, é inocente, é forte. E todos, sem saber e querer, destroem esse amor. Cada palavra da mãe e do pai, sempre bem intencionados, é uma facada, um pecado irremediável. Dean enlouquece e é internada. Bud empobrece e se casa. Nosso coração é cortado ao meio.
Warren Beaty faz Bud. É seu primeiro filme. Quem leu o livro "Sex, drugs e rocknroll" de Peter Biskind, sobre a revolução em Hollywood, sabe o quanto Warren foi/é importante para o cinema que se faz agora. Seu Bud é correto, mas nas cenas finais, na fazenda, é brilhante. Natalie Wood faz Dean. E a partir das cenas de enlouquecimento ela nos dá uma atuação emocionante. O modo como ela olha e conversa com o psiquiatra e a maneira como ela corre e pula nos jardins do hospital são inesquecíveis. Para quem conhece a triste sina que Natalie viveu na vida real, ver o filme é ainda mais cortante.
Mas todo o elenco é superlativo. Não houve diretor de elenco como Kazan. O homem que lançou Montgomery Clift, Brando, James Dean e Warren Beaty, faz um filme de pungente beleza e emoção que se acumula até explodir. Belíssimo!

HISTÓRIAS MEDIEVAIS- HERMANN HESSE

Na década de 1920, Hesse traduziu e comentou uma série de contos medievais de Cesarius Von Heilsterbach, escritos originalmente por volta de 1240. Leio esses contos e me assombro com aquilo que um dia fomos. ( Fomos? )
Todos são contos de feroz moralidade. Não há neles a menor dúvida: o pecado existe e quem peca sofrerá no inferno para sempre. Essa verdade é verdade completamente aceita ( como hoje nos é aceita a evolução do macaco ou o big bang ), nada é questionado. Essa certeza leva então o homem medieval a se preocupar acima de tudo com sua alma, com o possível castigo, com suas culpas e sua vida no além. Tudo é pesado em face do que será, da eternidade. Todo ato, toda obra, toda ação é PARA SEMPRE. Não existe o esquecimento.
Um marxista moderno dirá simploriamente que isso se ajusta ao jogo de poder da classe dominante. Mas o que esse inteligentinho não dirá é que essa classe dominante também sofre essa culpa e esse medo. Montanhas de nobres arrependidos se enfiam em mosteiros, partem para a mendicancia, vão lutar nas cruzadas. O cerne da questão é bem mais complexo.
Um inteligentinho do tipo "numa boa", dirá que tudo era questão de liberdade sexual, que a igreja reprimia a sexualidade, e que essa repressão se tornava culpa. Esquece o inteligentinho que hoje, na era do sexo numa boa, continuamos criando culpas, medos, dores e doenças. E então?
Hesse foi um escritor do tipo mais perigoso que existe ( e que mais falta nos faz hoje ), o escritor que prova de tudo, que procura o que é oculto, o verdadeiro peregrino. Ele sabe que não se explica a idade medieval, o que se faz é se penetrar nela e perceber não seus porques mas seus comos. Como é essa culpa, como é esse pecado, como é essa visão de vida.
A época medieval durou mil anos. Nossa época tem pouco mais de duzentos ( começamos em 1789 ). Não estaria em toda mente européia, reprimida e latente, toda essa imensa história de trevas e de vida? E quanto mais voce, ó doce menino inteligentinho, reprime essa memória, não estaria mais a mercê dela? Pois o que voce vê no cinema, seja Batman, Harry Potter ou Von Trier, não são imagens e mitos medievais pobremente e envergonhadamente reelaborados?
Desconfio muito de todo mocinho anti-medieval. É como alguém de sapatos novos que nega seus pés sujos. E desconfio mais ainda do puro ser racional. Esse tem o fanatismo de monge travestido em objetividade vã. É preciso ser um homem completo, sem amputações. É preciso ter antiguidade, era medieval, renascença e modernidade vivas em si. Negar uma delas é fanatismo, cegueira, e pior, é se fazer refém dela.
Hesse andou por todas essas vias. Se encontrou no hinduismo, no budismo... provou sua vida, abriu suas ideias, tentou ser si-mesmo. Este pequeno livro é parte de seu caminho.

TRÊS CONTOS- HENRY JAMES

OS QUATRO ENCONTROS. James, dentre outras coisas, é o grande autor da impotência, dos planos que dão em nada. Neste conto, o narrador encontra moça que sonha em conhecer a Europa. Isso é uma obsessão para ela. No segundo encontro ela está na Europa e os outros dois encontros prefiro não os contar. James, mestre supremo, leva a história com sua costumeira sutileza, logo visualizamos o narrador, a moça, o ambiente e os outros três personagens decisivos. Uma frase de James exibe sua argúcia: " As pessoas viajam, a maioria, não para encontrar algo de novo, mas apenas para confirmar o que já sabiam."
O DISCÍPULO mostra o lado quase gótico do genial autor anglo-americano. Um professor se envolve afetivamente com jovem aluno e acaba por ser explorado pela decadente família "nobre" do tal aluno. Aqui surge outro aspecto de James, o enredamento da vida, o modo como nos vemos em situações insolúveis sem saber como entramos nessa cilada. Sentimos grande desconforto ao ler esse conto, nos revolta a mansa passividade do professor. Mas é o menos memorável conto do livro. O mais perfeito é O MENTIROSO, uma curta obra-prima de elegante prosa. Fala de um famoso pintor, que em jantar reencontra uma ex paixão. Ela está casada com simpático coronel, homem famoso por seu vicio: a mentira. O narrador passa o conto tentando descobrir se a esposa do mentiroso partilha seu vicio. Aqui é demonstrado outro talento de Henry James, o estilismo, a escrita refinada, bem pensada, cuidadosa. Essa habilidade do autor se transfere ao leitor em prazer de ler. Ninguém me dá maior prazer em leitura.
Bela introdução para novos possíveis leitores desse mestre das letras. Usufrua.

KIAROSTAMI/ BINOCHE/ DEPARDIEU/ BECKER/ GROUCHO/ SCORSESE/ CLAIR/ DASSIN/ ROSSELINI

CÓPIA FIEL de Abbas Kiarostami com Juliette Binoche e Willian Shimell
Eric Rhomer ( de quem gosto ) fez filmes em que as pessoas falam e "nada acontece". Mas Rhomer tem um segredo: seus personagens são gostáveis. Torcemos por eles. Um americano ( quem? Linklater? ) fez um filme em que um casal conversa. É uma versão teen de Rhomer. Aqui temos Kiarostami fazendo uma versão adulta de Linklater ( se não for Linklater, sorry... ). Binoche continua bonitona. Shimell é ok. Mas o filme é um pé no saco! Motivo: os dois são detestáveis! O crítico de arte é de uma frieza nojenta e Juliette faz a típica divorciada amarga. São reais? Sim, são. O jogo de ocultamento/revelação é bem sacado? Sim, é. Mas e daí? Tudo se perde ( inclusive uma atuação perfeita de Binoche ) numa antipatia, uma chatura insuportável. Quando o personagem feminino desaba ao fim do filme, tudo de pior num relacionamento e num certo tipo de cinema cabeça vem a tona. É duro! Mas vale uma notinha pela atuação de Juliette. Nota 3.
DUCK SOUP de Leo McCarey com Margaret Dumont e os Irmãos Marx
Após o porre de sentido, de relevância e de seriedade vazia de Kiarostami, nada como a falta de senso de Groucho, Chico e Harpo para nos salvar. Este é o filme "politico" dos Marx. Freedonia que é governada por Groucho e entra em guerra "porque o campo de batalha já foi alugado". Amar os Marx é saber que viver é não fazer sentido. Nada neles faz sentido, nada. Seus filmes são carnavais sem enredo e comissão de frente. Duca! Nota DEZ!!!!!!!!!!!!
QUEM BATE A MINHA PORTA? de Martin Scorsese com Harvey Keitel
É o primeiro filme de Martin. Começou a ser filmado em 1965, e foi encerrado só em 68. Todo o seu estilo já está aqui: câmera em movimento, retrato de jovens perdidos, música pop. Impressiona o fato de que é um filme ainda moderno, lembra o estilo de Tarantino, Ritchie e vasto etc. Como todo novato Scorsese erra ao dar mais valor às imagens que ao roteiro, o filme às vezes se perde em sua história. Mas é uma refrescante visão de um imenso talento em seu nascimento. Nota 6.
O CÍRCULO VERMELHO de Jean-Pierre Melville com Alain Delon, Bourvil e Gian Maria Volonté
Por falar em Tarantino... Mais um dos filmes vigorosos de Melville. Mundo de ladrões, policiais e cabarets baratos. É um filme frio, duro, com uma contida violencia sempre latente. Delon é perfeito nesse papel de bandido sem alma. Melville foi um gigante, seus filmes jamais envelhecem. Virilidade em dose cavalar. Nota 7.
A BELEZA DO DIABO de René Clair com Gerard Philipe e Michel Simon
Finalmente vejo um filme em que o talento de Philipe me é exibido! Para quem não sabe é ele o grande mito do teatro e cinema francês. Morreu jovem... Aqui ele faz Mefistófeles, numa adaptação, em ritmo de farsa, do mito de Fausto. Simon é outro ator de gênio e é um prazer vê-lo em seus pulinhos de diabo bem-humorado. Clair, um dos cinco gigantes da França, tem o amor sincero pela poesia onírica do cinema. Sabia filmar sonhos e delirios. É uma obra invulgar, solta, febril e irreverente. Mas às vezes ela se perde em sua ambição. Clair era maior quando mais simples. De qualquer modo, é maravilhoso que filmes como este sejam lançados em dvd. Nota 6.
MINHAS TARDES COM MARGUERITTE de Jean Becker com Gerard Depardieu e Gisele Casadesus
Gerard Depardieu quando quer é um grande ator! A prova está aqui, neste filme que passou em nossas salas em Abril e que quase ninguém viu. Porque filmes tão bons quanto este são tão pouco vistos? Porque são adultos? Ou porque não são sensacionais? Não apelativos? É um filme discreto, elegante, simples, solar e muito feliz. Tudo o que hoje não dá ibope. Depardieu é um "burro", um homem de inteligência limitada, um bronco. Ele conhece uma velhinha que ama ler e os dois se tornam amigos. Nesse processo ele não se torna mais inteligente, mas adquire confiança em si. Tudo no filme funciona. Os amigos do bar, a namorada jovem, e principalmente a relação de Depardieu com a mãe não-maternal, mostrada em flash-back. O modo como Depardieu fala e se move, suas mãos imensas e suas hesitações são trabalho de gênio. Eu não gostava muito dele, mas este filme mudou meu conceito. É também um dos raros filmes de agora que consegue mostrar a verdadeira França e o verdadeiro francês. Espero que os americanos não o refilmem. Fariam do personagem central um viciado ou um caso psico, e da velhinha uma louquinha tarada. Fariam desta pequena jóia um filme "sensacional". Jean Becker é filho de um dos meus diretores favoritos, Jacques Becker. Os filmes que ele tem feito ultimamente são todos assim: maravilhosos. Veja!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Nota 9.
O RETORNO A CÂMARA 36 DE SHAO LIN de Lau Kar Leung com Gordon Liu e Johnny Wang
Produção do mitico estúdio Shaw Bros. Liu, espetacular, faz comédia como um mentiroso que se torna mestre de Kung Fu e salva trabalhadores de patrão cruel. Kill Bill é dedicado a Liu, um mito chinês. Lutas fantásticas num filme que dignifica o cinema pop. Os chineses viam o cinema como circo, como festa. É isso que temos aqui, uma festa. Nota 7.
ALEMANHA ANO ZERO de Roberto Rosselini
Em 1947, em ato de coragem, Rosselini foi a Berlin, filmar a vida na cidade vencida. O filme sempre irá impressionar: Berlin é um imenso lixão, onde pessoas esfomeadas vendem o que possuem. Temos aqui um ex-nazista, moças prostitutas, ex-professor pedófilo, velho agonizante. E principalmente um menino perdido, retrato da Alemanha de então, que rouba, foge, tenta se comunicar e acaba por matar seu pai. É um dos filmes mais tristes já feitos. O cinema de Rosselini continua a ser influência num certo tipo de cinema de hoje ( os iranianos, os palestinos, os africanos ), é cinema da pobreza, da crueza, e da ausência de emoção. Rosselini tenta ficar a distância, observa e não se envolve. O que salta aos olhos hoje é o absurdo de destruição que se fez em Berlin, creia, a cidade ficou completamente destruída. Nota 7.
PROFANAÇÃO de Jules Dassin com Melina Mercouri e Anthony Perkins
Primeiro: Dassin é um super diretor! Seja em policiais ou em dramas, seja em comédias ou em noir. Aqui ele pega a história de Fedra e a coloca na Grécia moderna, no mundo dos milionários armadores ( Onassis? ). Melina é a esposa de rico armador que se apaixona por seu enteado. Perkins, o jovem e frágil ator de Psicose, faz o enteado. A trilha é de Mikis Theodorakis, maravilhosamente trágica. Dassin vai fundo na tragédia grega, sem medo e sem pudor. O que vemos é a destruição de todos pela força da paixão cega. Mas a habilidade de Dassin é tanta que o filme nunca perde ritmo, suas imagens e sua edição dando suspense ( e nervosa beleza ) ao todo. Melina nasceu para esses papéis: seu rosto é máscara de tragédia. Anthony Perkins traz o desamparo de menino mal amado. O filme é poderoso. Nota 8.

SOBRE A PORNOGRAFIA ( O TAL LIXO SÉRVIO )

George Lucas disse em 1973 que é muito fácil criar Sensação: basta filmar um gatinho sendo esmagado ao vivo. Criar emoção é bem mais complicado.
Isso explica, à perfeição, o que é o cinema de hoje e para onde caminhamos. Esse filme sérvio de horror que a Folha reporta hoje ( 18/07 ) é, na verdade, exemplo de nosso futuro. Cenas de sexo misturadas com horror. Tira-se do sexo seu lado bom: sensualidade, prazer, libertarismo; e rouba-se do horror aquilo que ele pode ter de bom: suspense, emoção, surpresa.
O mundo está se reduzindo a grande bazar onde vale tudo para ser o camelô da vez. Se transar com feto ou matar um bebê "funciona", então é válido. Dar à isso um verniz de denúncia política é papo furado para captar a atenção dos meninos inteligentinhos. Na tese de George Lucas podemos dizer que o gatinho esmagado "representa o esmagamento das inocências". Bláaaaah!
O mundo globalizado, onde todos os cinemas são americanos, todos os times jogam à italiana e todas as músicas são novaiorquinas, traz a apatia e o tédio. Para tentar vencer esse estado mineral se usa o caminho da sensação sensacional: porradas e choques elétricos na letargia.
Triste civilização que precisa de cacetadas para se sentir viva.

CONSIDERAÇÕES SOBRE DEZ MINUTOS DE TV EM 1982.( FUTEBOL, CARROS E CIGARROS )..

Tento não falar sobre o futebol, minha intenção é falar de um momento do país, momento em 1982, demonstrado pela propaganda. Mas não resisto e falo: um time de homens que não se preocupa com cortes de cabelos e sobrancelhas lapidadas. Turma de gente que ainda se parece com os caras do buteco ou da esquina... Era um time mais bonito...
Em 1982 a ordem no Brasil, saindo da repressão, era só uma: hedonismo. Politicamente demos com os burros n'água, Tancredo morreria em 85 e Sarney instituiria o vale tudo. No futebol o jogo ingênuo seria enterrado e a época do jogo de resultados valeria para sempre.
É engraçado ouvir Luciano do Valle ainda com voz e é fantástico observar o jogo destravado, sem tosqueira. Vêm as propagandas:
Bamba, tênis. Dançarinos. Nada de esporte radical. Eles rodopiam em disco. Hedonismo puro. Hedonismo de desbunde. Depois o Fusca. Um desenho infantil, corações. Nada de futurismo, nada da fria eficiencia do mundo cinza, apenas corações e infantilismo. Coca-Cola. Na praia. Praia que tem uma abundancia de sorrisos. Hedonismo de sorrisos, ainda não se fez a ditadura dos tanquinhos. Continental mostra um jogo. Aí o contraste se exarceba. Em 2010 se falava em TIME DE GUERREIROS, neste anúncio de 1982 todo o destaque é dado ao drible e ao jogo de pés. Caráter do Brasil. El Gol, é anúncio que marcou época, carro que é um touro. Nada de jovens frios com seu jeito de robot, apenas emoção quente e solar. Hollywood: esportistas fumando???? Eu sei o mal que havia nesse tipo de propaganda. Mas o que quero dizer é que me parece estranhamente saudável um mundo que exibe o esporte como um grande foda-se... Hedonismo de novo, velejar é um prazer, nada competitivo aliás.
É necessário repetir uma giria antiga que é usada na peça da Coca: curtição. Curtição é usufruir com prazer, usufruir com o espirito do foda-se. Nossos anúncios não pregam mais a curtição, eles pregam a hiper-eficiencia, e pior, nosso futebol não é feito para ser curtido, é exibição de egos eficientemente propagados.
O mundo da curtição jamais voltará. Mas caraca! Um pouco menos de seriedade e eficiencia!
PS: e não deixa de ser interessante uma copa sem o patrocinio de um banco e de cerveja.

Intervalo Copa 1982 - Brasil x Argentina (RBS - Rede Globo Porto Alegre ...



leia e escreva já!

Handbags & the Gladrags - Rod Stewart



leia e escreva já!

SERIA UMA PENA SE VOCÊ NÃO ESCUTASSE....HANDBAGS AND GLADRAGS, ROD STEWART, SIM! ELE JÁ FOI GRANDE!

Entre 1969 e 1975, todo ano, a crítica inglesa elegia alguém como o "futuro do rock". Se em 1975 esse futuro se chamava Bruce Springsteen, em 1969 seu nome era King Crimsom. Assim como nos outros anos foram Bowie, Roxy Music e Sparks. E durante todo esse tempo, a molecada proletária de Newcastle, Bristol ou Manchester tinha ouvidos apenas para dois nomes: Slade para as bebedeiras e Rod Stewart para ficar no quarto ( e beber às vezes ). Esqueça o Rod Las Vegas de agora, creia-me, até seus trinta anos ele foi O Cara.
Foi jogador de futebol e coveiro e em 67 tirou a grande sorte, entrou para o Jeff Beck Group. Estouraram, ele, Jeff ( estrelaça ) e Ron Wood no baixo. Mas a banda terminou às vésperas de tocar em Woodstock ( chamaram o Ten Years After para os cobrir ). O disco AN OLD RAINCOAT WONT EVER LET YOU DOWN é o primeiro solo de Rod. Vendeu pouco, hoje é um clássico. Porque?
Leio uma velha crítica da Rolling Stone que entrega o motivo: Rod foi nessa época o único compositor/cantor que realmente sabia cantar o MOMENTO DECISIVO. O momento em que um garoto mata aula pela primeira vez, em que uma menina divide seu lanche no recreio, um velho penteando o cabelo e se lembrando do passado, um cego cruzando a rua e sendo ajudado por um estranho, o flagrante de um bandido, o primeiro porre, a dor do primeiro chute na bunda...Rod cantava todos esses temas, e o principal, sua voz tinha o dom para cantar isso a grande altura. Era uma voz que chorava, que se lamentava, que seguia avante e principalmente, dava coragem a quem o escutava. Se houvesse uma voz HERÓICA, essa seria a voz do jovem Rod.
Mas em 1975, milionário, ele sai da Inglaterra e vai morar em LA. Loiras e carros passarão a ser seu único assunto. Muitos dizem que a mudança de Rod, ao deixar seus fãs proletários desiludidos, abriu o caminho para o punk rock. Pois é...
O disco de 69, seu primeiro, com Ron Wood no baixo e guitarras, começa com uma versão lenta de Street Fighting Man, e o que posso dizer é que ela NÂO é pior que a original. Ela é enevoada, mais inglesa, mais contida. Em seguida vem Man Of Constant Sorrow e aí a coisa pega. Numa de minhas crises essa foi um hino. Ela realmente te tira do poço. E dá a certeza de que se o rock precisasse de um Keats, esse seria Rod. Blind Prayer é quase um blues e dá pra ver o que Ron seria se jamais tivesse ido aos Stones. Handbags vem agora, mas falo dela no fim.
An Old Raincoat se tornou depois um hit em shows de Rod. É uma celebração. Change a Thing é uma ambiciosa tentativa de progressivo e Cindys Lament continua a saga. O disco fecha com Dirty Old Town, que é dirty e não ficou old. Weeel... é hora de falar de Handbags.
Ela se inicia com um oboé e entra um piano. É uma canção. Uma das coisas que não consigo entender é como um cara de 16 anos pode hoje viver sem canções de amor no rádio. Canções, não falo de R and B mela cueca, não falo de choradeiras de meninos ao piano, nem de mocinhas e seu violãozinho, falo da canção de amor sem neurose, da canção doce, viril, de voz potente e alta, a canção de menestrel, exaltando o amor, a canção que dá vontade de amar, que desperta a saudade de amores idos. Handbags é isso e é mais.
O período 1969/1979 é considerado o momento auge da canção de amor. Não por acaso é a época de Paul MacCartney, de Roxy Music, de Elton John e de Stevie Wonder. Tempo de Paul Simon, Eagles, Queen e um monte de one hit makers. Rod foi rei nesse universo, Handbags é de seus cumes ( mas não o único ).
Ouço essa canção e vejo diante de mim todas as meninas que amei um dia. E as manhãs em que acordei com a certeza desse amor. A canção rola por dentro de nossas veias e não nos dá o desespero de amores falidos, mas sim a saudade do mel do amor de verdade. Rod tinha isso: a dor vinha, mas sua voz sempre fazia tudo valer a pena. Nunca foi voz pequena.
Ouvir essa canção hoje é um privilégio. O tempo passa, Rod fica cada dia mais Dean Martin, mas seu lugar em meu coração é reservado.

O MOINHO SOBRE O RIO- GEORGE ELIOT ( REVOLUÇÃO INDUSTRIAL X ROMANTISMO )

Ser mulher em 1840. Mulher possuidora de inteligência viva e de ansiosa energia. Assim foi Mary Ann Evans, nome verdadeiro de George Eliot. E assim é Maggie, heroína deste monumental romance. A autora foi criada em forte ambiente religioso. Passou a duvidar de tudo e tornou-se escritora. Na vida afetiva precisou enfrentar a má fama de se unir a um homem casado e pai de duas filhas. Evans/Eliot não é uma artista do estilo, seu brilho é o do pensamento, da criação de tipos. Como Maggie, menina pela qual todo leitor irá se apaixonar.
Pois Maggie nasce "com pele e cabelos de cigana", em mundo onde ser pálido e louro é a lei. É o interior da Inglaterra, mundo de moinhos e da classe média ascendente. Mais que pele e cabelos morenos, Maggie é uma força da natureza. Ela é curiosa, ela é viva, ela está sempre em movimento. A primeira parte do livro, centrada na infância de Maggie, e em seu irmão Tom, teimoso e corajoso, no pai desastrado que a adora e na mãe tola e ingênua, é forte e poética como poucas coisas já lidas. As primeiras 200 páginas voam, passam em amor pelos personagens de Maggie e Tom, mas também em encantamento pelos parentes sovinas, invejosos, moralistas, dogmáticos. O pequeno mundo movido a negócios, a dinheiro aplicado, a rendimentos.
O centro do livro é a terra. Todos lutam por ela. O homem, pela primeira vez em toda a história, percebe que seu mundo não mais lhe pertence. As coisas mudam, são destruídas, paisagens se vão. Não existe mais a continuidade, e esses seres, agitados e saudosos, se movem nesse mundo incerto, que teima em negar o passado, em se transformar. O trauma que a Europa viveu então se faz notar pela violência de suas revoluções, guerras e movimentos mentais. E neste livro se nota pela destruição de todos os sonhos de Maggie.
George Eliot é cruel com Maggie? Como poderia ser se Maggie é ela mesma? Mas nada dá certo para aquela adorável menina. Seu tempo é tempo feito para gente que não é como ela é. Maggie nega o amor, se perde e passa toda a vida ansiando pela volta a infãncia. Eliot traduz assim o romantismo de seu tempo: saudades da infância européia, onde todo recanto era sem dono, toda árvore era sua companheira por toda a vida e cada estação seria sempre exatamente como fora a anterior. Maggie sabe que esse mundo fora destruído. Mas ela passa pela vida crendo em sua volta.
Há um momento em que George Eliot se deixa perder. Quando Maggie se divide entre dois amores o livro perde originalidade e se torna mais um romance de amor sofrido. Mas isso logo é resolvido e o final é de trágica e bela verdade. Eles tinham de terminar assim, não poderia haver outro fim.
Mary Ann Evans sabia, e diz isso várias vezes, que a grandeza da Inglaterra estava firmemente construída sobre a teimosia dos compromissos familiares. Famílias negociavam com famílias e lutavam pela manutenção de seus bons nomes e de sua fortuna. O inglês era um ser de pensamento sólido, imutável, limitado e sem temor. Esse modo, sem imaginação, de avançar sempre e de manter a palavra dada, segundo Eliot, levaria o país ao poder mundial. Mas faria de Maggies e Toms vítimas de um mundo feito pelo e para o dinheiro.
Seiscentas páginas que poderiam ser mais. George Eliot foi uma grande mulher.