A FERA NA SELVA - HENRY JAMES ( VIVER NÃO DÓI )

Devastador. Esta novela ( 70 páginas ) do maior escritor americano da história, é devastadora. Qual é o segredo da escrita de James ? Não há como saber, ele dá voltas, vai de ponta a ponta, disseca aquilo que a personagem sente, descreve o que ela pensa, divaga um pouco, dá mais voltas, aprofunda-se, faz-se símbolo e de súbito, clareia tudo. É um modo de escrever, um estilo, insuperável. Apenas Proust ou Stendhal escrevem tão bem. No meio da leitura pensei em quartetos de cordas.
Este livro traz a história de um casal. Um casal que travou contato em Nápoles, dez anos antes. Se reencontram em Londres e reatam sua amizade. Ele tem a crença de que um tipo de "fera" irá saltar sobre seu corpo. Algo de muito cruel e urgente irá lhe acontecer. Por causa disso, ele passa a vida com apreensão e mantém aparência controlada, distante. Ela se torna sua confidente, faz-se uma cumplicidade.
Os anos passam, a situação se mantém ( e nós intuimos que ela o ama com paixão ) e quando ela morre algo de muito terrível acontece. A maldição se cumpre.
Em autor sem gênio seria apenas a história de um homem egoísta e sua relação com amiga que o ama. Em Henry James isso se torna cósmico. Ele jamais nos conta o que está se passando, apenas vai nos dando pistas, nos ensinando a ver, deixando-nos em dúvida e rumando, sem hesitação, para o único e horrendo fim possível.
Não vou, mais uma vez, falar da beleza superlativa da escrita de James. O que vou é citar uma frase deste livro admirável :
" Não seria o fracasso ir a falência, ser humilhado, exposto ao ridiculo, acabar na forca; o fracasso era não ser coisa alguma."
Em meras 70 páginas, esse gênio da escrita, nos exibe sem dó ou afetação, a dilacerada vida de alguém que nada foi pois nada precisou ser. O egoismo inocente dando impotência e morte a um homem tolo, distraído, ausente.
No fim dessas poucas páginas, que possuem peso de saga, está explícita a dor de não se saber como viver. E genialmente, Henry James nos convence que tudo pode ser suportado em vida; a injustiça, a fome ou a violência. Mas que a dor da covardia, de ter se vivido na virtualidade do que iria ser e nunca foi, do que aconteceria e jamais aconteceu, essa dor é a dor das dores, a dor de não se ter um rosto, de, como o personagem percebe tarde demais, nunca se ter chorado uma dor real, nunca se ter deixado estravazar uma emoção inteira.
O livro, lido em duas horas com fome e paixão, é uma obra-prima.
PS : Que bela edição da Cosac Naify ! A capa em cor de mármore ( o mármore fecha o relato ), o texto começando em páginas finas e brancas e terminando em papel negro e grosso. A cada página que viramos o papel vai se tornando cada vez mais escuro, indo do branco ao prata, ao cinza e ao chumbo, e a textura, o peso, cada vez maior. Exemplo perfeito de projeto gráfico que não é apenas bonito, ele se integra ao que se lê. Nota dez. Digno de Henry James.

O GRANDE BAZAR FERROVIÁRIO- PAUL THEROUX

Autor do "Costa do Mosquito", Theroux é um dos autores americanos centrais dos últimos trinta anos. Este livro, escrito em 1973, publicado em 75 ( no Brasil em 2005 ), conta a viagem de Paul através de Europa, Oriente, Indochina, Japão e finalmente, Sibéria. Tudo de trem, pois o grande objetivo dessa viagem é o trem, a sensação da viagem por trilhos, por estações em cidades pequenas, o desfilar das paisagens pela janela, os contatos travados com seus companheiros de trip.
A viagem pra valer começa na Turquia. E logo aí, percebemos o ponto central do livro: o narrador é extremamente crítico, suas decepções são constantes. Da Turquia fica a imagem do mítico Trans-Europe Express, agora sem seu luxo de outros tempos, a imagem de um país confuso, hostil, cheio de "jeitinhos". Ele cruza depois o Afganistão, país que ele diz ser uma ficção, um sub-país ( o livro é de antes do politicamente correto. Theroux chega a chamar um país de "verme do mundo" ).
O melhor trecho do livro ( e mais longo ) é sua viagem por Paquistão, India e Ceilão. As coisas que são descritas chegam ao absurdo pleno e total ( " A India é uma ficção " ). Delhi como cidade que cheira a dinheiro, Calcutá como sordidez sem fim, a fome devastadora, a ganância, os rituais absurdos, a religião sem sentido, crianças se prostituindo, aleijados, esmolas. Voce lê e sente tudo aquilo. Cores, barulhos ( nada é mais barulhento que um indiano ), odores.
A visão de mundo de Theroux é hiper-americana, então vemos o quanto ele julga tudo o que vê em lentes e balança ocidental. Comparar sua visão sobre a India com aquela de Octávio Paz é comparar duas visões completamente opostas. O americano está sempre procurando conforto, comida boa, e indagando o por quê de tudo aquilo. Paz simplesmente mergulha na India. Não julga nada.
Mas eu logo começo a perceber o quanto o mundo mudou de 1975 para cá. Coisas hoje normais ainda o chocavam então. Paul Theroux se surpreende com prostitutas infantis e com a mania oriental do suborno. Para se conseguir qualquer coisa tem de se pagar por fora. Chegamos então a Singapura e outra idéia surge: o mundo do futuro ( que é nosso mundo de hoje ) foi inventado no Oriente. Se voce agora, 2011, quiser saber como será o planeta em 2031, ande por lá.
Em Singapura ele fica revoltado com a mania de receber noticias, correio e propaganda via fax. Ele vê nisso invasão de privacidade, transformação do privado em público, asfixia do original em cada um, conformidade ao todo. Singapura exala dinheiro e controle. As pessoas são presas por pisar na grama, são torturadas por jogar lixo na rua, e o governo, totalitário, vive em função do turista americano, de se fazer uma ilha da fantasia para quem vem de fora.
Chegamos ao Vietnã. Recém saído da guerra. Paul se encanta. Vê as paisagens mais lindas da viagem e percebe que todo o país é um imenso bordel. Tem uma revelação : ao contrário do que faziam Inglaterra e França, os EUA em todas as suas guerras jamais desejou colonizar um país. Os EUA nada constroem de sólido nos países invadidos, nada tentam implantar de definitivo. As guerras americanas são punições a quem não se comportou bem. Guerras descartáveis, irresponsáveis, sem nada de planejado.
Vem o Japão, e é aí que o choque se completa. Apartamentos minúsculos ( hoje não nos chocam mais, se espalharam pelo globo ), trens que correm demais e mal param nas estações, e um povo que corre ao futuro, mas que jamais deixa de ser como no passado. Quadrinhos de sexo e sangue, shows de sexo com tortura e mutilação, a tara por lâminas e por meninas. O japonês assistindo pornografia sem parar, bebendo sem parar, consumindo sem parar. E ao mesmo tempo parecendo calmo, antigo, familiar, tradicional, caseiro. Em 1975 nosso universo de 2011 todo já presente lá. Metrôs cheios, ruas onde ninguém se fala, a solidão em calçadas repletas. E máquinas que fazem tudo e acabam dirigindo a rotina da vida.
E a Sibéria, com sua paranóia pura, lugar mais deprê do mundo, álcool para poder aguentar.
Theroux passa ainda pelo Irã antes da revolução ( época do Xá ) e pelo Sri Lanka com sua fome inimaginável e suas milhares de religiões. O inacreditável Calcutá, sexo bizarro em todo canto.
Ele se choca com o fedor de todo o oriente, com gente nua nas ruas, com crianças sem pais. E ao mesmo tempo com a falta de cheiro do Japão, com uma mulher elegante que recolhe a sujeira de seu cão na rua ( invenção japonesa ), com o vazio absoluto de uma sociedade onde tudo funciona com rapidez.
É um livro delicioso, nervoso, moderno, pegajoso, quente. Paul Theroux sabe escrever e sabe ver.

AS VIAGENS DE GULLIVER - JOHNATHAN SWIFT

Henry Fielding, Laurence Sterne, Dr Johnson, Samuel Richardson, Daniel Defoe, Tobias Smollet e principalmente Swift, o insuperável Swift. Escritores que inventaram o romance como o conhecemos hoje, homens que na explosão da revolução industrial souberam satisfazer um novo público, ansioso por leitura, por letras, por conhecimento. Todos utilizaram a sátira, o picaresco, sexo e escatologia e uma gloriosa imaginação. Pois mesmo no mais inconformado deles ( Swift ) o que se nota é uma imensa auto-confiança, fé em seu poder de escrita, fé no público leitor, a certeza de se estar em momento decisivo da história.
Gulliver é famoso por ser o marinheiro que surge após naufrágio em terra de anões ( Lilliput ). Mas o livro é muito mais que isso. Ele depois vai a terra de gigantes, e no episódio mais "sonhador" do livro, aporta em terra onde homens são cavalos e os cavalos mandam. Na volta a Inglaterra, Gulliver não consegue mais se adaptar a vida entre humanos. A vida em "civilização" lhe parecerá indigna, injusta e os homens exalam um fedor nauseabundo.
O livro, deliciosamente despudorado, nunca faz piadinhas. O humor é cruel, titânico, cortante e doloroso. Swift destila seu famoso ódio ao sistema de classes, ao absurdo das guerras, às convenções sociais, a vida em cidades, e ao recém nascido industrialismo. Tudo isso numa prosa ágil, fácil, saborosa e sem freios. As coisas acontecem, a ação é constante e os comentários do "autor" são sempre certeiros. Voce se diverte, mas correndo ao lado de toda essa fantasia vem um estranhamento, uma sensação de loucura, de desconforto. Quando o livro termina fica um sentimento de esquisitice. Na verdade é o sentimento de Lemuel Gulliver que passa para voce. Como todo grande romance, ele gruda, tatua-se em sua mente, passa a fazer parte de seu modo de ver e de sentir.
Espero ( sentado ) pelo surgimento de nosso Johnathan Swift, o homem que saberá desmascarar nosso bando de deslumbrados inocentes.

CHUVAS IN NATURA

O problema é só um:
Durante 20000 anos fomos um exemplo de bicho adaptado ao meio. Nos adaptamos a todo clima, aprendemos a comer quase tudo ( de cogumelos a carne, de grãos a insetos ) e domesticamos outros bichos para nos servir. Exemplo de adaptação ao meio como a nossa, nem o rato ou a barata.
Mas então, por volta de 1700 D/C, as coisas mudaram. Deixamos de nos adaptar ao meio ( ajustando-o a nossas fraquesas ) e passamos a tentar adaptar o meio a nós mesmos. Criamos a ilusão de que natureza, seja ela biológica ou química, pode ser transformada e recriada ao nosso prazer.
Digamos que antes sabíamos que a chuva chegaria, e respeitosamente nos preparávamos para ela. E agora temos a ilusão de poder enfrentá-la. E assim, deixamos que as coisas se ajeitem.
Não se ajeitam. Construir em encostas e margens de rio, edificar em espaço restrito ou beira de mar, por mais concreto e ciência que voce empregue na construção, um dia cai. E morre gente.
A natureza não irá se adaptar a nosso crescimento populacional. Ela é indiferente a nossa presença.
Olhar o mundo com humildade. Esse é o único caminho.

FORD/ BOND/ HAWKS/ FRITZ LANG/ PAUL NEWMAN/ WOLVERINE

RASTROS DE ÓDIO de John Ford com John Wayne, Jeffrey Hunter, Vera Miles e Ward Bond
Após assistir e me apaixonar por tantos filmes ( filmes esses que vão desde Buster Keaton e Carl Dreyer até Clint Eastwood e Joe Wright ) se torna impossível imaginar qual meu filme favorito. A última vez que arrisquei essa opinião votei em O Atalante de Jean Vigo, para logo em seguida me arrepender ao lembrar de mais 100 filmes que poderiam ocupar esse lugar. Dito isso, afirmo que Rastros de Ódio, se não é meu filme favorito, é aquele que mais me emociona, mais me ensina e mais importancia tem no desenvolvimento de meu gosto estético. Se voce quer ler sobre ele, há uma critica por aí.... Nota INFINITAMENTE ALTA.
O SATÂNICO DR NO de Terence Young com Sean Connery e Ursula Andress
O primeiro filme de Bond já possui algumas das marcas que o acompanhariam até Daniel Craig. Matar sem pensar e transar com todas as mulheres possíveis sendo as principais. Atualmente a violencia é maior e o sexo é ínfimo. Mas este 007 ainda é feito num estilo que tenta ser Hitchcock. A ênfase é para o suspense e não para a ação pura. Sean Connery nasceu para ser James Bond. Ele é seco e elegante. Como um dry martini. Longe de ser o melhor da série, tem belas imagens de uma Jamaica que não mais existe. Ursula surge aqui como o molde de todas as futuras Bond-girls. Nota 6.
RIO VERMELHO de Howard Hawks com John Wayne e Montgomery Clift
Faroeste lendário de Hawks, que é bom, mas não me toca tanto quanto outros filmes desse diretor imenso. O que se percebe é a esquizo do elenco: John Wayne com seu estilo "antigo" de interpretar e Clift criando o estilo Actors Studio, que é predominante até hoje ( o filme é de 1948 ). Sabe-se que Wayne transformou a vida de Clift num inferno durante as filmagens. Ele não perdia uma chance de zombar de seu jeito efeminado. O que vemos é o estilo antigo de Wayne, estilo em que o ator interpreta o personagem como um ideal, uma visão simbólica do personagem; e o novo estilo de Clift ( que é o precursor de Brando e Dean ) onde o ator procura ser "real", onde se espirra no meio de uma fala, se coça o nariz antes de se montar no cavalo ou se tropeça ao caminhar. Todos até hoje devem a popularização desse estilo a Monty Clift. O filme é o embate entre esses dois mundos e sobre a rivalidade entre cowboy veterano e garoto novato. Hawks conduz com sua leveza habitual. Há quem o considere ( Tarantino e Inácio Araújo entre eles ) um dos três melhores filmes já feitos. Eu não. Nota 7.
O ÚLTIMO PISTOLEIRO de Don Siegel com John Wayne e Lauren Bacall
Em 1976 John Wayne, já tendo apenas um pulmão, lutava contra seu câncer. Este acabou sendo seu último filme, e há quem o considere a mais bela despedida do cinema já vivida por qualquer ator. Quem dirige é o homem que criou Dirty Harry e no elenco vemos Ron Howard, o futuro diretor de Appolo 13, Cocoon e Ed Tv. O roteiro fala de um velho cowboy que se hospeda em hotel para morrer em paz ( tem câncer ). Seu médico é feito por James Stewart. Mas seu passado de vingador não o larga e ele terá de lutar mais uma vez. O filme corria um risco imenso de ser piegas, apelativo, desagradável. Não é fácil, mas acaba superando seus imensos obstáculos. John Wayne não nos dá pena, dá saudade. Nota 6.
SCARFACE de Howard Hawks com Paul Muni e George Raft
O filme original, de 1932. E que filme!!!!! A violência é absurda para a época. Tanta gente é metralhada e o som dos tiros é tão alto que o efeito é de histerismo total. Muni faz o persoangem como uma espécie de simio deslumbrado pela violência ( ele ama o que faz ) e que guarda um amor incestuoso pela irmã. E o que vemos é a escalada desse gangster ao topo, matando, rindo, traindo, ousando. Sua queda é rápida e sem drama nenhum. Hawks dirige em seu modo simples, rápido, sem frescura. Dá uma aula de estilo. Este filme criou Scorsese, Coppola, Tarantino, De Palma, Melville e Walsh. É pouco ? Nota DEZ.
FORTY GUNS de Samuel Fuller
Os criticos de tendencia francesa adoram Fuller. Chegam a chamá-lo de gênio. Eu me irrito muito com ele. Veja este filme: é um western. Mas há uma cena em que seis cowboys tomam banho em tinas e cantam. E não é para ser uma comédia!!!! Em outra cena um cara aponta a arma para outro, e a câmera mostra o outro focando por dentro do cano da pistola!!! Todo o filme é assim, Fuller sempre mostrando o quanto é genial. Me irrita.... Nota 1.
O RETORNO DE FRANK JAMES de Fritz Lang com Henry Fonda
Excelente. O melhor diretor da Alemanha, após fugir do nazismo, triunfa maravilhosamente em Hollywood. Lang tem carreira longa e exemplar. Poucos de seus muitos filmes são menos que ótimos. Aqui vemos o irmão de Jesse James, que tenta ter vida pacata, partindo para matar os assassinos de seu irmão ( eles foram absolvidos pela justiça ). Henry Fonda foi talvez o melhor ator americano. Agora que a América começa a terminar, sentimos a forma como ele encarna o grande americano. Seu olhar e sua voz são tudo aquilo que todo cidadão queria ter sido e ter possuido. A imagem ideal do americano como herói pacifico. Só ele conseguiu fazer isso. O filme é, como são os melhores filmes de Lang na América, sem erros. Se lhe falta o brilho de seus primeiros filmes de denuncia social ( também feitos com Fonda e absolutamente geniais ), ele tem o bastante para despertar um desejo de quero mais. Nota 8.
UM DE NÓS MORRERÁ de Arthur Penn com Paul Newman
Paul Newman entre 1958/1975 dominou completamente o cinema americano. Não teve pra ninguém. Seus concorrentes eram Warren Beatty, Steve McQueen e Robert Redford, mas ele batia todos com facilidade. Depois, a partir de 1970, também bateu em Dustin Hoffman, Jack Nicholson e Gene Hackman. Neste western, do futuro diretor de Bonnie e Clyde, ele tem uma atuação estupenda. Faz o jovem Billy The Kid como um adolescente burro, hiper-ativo, meio desastrado e cheio de tiques. Vemos um bandidinho real em nossa frente, reles, pé de chinelo. Precisaríamos esperar 15 anos para ver outro bandido vagabundo tão bem interpretado ( por De Niro em Mean Streets ). Acompanhamos com emoção a vida tola e vazia desse moleque perdido. O filme, de 1958, foi um fracasso na época. Estava anos adiante de seu tempo. Billy é visto como Clyde em Bonnie e Clyde, um bronco charmoso sem noção do que faz. Nota 8.
WOLVERINE de Gavin Hood com Hugh Jackman
Na falta de atores machos hoje ( Clint Eastwood aos 35 anos seria um Wolverine perfeito ), Jackman se vira como pode. Mas seu Wolverine é pouco duro e nada sujo. Ás vezes se parece com um garoto brincando de ser Charles Bronson ( e Lee Marvin ou James Coburn também nasceram para ser Wolverine ). O filme, que começa bacaninha, depois cai bastante e chega a enjoar. Mas é melhor que o X Men 3, porque ele não tem aquela pretensão anti-racista do X Men. Nunca tenta ser o que não é. Nota 5.
BABYLON AD de Mathieu Kassovitz com Vin Diesel, Gerard Depardieu e Charlotte Rampling
Diesel em papel sob medida para Jason Statham. Não funciona. O filme, que ainda tem Michelle Yeou, é daqueles que mostra o futuro "russificado". Gangues dominam tudo. Kassovitz é o tipo de francês que pensa que ser moderno é ser chocante ( uma das primeiras cenas mostra o herói cortando e comendo um gato frito ) e que fazer arte é ser o mais complicado possível ( que é uma visão jeca. Aquela crença em que tudo que é arte é dificil ). O filme é uma mixórdia que mistura ação com filosofices, misticismos e que tais. Não tem nenhum sentido. Nota 3. ( pelo visual ).
OS REIS DE DOGTOWN de Catherine Hardwicke com Emile Hirsch, Heath Ledger, James Robinson, Nikki Reed, Johnny Knoxville e Victor Rasuk
Maravilhoso. De total simplicidade, retrata a adolescencia como ela é. Um filme para se guardar ao lado de Quase Famosos como retratos perfeitos de uma época de imperfeição. Lindo, lindo, lindo...assista e creia. Voce vai se apaixonar. Nota DEZ, com suavidade....

OS REIS DE DOGTOWN ( ETERNAMENTE JOVENS )

Há tempos eu ouvia falar desse filme. Dirigido com volúpia por Catherine Hardwicke ( que depois fez Crepúsculo, o que prova que cinema hoje é questão de equipe ), produção de Art Lison ( de n filmes de Scorsese e Lumet ) e David Fincher. Com Emile Hirsch, Heath Ledger, John Robinson e um ator exuberante, Victor Rasuk. E com a melhor trilha sonora desde QUASE FAMOSOS. Pois ontem eu o assisti....
Skate em 1976 era coisa de boiola. Quem não podia pegar onda, por falta de coragem ou de oceano, andava de skate. Mas andar de skate era como andar de patins, voce flutuava com delicadesa. O filme é sobre o nascimento de uma nova era, sobre quatro caras que mudaram TUDO, e não só o ato de deslizar sobre um shape. Pois como diz o filme: toda revolução vem da rua.
Que revolução ?
Existem lugares no mundo que são O LUGAR. O lugar certo para se estar naquele momento. Paris em 1922. O Village em NY em 1948. Londres em 1965. Barcelona em 1991. E Venice Beach, LA, em 1976.
Porque lá havia um Pier onde se pegava onda. E 3 moleques de 14 anos que não podiam ficar no mar ( apanhavam dos surfistas mais velhos ). Esses "heróis" eram : Tony Alva, um filho de chicanos, pobre e arrogante, Jay Jay, filho de hippie drogada, e Stacy Peralta, um responsável cabeludo, teimoso, tímido. Os três pegaram aqueles skates e resolveram voar. Mas é muito mais que isso !
Heath Ledger, em atuação magistral, faz o doidão-dono-de-surfshop. Ele resolve empresariar os garotos. Cria a Zephyr. Pausa : Em 1977 leio na revista POP, editora Abril, sobre esses caras. Fotos de Jay Jay andando dentro de canos de enchentes. O cara parecia cool, rebelde, nervoso... ele era mesmo tudo isso.
Então os três ( voltando ao filme ) vão a campeonato e causam sensação. Na verdade eles criam o que a gente hoje sabe ser UM CAMPEONATO. Tony Alva tira a música de dentista da pista e bota Iron Man. Acredite, até então rock pesado não era coisa de skate. E na pista ele desliza como se estivesse numa onda. Flutua, voa, dá batidas na crista. O povo fica de boca aberta.
E tudo muda. Os três, de súbito estrelas da midia, criam o conceito de ESPORTE RADICAL. Rock, roupas esportivas, loucura em se atirar, rebeldia. Mas o filme mostra : eles são o artigo genuino. São eles os primeiros a invadir casas de ricaços para usar as piscinas vazias ( sim, eles criam o skate em bowl ), eles dão os primeiros aéreos e inventam a moda skatista : tênis de sola lisa, jeans largado, camiseta velha e camisa de flanela na cintura. Era 1976.
O filme entra então em sua parte amarga. Stacy e Tony brigam por vaidade. E Jay, talvez o melhor deles, mergulha no punk : raspa a cabeça, se tatua, se droga. Mas há uma bela redenção no final. Uma cena lindissima em que eles se reencontram e brincam numa piscina. Skate com poesia, quem resiste ?
Quanto a trilha sonora.... bastava a cena com Old Man de Neil Young, mas como em QUASE FAMOSOS, a trilha chega a ser covardia!!!!
1989 foi um grande ano em SP. Uma multidão de alunos da FIAM enterrou os malditos anos 80. Todo aquele dandismo britanico com seus vinhos brancos e seus blazers foi pro lixão. Discos de Duran Duran e Culture Club nunca mais. Eu fiquei chapado !
Os cabelos voltaram a ficar soltos ( sem gel ) e longos e as camisetas tinham desenhos sujos. Jeans rasgados e caindo na bunda com tênis detonado. Mochilas e bonés amassados. Pulseiras, tatoos e bikes. Deu na TRIP da época : uma foto do bando de Venice Beach, mal encarados.
Essa galera ouvia Black Flag, The X, muito Sonic Youth, Pixies e Janies Addiction. E misturava tudo isso com Beastie Boys, Public Enemy e mais Jerry Lee Lewis, Johnny Cash, John Lee Hooker e Elvis. Liam a revista ANIMAL, muito mangá, Moebius, Alan Moore e Frank Miller. Liam Bukowski, Hammet, Chandler, Poe e tudo que fosse virulento. Grafitavam, tocavam em bandas de punkbilly e alguns ouviam jazz. Criaram a cultura de rua dos anos 90. E sabiam que eram filhos de Stacy Peralta, de Tony Alva e de Jay Jay.
Vieram as bikecross, o snowboard, le parkour, o novo surf ( que leva o skate para o mar ). A moda se tornou "da rua". Tudo mudou. O conceito de ser "radical" se firmou.
E tudo nasceu entre 3 moleques de rua, na suja e mal afamada Venice Beach, por puro fun.
Tão bom quanto este precioso filme são seus extras. O roteiro foi escrito pelo próprio Peralta e nós os vemos aos 48 anos, em reencontro. Stacy Peralta trabalha agora com skate ( foi ele quem lançou Tony Hawk ) e cinema ( tem prêmios como documentarista ). Tony Alva é uma lenda viva. Dono da marca ALVA. E Jay Jay foi preso por posse e tráfico, cumpriu pena e hoje vive no Hawaii. Mas o que mais impressiona é o carisma dos 3. Principalmente Jay. Se eles foram os caras que inventaram o esportista radical, hoje eles são os embaixadores do quarentão moleque.
É lógico que me identifiquei com o filme. Me vi nele, sei daquilo tudo, conheci aqueles caras, assisti a revolução. Mas eu te juro, como cinema, mesmo para quem tem 18 anos e não sabia que skatistas já foram o futuro, ou para quem tem 60 anos, e pensa que esporte é só ginástica, o filme é absolutamente descaralhante !!!!!!

O ARCO-IRIS - D.H.LAWRENCE

Ninguém enfrenta uma folha em branco se não possuir uma grande ambição. Seja de notoriedade, dinheiro, auto-satisfação, relevância.
James Joyce tinha a ambição de abarcar toda a complexidade do século XX. Marcel Proust queria desvendar o interior da consciência. Balzac possuia a ambição de expor toda a sociedade francesa de seu tempo, e Stendhal queria descobrir a gênese de nossos sentimentos. Tolstoi se propôs a tarefa de mostrar o dilema do homem perante sua existência e Eliot queria exibir o vazio espiritual do homem moderno ( e depois indicar sua redenção ). Todos eles tinham talento para cumprir sua ambição. Eles se deram uma missão e conseguiram "chegar lá".
Mas existe outro tipo de autor. O esbanjador. Aquele que se deu uma tarefa menor que seu talento. Este se torna um tipo de gênio do estilo, da maneira de escrever. Henry James era assim. Sua ambição era imensa, a de compreender o homem sem lugar, em transição, mas seu talento era tão vasto que ele poderia ter partido para vôos ainda maiores.
E existe ainda um terceiro tipo de autor. É aquele que se dá um titânico trabalho, mas que apesar de possuir talento, seu dom jamais consegue chegar às alturas de sua ambição. Lawrence é um exemplo dessa sina.
O que ele queria ? Escrever os grandes livros que mostrariam a decadência da civilização ocidental. Fazer o resgate da religião pagã, do xamanismo e do sexo como sagrado ritual de ligação do homem com a natureza. Seus livros têm tudo isso e conseguem nos fazer entender suas idéias. Mas ele é incapaz de nos fazer senti-las. Não sentimos ira, não ficamos desorientados, nada há de mistico ou mágico em sua escrita, e pior, lhe falta sensualidade. Isso porque Lawrence escreve mal. Ele se repete, anda em circulos, procura revelações e não as atinge. Falha. Ironicamente, o autor do sensualismo sofre de impotencia verbal.
Mas isso não significa que ele não seja ótimo. É invulgar, corajoso, ansioso, forte. Mas a ambição que o moveu ( como sucedeu também com Durrel, Heminguay, Fitzgerald ou Updike ) é muito maior que seu talento.
Talvez seja essa a maior infelicidade que um autor possa ter.
PS: Quem quiser conhecer Lawrence não leia este O Arco-Iris, vá direto a Mulheres Apaixonadas. Lá voce vai encontrar essa contradição Lawrenciana em seu máximo. Uma exuberãncia de ideias e de propósitos mesclados a uma certa incapacidade de estar a altura de seus propósitos.

ANDAR DE AVIÃO EM 2011

Ônibus com asas. Lembro que andar de avião era ter a sensação de se estar em hotel com asas. Cheguei a ver crianças brincando de madrugada no corredor. E gente indo a Frankfurt com toda a fileira de poltronas vazia.
Havia um jantar grátis com salmão, souflé e charlotte. Sempre que voce queria, a aeromoça trazia whisky ou vinho. A cadeira era reclinada até se tornar cama e dava pra ignorar todos os outros passageiros. Pois é.
A classe c agora pode viajar e antes que me chamem de elitista deixe explicar o que penso.
É tudo uma grande enganação. A classe c ao poder agora viajar, deveria ter o tratamento que havia antes deles subirem. O que está havendo é o REBAIXAMENTO do vôo e não a SUBIDA das classes menos favorecidas. E é em tudo assim. Mas antes vou fazer um adendo:
Se no século XIII era um crime duvidar da igreja e se no século XVI voce era morto por duvidar do rei; me parece que hoje é um tipo de loucura duvidar daquilo que ciência e publicidade ditam ( é uma ditadura ). Tudo o que é dito por um cientista, com apoio da propaganda se torna édito papal ou vontade do rei. Dito isso...
Nunca se escreveu tanto. É uma verdade apregoada pela maioria. Sim, nunca se escreveu tão...mal. E não falo só de quem escreve vose ou fasil. Falo de uma elite que estudou no Dante e na PUC e que é incapaz de acompanhar uma peça de Shakespeare ou entender uma página de Proust. Nunca se vendeu tanto livro...ruim. Não haveria problema se isso fosse porta de entrada para coisas melhores. Voce começa lendo Paulo Coelho ou John Grisham e depois passa a Stendhal ou Houellebecq. Mas não. Começam com Scott Turow e chegam no máximo a Michael Chabon ou José Saramago. Nada mais. E nunca se ouviu tanta música... péssima. O povão ouve funk e sertanejo, músicas que fazem com que os grandes vendedores de trinta anos atrás ( Fabio Jr, Benito di Paula, Alcione ) pareçam finos e criativos. ( Não falando de Roberto Carlos, que é sim nosso Sinatra ).
O que está em processo é uma queda do gosto e da cultura DA ELITE. Assim como acontece com vôos internacionais, o povão subiu um degrau, mas não encontrou nesse novo degrau aquilo que a elite consumia antes. Trouxe seu ambiente cultural para o andar de cima e o povo desse andar perdeu qualquer tipo de referência, 'DEIXOU DE SER ELITISTA".
Se antes havia um desejo de um dia se entender o cinema de Bergman ou os livros de Tolstoi, hoje há uma atrofia de ambição intelectual. A elite se contenta com resumos ou pior, falsificações de bons autores. Se sujeitam a atendimento classe C em restaurantes, lojas, hotéis e shows. E pior, acreditam estar caminhando para mundo melhor, onde ciência e propaganda proverão tudo aquilo que importa.
É hora de um novo Voltaire e de uma nova Bastilha. Viverei para ver isso ?
PS: em julho de 1976 minha mãe ( classe turística ) estava no Galeão quando seu vôo TAP rumo Paris atrasou. Das 22 passou para o meio-dia do dia seguinte. O que a companhia fez ? Hotel no Leblon para todos ( quatro estrelas ) com jantar e café da manhã. Grátis, lógico. Ser tratado assim hoje, só se voce for de Hollywood ou deputado federal.
PS II: Quando falo em Voltaire falo em pessimismo ativo. Alguém precisa dar um safanão neste mundo tão "felizinho". E derrubar o pensamento único da Bastilha.

SOBRE O DUENDE EM MÚSICA

Feche o quarto e deixe tudo absolutamente escuro. Ligue a música em máximo volume, e de pé, no centro do espaço, ouça-a sem dançar. Fique parado e se voce sentir que vai começar a executar passos de dança, não os execute e não imite nenhum performer que voce viu um dia no palco. Fique quieto, solto, calmo, ouvindo o som.
Quando os americanos começaram a ouvir som de preto ( blues e rocknroll ) lá por 1955, a sociedade entrou em parafuso porque ? Não foi devido ao fato deles falarem errado, não foi pela pelvis de Elvis ( também foi ), ou puramente pelo racismo ( também foi ). O que havia por detrás de tudo isso era o medo, um inconsciente medo. Do que ? Do duende, é claro.
Toda a nossa civilização nos oferece sempre um único modelo de pensamento. O politico/militar, o politico/religioso ou o politico/técnico. Cada sociedade tem o seu. E para se interromper a força destruidora da anarquia, o duende primitivo dessa massa de ex- bárbaros tem de ser asfixiado. Enquadrado. Ele se esconde em nosso inconsciente mais profundo e lá fica, tentando voltar a tona. Drogas, sexo e música, como fazê-lo respirar ?
John Lee Hooker cantando Big Legs Tight.
É macumba. Duende é macumba. Foi isso que apavorou o branco da América de 55. A cerimônia de invocação de Dionisius, a macumba baby. O preto véio.
No centro do quarto eu começo a tremer interiormente. Meu corpo ainda não se move. Mas o grito e a possessão já se fizeram. Balanço e não caio, entro em doideira sexualizada. Não danço, movo meu corpo que é levado por alguma coisa descontrolada dentro de mim. Viagem sem droga. Me jogo ao fogo. Giro, e vou......
Quando a música termina estou esgotado. E solto, livre, inteiro. Isso é o duende.
Brancos também fazem essa macumba. Mas lhes é mais distante, mais dificil de atingir. São séculos demais de romanismos e ciência. Os negros estão mais próximos disso. Para eles o xamanismo foi de seus bisavôs.

Exile on Main Street é todo feito como incessante busca do duende. Foi o escutando, no escuro, que travei meu primeiro contato com ele. E hoje, anos sem experimentar sua presença, sinto-o sem querer ao ouvir John Lee Hooker.
Cuidado com Hooker ! Muito cuidado ! Um duende como Howlin Wolff, Robert Johnson, Miles Davis ou Thelonious Monk. Macumbeiro. Preto vèio com voodoo.
Encontre seu duende. Pela poesia, pela música, pela religião. Iggy achou o seu. Jagger trouxe-o a tona na branquérrima Londres de 63. Hoje ele tem sido vulgarizado em pílulas e performances que são ataques de nervos, jamais manifestações de Dionisio ( a diferença entre um cara tendo um ataque convulsivo no palco e um autêntico duende é o sexo. O duende é sempre sexualizado, bissexual, provocante e sedutor, satanicamente feliz ).
Tente trazer o seu a tona. Sem medo. O universo agradece.

ROCK É COISA SEXY, CHRISSIE HYNDE

Era sábado e eu e meu irmão fomos ao Museu do Disco, no Iguatemi. Ficava no primeiro andar, hoje é uma loja de bolsas. Tentava se diferenciar da Hi Fi tendo mais importados e alternativos. Bem... então nós fomos lá andando pela Faria Lima, sete da noite, calor, rua muuuito tranquila. No Cal Center tinha três cinemas e se jogava fliperama.
Entramos no Museu e o vendedor veio logo nos indicar uns importados. Era final de 1980. Mostrou Gang of Four, B'52's, Jam e Blondie. Lembro que ele dizia que os discos eram fudidissimos!!!! Meu irmão acabou pegando um extended play do Clash. EP era um formato menor que o LP. Esse disco era feito de dubs, dubs eram faixas de reggae remixadas. Lembro que meus amigos babavam por aquele disco. Longas faixas de baixo e bateria com eco, teclados espaciais, efeitos de estúdio. Uma obra-prima. Se hoje voce tocar ele numa festa, em pleno 2010, neguinho ainda sai dançando.
A grana só dava pra esse importado ( um importado custava cinco nacionais ). Olhamos os lançamentos da WEA e acabamos experimentando Ramones e Pretenders. End of The Century era o disco dos americanos. Phil Spector na produção. Passei ele para uma fita e o ouvia no carro voltando do Objetivo. Recordo que escutando Let's Go fiquei tão chapado que cruzei uma travessa sem olhar e bati o carro numa Kombi. Perda total. O cara da Kombi chegou a ir em casa me ameaçar de morte !!!!
Eu nunca havia escutado Pretenders. Mas na Playboy Ezequiel Neves falava bem da banda. Contava que Chrissie Hynde fora jornalista da NME. Que nascera em Akron, Ohio e fora para Londres aos 18 anos levando na bagagem apenas dois discos : Raw Power de Iggy e White Light do Velvet. Namorara os caras do Clash e agora, aos 28 anos, finalmente, com 3 ingleses doidos, lançava seu primeiro disco: The Pretenders, produção de Chris Thomas, o cara do Sex Pistols e Roxy Music.
A capa do disco já era descaralhante : toda branca com os 4 vestidos de rockers. Chrissie virou obssessão. Aquele cabelo cobrindo os olhos cheios de rimel, a jaqueta vermelha e a calça de couro. Ela era uma Joan Jett melhorada. E a voz, a voz era sexy, muito sexy.
Voltando do Iguatemi, eu e meu brother botamos o disco pra rodar. Surpresa !!!!! Bateria e guitarras pesadas e mal gravadas ( sujas ) tocam juntas como se fossem um batalhão bárbaro avançando. Precious é a música. Veloz, afiada, curta. O lado A tem oito faixas. Todas curtas, agressivas, e acima de tudo, sexys. Chrissie fala de estupros, de usar seus namorados bonitinhos, de amar sexo como brincadeira. Eu deliro. É rock como eu nunca ouvira uma mulher fazer. Nada de cantora sofrida, nada de boneca gostosa, Chrissie é ativa.
No lado B ela divaga. As músicas se esparramam, a banda mostra-se genial ( pena que baixo e guitarra, Peter Farndon e James Honeyman-Scott morressem de overdose em 81 e 82 !!! ). O disco vira uma paixão. Ouço-o e reouço-o. Naquele verão democrático, em que eu escutava de Jorge Ben a Charles Mingus, de Bowie a Kurtis Blow, foi Chrissie quem virou caso sério.
Meu quarto logo tinha poster deles, eu usava uma camiseta com a banda, um broche com a capa do disco e me tornei sócio do fã-clube inglês deles. Eu andava por SP procurando ansiosamente uma menina que se parecesse com ela. ( Tempo errado. Em 80/81 todas se pareciam com Olivia Newton-John. E que ironia, hoje, trinta anos depois, meninas com cara e roupas de Chrissie Hynde se tornaram facilmente encontráveis ).
Formei uma banda que jamais soou como ela. Mas eu tentava ter o visual de Peter Farndon.
Até que ela se apaixonou por seu ídolo de adolescência : Ray Davies, dos Kinks. Os dois moraram juntos e ela quase morreu. Álcool demais. Quando a relação terminou ( e meia banda já morrera em heroína ) , Chrissie Hynde voltou como voces a conhecem, acomodada, senhora, chata. Um quase Rod Stewart versão anos 80. ( Rod foi outro que de rebelde genial se fez senhor chato. E creia, Rod foi insuperável ! ).
Mas o primeiro disco ficou. A prova do quanto eles foram grandes. E o testemunho de que mulheres podiam ser como Keith Richards. Precious.

UM SENTIDO A VIDA : RASTROS DE ÓDIO, O MAIOR DOS FILMES

A tela escura anuncia : Texas, 1865. Um corte e vemos uma porta que se abre. O sol, inclemente lá fora.... Contraste entre espaço escuro/seguro/fechado e espaço claro/perigoso/livre. Como diz Martin Scorsese nos extras desse dvd, só essa cena já basta para exibir a genialidade de John Ford. Rastros de Ódio é o filme mais complexo, mais desconcertante, mais duro de sua carreira de 120 filmes ( !!!!!!!! ).
O tema é o racismo. John Wayne é Ethan, um cara mau. Mas é também o herói ( ??? ) do filme. O centro é seu rosto. Crispado, sombrio, ruim. E Wayne está a altura desse papel. Sua voz é terrível, seu andar é confiante e seu rosto parece escuro, perdido em algum inferno. Como Curtis Hanson lembra, o modo como Wayne diz as falas é coisa de imenso ator. Para mim, esta é uma das poucas interpretações que parecem definitivas. Não poderia ser melhor.
Mas o filme tem outro tema. A relação de Ethan com o jovem personagem de Jeffrey Hunter. Um garoto meio indio. A relação dos dois é de pai e filho, e se tornará ao final de iguais.
O roteiro, estupendo em seus aspectos ricos e vários, conta a história de familia trucidada pelos comanches. Uma menina é levada pelo cacique e Ethan passará dez anos cruzando o país atrás dela. Nessa base é construída uma riquesa sem fim. Ethan esteve anos fora de casa e quando volta, vmos que ele não se sente bem em meio às pessoas. Acontece a tragédia e ele parte. De volta a seu meio, o universo da luta, do espaço aberto, da crueldade, ele readquire um motivo para viver.
John Milius diz que o filme é principalmente sobre isso: que todos nós, por pior que sejamos, podemos dar um sentido a nossa vida. Ethan passa uma década percorrendo o vazio e tem nessa busca seu sentido e sua salvação. O filme é também um profundo relato existencial.
Assisti este que é meu filme mais amado, pela primeira vez, em fevereiro de 1986. Até então eu odiava westerns por dois motivos : eram fascistas, não eram "de arte".
Naquela época, de longe a pior de minha vida, eu sofria o inicio da Sindrome do Pânico. Minha vida estava totalmente no inferno. Lendo a Folha me deu vontade de tentar ver esse filme na Globo. De qualquer modo eu sofria de insonia. Pois bem, desde a primeira cena até o fim, tudo nele me deixou em estado de extase. Toda a explicação de minha crise estava ali exibida. E melhor, o filme deixava claro que eu tinha esperança, que minha vida tinha UM SENTIDO.
Desde então, Rastros de Ódio é o mais amado dos filmes. E o western deixou de ser uma bobagem e se tornou a imagem mais profunda do que significa ser um homem.
Bem.... Na época de seu lançamento ( 1956 ) o filme foi tratado como mais um filme de Ford. Ele já tinha 4 Oscars de direção ( um recorde até hoje imbatível ) mas todos os seus prêmios foram por filmes não-westerns. Naquele tempo como hoje, a academia não estava nem aí para cowboys. Então o filme saiu, não foi indicado para nada e foi mais ou menos de bilheteria. Mas aconteceu o começo do mito quando ele foi exibido na França.
Na França havia uma revista amada por todo cinéfilo sério, o Cahiers du Cinéma. Nela escreviam os críticos terríveis e cruéis chamados Eric Rhomer, Claude Chabrol, François Truffaut, Jacques Rivette e Jean-Luc Goddard. E eis que eles proclamam : Rastros de Ódio é uma obra-prima ! Principalmente Godard passa a defender o filme. ( Em 2005 ele diz que continua a chorar com a hora em que John Wayne diz : - Vamos para a casa Debbie! ")
Reassiti ao filme ontem. Foi a sexta vez em 25 anos. Há dez que eu não o revia. A expectativa imensa e tudo para desmistifica-lo. Mas lentamente se refez a magia. Quando ele terminou, eu estava com os olhos molhados, trêmulo, meio fora de mim. Penetrar nesse filme é sempre uma prova avassaladora. Qual seu mistério ? Na superficie é apenas mais um western....
Scorsese chama a atenção para a fotografia. Ford é famoso por isso. Seus filmes não têm um só take que não seja estupendo. Tudo é gigantesco e talvez seja esse seu maior segredo: ele, como Homero ou Shakespeare, mostra a vida em sua dimensão real, gigantesca. As pessoas parecem plenas, inteiras, completas, e as paisagens, de tirar o fôlego, são um cosmos de profundidade.
Martin diz que uma vez perguntaram a Kurosawa como ele aprendera a captar imagens tão belas, ele respondeu : Tudo está em John Ford.
Penso na maravilha que devia ser assiti-lo em Vistavision. Scorsese diz que hoje não existe nada parecido com aquilo. A imagem era muito alta e muito profunda. Mas ainda dá pra perceber isso em dvd. O filme inteiro tem essa profundidade de campo. Enquanto um diálogo acontece à frente, ao fundo vemos gente passando, cavalos, ação, movimento. Todas as tomadas são ricas, complexas, cheias de detalhes. Sómente Kurosawa conseguia fazer igual.
Ford é famoso por suas cenas de casamentos, cafés e enterros. Ele acreditava que são essas "cerimonias" em grupo que definiam nossa vida. O filme tem todas elas. E Milius destaca a cena do café da manhã logo no inicio. A mesa ao centro, cadeiras ao lado e gente se movendo e falando ao fundo. São doze personagens em cena, todos com algo para fazer e falar, todos dentro do foco, e tudo sem um só corte ou um movimento de câmera. Espero estar enganado, mas hoje, apenas Paul Thomas Anderson ( um fã de Ford ) tenta fazer cenas como esta. Se consegue é outra história, mas pelo menos ele tenta.
Hanson mostra como é mostrada a violência no filme ( e o porque dela ser tão contundente ). Ela simplesmente não é mostrada. Exemplo: Ethan chega onde a familia foi massacrada. Se mostra o rosto de Wayne antes e após ver tudo. Essa é a verdadeira violência que raramente vemos nos filmes: Ford mostra a consequencia da violencia, o que ela faz com quem a testemunha, os efeitos dela. Isso é muito mais devastador e precisa de atores muito melhores. Mostrar uma mulher estuprada é fácil, muito mais duro é exibir o sofrimento de quem viu aquilo.
O filme caminha então, inexorável, ao seu destino. Ethan cada vez mais racista, cruel, brutal. E vem a frase que marca todo o filme: Vamos para casa, Debbie. Uma das três ou quatro cenas mais famosas do cinema. Mas o nervo do filme vem então....
Todos voltam ao lar. Todos com seus pares, sua familia, seu sorriso. John Wayne fica parado à mesma porta do começo da saga. Exita, se volta, e vai. Ele parte sózinho ao deserto, pois ele sabe que aquele não é seu mundo. O filme então se agiganta ainda mais. O mito do homem ali exibido.
Rastros de Ódio nesse momento se faz um filme sem igual. Em poucos minutos ele diz tudo aquilo que os grandes escritores levaram quilos de papel para dizer. A sina do herói.
Ethan foi útil enquanto a selvageria imperou. Enquanto a civilização perigava. Quando tudo se assenta, ele fica sem lugar. Deve partir. E se vai. Assistir esse final é dilacerante. Ethan, personagem que passamos todo o filme odiando, se faz adorável. Está completa a rota do heroísmo.
Quando o filme terminou, na primeira vez que o vi, eu estava salvo. Eu caminhava com Ethan e nunca mais me perdi. Pois havia um sentido em tudo aquilo.
Desde então, percebi reflexos deste filme em dezenas de outros westerns ou não. Taxi Driver é quase uma refilmagem, e Paris/Texas também. Nas listas de melhores de todos os tempos ele não pára de subir ( Finalmente os americanos o colocaram entre os 10 mais ). Não sei se é o melhor filme que já vi. Mas se tivesse de passar o resto da vida com apenas um filme, bem, seria este sem dúvida. É o que melhor me define e melhor me guia. Estou todo lá.
John Ford foi o maior de todos.

CINEMA DE BAIRRO

Como já disse, o homem do futuro viverá em buracos. A vida ao ar livre será considerada coisa de rudes humanos de 2010. Fecha o Belas Artes.
As pessoas que não viveram a era dos cines de bairro, pensam que gostar do cinema de rua é apenas uma questão de ser contra os shoppings. Nada disso ! A coisa é bem mais complexa.
Além do prazer de se entrar da rua diretamente na sala ( era sempre uma emoção, voce vinha do sol e adentrava, súbito, uma sala escura ( com o lanterninha te guiando ) e fria. E andar na rua era excelente para se falar do filme. O fato era que cada cinema de bairro era um mundo em si. Explico.
Hoje são exibidos apenas dois tipos de filme : o grande sucesso de multiplex e o filme premiado em festival. E é só. Na época do cine de bairro a coisa era bem mais aberta. Os cinemas da Liberdade passavam filmes japoneses que jamais passariam em outro lugar, as salas da Santo Amaro exibiam os filmes de Kung Fu e de Blaxpoitation que não teriam vez na Paulista. Os cinemas de Pinheiros ( eram três salas de rua ) tinham os filmes policiais de baixo custo e as salas mais distantes ( no meu bairro havia uma ) exibiam comédias eróticas da Itália e da França. Os westerns tinham vez na São João e os filmes antigos eram reprisados na praça da República. Na Augusta ( quatro salas ) os filmes americanos alternativos e na Paulista as super produções ( e reprises de "nível". Assisti no Bristol reapresentações de Pinóquio e de Cantando na Chuva ). As salas da Faria Lima ( quatro salas ) eram voltadas aos filmes teen e na Ipiranga ficavam os filmes de adulto. O Belas Artes ficava com filmes de arte. Na Pamplona eram exibidos os romanticos.
Cada sala tinha sua personalidade, seu estilo. Ir àquela sala era saber antecipadamente qual o caráter do filme lá exibido. ( Fora o fato de que voce fazia amizade com a bilheteira, o pipoqueiro e o lanterninha. ) O fim desse tipo de sala combina com a homogeneização dos filmes. Salas iguais para filmes idênticos. E uma imensa produção que não tem onde ser exibida.
A cidade estilo "casa de cupins" nos aguarda.