na literatura repousa o começo e o fim

A civilização começa com um livro. E terminará com um outro. Toda arte está em irremediável queda, mas a literatura não. É a mais forte e a mais necessária das manifestações humanas. Qualquer outra forma artística se apequena perante o livro.
Lí recentemente quatro autores diferentes, e mesmo não sendo nenhum deles um gênio excepcional, colocam no chinelo qualquer músico, cineasta ou arquiteto.
MIGUEL TORGA é um português que deveria ter ganho o Nobel. Saramago é um anão afetado perto dele. Seu texto é bastante difícil, pois ele escreve sobre o povo lusitano usando o vocabulário desse povo. Para um brasileiro, ler Miguel Torga é tão trabalhoso quanto para um português ler Guimarães Rosa. Mas vale a pena : é delicioso ver aquela gente vivendo sua vida crua, simples. Sentimos que existe alguma coisa sagrada alí.
TANIZAKI é um autor japonês infinitamente inferior ao genial Kawabata. Mas vale a pena ? Vale. Ele, que escreve com extrema simplicidade, não descreve paisagens ou cenas pictóricas. Seu único interesse é sexo. No livro que lí, A Chave, um marido compra uma câmera e passa a fotografar a esposa nua. O genro descobre as fotos... O livro se tornou um filme famoso nos anos 60 e ainda impressiona sua naturalidade.
EVELYN WAUGH.... apesar do nome, é um homem. E apesar de talvez voce não o conhecer, é um dos escritores mais famosos da Inglaterra do século XX. Seu trabalho é o humor, mas não há nada de absurdo ou de exagerado em seu humor. Ele pega um detalhe real e nos revela o grotesco desse detalhe. O resultado é o tal do " witty" essa coisa hilária tipicamente britânica. O livro que lí ( Homens em Armas ) é o oitavo que leio de Waugh. Trata das lembranças da segunda guerra, guerra em que ele serviu. O livro é um tipo de Mash à inglesa. Personagens ridículos, situações absurdas, a comédia da guerra, a futilidade daquilo tudo. Waugh é sempre excelente, sempre divertido, sempre atual. Não é genial, mas é um mestre. Aliás, nada é melhor que esse período da Inglaterra : entre 1870 e 1960, as ilhas britânicas atingiram um nível de civilidade, educação, excelência que nunca fora igualado e que provàvelmente jamais o será, por nação alguma ( os franceses que me perdoem ). Era de chá das cinco, ônibus de dois andares, fog, chapéu côco, guarda chuva, pub com cerveja e fritas, da torta de rim, do cricket, do Porto e do Madeira, do futebol e do rugby, das colonias na India e na Africa, de Churchill e Lloyd George, o apogeu de Oxford e Cambridge, era de H.G.Wells, Shaw, Conan Doyle, Eliot, Yeats, Virginia Wolff, Huxley, Graham Greene, Thomas Hardy, D.H.Lawrence, Oscar Wilde, Joyce, Beckett, Pinter, Lewis Carroll, Synge, Dylan Thomas, E.M.Foster, Orwell, O'Connor, O'Brien e de Evelyn Waugh. Nada me dá mais prazer que esses autores. Um livro escrito por um autor britâncio desse período é quase sempre garantia de escelência !
YUKIO MISHIMA. É o mais famoso autor japonês do século. Estou lendo a única obra sua que enfrentei até agora : Morte na Primavera. Ele é menos oriental que Tanizaki e menos misterioso que Kawabata. Escreve como um americano. O que é contraditório : Mishima odiava a América. Deixe-me contar : Mishima foi moda nos anos 80. Sua vida se tornou um filme dirigido por Paul Schrader ( roteirista de Taxi Driver ). Foi um radical. Lutava contra a americanização do Japão. Para ele, a complexidade da alma japonesa estava sendo subjugada pelo vício no consumo desenfreado. Em vez dos interesses básicos da nação ( sexo/morte e ritualização do cotidiano ) o Japão optaria por Consumo/Pressa e Indiferença. Sua morte foi genial- após discursar numa emissora de tv, acompanhado por um general, nos telhados da emissora, Mishima realizou Seppuku com todos os requintes da tradição. Um protesto contra o futuro e um apelo para que o Japão voltasse a ser militarista. Esse é Mishima, esse é o Japão. Uma adaga samurai cravada na barriga por ele mesmo e o general terminando o serviço. Porque chamei esse suicídio de genial ? No Japão esse ato é visto de uma meneira completamente diferente. Lá, uma pessoa nobre, ao se ver sem saída, seja por doença/ desonra ou derrota, realiza uma escolha : um local bonito, uma espada perfeita, um ato de estética refinada, a liberdade de escolher quando, onde e como morrer. Para nós, é uma idéia quase repugnante, para o japonês, racional. A morte é lembrada em todo recanto : Suas casas são cheias de fotos dos antepassados ( voce acha que eles fotografam tanto porque ? Para serem lembrados ), altares para as almas dos mortos que estão presentes, em cinzas e em espírito, apego ao bom nome da fámília, apego ao chefe. Morte, sexo e rituais infindáveis... alguém deveria estudar melhor isso...
Bem... hoje divaguei como um Laurence Sterne... é minha admiração pelo modo de pensar britânico... ah, esquecí, aquele período ainda tem Bertrand Russel, provávelmente o homem mais inteligente do século.
É isso.

PS 1- um amigo já escreve reclamando do esquecimento de Joseph Conrad. Meu caro, escreví por canetada, sem pensar em mérito ou qualquer preferencia... os nomes de Auden, Stevenson e Galsworthy também não foram citados ! E ainda posso falar de Maugham e do meu muito admirado PG Wodehouse, autor divetidíssimo !!!!!

PS 2- é grande a tentação de citar o americano Henry James... afinal citei o americano TS Eliot. Mas o caso é diferente. Eliot se tornou cidadão britânico, se dizia um anglicano, monarquista e conservador. Um inglês, portanto. Para mim, James morreu americano.

pather panchali- a canção da estrada- satiajit ray

Meu caro senhor Ray.
Fazem mais de vinte anos que ouço falar em seu dom. Fazem mais de vinte anos que o senhor atiça a minha imensa curiosidade. Como seriam seus filmes ? Porque são tão amados ? O que faz com que o senhor seja chamado de o mais nobre dos cineastas ?
Bem... hoje finalmente comecei a saciar essa curiosidade. Assisti a Pather Panchali. Foi uma honra.
Primeiro a música. Que coisa misteriosa e bela é a música de Ravi Shankar feita para seu filme. Toda a India está contida nessa música. Toda a raiz de todas as árvores do mundo, portanto. É inebriante. Profundamente alegre e misteriosamente triste.
Depois os atores. Onde os achou ? A avó é tão real que chega a se sentir seu cheiro ! O pai é um pateta adorável e a mãe tem o medo e o amargor de todas as mães. A menina é maravilhosa e Apu... como o senhor conseguiu imaginar uma cena tão simples e tão especial como a primeira cena com o nascido Apu ?
O roteiro. Nada de especial acontece. A miséria é absoluta. Mas alí tem alguma coisa de muito especial, de muito original. A casa aos pedaços, os animais que são muitos e sempre presentes, a sujeira abjeta, a fome. Mas o senhor não chantageia com nossos sentimentos. Sua obra não é melosa e não é fria. É real.
Me conte por favor : como conseguiu uma sequencia tão maravilhosa como aquela da chuva ? Vemos insetos brincando sobre a água. O vento. E a chuva. A menina, numa cena inesquecivelmente perfeita, dança debaixo da chuva e corre para o irmão que sorrí. Depois aquela noite de horror e a volta do pai. Como o senhor conseguiu tanta beleza com tanta simplicidade ?
O momento em que o pai descobre o que aconteceu... são dois minutos que bastariam para colocar seu nome entre o dos grandes mestres. Mas este seu filme tem muito mais segredos.
Ele é épico, ele é forte, ele é poesia pura.
Termino lhe agradecendo por ter feito tal oferenda para a vida e celebrando a honra de ter podido apreciar tamanha maravilha do engenho humano. Seu filme repercute até hoje. Tudo aquilo que o terceiro mundo fez de melhor nasce e está contido aqui. Neste inesquecível e milagroso Pather Panchali.

Sinceras homenagens e carinhosas palavras deste teu novo fã e amigo.

GRAN TORINO/RHOMER/WC FIELDS/HOMEM DE FERRO

Gran Torino de Clint Eastwood
ele entendia de morte e não de viver. ao final, oferece sua morte por uma vida. um filme lindo e que dá vontade de rever. é também um anti- benjamin button, um anti-slumdog millionaire : não é bonitinho e empetecado. nota dez, mil, um milhão.
Che de Steven Soderbergh
de todas as pragas que os hippies nos deixaram ( herman hesse, aldous huxley, castaneda, drogas glamurizadas, músicas com flauta, camisetas podres, insenso, jung e reich...) nada é pior que a canonização de che. o que ele fez de bom pelo mundo ? vendeu posters na california e criou a imagem do guerrilheiro do bem. na real, tudo que ele tocou foi um desastre. não foi lider da revolução cubana e como dirigente do governo de fidel... bem, foi expulso da ilha à pontapés. matava qualquer um que não pensasse como ele e tinha a vaidade dos egocentricos. mas... a propaganda hippie o transformou num tipo de são francisco de assis com zorro. um robin hood latino. o filme é maniqueísta, profundamente tolo e o pior : uma chatice. nota 1.
O Joelho de Claire de Eric Rhomer com jean-claude brialy
adoro os chatos filmes de rhomer. eles são como prozacs : mostram um mundo de gente problemática mas que sempre encontra uma saída. são filmes muito otimistas, onde todos são bons e a vida é sempre uma tese. delicioso..... e chato. mas eu adoro seus contos de fada para intelectuais. nota 7.
O Jovem Lincoln de John Ford com henry fonda.
henry fonda é um tipo de ator que desapareceu após a segunda guerra : nobre. tudo nele transparece calma e sabedoria. seu lincoln é um milagre de verossimilhança. o filme é divertido e nada sério. john ford era o cara ! nota 7.
Tarantula de jack arnold
ficção barata dos anos 50- ou voce relaxa e adora, ou odeia. eu gostei. mas podia ter menos bla bla bla... nota 5.
O Inseto do Amor de fauzi mansur
eis uma pornochanchada dos 70. constrangedoramente amadora. um desfile de diálogos ridiculos, machismo inocente e mulheres nuas. é estranho, mas suas cenas de sexo são de uma infantilidade que dá o que pensar... nota 1.
Festival WC Fields
ele é o humorista que todos adoram odiar. pois seu tipo era beberrão, odiava crianças e cães, e falava com voz sulista cheia de erros e preconceitos. mas que delícia !!!!! esta é uma coletanea de curtas. pule o primeiro e delire com os outros quatro. no de golfe, há um personagem que é pura hilariedade ( o caddy ), e tem " o último gole de bebida ", para mim, a mais louca- surreal- hilária e inspiradora comédia que já tive a honra de assistir. WC não tinha a poesia de chaplin, não tinha a leveza de keaton ou o cinismo de groucho, mas ele era o mais engraçado. nota dez !!!!!!!!!
Os 1000 Olhos do Dr Mabuse de fritz lang
lang voltou a alemanha para encerrar sua genial carreira. e errou. este filme é um tipo de james bond com ressaca, um samba com tango desafinado. acontece tanta coisa que voce se perde. a direção é frouxa. nota 2.
Até o Ùltimo Homem de lewis milestone com richard widmark, richard boone, karl malden.
milestone era um grande diretor. este filme de guerra assusta por sua modernidade. os cortes e os movimentos de camera são ousados, inesperados, arrojados. filme quase genial, tem uma estranha poesia viril. mas incomoda a demonização dos japoneses... nota 7.
Juiz Priest do Grande John Ford com o Grande Will Rogers.
Estamos no mundo de Mark Twain. de Whitman. de Faulkner. O sul... repare nas pessoas... todas são profundamente interessantes, todas são inesquecíveis. repare : nada parece real, mas voce acredita no que vê- e isso se chama genialidade. Note agora : não existe arte ostensiva neste filme. o diretor- modesto- conta sua história. Mas é arte. a arte da fábula, a mais difícil de se fazer sem parecer ridículo. Olhe para Will Rogers... existe ator mais simpático ? voce quer ser seu amigo e o abraçar. e olhe sua casa : tudo nela é paz- eis um lar ! que filme fantástico ! voce ama esse filme e se entristece quando ele termina... dá saudades... após a segunda-guerra, este tipo de filme, profundamente crente na bondade humana, se tornou impossível. Perdeu-se a inocencia, ganhou-se o cinismo. Aqui não existe cinismo ou ironia. Assistir este filme é como ver uma velha foto do paraíso. nota dez.
As Damas do Bois de Boulogne de robert bresson com maria casares
jean cocteau fez o roteiro. e nada combina. bresson é árido, cocteau é barroco. o filme é muito cocteau e pouco bresson. nota 4.
Homem de Ferro de jon favreau com downey jr, gwyneth patrow e o grande lebowski ( jeff bridges )
um cara faz uma armadura vigiado por cameras e ninguém nota... e temos de engolir isso. quantas vezes voce já viu uma explosão às costas do herói enquanto ele anda para a câmera super cool ( o primeiro a fazer isso foi sam peckimpah )... quantos heróis já sairam voando de uma explosão ( duro de matar 2 fez isso pela primeira vez )... caraca ! quanto clichê ! mas é simpático downey jr. e pelo menos o filme não tem aquela seriedade babaca do batman. nota 5.
A Duquesa de saul bibbs com keira knightley e ralph fiennes
primeiro: keira está com anorexia. chega a dar medo ver seu cadavérico rosto. segundo : fiennes poderia ter feito deste filme algo muito melhor. bastaria que lhe dessem mais cenas. pois este, em seu incio, belo filme, é transformado numa tola história de feminismo óbvio. de toda forma, para quem aprecia o que é bonito, é um prazer ver a magnifica elegancia do mais refinado dos tempos. no crucial século XVIII, os nobres tinham um nivel de fausto, luxo e chic que faria com que todos os poderosos de hoje parecessem lacaios. nota 4.
Starsky e Hutch de todd phillips com ben stiller, owen wilson e vince vaughn
esquisito esse ben stiller. seus filmes o divertem mais do que a quem os assiste. aqui ele tem o prazer de dirigir um ford gran torino, dançar numa discoteque, correr atrás de bandidos e imitar marcel marceau. owen, péssimo dos péssimos, nem isso. é uma homenagem a uma das melhores séries da tv, mas é um filme bobo. parece uma peça de faculdade : tudo é improviso, as músicas são óbvias e os amigos se divertem. vale para que a gente veja como os 70 foram originais. nota 3.

gran torino- um simples conto moral

Muhammad Ali, Babe Ruth, James Stewart, Abraham Lincoln, Chuck Yeager, Johnny Cash, Dashiel Hammet, John Ford, John Huston, Henry Fonda, Muddy Waters, Thelonious Monk, Leonard Bernstein, Bob Fosse, Fred Astaire, Joe Louis... a América mudou, a América muda radicalmente desde o final da guerra do Vietnã, a América termina, todo império termina se modificando, decaindo em sua educação, esquecendo sua filosofia, perdendo sua inocência, se acovardando, e afinal, sendo invadida pelos bárbaros que um dia dominou.
Clint Eastwood diz ser este seu último filme como ator. Peço aos deuses que esteja longe de ser sua última direção. Como ator, aqui, ele mistura Dirty Harry/ Bronco Billy e o cowboy do espaço. Se despede da atuação de forma elegante, altiva, digna, como sempre fez.
Mas o mundo ainda tem lugar para Clint Eastwood ? A resposta, e creio que ele sabe disso, é não. Sua imagem é de uma outra era. Mas o mundo precisa de Clint Eastwood. Sim, pois ele nos recorda valores arcaicos, broncos, conservadores e muito necessários. Clint, em seus filmes, filmes que têm por assunto básico a moralidade, sempre bate nessa tecla : a ética e a moral nascem da luta. O homem não nasce moralmente limpo, ele precisa ser refinado.
Gran Torino é um filme pequeno. Simples. Pobre. E qual de seus filmes não o é ? Ele não teme parecer antipático, esquemático e pouco " artístico ". Clint sabe que seus filmes irão parecer antipáticos para os alegrinhos fofinhos, serão esquemáticos para os filósofos da cervejaria e terão a tarja de não-arte para os meninos artistas. Gran Torino, sem afetação, sem discurso, sem fogos de artifício, diz muito em muito pouco. Mostra a morte da América. Da América que insistimos em acreditar ainda viva.
Lá está o branco fantasiado de mano, as ridículas gangues, os blacks sem razão para viver e educados por rap e droga, a neta alienada por celulares e aparelhinhos, os filhos frios e cansados. Um mundo irreconhecível. Uma América morta e enterrada.
Clint sempre se disse fã de Kurosawa e vejo muito do mestre neste filme : a relação dos filhos ( Viver ), o choque entre mundos, a vingança. O filme flui fácil, as cenas são simples e nenhuma parece estar sobrando. E termina como deveria terminar. Sem outra alternativa.
A ironia é que Walt é um imigrante ( polaco ), o barbeiro é italiano e seu amigo Kennedy é irlandês. E na relação de Walt e o garoto fica essa tênue esperança : a de que os novos americanos verdadeiros sejam novos imigrantes. Imigrantes de olhos puxados e pele amarela, mas tão estrangeiros quanto ele foi um dia.
Gran Torino é um grande filme. Gran Torino é emocionante em sua pureza e Clint, o mais moralista dos diretores ( no sentido Ford e Hawks do termo ) nos deixa um filme que será cultuado em 30, 40 anos ou enquanto durar a humanidade digna de tal nome.
E macacos me mordam... ele se interessa por tudo que me interessa !!!!!!! A decadencia do mundo ocidental e o triste fim de uma era. Meninos se preparem : a idade média bate às portas...

guetos internéticos

Tá na Folha de hoje. A internet cria um tipo de gueto. As pessoas tendem a só lerem o que já sabem, se interessar pelo que já conhecem. Quando voce abre um jornal impresso voce passa por vários assuntos. Muita coisa que aparentemente não lhe interessaria lhe é oferecida. De repente voce pode descobrir algo que não fazia parte de seu mundinho.
No mundo virtual voce fala com pessoas que são como voce, lê coisas que são como as que voce escreve e ouve apenas aquilo que lhe agrada. Seu mundo encolhe.
Dois anos atrás entrei numa comunidade que era formada por cinéfilos. Um lugar, segundo eles, para discutir o cinema. Pois bem, um dia ousei dizer que Psicose não era um filme assim tão bom. Bem... fui expulso do gueto. Em seu mundinho virtual só os iguais existem.
E assim, voce, caro amigo, passa a pensar, alimentado por seus iguais, que Todo Mundo adora aquele cd dos Dandy Warhols, que Todo Mundo está lendo Michael Chambon e que Todo Mundo vota no seu partido. Não meu caro, não. É apenas no seu ínfimo mundinho virtual que as coisas são assim.
Lembro então que se voce queria ouvir música nova, voce tinha que ouvir rádio. E que rádios como a Difusora e a Excelsior tocavam tudo. Tudo. Então eu ligava o rádio para ouvir aquilo que já gostava. Mas era obrigado na espera a ouvir de Benito di Paula à Tavares, de Bad Company à Isaac Hayes. Tim Maia, Ronnie Von e Led Zeppelin. Isso eu chamo de educação.
Leio em outra parte que a única coisa que justifica minha presença na vida é a expansão da minha mente. E essa expansão se dá pelo novo : ouvir uma ópera que voce jamais ouviu, ver um quadro que nunca foi visto, ler um pensamento novo. No mundo das comunidades da internet isso é impossível. Um cara que é como voce irá lhe indicar tudo que te faz continuar sendo voce-mesmo. For ever...

porque eu odeio o eterno mesmo de sempre

Conheço gente que é capaz de usar uma camiseta branca por toda a vida. Não é gente suja, não. É o tipo de pessoa que tem 22 camisetas iguais. Assim como conheço o tipo de pessoa que tem opiniões sobre as coisas sempre previsiveis : as músicas são sempre as mesmas, os livros são eternamente iguais, os filmes idênticos. Gente com que convivo por mais de 15 anos e que continua ouvindo as mesmas coisas e vendo os mesmos filmes. Pessoas com razoável cultura que jamais me fala de um autor que eu deva descobrir ou de um tipo de música que me fosse estranha.
É sempre mais do mesmo : se o cara ouve rock, morre ouvindo rock... se lê autores americanos, morre lendo autores americanos. Nada de novo em sua vida. Nada que me surpreenda.
Talvez seja a preguiça, talvez a pessoa já esteja solidificada, pronta e transformada em pedra. Ela não consegue descobrir nada por sí mesma. Vai atrás do de sempre. Novas bandas inglesas, velhos filmes italianos, romances noir... não importa, ela se colocou num gueto e dele não sai.
Talvez tenha morrido.
São amizades sem surpresas. Nunca irão falar de uma peça grega que jamais lí, de um filme francês que não conheço, de um tipo de música que me é estranha e enigmática. São burocratas do gosto- batem ponto sempre nas mesmas revistas e nos mesmos sites. Nos endereços conhecidos, nos assuntos batidos, nas vidas passadas.
Eu, que sou orgulhosamente infiel, me vejo entediado pelas novidades mofadas ou pelos clássicos já dissecados... e sigo adiante : um texto latino que ninguém conhece, a descoberta dos prazeres da música judaica, um novo autor alemão, um diretor de cinema que ainda não foi insensado.
O velho, o novo, o agora e o que nascerá me alimentam. Tudo me interessa - não conheço melhor modo de viver, colhendo todas as jóias que brilham pelo caminho, provando o gosto de toda fruta, abrindo o peito sempre que o sol bate, olhos arregalados, boca ansiosa, mãos estendidas, na estrada da mente, vivo, acordado, solto, infiel.

walt whitman

Ganhei de Marcos Vieira de Moraes, em 1991, meu exemplar de Folhas das folhas de relva. Marcos se foi com os anos, mas o livro permaneceu comigo para sempre. Lí Whitman debaixo de um forte sol de abril, sol de meio-dia e completamente apaixonado pela vida. Toda a vida.
Eu estava orgulhoso, saindo de um ano de tristeza insistente. Estava enamorado de mim mesmo ( e de Lú, a menina de lábios grossos e seios generosos ).
Feliz a nação que tem por poeta Walt Whitman. Ele fertiliza todos que o escutam, ele faz música em todo canto, ele é grego e cristão. Sua voz é a dos púlpitos protestantes, suas linhas são orações à vida. Ele absorve tudo. O dito lixo, e o dito luxo. A morte como parte da vida e a vida como destruidora da morte. Ele festeja tudo. Principalmente a solidão.
E nenhum país é mais solitário que a América. E nenhum canta mais sua própria história.
Walt antecipa Bob Dylan e o jazz, antecipa os hippies e os astronautas, antecipa Pollock e The Band. O cinema de Capra e de Ford.
Leio num livro francês, que nos últimos 3 séculos, nenhuma nação leu mais que a América. O americano levou para o novo mundo selvagem uma missão : a de fazer do inóspito o paraíso de Deus na Terra. Para isso levou livros : bíblias e almanaques. E passou a idolatrar a palavra impressa : constituição e jornais. Whitman é filho desse meio : sua palavra impressa é viva e fala com todos os homens e com Deus também.
Eu lí Walt olhnado meu cão que dormia ao sol. E me tornei esse cão.
E fui à faculdade onde conhecí surfistas que fumavam erva toda hora. Eu fui esse surfista.
E conhecí snobs dandys que se afetavam beleza. Fui esse dandy dos dandys.
E fui meu cão, nada pensando e sentindo o sol que cresce.
E o pedreiro que dorme a siesta entre marretadas e pigarros. Eu fui.
A atriz metida que se exibe no palco amador e o garanhão tolo que pensa ser irresistível. Fui.
Não escolho quem sou. Todos eles me vêem.
Fui Dumbo e Clint e O'Toole e Bruce e Popeye e Ferry e Kevin Arnold e Bundy.
Estive só entre prazeres definitivos e medos indizíveis.
Walt Whitman me ensinou a ser isso que sempre fui. Vida.
Estranha coincidencia a de Walt ter nascido no mesmo dia que Clint Eastwood. Ou o fato de Yeats, Pessoa, Lorca e Whitman serem todos geminianos lunáticos ( como Dylan ). Faz com que eu queira crer em astrologia... mas não. Posso citar aqueles que deveriam ser do signo de Whitman e não são : o leonino Shelley e o libriano Eliot.
Há uma foto de um jovem Whitman : dandy, camisa aberta e um chapéu. Ele foi bonito quando jovem, não foi sempre o papai-noel que nos querem fazer crer. Dois olhos desiguais- um muito suave, outro preocupado - me lembra Paul Gauguin -- esse Whitman frances, que falou como Walt pela pintura e encontrou sua América no Tahiti.
( Gauguin é geminiano ). Não se irrite: o poeta americano me traz de volta o mundo da astrologia.
O caminho das pessoas é normalmente da solidão para as pessoas... para tipos como Whitman a coisa é inversa... ele parte da multidão e caminha deliberadamente para a solidão. Tantas humanidades o habitam que ele requer recolhimento para as escutar. E dá voz a elas.
O poeta deveria ser a bíblia das escolas do mundo, o norte dos desesperos e o Freud dos doutores. Receitem Walt para desesperados !
Ele tem a fala de pastores metodistas. E Lincoln é possível apenas na sua terra.
Bem... não é meu poeta favorito- com o tempo me aproximei de Eliot e de Keats e deixei Yeats e Whitman para trás. Mas os dois, o americano e o irlandes me fazem feliz, me dão coragem, me recordam aquilo que a vida de fato é, e aquilo que eu sou.
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Andando por Pinheiros e vendo prédios sendo derrubados pelo novo metrô : sou o novo metrô e sou o mofado prédio que cai.
E olhe aquela multidão de camelôs entrincheirados em sua guerra contra a legalidade : sou tanto o vendedor de quinquilharia quanto o fiscal decidido ou vendido.
O almofadinha que exibe sua roupa cheirosa e seu óculos Gucci e o bombado que mostra suas suspeitas linhas curvilineas : eu me vejo e me aproximo dos dois- tenho-os em mim.
E o gato no telhado imóvel e aquele pássaro que ninguém notou piar: eu notei. Era eu.
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Portanto
quando estiver com voce, serei voce
e quando estiver longe de voce, não mais o serei
e voce então não me reconheceria.
Sou um outro. Sempre. ( e Rimbaud era escorpião ).
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Eu disse que amava o filme O Atalante- o poeta está nele.
E está em todo lugar.

um cão

Uma das mais belas criações do homem : o cão. Sim. Pois o lobo foi criado pela natureza, mas o cão, esse é nossa obra. Foram séculos de convívio, de interdependencia, de aulas e truques, de obsevação. E afinal, criamos o companheiro dos sonhos : leal, dependente, constante e eternamente infantil.
Com um cão podemos ser sempre crianças, podemos ter a 'sem vergonhice' da qual a civilização nos priva. Pois ele é criança sempre e sem vergonha radical.
Não me venha com essa ladainha de que é uma bobagem gostar tanto de um cão e tão pouco de humanos- um amor não exclui o outro, muito mais o afirma. São sentimentos diferentes, porém, complementares.
Um amigo hoje perdeu seu boxer. Nada pode ser dito.
Perdi o cachorro que mais amei ( Nicky ) no tempo exato em que tinha a menina que mais amei. Parece que o mundo sempre mede tudo.
Mas a morte de um cão dói pelo fato de que sentimos que algo de muito inocente se vai. Pois um cão, ao contrário de outros carnívoros, não mata, não caça. Ele apenas vive com seu humano. E encara nosso olhar com abertura, com curiosidade, com clareza.
Amamos os cães porque talvez eles sejam nossa melhor criação.

VIGO/MEL BROOKS/BECKETT FAVORITO DO REI

L'ATALANTE de jean vigo com dita parlo, jean dasté, michel simon e louis lefebvre
todo grande filme é mais que cinema ( mas nunca deixa de ser cinemático ). desse modo visconti ou david lean são também história; fellini e ophuls são pintura; bergman e kurosawa são filosofia e aqui temos vigo- que é poesia. o filme é o mais livre do cinema. o mais poético. possívelmente seja o grande filme da história. nota dez.
JAMAICA INN de alfred hitchcock com maureen o'hara e charles laughton
o mestre fez este filme às pressas. havia assinado com selznick e estava com malas prontas rumo à américa. dá pra notar sua falta de interesse. nota 4.
THE PARADINE CASE de alfred hitchcock com gregory peck, alida valli e louis jourdan
aqui, sete anos depois, o mestre se vê diante de uma briga com selznick. o filme sofre com a interferencia do produtor no roteiro e na própria filmagem. nota 2.
PS- CHAMO HITCHCOCK DE MESTRE PORQUE NÃO EXISTE DIRETOR MAIS PRECISO, MAIS PERFEITO E COM TÃO GRANDE QUANTIDADE DE FILMES DE GÊNIO.
LA TERRA TREMA de luchino visconti com pescadores reais da sicilia.
o chavão comunista está ultrapassado. mas sobrevivem as belas imagens de um mundo passado. nota 6.
ALTA ANSIEDADE de mel brooks com mel brooks, madeline kahn.
o início já avisa : o filme é uma homenagem ao mestre alfred hitchcock ( mais uma ). o que vemos são citações de vários filmes do gênio. tudo encaixado habilmente na história de um psiquiatra que assume a direção de um hospital de pessoas muito nervosas. vertigo e intriga internacional são os mais citados, e é pena não terem achado onde encaixar janela indiscreta. a cena que cita psicose é uma das mais hilariantes e bem filmadas que já tive o prazer de assistir. nota 7.
SILENT MOVIE de mel brooks com o prórpio, marty feldman e vários atores famosos.
no auge do sucesso, de ego muito inflado, mel dá seu famoso tiro no pé : resolve fazer um filme totalmente mudo ! e infelizmente erra. o filme não funciona, e talvez seu motivo principal seja o desacerto da trilha sonora. mesmo assim, passamos todo o filme torcendo por mel, querendo ver se ele consegue renovar o filme silencioso. não consegue. o filme fracassou em seu lançamento mesmo tendo burt reynolds, paul newman e liza minelli em seu elenco ( a participação de burt é muito engraçada ). nota 5.
BECKETT de peter glenville e jean anouilh e hal wallis com peter o'toole, richard burton e john gielgud.
primeiro beckett foi peça de grande sucesso com olivier e anthony quinn. o diretor da peça, glenville, resolveu dirigí-la no cinema. dirigiu sem esforço nenhum- simplesmente ligou a camera e deixou que os atores entonassem o maravilhoso texto de anouilh.
o texto : trata da amizade do muito hedonista rei henrique II e do muito misterioso thomas beckett. os diálogos enfeitiçam qualquer pessoa com um minimo de bom senso/ bom gosto/ sensibilidade. eles voam, dizem tudo objetivamente e têm uma estranha poesia.
a produção : geofrey unsworth cuidou da fotografia, mas é a trilha sonora de laurence rosenthal que impressiona. que coisa maravilhosa ! uma mistura de canto gregoriano e música sinfônica irresistível. uma trilha absolutamente perfeita.
a duração : adiei sua apreciação. o filme tem 3 horas e eu sentia preguiça.--´pois bem- o filme alça vôo. são horas que passam com rapidez e que surpresa- após as 3 horas voce deseja mais !
os atores : richard burton diz suas falas com sua voz costumeira- perfeita. mas o papel de beckett não lhe oferece a dor descontrolada, que é onde ele brilha mais. burton se contém.
mas peter... Deus do céu... que gratidão eu sinto com o que esse ator nos dá ! Que desempenho fascinante!!! vemos em nossa frente um rei- feliz, fanfarrão, mulherengo- ir, pouco à pouco se consumindo em dor. ele ama seu amigo beckett, e é traído por esse amigo. a cena em que o rei percebe a traição é de uma genialidade sublime : vemos o rosto de peter criar nuvens de escuridão, os olhos se apagam em dor e a voz reflete uma imensa agonia. se isso não for pura genialidade, não existe ator genial.
peter teve o enorme azar de concorrer nesse excepcional ano com rex harrison fazendo higgins em my fair lady e perdeu seu oscar certo. qual dos dois é melhor ? quem sabe ? eu premiaria ambos.
beckett é um tipo de filme que deixou de existir : o filme culto ( não de arte, culto. o que é outra coisa. ) um filme que necessita ter um público de bom gosto, adulto, sério, refinado.
fazem 40 anos que alardeiam o fim do western e do musical. bem... os dois continuam por aí. mas este tipo de cinema acabou. com o fim do público adulto, e a queda na qualidade de ensino, ninguém mais tem a sensibilidade de apreciar um filme que pede atenção, conhecimento, detalhismo e alguma erudição. feito hoje, encheriam o filme de batalhas, feitiços e talvez até algum monstrengo medieval.
minha alegria é saber que este filme sobreviverá.
se voce tem alguma curiosidade intelectual, se voce consegue usar mais de dois neuronios, se voce compreende aquilo que escuta... corra e assista este filme.
e aplauda o sublime peter o'toole.

o nascimento do homem do blog

Música, dança, escultura, arquitetura e teatro. As mais antigas formas de arte só se realizam em grupo. Voce faz música para ser escutado, voce dança com alguém que faz a música, voce esculpe sendo observado pelo modelo e pelo discípulo, voce erege para a cidade e produz uma peça para o público. Não existe, por 5000 anos, a idéia de arte pessoal, trabalho só meu, linguagem própria.
Livros sempre foram escritos. Mas eram redigidos em segunda mão. Sua primeira vida era o texto oral. Eram escritos como mero lembrete do texto oral. Os autores, na maior parte das vezes, nem se davam ao trabalho de os assinar.
Nesse mundo, que recorda vagamente o mundo das favelas de hoje, não existe o privado. Voce só existe no espaço comum. Seus companheiros entram em sua casa, incluindo o quarto, na hora em que lhes aprouver, refeições são sempre em grupo, enterros trazem toda a comunidade para o lado dos aflitos e na doença, todos dão palpites sobre a cura. A idéia da solidão é inimaginável : a família ocupa todos os espaços, os filhos são aos bandos e mesmo os orfãos têm o exército ou a igreja.
Nenhum castigo é pior que o exílio. Viver só, comer só, acordar só.
O gestual desse tempo é emotivo : amigos ao se verem na rua, correm um para o outro, se abraçam e rolam no chão; um enamorado se atira aos pés da amda e os beija; um puxa-saco esfrega a barriga na terra diante do senhor. O senhor... nobres convidam vassalos para a mesma mesa e empregados comem com os patrões. Se defeca em público, os recém-casados são escutados na primeira noite. Pensa-se muito em comida e sexo, é um mundo de pequenas malandragens, de muitos cornos, de brigas por quase nada e com um Estado fictício.
Não se teme a morte. Teme-se o inferno, e coisa para nós inimaginável : não se dá a menor atenção ao corpo- é como se ele não existisse. Ser gordo ou magro, ter espinhas ou pele lisa, tanto faz. A sedução se dá pela lábia e pelo dinheiro e o espelho não é encarado.
Primeira mudança : o estado se fortalece na renascença. Se o seu vizinho erra, o estado o punirá. Então, ele fecha a janela.
Segunda mudança : a especialização. Se voce fica doente, existe o médico, portanto, quem precisa dos vizinhos ?
Terceira mudança : com o protestantismo voce pode falar com Deus sem a ajuda do padre. Para que sair e ir à igeja ?
Quarta mudança : o livro. Agora posso me distrair sózinho, fechado em meu mundo ( atente : meu mundo ). Preciso de silencio.
MONTAIGNE.
Pela primeira vez um homem fala apenas sobre sí mesmo. Atente : é a primeira vez em 5000 anos em todo o globo.
Ele avisa já no inicio do livro : falarei sómente sobre meu espírito. Em solidão. Em repouso. Atente : jamais nada tão redical, moderno e corajoso foi feito por qualquer homem em qualquer tempo. Montaigne nos inaugura.
Sobre o que ele fala ? Tudo que é só dele. Suas leituras, suas opiniões políticas, suas doenças, a natureza, o bem viver. É um egocentrico discorrer sobre seu espírito. Eu eu e eu. No mundo de Montaigne tudo é o eu, nada existe fora desse eu.
RONSARD.
Inaugura ao mesmo tempo o coração egocentrico. Ele fala sobre seus amores, suas dores, seus desejos, suas injustiças. Inaugura o coração sofredor egocentrico.
São dois tipos de blog. O diário afetivo e o diário intelectual.
Somos todos pequenos/ muito pequenos Montaigne/ Ronsard. Ainda não conseguimos criar uma outra forma de ver o mundo. Jamais voltaremos ao tempo em que eu sou o grupo; e não conseguimos sequer imaginar uma outra forma diferente do o mundo sou eu.
Joyce tentou isso. Tentou uma escrita que não fosse um testemunho do eu. Falhou. Mas que bela falha !

o chic

Belo texto sobre o chic.
Beeem... estamos numa das cíclicas épocas de anti-chic.
O chic ( e já aviso que vou repetir muito essa palavra ), nasce como uma reação aristocrática contra o novo-riquismo da burguesia. Na Itália. Em 1550, por aí.
Se o novo rico comprava pratos de ouro, chic era a porcelana mais fina, e se o novo rico comprava a porcelana mais fina, chic era a porcelana mais fina herdada de um avô visconde.
Coisas caras eram compradas. O chic era um dom inato ( como a nobreza o era ).
Num tempo de ciência e de democracia ao extremo, o chic se torna quase impossível. Nenhum cientista pode ser chic e nenhum artefato tecnológico é.
Nada que se populariza pode ser chic, pois ao ser tocado pela plebe ele é desvirtuado, desvirginado, dessecralizado.
Numa livraria um novo rico compra novíssimos blu-rays e um belo e caro livro sobre vinhos ou charutos. O chic acha um livrinho sobre um poeta simbolista que quase ninguém conhece... em francês.
Os anos 80 mataram o conceito e desde os 90 ser chic é ser out.
Na farra cheia de dólares japoneses e yuppismo na bolsa dos 80 todos se tornaram ávidos chics.
Impressiona ver certas imagens da época. Como a elegancia foi hiper exagerada até o brega e como a afetação imperava. Clips hiper-produzidos de Bryan Ferry e Boy George, páginas imitando os realmente chics anos 20 na Tatler e na Town and Country, Bowie com seu cabelo à Oxford anos 30 e filmes metidíssimos e cheios de neon e fumacinhas.
Em Londres até os punks eram chics ( fotos do Clash demonstram como a banda era elegante ) e nas ruas as capas de chuva, as bengalas e as gravatas imperavam. Época de muito gel, de cabelo armado, de maquiagem pesada.
A primeira guerra do golfo marca o fim desse chic caricatural. Os discos de Chet Baker, Sade Adu e Marvin Gaye são escondidos e vêm Public Enemy, Rem e Nirvana.
Mas esquecendo os 80, hoje a coisa se inverteu. São os proletários que ditam tendencias, os novos ricos que as filtram e então a legitimidade é dada pelos esportistas, os nobres deste tempo de competição pura. E tome sandália de dedo, short largo, camiseta e mais camiseta, tênis e boné. Tudo é esporte e faz de conta que é elegante. E o chic ?
Estão refugiados em algum discreto recanto, insistindo em dar valor ao que o novo rico não valoriza. Sentindo nojo dos valores democráticos da ralé e sorrindo com os apetrechos vulgares que o mercado joga na rua dia a dia. Vivendo em condominios vulgares, mas que ao menos têm por nome algo como " Roseiras vermelhas " ou " Vila Clara " e nunca " St. Patrick Towers " ou " New York city buiding "... Vestindo bons tecidos com bom caimento, insistindo em beber conhaque e whisky, ouvindo o que nunca é moda ou vanguarda, mas que sempre é diferente.
Esperando a nova onda chic, quando serão chamados para opinar outra vez. E recordarão dos desfiles de Yamamoto em 1983, de Brideshead na BBC em 1981, de Wimbledon sem propaganda, e de quando se podia viajar sem pressa e com privacidade. Um mundo de exclusividade sem preço e de segredos que ninguém entregava.
Gastava-se dinheiro. Não se comprava. Pois para um chic, o que merece ser adquirido não tem preço.

o melhor filme já feito é sobre um rio que passa...

Jean Vigo. Dirigiu L'Atalante. Foi seu segundo filme. Foi seu último filme. Jean Vigo dirigu deitado numa maca. Ele morria de tuberculose. Mas o filme é feliz. É um canto de amor à vida que passa.
Maurice Jaubert fez a música. Faz chorar a música deste filme.
Boris Kaufman fez a fotografia. Depois deste filme ele foi à América. Trabalhou com Kazan e Lumet. A fotografia de L'Atalante é a mais bela possível. Realista e sem artifício. Poética sem falsear a realidade.
Jean Dasté faz o noivo. Dita Parlo é a noiva. Eles se casam e vão viver em um barco fluvial. Não se entendem e se separam.
Michel Simon é um marujo. Michel Simon tem a atuação mais irreal da história do cinema. Não é a melhor ou a maior atuação: é a mais original, portanto, a mais genial.
O filme é um poema. Mas nunca se afasta da vida real. Ele é realista.
E eu penso :
Nunca mais tivemos um recanto como o quarto de Michel Simon no barco : máscaras, instrumentos, ossos, trapos, pó, bonecos e muitos gatos. Onde há uma cena em que ele tenta seduzir a noiva - sutil e abjeta- linda e suja.
Nunca mais tivemos tanta pobreza em um filme e no entanto tanta riqueza visual. São névoas, é o sol, e o rio que passa e as roupas no varal. Navalha e espuma, travesseiros brancos e lençois.
Não mais os beijos. Não mais aquele garoto tonto que vive no barco e quase nada diz mas que Vigo premia com breves closes reveladores.
Quanto amor cabe naquele noivo ciumento ! Quanto amor vive naquela noiva simplória ! E a sensualidade da saudade que enlouquece o noivo na cama !
Não mais aqueles ângulos de câmera que nunca se repetem, mas que não traem nenhum exibicionismo. Gigantescos marinheiros, gigantescos barcos, gigantescos segundos.
O filme flui como pensamento e marca como sonho. Nada parece construído, ele parece natural. É um filme que respira, que cheira, que se pode comer.
Eu bebo L'Atalante.
Eis então o melhor filme já feito. Mas como ? Diz voce...
O melhor por ser tão rico em linguagem como Kane, porém, muito mais poético, muito mais natural, muito mais simpático e vivo.
Não posso afirmar que o prefiro se comparado à Vertigo ou Rashomon. Mas L'Atalante é o melhor por ser mais nobre que Vertigo e mais mágico que Rashomon.
Vigo não tem a genialidade de Kurosawa ou a maestria de Hitchcock. Mas sentimos que ele era melhor.
A tuberculose o levou ao final das filmagens. Tivesse vivido mais, ele teria se tornado o maior diretor da França. Um Fellini francês ( L'Atalante lembra muito os melhores filmes do poeta italiano ).
Nunca mais um diretor morrerá de tuberculose em plena filmagem.
Nunca mais um abraço como o do final do filme.
Nunca mais direi que um filme é o melhor.
Nunca mais um diretor de cinema parecerá com um passarinho ferido.
Nunca mais um filme se deixará ver como uma paisagem que passa.
Nunca mais...nunca mais...
Pois o mundo que criou L'Atalante é morto e enterrado
Mas não esquecido.
Eu prefiro os filmes de Hitchcock- são mais emocionantes e são perfeitos
Eu prefiro os filmes de Kurosawa- são mais sábios e geniais
Bergman é mais inteligente e impressionante
E Ford é mais cinema puro
Mas eu amo aquele barco, aquele casal e aqueles marujos... torço para que sejam felizes e quero acompanhar o barco que vai passando...
Eu amo L'Atalante.