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BARDO THODOL, O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS

Uma amiga minha acaba de me ligar e falar de seu curso de psicologia. Ela está estudando biologia e neurociência. O que posso dizer? Não há algo de errado nisso? Quando procurei meu terapeuta, heróica fase narcisista de 20 anos atrás, o que eu procurava era um sentido para minhas visões, uma luz para minha dor e principalmente o encontro com uma mente MAIOR QUE A MINHA. Eu queria um pai, um gurú, um mestre, uma revelação. Essa foi minha experiência, outros podem querer apenas um tipo de cientista-médico, mas em mundo onde TUDO é funcionamento, venda, produção e preto no branco, onde a DITADURA da razão é a única fé presente, não seriam os psicólogos os únicos com os quais poderíamos, nós, neuróticos inconformados, contar? Não deveriam ser eles nossos padres ateus? Os versados em segredos inconfessos, os depositários dos caminhos à liberdade, os guias das trevas? Mas o que as escolas formam? Vomitadores de freudianismos que Freud, se vivo, renegaria, ou ainda pior, pseudo-cientistas do cérebro, quando na verdade deveriam ser estudiosos da alma.

Volto a dizer: Alma e Deus são imagens que existem desde que o Homem é Homem e crer nelas não é crer em igreja, ou sequer crer na existência de um Ser criador ou de uma alma imortal. Crer em Deus e Alma é crer no papel central que esses dois mistérios exercem na vida do indivíduo e da humanidade. Mistérios que vivem dentro de mim e de voce, símbolos que atemorizam e exasperam todo aquele que deixa de ter contato com aquilo que o alimenta: transcendencia. Só creio em psicólogos que possuem a coragem e a bagagem para adentrar esse reino submerso a meu lado. Jamais entregaria meu cérebro a quem vê nele apenas carne e sangue. ( Mesmo que ele seja apenas carne e sangue. )

Quando uma pessoa morria no Tibete, os parentes chamavam um Lama que lia o Bardo Thodol para o morto. Esse livro ensina o morto a adentrar o reino da morte e a se preparar para o retorno ao nosso mundo ( nosso ? ).

Quem já teve a experiência de enterrar um ser querido sabe que nossa sociedade se faz nua nessa hora. É quando percebemos que ao ganhar casas e coisas "modernas", ao abraçarmos a ciência e a razão, perdemos completamente o modo de lidar com a dor da morte. ( Assim como perdemos o modo de lidar com os filhos, o modo de se tornar adulto, como envelhecer, o modo de amar, e modos de ver e pensar a vida. ) O mundo atual simplesmente se cala quando o tema é morte, velhice, família, amor. Não se engane: se fala muito de amor e familia, mas não é sobre amor e familia que se fala na verdade. O amor se torna sexo e a família uma idéia de funcionalidade. Amor como comunhão e familia como continuidade são conceitos ignorados. Do mesmo modo como a igreja se tornou algo que nada tem de religioso, esses temas foram travestidos. Voltando ao livro....

"Quando vires que este vazio de teu próprio sentido é a natureza de Buda, e considerares como tua própria consciencia, então estarás no espírito de Buda."

O ser morre e sente por um breve instante ( breve? ) a maravilhosa despersonalização. Percebe o que é o Buda: O Vazio. A mente como guerra de opostos se torna então o vazio, onde cessa o conflito. A razão se esvai e o eu se dissolve com ela. O ser sente o Buda ao perceber que ele sempre fora o Buda. Deus dentro de nós mesmos. Revela-se a diferença central entre ocidente e oriente. Para nós Deus está no alto, reina sobre nós; para eles Deus vive dentro deles, nas profundesas de sua mente. O ser morre e desaparece, o Deus que sempre viveu permanece.

Mas esse momento de luz logo desaparece. O ser é então sorvido pelas imagens de dor e de horror. Surgem imagens de monstros diabólicos, de torturas sem fim e de DESEJOS INSACIÁVEIS. A fantasia assume o controle e o ser se perde em imagens e delirios. O lama, ao lado do morto, narra essa fase elucidando o ser sobre aquilo que ele irá vivenciar.

Vem então uma fase de reconhecimento do corpo e por fim o desejo sexual, desejo que faz com que o ser volte a reencarnar. A visão do sexo entre os pais seria a última visão antes do retorno. Pois bem... A sucessão dessas fases, que aqui descrevi muito pobremente, é uma surpreendente versão milenar do PROCESSO DE TERAPIA! Ao ler o livro de trás para a frente, invertendo a ordem das fases, percebemos que é narrado todo o caminho que o ser faz para encontrar sua individuação e poder unir suas oposições. Da vida de desejos sexuais puros, passando pela crise de medo e de sentido, pela quase psicose, e encontrando afinal a verdade transcendente. Verdade que estaria na constatação de que todos temos Buda e que a vida nos é dada.

Nesse processo a razão é negada, a segurança abandonada e a visão se faz do todo e não do detalhe. A tênue máscara, o véu que nos cega, é despedaçada. Tudo aquilo que pensamos ser "eu" se mostra ilusão. O eu é inexistente e a vida desse eu não pode ser preservada, pois ele jamais foi vida. Vida é o todo, vida incriada, vida sem regra e sem objeto. Trajeto de nascimento, de entrada nas entranhas do inconsciente, do pavor frente aos abismos do símbolo.
Intuitivamente, os tibetanos descreveram nesse livro milenar, tudo que é comum a todo processo de individuação, todas as etapas do enfrentamento, a descoberta de que tudo está dentro de nós e de que a realidade é criada por nossa mente inconsciente ( jamais pela razão que cria apenas ilusões ). Inconscientemente procuramos esse confronto, irracionalmente nossa vida é feita e decidida.
O mundo tecnicista tem negado e ignorado toda essa vida interior e decisiva que habita em todos nós. Sedentos de transcendencia, procuramos no amor/sexo, ou na arte/donisio aquilo que só pode se encontrar, com muita dificuldade e sem garantia alguma, dentro de nós mesmos. Não há espaço para as manifestações do inconsciente em mundo de explicações rasteiras e fórmulas infantis ( onde a igreja é a primeira a negar a interioridade com seus cultos e cerimonias espetaculosas ). Nosso ser mais íntimo é a ÚNICA verdade e a única via para a felicidade.
Negar isso é a ilusão.

PSICOLOGIA DO ORIENTE- CARL GUSTAV JUNG

Ocidente x Oriente ( Oriente que cumpre sua sina se fazendo mais Ocidente, Ocidente que cai em neurose pura, fugindo da Orientalização ). Na raiz do ocidente há a extroversão. Mas pense, o que é a extroversão? Os povos primitivos têm dois modos, duas raízes: abstrair e observar, caçar e celebrar. O extrovertido olha a árvore obsessivamente, procurando ver nela Tudo. Atenção para o destaque: TUDO. O extrovertido procura o todo fora de sí. Mais que isso, ele na realidade desconhece e teme o que pode haver dentro de sua cabeça. Seu medo o faz negar tudo o que não esteja fora, exposto, visível, sólido. Amando ou odiando, tudo nele é para fora. Chega-se então ao limite do vazio: existir é fazer. Você só pode existir fazendo coisas sólidas. Amor se torna sexo e viver é trabalho.
A religião do ocidente reforça essa realidade. Deus existe fora de voce, Ele deve ser procurado. Voce precisa de padre, ministro, curandeiro, guru, igreja, bíblias, papas, e saindo disso: heróis, líderes, partidos, psicólogos, escritores. Toda força e toda transcendencia é procurada fora de sí. E para os que se pensam menos ocidentais por descrerem de gurus ou de heróis, cabe saber: a descrença é um ato ativo e exterior, portanto, ocidental.
Ao contrário de Buda, Jesus caminhava sem parar, fazia milagres, pregava, e foi executado. A vida de Jesus foi toda ação exterior, foi toda PROVA de existência. Ele precisava provar ser Deus. Seu ser tinha de se exteriorizar.
O oriente é introversão. O ser superior na visão oriental nada procura, nada precisa provar. Mais que isso, ele não quer Deus, ele já está em Deus. Na introversão o que está fora é ilusório e vão, a vida interior é a vida VERDADEIRA. Não existe a necessidade de se preocupar com a existência, com o real, pois para eles o real é sabidamente ilusório. A meta, o objetivo é sempre a introversão, o adentrar-se em sí, vasculhar o que está dentro da mente, da alma, do inconsciente. A diferença maior é que para o oriente tudo o que é pensado é existente-verdadeiro, para nós a verdade é o que foi executado, visto fora das idéias, testemunhado.
A vida externa é negada. Os olhos se fecham para o corpo que bóia no Ganges e para a fome. No Ocidente tudo é observado: a mente ocidental registra sem parar, lê intenções, vê imperfeições e ainda se perde em emaranhados filosóficos. A mente do Ocidente foge apavorada de tudo que lhe seja inexplicável, ocupa-se para não mergulhar na "loucura", na perda de razão, no absoluto: NA TRANSFORMAÇÃO, que é a submersão do eu.
A grande revolução oriental seria a descoberta da objetividade. O abrir de olhos sem perder o pé no inconsciente. Isso eles estão fazendo. Ao Ocidente caberia o fechar de olhos, parar e se ausentar dentro de sí-mesmo, ser mais indiferente ao objeto e mais corajoso com o que não se conhece. Nada disso está sendo feito. A exterioralidade é cada vez maior, as religiões cada vez mais infantis e a vida se torna um saber mais e mais e pensar menos e menos.
O estranho é que podemos ver fácilmente como a ciência e o homem científico se parecem com o crente do ocidente. Ambos creem numa realidade única. Para o cristão, tudo é obra de Deus, para o cientista, tudo é matéria; ambos lutam para provar sua verdade, ambos não admitem qualquer dúvida e os dois, estranhamante, estão comprometidos na busca por algo: a origem da vida e alguma mensagem de outros sistemas solares. Ambos procuram Saber.
Já os budistas sabem. Mas é um saber intuitivo. Sabem que não existe Deus, pois Ele seria uma máscara e toda verdade não tem máscara. Sabem que é dentro deles mesmos que vive a felicidade e a paz absoluta e que portanto eles de nada precisam para se iluminar. Que o mergulho na alma é o conhecimento. A conexão com o interior, com as intuições, com o saber não-verbal, saber vasto e sem tempo, saber que perdemos na idade medieval, neles, continua cotidiana. A linha foi modernizada, mas não rompida ( pois eles intuem que a própria modernidade é apenas uma ilusão ). Um oriental irá decidir um negócio ou uma guerra pela intuição: o momento certo, a maré correta, o golpe perfeito. O ocidental se cercará de milhares de informações, de bilhões de garantias, de estudos e especulações até se resolver.
Por fim, em nosso mundo europeu, todo homem introvertido será visto como tolo ou doente. Um fraco. No oriente, o extrovertido é um primitivo, um tipo de cãozinho engraçado, um macaco sem vida interior.
Hoje eles são um pouco mais cachorros. E nós não estamos um pouco mais bobos. O futuro é todo deles.

INCONSCIENTE COLETIVO- CARL GUSTAV JUNG

Deus está morto! Ao dizer isto eles mesmos ( intelectuais niilistas ) se tornam deuses- deuses enlatados, crânios de paredes grossas e coração frio. O conceito de Deus é simplesmente uma função psicológica necessária, de natureza irracional, que nada tem a ver com a questão de sua existência. A idéia de um ser divino e todo poderoso existe em toda parte. Quando não é consciente torna-se inconsciente- é arquetípico.
Por isso acho mais sábio reconhecer a realidade da idéia de Deus. Caso contrário fica em seu lugar uma outra idéia, uma coisa qualquer, asneira ou bobice total - invenções de consciencias "esclarecidas". Pobres e vazios substitutos, normalmente terminados em "ismo" : catolicismo, comunismo, capitalismo, nazismo, intelectualismo...
O homem tem todo o direito de achar sua razão belíssima. Mas ela é apenas uma faceta de seu psiquismo. E conseguirá entender apenas o que a ela compete: coisas lógicas e racionais. Todo o resto, Deus inclusive, será impossível a seu entendimento.
Tudo existe em seu contrário. Energia ou vida é a interação, conflituosa, de contrários: noite e dia, fogo e água, homem e mulher, razão e irrazão, consciente e inconsciente. Quanto mais racional se torna uma civilização, mais ela se torna fascinada por coisas irracionais ( discos voadores, astrologia, cientologia, viagens no tempo, vampiros, magia negra, religiões de mercado, livros exotéricos, drogas e álcool ), e quanto mais irracional, mais ela se torna refém da razão ( comunismo, nazismo, linhas de montagem, revolução industrial- todas construções racionais em meios regidos por irracionalidades ).
Se o homem tem uma boa relação com seus deuses ele não cai nas malhas de falsos deuses. Falsos deuses são os seres criados pela razão que procuram ocupar esse vazio. Uma religião baseada em preceitos racionais é tão prejudicial quanto uma ciência nascida no irracional. A verdadeira religião é fruto do incompreensível, do mais profundo e imutável caráter humano, daquilo que não tem tempo ou censura, do inconsciente coletivo, é aquilo que fala tanto a um europeu do século xx como a um aborígene de milhares de anos atrás.
Durante milênios o homem possuiu plena fé em deuses. Ele lidava com suas imagens interiores jogando-as para fora. Toda maldade de seu ser era projetado em demônios e todo poder em deuses e anjos. A partir do iluminismo essa crença se rompeu. Mesmo o mais beato dos cristãos passou a conhecer a dúvida. Essa rica coleção de imagens, criadas pelo inconsciente, tornaram-se prisioneiras, passaram a viver dentro do homem, trancafiadas. Jamais morrerão, são parte da vida humana como o fígado ou o reflexo do joelho. Mas o segredo de sua leitura se perdeu.
Ninguém nunca conheceu um demônio. Ou um deus. Mas todos temos essas imagens dentro de nós. Em toda cultura e desde sempre. Porque? Por que eles vivem em nós. Todos somos diabos e anjos, todos somos heróis e carrascos. São símbolos inatos que independem de nossa cultura, de nosso tempo ou de nossa história pessoal. São arquétipos.
Todo Tempo tenta preencher esses arquétipos com pessoas reais. Pessoas que cruzam o rio e se tornam mitos. Jesus Cristo é o maior desses mitos. Mas existem outros. Julio César, Napoleão, Da Vinci, Ghandi, Buda, Maomé, Alexandre, São Paulo... o que pergunto é: que mitos criamos hoje que nos ajudam a lidar com esses arquétipos? Qual a qualidade transcendental dos mitos de agora? Algum mito do século nos ajuda a caminhar entre a fronteira da vida/morte, consciente/inconsciente?
Há assunto mais fascinante?

PSICOLOGIA DO INCONSCIENTE- CARL GUSTAV JUNG

A ênfase é toda dada a criatividade. Curar uma neurose é dar ao paciente a possibilidade de exercer sua criatividade ( pois neurose nada mais é que o empobrecimento da vida psíquica ). Vem daí a maior crítica às outras correntes psicológicas da época: elas se contentavam com o esclarecimento e o apaziguamento dos sintomas. Interrompiam a cura em terreno seguro, deixavam de procurar a individuação do paciente. Negavam os riscos ( que são imensos ).

Nietzsche, assim como Freud e como o próprio Jung, é um exemplo da neurose pessoal como neurose de sua época. Pois TODO neurótico traz em si a neurose do tempo em que vive. O doente vive na carne e de forma explícita aquilo que toda a sociedade vive de forma velada e não consciente. E uma das mais tristes formas de doença de nosso tempo é a dessacralização das manifestações de Dionisio. Observe como toda energia inconsciente quando liberada pela sociedade ( saudávelmente ) logo vai se enfraquecendo e perdendo todo seu aspecto livre e irracional. Jung cita as religiões pagãs, logo domesticadas pelo cristianismo, mas eu penso então, de forma mais corriqueira, naquilo que o carnaval foi e no que ele é hoje. De alegria e liberdade irrefletida, transforma-se em organização fria e comercial. O mesmo pode ser dito do rock ( onde hoje aquele espírito anárquico e sem sentido? ), das drogas ( que de caminho para o inconsciente se transformaram em via para a alienação ) e do sexo ( a liberdade sexual nos tornou mais felizes? O sexo é um ritual de crescimento ou se tornou apenas uma função fisiológica? ). Todo caráter dionisíaco sempre é desvirtuado, mas, não se engane, é imortal. E se nosso tempo não aceita ou teme sua manifestação, ele surgirá então como doença, depressão, guerra ou a simples banalização do espírito. Espírito que é tudo aquilo que faz a vida valer a pena, e ao mesmo tempo é o que mais tememos. Pois espírito é inconsciente coletivo e insconsciente significa despersonalização, não-controle, esquecimento, significa deixar de ser aquilo que se é, morte de certezas e de crenças, transformação absoluta. Cabe ao terapeuta, com conhecimento responsável de religião e história, antropologia e filosofia, caminhar com o paciente rumo a esse reino indomado e indomável. Sabendo que o inconsciente não será jamais domado, será isto sim, experimentado e aceito. Ao contrário do Freudianismo, Jung não fala jamais em sublimação ou iluminação de trevas, ele fala de humildade perante a psique e de liberação do si-mesmo, seja ele o que for.
Será que vale a pena eu tentar explicar a anima? A serpente? O que significa a mulher? A feminilidade que vive em nós e que é a força que faz a ponte com nosso inconsciente pessoal? O animus, a força masculina que mora nas mulheres, o ideal masculino, símbolo de eterno conflito e de engano? A serpente como ser simbólico que dá a possibilidade de liberdade e ao mesmo tempo de perda absoluta? Não falarei. Leia o livro e tente vivenciar.
Prefiro falar o que sempre acreditei e agora encontro escrito diante de meus olhos. ( O que confirma uma das crenaças junguianas: a de que o inconsciente cria aquilo que nos é real. Esse um dos postulados mais complexos de Jung e dos mais difamados pelos que não o leram ). O que leio é que o sexo é apenas um dos milhares de fatores que formam a psique. Reduzir tudo a pulsão sexual, a sublimação de desejo sexual, é exatamente isso: redução, modo astuto de não encarar a falta de controle, a sombra, a irracionalidade da mente. Sexo é importante, mas não é a única energia. Um mundo com sexo livre e sem tabús seria apenas isso: um mundo de sexo livre e sem tabús. O inconsciente continuaria desconhecido, as neuroses vicejando e a criatividade amordaçada. Na verdade a psique é uma multidão de energias, vivendo com seus opostos, sempre em desequilíbrio, sempre em busca desse equilíbrio. O equilíbrio é impossível, pois seria a morte, mas viver é a busca desse equilíbrio. O começo do conhecimento é reconhecer esse não-controle.
O trabalho do terapeuta não é aplacar a dor, é sim, percorrer com o paciente esse caminho entre conciente e inconsciente, dar acesso as imagens impessoais da mente, fazer com que seja reconhecida a sombra e o horror que vivem dentro de sua mente ( independente de sua vontade ) e dar ao paciente a possibilidade do sim e do não. Sim ao risco de viver, ao encontro com o si-mesmo, criatividade particular e característica única de cada humano.
Para Jung então, arte não é sublimação de nada. Arte é inconsciente, é transformação de código obscuro em comunicação, é mergulho em arcaísmos e sonhos, é possessão. Penso então em Stendhal e seus delirios de amor, em Mozart e seus passeios pelo céu, em Tolstoi e sua procura pelo sublime. Eles não são neuróticos que sublimaram um trauma e o fizeram arte, antes foram homens como eu e voce, mas que conseguiram mergulhar na sombra e de lá voltar com as imagens comuns a todos nós.
Livro fascinante e faiscante, vivo e simples, tem me feito imenso bem, tem me inspirado, vivificado e me dado sonhos límpidos e risonhos. A corrente junguiana é perfeita para aqueles que sentem amor pela busca, pela criação, pelo inesperado e pela viagem mental sem bússola. Reconheço que é um tipo de terapia ineficaz para crianças e homens apressados, mas para quem vive em curiosidade, para os fascinados por arte e filosofia, nada é melhor.

O EU E O INCONSCIENTE- CARL GUSTAV JUNG

Não é pelas respostas que Jung me fascina. É por suas perguntas. Jung levanta as questões que mais me interessam, dá o passo que Freud temeu dar: além do sexo, fora da razão, o que há?
Me agrada o fato de que ele jamais diz "é assim" ou "com certeza". Jung diz sempre "talvez seja" e "pode ser que". Ele evita brilhantemente ser dono de qualquer verdade. Sua sina é a do caminhante, faz perguntas, procura respostas, mas já avisa de cara que essas respostas são impossíveis, pois são irracionais.
A vida é irracional. Não existe lógica alguma fora de nosso consciente. Nós criamos uma razão para poder viver em sociedade, para contar o tempo, para fazer da vida algo previsível, que funcione. Mas fora de nosso consciente nada é racional e claro, e mesmo dentro de nós há o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo, ambos escuros, sem qualquer lógica, não verbais e pré-históricos. A razão, portanto, não pode explicar a vida.
Longe de mim então, tentar explicar este livro tão instigante. Feito a partir de uma série de seminários de Jung ( anos 30 ), ele descreve com precisão coisas que vivi em minhas crises e certas quase crenças que compartilho com o psicólogo suiço.
Jung fala de persona, de anima, de animus. Usa muito a imagem do inconsciente, seja pessoal, seja coletivo, e mostra que a individuação é o mais alto grau de desenvolvimento que um homem pode atingir. Falando de um modo bastante crú, a persona seria a máscara que nos obrigamos e que nos obrigam a usar. Máscara que se opõe a nosso inconsciente, estância profunda e em eterna revolução, que não cessa nunca de cutucar essa persona. Criamos persona para poder viver em trabalho e para nos defender, o perigo é crer nela. Mas o livro fica melhor quando se fala do medo que todos temos do inconsciente. A sensação de morte, de loucura, que existe ao se mirar esse tipo de fantasma que mora em nós e que não nos reconhece. A neurose como o medo desse tipo de aspecto da mente, o pavor de se perder em seu interior e não poder sair mais, daí então o hiper-controle do neurótico, e o sintoma: toques do inconsciente pessoal, toques sem qualquer razão, energia que se libera.
Todos nós temos momentos de medo ou de crise ao tocar o inconsciente. E é esse momento que nos faz andar. É nessa hora que mergulhamos em imagens e inspirações, em desejos e mudanças. Podemos então crescer ou sucumbir. Me agrada ler que Jung considerava todo neurótico como um ser-humano mais brilhante em potencial, mas que naufragou no medo de seu inconsciente.
O inconsciente pessoal sendo a herança de nossos antepassados genéticos, de pais e tios, país e nação. E o inconsciente coletivo sendo tudo aquilo que carregamos da história da humanidade. Mas veja: não é uma lembrança linear. Não é sequer uma lembrança. São imagens sem texto e sem voz, são símbolos que ficam gravados e se tornam lenda, mitos, religião. Todo inconsciente é religioso porque tudo que é irracional acaba se tornando linguagem religiosa. Conhecer toda religião, compreender seu símbolo e seu ritual é primordial para se tentar entender o inconsciente.
A individuação. O ser se tornando si-mesmo. A saúde plena sendo o homem que se torna aquilo para o qual nasceu. O homem que consegue ir ao inconsciente e retornar: mito de todo herói. O herói que vai ao mar, a floresta, ao castelo e retorna outro, mais velho, mais sábio, inteiro. O ser que se faz si-mesmo descobrindo algo sobre seu inconsciente. Jung usa a imagem de caminhar sobre o fio da navalha.
O que impede essa descoberta é o medo. Medo de se perder, de deixar de ser, de morrer ou enlouquecer. Medo do irracional, medo da vida ( que é mortal e irracional ). Apego a persona como meio de não pensar e não questionar e apego a imagem materna como meio de escapar do inconsciente.
Bela sacada de Jung: não desejamos apenas sexualmente a mãe. O que desejamos é seu consolo contra o medo de viver. Ela nos protege de nossas trevas inconscientes, ela "ilumina" a escuridão. As sociedades primitivas realizavam cerimonias para livrar o menino dessa proteção. Hoje não as há mais. Então o que o homem faz é usar mulheres como proteção. A mulher usada como antídoto contra o perigo, contra o inconsciente, contra a individuação. O homem se infantiliza com essa mulher e nega toda a treva irracional que vive dentro dele.
O pai protege o filho do mundo real. A mãe o salva do mundo simbólico, irracional.
Bem.... há muito mais a dizer, mas deixo aqui apenas um aperitivo sobre esse pensamento que me perturba e me seduz. Jung valoriza o homem original, poético, em conflito. Ele joga fora certezas e máscaras e deixa de lado a facilidade de se explicar tudo por repressão e libido ( a libido junguiana é bem mais complexa ).
Mas não se exaltem, freudianos. Jung aceita várias conquistas de Sigmund. O que ele renega é o fato de Freud não ter seguido adiante, não ter tido a humildade de fazer uma auto-crítica, e de ter se deitado sobre os louros de uma única grande teoria. Freudianismo acabou se tornando um tipo de crença que dá a seu fiel o consolo de crer em guru infalível. Uma coisa automática e sem dúvidas. A racionalização do que nunca é racional.
Jung está longe de ser infalível. Mas nessa disposição ao risco, nesse desequilíbrio e nessa incessante busca pelas questões certas, ele se apresenta como um ser mais artístico, mais músico, muito mais livre. E o principal: suas descrições de crises se casam a perfeição com minhas crises e meus medos. Se em Freud eu preciso me adaptar a suas crenças, com Jung vejo maravilhado a descrição daquilo que eu já sabia.
PS: antes que se pense que individuação seja sinônimo de egoísmo, explico: a individuação, a descoberta do si-mesmo se dá pelo mergulho em seu inconsciente ( e a habilidade de não sucumbir em psicose ou mania ), mas esse si-mesmo só se solidifica no contato com o outro. É impossível se tornar voce mesmo no isolamento. O homem é um ser social, para ser Homem é preciso o outro. Todos compartilhamos esse inconsciente coletivo, essa herança de símbolos ( e é isso que nos faz pensar em vida eterna ), esse inconsciente é sempre igual, seja em que tempo for. Saber que ele não nos pertence é o primeiro passo rumo ao conhecimento. E a humildade.

HERMES E AFINS

O homem só pode criar aquilo que já estava em sua mente. Parece um pensamento fácil, mas pense bem: o que vemos é aquilo que já, e desde sempre, estava em nós. Portanto, é impossível ao homem apreender a realidade. Porque só percebemos o que nossa mente consegue ver/entender/criar. Realidade e irrealidade são conceitos que não fazem sentido.
Criamos palavras para dar vida a coisas. E só o que tem um nome é por nós percebido. Mas no momento em que mesmo as palavras perdem seu motivo primal, em que até elas deixam de significar, toda a vida começa a se tornar sem sentido.
Mulher passa em praça etíope. Ela chora e sente fome. Ela sofre de forma total e irrecuperável. Vendo aquela mulher eu a percebo como parte daquela situação. Por detrás de seu sofrimento há toda uma história. Na sombra de seus ossos moram seus companheiros de dor, sua origem, seu terror, seus cantos e sua crença. Agora. Mulher passa em rua de Veneza. Ela usa óculos escuros e um casaco Prada. Em seu caminhar eu nada vejo. Ela não possui história. Nada significa, a não ser uma imagem/sombra que anda e desaparece. Apesar de não sofrer como a etíope ( será? ), ela é um ser de absoluta solidão. Para ela nada pertence, e ela a nada se dá. As ruas de Veneza são indiferentes a sua passagem.
É tudo uma crença. Voce cria aquilo em que acreditar. O problema é quando não se acredita na vida. O inconsciente cria sem parar, cria independente de tempo ou de espaço. Ele prepara o mundo e cria a vida. Nele mora aquilo que chamamos de Deus. Mas há mais:
Todo arquétipo vive nele e arquétipo é Deus. Deuses que tememos olhar, todos eles, de todos os tempos, alguns sem nome. De Dionisio a Odin, de Xangô a Krishna, milhões de seres que criam a terra, que criam a história e que influenciam a vida de todos, criando acidentes, lembranças, sinais. Símbolos que simbolizam aquilo que faz a vida. Símbolos que são tudo aquilo inominado. Deuses que são imortais, que sempre estão presentes, que nos guiam. Saber falar com eles, entender suas mensagens, eis o que é a vida plena.
Nossa vida não é nossa. Nossa mente não é nossa. O que eu sou não sou eu ( tudo o que tento controlar é minha máscara, raiz de minha doença e de minha cegueira ). Porque eu sinto, quando tenho a coragem de me isolar do mundo, ou quando estou tomado pelo amor profundo, ou pelo mais violento ódio, eu sinto que há algo sem nome em mim, algo que vive em meus joelhos, que pensa em meu fígado, que respira pelos meus pés. Eu sinto que há uma vida fora de mim, me cercando, me sussurrando, muda, incompreensível. Sinto que esse eu não é Paulo e não é Tony. Nem homem ele é. Rio que flui, raio que brilha ou pássaro que pousa. Sinto que esse ser é o que é. Inominável. E que ele pode me matar, me enlouquecer, ou dar sentido a vida.
Cada um de nós deve fechar-se em seu abrigo. E mergulhar nesse rio. Porque para salvar o mundo é preciso salvar voce. Individualismo? Cada rio é rio que pertence ao mundo. Iluminar esse rio é iluminar o mundo.
O Oriente ( India e China ) sairá de seu mundo passivo/interior/feminino e se descobrirá ativo. Cabe ao Ocidente a sabedoria de sair de cena e retornar a sua vida passiva/feminina/interior. É preciso que o Oriente se ative e que o Ocidente se recolha em sí. Os símbolos do ocidente precisam ser iluminados.
No Novo México existe um povo ( ainda hoje ) chamado "Pueblo". O chefe diz que os brancos não deveriam acabar com eles. Pois são eles que fazem o sol nascer. Toda manhã eles ajudam o sol a se erguer. Quando eles se forem, será sempre noite. O que pensar? Pode haver povo mais feliz que um povo que crê ser responsável pelo sol? Somos responsáveis por alguma coisa natural? E mais: um povo que acredita ser forte como o sol, que se une ao sol todo dia, que se pensa como um igual ao sol, torna-se ele mesmo, sol.
Sincronicamente captamos no rio do inconsciente mensagens que unem pessoas afim. E de repente me pego falando aquilo que voce queria dizer. E um artista-poeta consegue ser voz de todo um grupo disperso. E vorazes homens de aço começam a devorar o mundo ao mesmo tempo. E eu encontro voce e ouço sua voz e já te conheço. E falo o que voce fala e ouço o que eu queria ouvir. Pegamos do rio a mesma coisa, eu e voce. Alguns pegam a morte, outros a dor. A maioria nem sabe que o rio existe.
Sabendo ou não sabendo, chamando-o ou não, Deus está lá.
Sua ânsia é ansia de rio. Voce se droga para tentar chegar lá. Voce vai a igreja para tentar chegar lá. Pula em baladas futeis, grita em show de rock, paga terapias, engole pilulas. Voce tenta encontar voce. Tenta ver Apolo ou Eros ou Jesus. Não sabe que voce não é, pois na verdade voce está.
Agora, enquanto escrevo isto, sou um velho de 99 anos da Mongólia. Uma hora atrás eu fui um Bem-Te-Vi numa árvore. E acordei cachorro hoje. E saiba, se quando voce me ver eu estiver Tony Roxy ou Paulo Mané... não sou eu, é a persona que criei.
Há tanta coisa pra aprender......

CÍRCULO HERMÉTICO- MIGUEL SERRANO

Estar diante de uma estante de livros, em sebo ou livraria, é como estar num trem: as paisagens vão passando e em algumas eu quero parar. Fuço as prateleiras, leio trechos, admiro capas, tento lembrar quem é aquele autor, me surpreendo. Pego em sebo este livro. Raro volume, manuseado, edição de 1970.
Miguel é um diplomata chileno que no final dos anos 50 privou na Suiça da amizade de Hermann Hesse e de Jung. O livro, breve e sem ambição, é um retrato afetuoso desses dois senhores. Primeiro Hesse.
Fica desse "pássaro" uma imagem de imensa doçura. Hesse morreu conseguindo voltar a ser criança. Ele se maravilha com a vida. Árvores, sol, lua, neve, em seu solitário retiro suiço, o velho escritor andarilho se maravilha em solidão. As lições que ele passa são sublimes. Escreve uma parábola sobre o homem que se tornou árvore e deixou de se transformar. Pois para Hesse, a vida é uma transformação, e só vive essa VIDA quem se deixa ser levado. O homem que é hoje um inseto, depois uma pedra, um cão e uma árvore. Para Hesse, tudo é um círculo e nesse círculo nós não somos o centro ( pois centro não há ), somos parte sendo nada.
Há muito de India e China em Hesse. Ele ama a impessoalidade do Oriente, os templos não assinados, a persona fraca, a passividade. Hesse conta algo interessante: Para um indiano típico, o pensamento é algo que se observa. Ele se coloca na posição passiva, o pensamento acontece independente de sua vontade, então ele assiste seus pensamentos. No ocidente nós somos aquilo que pensamos. Não nos esqueçamos que para a fé cristã, o pecado se faz em pensamento.
Depois o autor conhece Jung em Zurique, Jung já com mais de oitenta anos. De Jung ele absorve a imagem de que toda a transformação psíquica só pode ocorrer através do amor, mas não o amor como o conhecemos, deve ser aquele tipo de amor que enfrenta a morte, que vai além da vida, do medo. Esse amor só existe no que é proibido, no amor que não tem objetivo, no amor onde os dois se fazem um, na cumplicidade contra o mundo. Sem casamento, sem filhos, sem construção alguma. Amor que deverá morrer e matar os amantes, para que assim eles possam morrer em sua persona e mergulhando no inconsciente, renascer como sí-mesmo, satisfeitos com sua unicidade, auto-suficientes.
Conta-se a cerimônia de casamento dos Siddhas na India: os dois jovens, castos, vão à floresta, nús, e lá ficam por meses. Dormem juntos, se banham e trabalham. Moem grãos, confeccionam. Finalmente, ela irá massagear seus chakras, ele irá acariciá-la. Faz-se então a união. União que não é sexual, é muito mais que isso. Ele não irá ejacular, seu sêmem deverá jorrar "para dentro". O amor entre eles não será um amor para fora, será todo para dentro. Um amor que não é morte ( pois não engendra vida ), é um amor que busca o mergulho no incorpóreo, no absoluto. Os dois se separarão após essa noite. Os dois estarão prontos para a auto-suficiência.
Jung fala também que o ocidente viveu um profundo trauma psíquico com o advento do cristianismo. Ao contrário do oriente, que viveu todo o desenvolvimento de suas religiões, as fés e crenças da Europa foram subitamente sublimadas por uma religião importada. Todo o crescimento e amadurecimento dessas religiões nativas foi abortada, reprimida e jogada ao inconsciente. As imagens estão todas trancafiadas, e quanto maior a distância que nossa sociedade vive delas, maiores os surtos de barbarismo.
Comprei também um livro recém lançado de um jovem filósofo francês. Abro o livro e pesco uma frase: " Uma sociedade que se baseie no sexo será sempre uma sociedade incompleta. Pois o sexo é por sua natureza, ser incompleto sempre. Essa sociedade será então marcada pelo vazio, pela ansiedade e pela falta. Sexo só se completa no hermafroditismo, é impossível ser feliz sózinho numa sociedade sexualizada, e pior, é impossível ser feliz a dois numa sociedade sexualizada, pois o eterno flerte torna-se imperativo. Basear uma civilização no sexo é caminhar para a infelicidade. O século XIX, reprimido, deu ao sexo um valor que a repressão lhe fantasiou. Somos os filhos dessa anomalia."

SINDBAD, O MARUJO ( UMA TERRA JOVEM, JOVEM DEMAIS )

Não existe um autor de Sindbad. Como acontece com a Biblia ou com A Ilíada, o texto parece ter se auto-fecundado. É coisa da natureza. E como todo texto fundador, trata-se de uma viagem ( que na verdade são sete ). Tudo é maravilhoso aqui e tudo é estranhamente crível. As aventuras se sucedem e tudo o que voce deseja é ler mais e mais. Prazer de verdade, claro e límpido.
O texto que me chega é o mais fiel possível. Coisa de 770 D/C. Arábia...Bagdá...é surpreendente como eles nessa época estavam muito a frente da Europa. Possuem uma delicadeza, um amor a etiqueta, a limpeza e a educação que deixa a Europa como um tipo de curral de cavaleiros toscos.
O livro me faz pensar, e o pensamento que ele me traz é este:
Em 770.... Quantas tribos existiam no Brasil? Línguas que não mais se falarão e bichos que há muito sumiram de nossa vista. Imagino a floresta sem fim e um indio nadando no Pinheiros. Tribos em Marajó e no sul. E tribos na Argentina e no Perú ( Incas? ). Onças e Botos aos milhões e povos se espalhando pelo México e pelo Canadá. Cada um com sua língua, seu Deus e seu corpo. Contando uma saga e criando mitologias.
Penso que em 770, enquanto em Bagdá se redigia o Sinbad, na Irlanda os monges católicos andavam em pregação. Matilhas de lobos vagavam pela Alemanha e druidas viviam na França. Vikings na Noruega, Saxões na Inglaterra e Íberos na Espanha. Quantos ursos ainda viviam no continente e crenças desapareciam para sempre. Tribos sem fim pela Russia.
Penso na India e na China de 770. Na imensa diversidade de vidas e de vozes. Nas ilhas do Pacifico, nos reinos da Àfrica e na Austrália onde os aborigenes percorriam as estrelas. Maoris na Zelandia, eskimós no norte e os comanches, sioux, arapahos.
Em 770 uma enorme variedade de vozes, de visões sobre a vida, de peles e de rostos. Miscelânea de costumes, modos de ver, jeitos de pensar. Vida sem fim.
Penso que agora todos nós somos poucos. Todos estamos nos tornando coisas uniformes. Como gado de raça: mesmos desejos, mesmos valores, mesmos medos. E sinto que sendo assim somos mais fracos como homens, mais vulneráveis como espécie e muito mais pobres como alma. Mesma música, mesma roupa, mesma comida.
Para onde ir quando a vida entrar em crise?
Porque Sindbad me faz ver que toda crise é solucionada com a redescoberta do reprimido. A era medieval sendo superada pela lembrança da Grécia, a decadencia de Roma revitalizada pela fé católica, o novo sempre vem de uma civilização que se pôs a margem do poder. Mas se tudo for uma só coisa, de onde virá a novidade?
O oriente é o inconsciente do mundo e sempre foi de lá que veio o sopro de vida nova. A Grécia brota da Pérsia, e as religiões ( judaísmo/catolicismo/islamismo ) nasceram por lá. Aliás, religião sempre foi uma coisa muito fraca na Europa. Religião puramente européia é coisa que nunca existiu. Mas, se o mundo perder toda sua diversidade ( e desde 1350 estamos nesse caminho ), se o oriente, a Ásia toda, se tornar uma coisa só, de onde fazer brotar a nova fase, a nova crença, o novo mundo?
Cada ilha do mar da India era uma civilização. Cada canto da Indochina era uma fonte de fé e de filosofia. Pra onde foram esses modos de pensar? Uniformização. Odeio essa palavra.
Sindbad é a celebração desse mundo rico, desse mundo onde cada esquina é outro universo, em que tudo é diferente em cada reino, em cada ser. Sindbad é então a pura celebração de um planeta jovem, exuberante, enérgico, e que ainda se surpreende todo dia.
Sindbad é o homem plenamente saudável.
PS: Começo a pagar uma dívida que tinha comigo-mesmo. Começo a estudar Jung. Uma frase dele me pega ( e é exatamente o que eu já pensava ): O inconsciente é sempre religião. Todo inconsciente é religioso e temer ou não saber ler a simbologia religiosa significa temer ou reprimir a riquesa da vida do inconsciente. Porém, o homem existe para se individualizar, para se tornar um ser-sí-mesmo. Ora, isso só ocorre com o mergulho no inconsciente, com a alfabetização da simbologia religiosa. Mitos, religiões, poemas, essa é a linguagem de todo saber profundo, saber que é a vida da terra. A Europa é o árido mundo sólido do ser, o principio masculino; o oriente é o principio religioso, inconsciente, passivo e simbólico. É de lá que flui a fonte da vida, a fecundação, as novas etapas, a vida. Útero. Sindbad me cai nas mãos na hora exata.

EXCALIBUR, FILME DE JOHN BOORMAN ( JUNG E O MUNDO DO MITO )

Quando assistí este filme ( que sepultou a carreira do ambicioso Boorman ) no cinema, aos 18 anos de idade, achei-o apenas um muito metido e muito escuro filme de aventuras medievais. Revi-o anos depois, na TV, convalescendo de uma apendicite, e pensei ser então um dos filmes de visual mais belo já feito ( percebi nele muito de Kurosawa e um pai do Senhor dos Anéis ). Guardei o filme em dvd para mais tarde e passados mais dez anos e vários filmes depois, eis que o reassisto. Deslumbrante.
Como já diz o título, trata-se da saga de Arthur e da Távola Redonda. Mas hoje eu sei que Boorman e Rosco Pallemberg ( roteiristas ) dão, propositalmente, uma aula sobre Jung no filme. John Boorman, diretor sempre eficaz, mergulha nesse universo de simbolo e de mito, e nos dá uma visão muito próxima daquilo que vive em nosso inconsciente. Atenção: toda frase do filme, todo diálogo, é uma chave para nosso mundo onírico.
A maior diferença entre Freud e Jung reside no modo de abordar o sonho. Para Freud, aquilo que sonho é meu e fala de mim para mim-mesmo. Para Jung, nós sonhamos juntos. Não sou eu quem sonha, é o mundo que sonha em mim. Meu inconsciente não é meu, é nosso. Nosso inconsciente está enlaçado, amarrado em bilhões de visões unidas em símbolos comuns.
Para Jung. minha psicose é a psicose do mundo, minha neurose é uma neurose comum. Eu, enquanto ser inconsciente, sou uma fração de um todo. E perceba: esse todo do qual sou parte não é o todo de agora, é o todo de sempre. Nosso mundo inconsciente é o mundo que o filme mostra.
O que vemos na rua, prédios, celulares, telas, rostos e vozes, é tão somente uma tênue fumaça, um mundo mutável, e por ser mutável, sem grande valor.
Vamos aos personagens do filme ( e já aviso que é impossível sintetizar o que acontece, o filme pode ter centenas de interpretações ).
Merlin é a mais fascinante. Ele possui o segredo da magia por ser hermafrodita. Ele opera os extremos: ele é homem e é sua ânima. Tem humor e tem o olhar do drama. Racional e sem razão. Merlin une a natureza e o humano. Quando ele sai de cena começa a decadência de Camelot. É dita então uma frase crucial : " O homem era parte. Agora ele está fora." Merlin é o homem como parte da vida e não como ser estrangeiro. Todo sofrimento humano vem da inadaptação do homem à vida.
Outra frase de Merlin : "Saio da vida e passo a viver no sonho."
Morgana é a prostituição da genuína magia de Merlin. Se nele o dom é nato, ela aprende a ser feiticeira. Ela usa objetos, poções e receitas. Morgana visa à um fim, o poder. Ela é uma espécie de charlatã. No incesto dela com seu irmão ( ela é irmã de Arthur ) nasce Mordred, o filho que irá afrontar o pai ( e será morto ao matá-lo ).
Nada de edipiano aqui. O que move o filho não é o desejo pela mãe. Mordred é o desejo da mãe. Ele é o novo mundo que mata o velho mundo. O mundo humano assassinando o mundo natural e sendo morto com ele.
Arthur é filho de Uther, o rei. Mas Uther é um rei ativo, violento, lascívio, que perde tudo pelo desejo. Merlin obtém Arthur de Uther e o cria. Arthur tirará Excalibur da rocha e será rei.
Arthur é um tipo de pai. E como pai, ele se torna um tipo de deus. Tudo nele é desejo de justiça, tudo nele é coragem, e ele quer crer no bem. O único homem digno de Excalibur arranca da Terra um objeto que é paz e morte, engenho e magia, força e bondade.
Mas Arthur é traído por Guinevere, sua esposa. Traído por Lancelot, o mais puro dos puros. Temos aqui ( pena que tão rapidamente ) o nascimento do amor cortês. Lancelot ama como quem ama a Deus. Seu amor é feliz enquanto projeto de desejo, ao ser realizado vem a morte. Todo nosso amor pelo trágico está nascido aqui. Eles traem o bondoso Arthur e nós ficamos tristes com essa sina. Continuam nobres a nosso olhar: o amor é mais forte que eles. Lancelot tentará a morte e se tornará um ermitão cristão; Guinevere será freira. Um Arthur ancião, também ele, confessará seu amor por ela ( e lhe pedirá perdão ).
O mundo desaba.
Merlin se retira e Camelot se torna caos. Nasce nosso mundo.
Perceval parte para buscar o Santo Graal, símbolo que poderá reabilitar Camelot. As cenas em que Perceval ( o mais religioso dos cavaleiros ) viaja atrás do Graal, são as mais belas e as mais terríveis do filme. O Graal, símbolo de muito difícil decifração, é para mim exatamente isso: um símbolo. Quando Perceval consegue o objeto sagrado ( num sonho ), e o dá a Arthur, fazendo com que o rei renasça em fé, Perceval dá vida aos símbolos, força que reanima a existência de Arthur.
Mas nada pode ser como foi. A morte vence. Merlin vive apenas nos sonhos agora e Arthur é morto pelo filho incestuoso que é morto.
Perceval devolve Excalibur a Senhora do Lago e repito, nasce este mundo onde vivemos.
Há muito mais para ser dito. Existem infinitos momentos de simbologia. E quem já tentou, como eu, penetrar nesse mundo atemporal, sabe que interpretar um símbolo é ler o infinito.
Enquanto eles viverem em nossos sonhos a vida ainda valerá.