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O HOMEM QUE AMAVA AS MULHERES - FRANÇOIS TRUFFAUT

Fosse feito em 2023, seria este filme de uma chatice exemplar. O personagem central, feito por um perfeito Charles Denner, teria toda sua caça às mulheres feita em uma tela e todo o filme se passaria no seu quarto. Pior e mais provável, haveria uma redutora explicação médica a seu comportamento, ele iria se tratar e se "curar" e caso fosse um filme da Netflix, o conquistador masculino seria um vilão. Vivemos em um mundo muito policiado e por isso muito chato. ------------------------- Este é, na verdade, um dos melhores filmes de Truffaut, e como foi feito nos anos 70, ele evita simplificar. O personagem é um homem que ama as mulheres. É isso e é mais que isso. Ele as persegue na rua, as caça, mas nunca deixa de ser um cavalheiro. Não há o menor sinal de violência. Ele não quer relacionamentos íntimos, ele quer encontros carinhosos e sexuais. Não há tara, estamos longe do mundo dos vídeos pornô. Ele é, assim como era Truffaut, um homem do século XVIII. Um galanteador do mundo de Laclos. Um não romântico, racional e apaixonado. Este é, ao lado dos INCOMPREENDIDOS, o mais auto biográfico dos filmes de Truffaut. ------------------ Inclusive ele intuiu sua morte. Truffaut morreria jovem, em 1984, apenas sete anos após este filme. Caso voce não saiba, ele deveria estar dirigindo filmes até os anos 90. Ele era mais jovem que Godard. Mais jovem que Clint Eastwood. ----------------- Há um enterro onde vão apenas mulheres. Então se conta a história daquele que lá está sendo enterrado. Um homem de 40 anos, que não resiste ás mulheres, que vive para elas, que vê a beleza em cada uma delas, que não tem um tipo preferido, que adora a feminilidade. Quem leu a bio de Truffaut sabe: é ele. O diretor que se apaixonou por todas as atrizes de seus filmes. Que ia quase diariamente ao bordel. Que via nas mulheres mistério e encanto, a razão maior de sua vida. Sim, um homem que sabia a verdade: elas são totalmente diferentes dos homens. Felizmente. ---------------------- Acompanhamos seus encontros, as ruas, as casas delas, a casa dele, e o filme jamais cansa. Quando Truffaut acerta ele é o mais leve dos diretores. E aqui ele acerta. O filme é quase um ballet sem dança. Ophuls está muito presente aqui. O personagem chega a viajar quilômetros apenas para conhecer uma moça que ele viu cruzar a rua. Ele investiga, procura, descobre e encontra. fato: sua vida é um sucesso. -------------------------- Fosse feito em Hollywood, todas as atrizes seriam lindas ( ou pretensamente lindas ), aqui não. Algumas são bonitas, Brigitte Fossey é linda, mas outras são esquisitas, feias até. Isso faz do filme algo real e melhor que tudo, expõe a verdade do homem, ele ama a feminilidade, em toda sua manifestação. ---------------------- Ora, eu trabalho com adolescentes e sei que a maior crise de 2023 é a da masculinidade. Os meninos beijam, transam, como sempre foi, mas há neles uma vergonha, uma tristeza, uma falta de ação que beira o patético. As meninas agem, os meninos aguardam. O personagem de Denner é uma peça de museu. Pior, hoje não pega bem adorar A MULHER. Deve-se adorar o ser humano, fingindo então que mulheres e homens são iguais. Ora....fossem iguais não haveria a atração irresistível. A biologia nos ordena a reprodução. Basicamente é isso. O resto é invenção de nossa mente incansável. ------------------- O personagem não tem filhos. Deveria os ter. ------------------- Eis um belo e simples e grande filme. Procure ver.

Ninjō kami fūsen (AKA Humanity and Paper Balloons AKA 人情紙風船) (1937) (Eng...

SADAO YAMANAKA, HUMANIDADE E BALÕES DE PAPEL. O MAIS AZARADO DIRETOR DE CINEMA DA HISTÓRIA

Este filme foi lançado em 1937. Está em um dos boxes da Versatil, aqueles sobre Cinema Samurai. Mas este não é um filme de samurais. Penso que a Versátil o colocou neste box por não saber onde o lançar. ------------------- Nada sabia sobre esse diretor ou sobre o filme. Coloco pra rodar. Pelas imagnes percebo logo ser um filme muito antigo. Uma fotografia em preto e branco enevoado, lindo. O que vejo? Um beco, um tipo de favela do Japão antigo. Muita gente lá. Alguém se enforcou numa das casas. O cenário é fascinante. O filme não tem apenas um personagem central, são vários. O samurai falido. O cego. O vendedor com sua carroça. O empregado que irá raptar uma mulher rica. O milionário indiferente. O senhorio. E ainda as pessoas que vivem e se observam naquele lugar. As várias pequenas histórias que se cruzam. E a surpresa que é esse filme! Não se parece com o cinema que se fazia então, cinema que eu amo, o dos anos de 1930, e que por isso conheço bem. Este filme, em tema e estilo, lembra muito mais o cinema dos anos 50 e 60. É realista. É duro. Mas ao mesmo tempo é pleno de beleza e de amor. ----------------- Pesquiso sobre Yamanaka. E fico surpreso. Ele fez mais de 20 filmes em apenas seis anos de carreira! De toda essa produção, hoje existem apenas 3. Os outros se perderam. Este foi seu último filme. Yamanaka morreu aos 28 anos, na China, onde servia o exército japonês de ocupação. Morreu de desinteria. Há críticos que consideram este um dos maiores filmes já feitos. ------------------------ Yamanaka influenciou Kurosawa. E Naruse. É hoje um cult. Um cineasta para poucos. Mas penso, quantas coisas maravilhosas ele poderia ter feito até os anos 80? Pelo ano em que nasceu, ele poderia estar filmando até 1980, 1985... Que azar, que pena, que desastre do destino! ----------------- O filme, hora e meia de duração, nunca tem uma só cena que não seja sublime. Se há um paraíso de cineastas, Yamanaka vive nele, ao lado de Vigo. O modo como ele orquestra os grupos de atores, e saiba que dirigir muita gente em cena é o teste crucial de todo diretor, o modo como ele corta, são cenas curtas, o jeito com que ele prepara o drama sem nunca ser piegas, o uso dos sets e da chuva, tudo tem a marca de um gênio do cinema. ---------------------- Que grande filme!!!!!!!

MALLE E GODARD, DE VOLTA À FRANÇA

Volto à pensar na França e lembro o quanto eu amava sua cultura. Isso por causa de alguns filmes policiais que vi, feitos nos anos 50 e 70. Lembrei, os vendo, dos Gitanes que eu fumava. Fiz as pazes com parte do meu passado então. E revejo dois filmes da Nouvelle Vague. ---------------------- ASCENSOR PARA O CADAFALSO é de Louis Malle. É o filme que tem uma trilha sonora, sublime, de Miles Davis. A única que ele fez na vida. Malle lhe mostrava as imagens e ele ia improvisando. Miles sabia que na França, desde os anos 20, músicos de jazz tinham o respeito que não tinham nos EUA. O filme fala de um crime que não dá certo. Tem muito suspense e é moderno. Jeanne Moreau e Maurice Ronet. As ruas de Paris de 1959 transpiram poesia, uma poesia dura, cinza, fria, maravilhosa. Os carros pequenos, os sobretudos escuros, as janelas abertas. Malle teve uma carreira invulgar. Nunca se repetiu, sabia filmar, sabia dirigir atores. A partir de 1977 virou um diretor americano. Fez obra POP e outras de absoluta vanguarda. Casou com Candice Bergen. Nasceu e morreu rico. ------------------ A BOUT DE SOUFLE, ACOSSADO de Godard. O maoísmo matou o cinema de Godard. Sua militância, feroz, castrou o cineasta que respirava amor ao cinema neste seu primeiro e disparado melhor filme. Ainda, mais de 60 anos depois, parece filme de alguém muito jovem. Ele faz o que quer, se exibe como diretor dono de sua obra, por isso, por essa liberdade de fazer e criar, é ele tão influente. Cortes abruptos que até então seriam considerados um erro fatal, atores que saem do personagem, a flagrante consciência de que aquilo que vemos é um filme, não é real, a quebra do ritmo, hora rápido hora lento, e Belmondo, exalando charme como o heroi que é um ladrão. Todo cinema brasileiro chupou TUDO desta hora e meia de Godard. Voce aponta, em cada cena, um filme brasileiro plagiando Acossado. Toda a turminha deve ter visto isto dúzias de vezes. Me divirto, é um filme bom. Detalhe, em 1960 Bogart ainda não era um mito. Belmondo quer ser ele no filme e isso foi uma percepção de Godard, a de que Bogart era um possível heroi existencial. A moda pegou. Bogart desbancaria James Dean e Marlon Brando como maior mito do cinema. A trilha sonora é perfeita e Raoul Coutard foi um monstro na câmera flutuante, isso antes da invenção da steady cam. Tivesse uma câmera leve ele voaria com ela. ------------------ Pena que a partir de 1962 Godard ficaria muito mais ligado em discurso político que em cinema. Dois bons grandes filmes. Malle é melhor.

Hell's Angels re-release trailer

CINEMA MUDO

Assistir cinema mudo é sempre difícil. É uma linguagem morta. Para usufruir voce precisa se esforçar, e hoje, cultura é confundida com diversão, não se admite esforço. Mas a questão é: vale à pena? ------------------- Fato interessante: as imagens dos filmes mudos possuem caráter de sonho. E não sou eu quem disse isso. Não cito o nome do autor dessa frase porque não recordo. Mas ele acertou. Quando vejo um filme mudo, mesmo que me entedie, fica na memória a sensação de que aquilo era um sonho, de que aquelas imagens não são reais. É uma característica encantada e de encantamento. Há filmes falados que também possuem esse dom, mas entre os mudos quase todos parecem sonhos. São estranhos, irreais, arcaicos, básicos, não necessariamente belos, porém, esquisitos. ----------------- Revi vários nesses dias. AURORA de Murnau não é nada chato, é um filme perfeito. E que fica na lembrança como sonho de dor e de amor. Já rever Fritz Lang é difícil. Pelo menos para mim. METROPOLIS é pesado como um trem, e se as imagens são belas ou inesquecíveis, seu desenvolvimento é rígido como pedra. Lang é sempre pesado. Considero-o, óbvio, um dos 20 maiores cineastas que aqui viveram, mas prefiro muito mais sua fase americana. Nos EUA ele continua pesado, porém seus temas são muito mais humanos. Seus filmes moir são maravilhosos. ----------------- Revi DON JUAN de Alan Crosland, com John Barrymore e Myrna Loy. Eu amo Barrymore, tanto mudo como falando nos anos 30. E Don Juan é de uma riquesa visual que impressiona. Revi também HELLS ANGELS, que é falado mas parece mudo, 1930. É o famoso filme sobre aviação de Howard Hughes, que na verdade foi feito por James Whale. As cenas aéreas são de uma beleza aterradora. Há uma, em que um zeppelin surge entre nuvens, de noite, que é das coisas mais incríveis que já vi. É lindo. E parece um sonho que voce sonhou um dia. ------------------------- Revi Buster Keaton, e comédias envelhecem menos, mas também são menos do mundo dos sonhos. Revi também O GATO E O CANÁRIO de Paul Leni, o avô dos filmes de casa misteriosa. Todos esses filmes têm qualidade, mas são pedem paciência, outro modo de usufruir. É uma educação estética, que sinceramente, não sei se é ainda válida. Sabemos que nunca se filmou tanto como nos anos de 1920 e que 80% dos filmes feitos então se perderam para sempre. Dos que ficaram, 15% vive em cinematecas e são inacessíveis e apenas 5% existem ao seu dispor, em mídias modernas. Desse número, talvez a metade valha à pena rever, são do nível de AURORA ou de HELLS ANGELS. ---------------- è isso.

O DURO E FRIO CINEMA POLICIAL FRANCÊS

A Versatil tem lançado caixas com filmes franceses policiais. Filmes feitos nos anos 50, 60, 70 até os anos 80. A opinião que eu tinha sobre o cinema policial francês era péssima. Imaginava filmes cópias dos americanos. Mal feitos, chatos, com diálogos em excesso. Puro preconceito!!!! Mais uma vez eu fui amestrado pela opinião dos críticos que eu lia nos anos 70 e 80 e não me dei ao trabalho de tirar minha própria conclusão. O cinema policial francês, na média, é ótimo. ------------------- De tudo que vi, cerca de 20 filmes, posso dizer que ruins apenas dois, a maioria é diversão competente, em estilo sempre glacial, e alguns são maravilhosos. Por exemplo I...COMO ÍCARO, filme de Henri Verneuil, diretor odiado por aqui. Feito em 1979, tem Yves Montand como um detetive que tenta encontrar o assassino do presidente. O filme tem cenários e clima futurista, e é tenso, triste sem ser chato, e o final doi nos ossos. Político sem ser partidário. É cinema competente, ou, mais que isso, perfeito. SEM MOTIVO APARENTE de Philippe Labro, feito em 1971, tem mais uma atuação marcante de Jean Louis Trintignant. Ele é um policial ao estilo Dirty Harry que tenta encontar um serial killer. Com Dominique Sanda e Laura Antonelli, ele exibe um certo mundo podre da mídia e é uma obra prima do policial. Não há um só minuto que não seja tenso, exato, necessário. O PAXÁ, de Georges Lautner ( todos esses diretores foram famosos em seu tempo. Seus filmes, feitos um por ano, eram exibidos aqui no Brasil com sucesso de público, apesar da má vontade da crítica ). Jean Gabin, velho, o filme é de 1968, procura encontrar um ladrão que anda matando todos os seus parceiros de crime. No processo ele descobre que seu amigo policial passou para o lado do crime. Ver Gabin é uma honra. Ele é o John Wayne, o James Stewart e o Bogart francês, tudo em um homem só. Nunca fica nervoso, parece derrotado, é o mais estoico dos detetives. Bogey ao lado de Gabin parece um aluno da sexta série. O filme, maravilhoso, tem trilha sonora de Serge Gainsbourg. Quando Requiem pour un con toca, juro, eu achei que era um som de 2010 e não de 1968. Há uma cena com Serge no estúdio. Gabin vai lá prender um músico. Serge passa ao lado de Gabin, Serge era baixinho, os dois se encaram. O mundo nesse dia deve ter parado de girar por alguns micro segundos. ENCURRALADO PARA MORRER de Alain Corneau. De 1977, Yves Montand abandona a esposa pela amante, mas a esposa se mata e a policia acha que a amante do marido a matou. Kafkiano. Tenso. Hitchcokiano. Amargo ao extremo. Sublime. Um super filme! -------------- Eu poderia falar de mais maravilhas. Mas fico por aqui. Eu pensava que o cinema de policiais franceses era apenas Melville. Não. O genial Melville deu gás à uma turma maravilhosa que produzia filmes às dúzias. É uma sorte e uma honra poder os assistir em 2023. Aproveite.

VIGO, CAVALCANTI E O CINEMA DOS ANOS 30 ( COM UM DESASTRE BRASILEIRO....TÃO TÍPICO )

Leio um livro sobre Alberto Cavalcanti. Quem? Cavalcanti. Um brasileiro, fino, chique, que nos anos 1920 trabalhou no cinema francês. Foi cenógrafo, produtor e por fim, diretor. Conheceu Renoir, Clair, Duvivier e Vigo. Fez filmes mudos surrealistas e depois, no sonoro, enveredou pelo cinema mais popular. Saindo da França, foi trabalhar na Inglaterra. Fez documentários com Grierson e depois trabalhou na Ealing. Dirigiu versão de Dickens, fez a obra prima NA SOLIDÃO DA NOITE, lançou, como produtor, vários diretores ingleses e então aconteceu o desastre: voltou para o Brasil. Convidado por Matarazzo para ser o pai da Vera Cruz, a Hollywood do Brasil, foi pego de surpresa ao ver que aquilo era um antro de ladrões. Adolfo Celi desviava dinheiro dos filmes para suas peças no TBC. Gente que nunca havia entrado em um set era designado para dirigir um filme. Atores que mal sabiam falar. Produções jogadas ao lixo depois de torrarem milhões. E uma crítica, marxista, torcendo para que aquele "empreendimento burguês " afundasse. E afundou. Em apenas 4 anos a produtora quebrou e Cavalcanti afundou junto. Difamado, chamado de "agente americano", incompetente gastador, esnobe fazedor de filmes para a burguesia, Cavalcanti volta à Europa destruído. Trabalhará ainda na Alemanha, na França, mas sua carreira, interrompida pela aventura brasileira, termina. ---------------- Cavalcanti era da turma de Clair-Renoir e Duvivier e viu Vigo como um diretor muito jovem que morreu cedo, aos 29 anos, de tuberculose. Vigo deixou apenas um longa, ATALANTE, e alguns curtas. Vejo ontem " SOBRE NICE" e o famoso ZERO DE CONDUTA. -------------- Não direi que Vigo foi o mais poético diretor da história. Ele foi, mas o que importa é dizer como isso pode ser percebido. -------------- SOBRE NICE mostra a cidade lá do alto, imagens filmadas em balão. Depois vêm imagens de barcos, ondas do mar, gente andando, jogo, hoteis, carros, roupas, comida etc. Vigo não segue um plano habitual, ele não mostra a cidade, ele faz MÚSICA COM AS IMAGENS DA CIDADE. Desse modo, como seuquência é como um naipe de uma orquestra e ele harmoniza as imagens-sons construindo uma sinfonia. Em meio as velas dos barcos, brancas, uma imagem fragmento de uma plameira. Essa palmeira traz uma mulher numa cadeira, ela enseja um hotel que chama uma onda na areia. Vigo trabalha com ritmo, um ritmo sempre exato e assim cria poesia. Imagens palavras e ritmo nas frases sequências. Eis o cinema poesia. ---------------------- Em ZERO isso é levado ao extremo. Os alunos se rebelam e nada há de explicitamente político nisso, são crianças, querem brincar. O filme é uma coleção, pouco lógica, de cenas desses alunos. Jogam bola, pulam na sala de aula, fogem, se escondem, riem, ouvem os mais velhos. Não há história, Vigo dá uma situação, um momento na vida dos alunos. Eles criam uma anarquia, vencem os mestres, sobem ao telhado, mas....e então? Pouco importa! Não interessa o fim daquilo tudo nem o porque dos atos. O que tem valor é o que se vê: ritmo, imagens, ações, melodias. Para entrar no mundo de Vigo se deve abrir mão da prosa. Nada aqui é uma narrativa linear. O que ele nos dá são versos-momentos. As coisas não vêm de lá e vão para acolá, elas surgem e se desvanecem. ATALANTE será um desvanecimento longo, mágico, um sonho sem razão e com toda precisão precisa. ------------ Jean Vigo foi um gênio e não tivesse morrido, seria dele e não de Carné o posto de diretor central do país nos ricos anos 30. Uma pena....

AMOR, ETERNO AMOR ( AT LONG LAST LOVE ), PETER BOGDANOVICH, COLE PORTER E A JOIE DE VIVRE

Em 1975, vindo do fracasso de Daisy Miller, Peter Bogdanovich lança este filme. Uma aposta muito arriscada! No momento mais amargo e político da história do cinema, ele apresenta um filme, musical, saudosista, que fala de amor. Críticos abominaram e o público ignorou. No momento em que os filmes da moda eram UM ESTRANHO NO NINHO, UM DIA DE CÃO, TAXI DRIVER E ROCKY, não havia espaço para uma pequena declaração de joie de vivre como é este filme. ------------------- São dois casais. Cybill Shepherd é uma mulher que recebe mesada da mãe. São os anos 30 e ela é o tipo Ginger Rogers: loira, esquentada, indecisa, e muito, muito rica. Burt Reynolds faz um tipo Gary Cooper: milionário, elegante e bobinho. Reclamaram muito de dar à Burt, na época o ator mais popular dos EUA, famoso por filmes de ação, ídolo do povo country, um papel que seria muito mais adequado à Ryan O'Neal ou Robert Redford. Seria como dar para The Rock um papel de bailarino russo. Mas esse é um dos charmes do filme, nos divertimos vendo um machão como Burt tendo de ser Fred Astaire. Ele tem de cantar e arriscar um sapateado. Tudo fica "simpático", tolinho, bobinho e muito, muito alegre. Burt se esforça, ri, faz expressões faciais divertidíssimas! É um prazer de observar. Cybill não. Ela revela aquilo que sempre atrapalhou sua carreira: parece enjoada demais. Antipática. Cybill passa do ponto. Mas surpreendentemente, ela canta bem. Aliás, para os padrões de 2023, todos cantam bem. Este filme é bem melhor, muito melhor, incomparavelmente melhor que LA LA LAND e é tão delicioso como o musical de Woody Allen, EVERYBODY SAYS I LOVE YOU, filme que bebeu sua ideia aqui. ---------------------- O outro casal tem Madeline Kahn, sempre engraçada, e Duilio Del Prete, ator italiano que faz um malandro de Veneza. Um cara que tenta enriquecer no jogo. Há ainda um muito, muito divertido casal feito pelo mordomo de Burt, John Hillerman, e Eillen Brenan, a amiga-secretária de Cybill. A história, em cenários maravilhosos ao estilo RKO anos 30, é a mais comum: Burt se apaixona por Madeline, muda de ideia e fica com Cybill, volta pra Madeline, mas talvez ame mesmo à Cybill. Quem sabe? Peter Bogdanovich era um homem que se apaixonava por suas atrizes e mergulhava no amor sem pudor algum. A mensagem do filme é: o amor muda, ame enquanto pode e mude com ele. ----------------- Todas as canções são de Cole Porter, ou seja, é a trilha sonora do Paraíso. Nunca houve ou há letrista como ele. Suas letras são hiper cultas sem jamais parecer intelectuais, são chiques sem forçar o luxo, são alegres com ironia e dançam na voz de quem as canta. Cole, que era hiper sexualizado, dormia com duques e com marinheiros, adiciona pimenta à cada frase. Sabemos que o tempo todo ele fala de uma boa trepada, mas isso é dito com beleza que brilha, com laços de seda e melodias que são um convite à viver bem e viver feliz. Não há como um filme embalado à Cole Porter ser de todo ruim, e este filme é encantador. ---------------- Joie de Vivre, bebê. Um conceito que hoje parece anacrônico. O dom de tirar da vida aquilo que ela tem de bom. Ter prazer em cada raio de sol e em poder andar na chuva também. Sorrir para a história de seu destino. Apreciar. Este filme tem tudo isso porque tanto Cole Porter como Peter Bogdanovich entendiam que a vida era um presente. Com etiqueta da Chanel.------------------------ Mas os deuses cobram seu preço. Cole Porter teve um acidente se equitação e com as pernas esmagadas, passou os últimos 20 anos de sua vida com muletas e sentindo dor. Já Peter viveu o caso Stratten, viu sua paixão ser morta por marido ciumento e segundo suas palavras, "nunca mais foi feliz". Well....deuses são ciumentos e não suportam ver humanos que se sentem divinos. ---------------------------- Eu adoro musicais, voce sabe disso, e a coisa mais adorável sobre esse estilo de filme, é que quando ele nos enfeitiça queremos asssitir à obra todo dia e toda hora. São como albuns que amamos, companheiros do dia a dia. Este filme, hoje reabilitado, é um desses voodoos. Eu amei. Um voodoo que foi feito tão certo que nos faz viver melhor.

THEY ALL LAUGHED - PETER BOGDANOVICH. AME OU DESPREZE.

Feito em 1981, este filme foi talvez o maior dos fracassos de Peter Bogdanovich. Eu o assisti por volta de 2000, em alguma emisorra à cabo e o revi ontem, em dvd. Nos extras, antes do filme, há uma bela entrevista de Peter, feita em 2006 por Wes Anderson. Wes diz que They All Laughed é o mais Jean Renoir dos filmes de Peter, isso porque, como em Renoir, todos os personagens são boas pessoas ( com excessão do marido de Stratten, que mal se vê ), todos são gente que adoraríamos ter como amigos. Além disso, o filme tem apenas um fiapo de enredo, o que importa é a interação entre as pessoas. Aqui, como em Renoir, é mostrado que na VIDA NÃO INTERESSA AQUILO QUE FAZEMOS, MAS SIM A INTERAÇÃO ENTRE EU E VOCE. -------------- O que acontece de "ação" ? Na Nova Iorque de 1981, uma cidade que no filme parece um tipo de paraíso de vida e cor, três homens, detetives, espionam duas mulheres, suspeitas de traírem seus maridos. O que assistimos são as perseguições pelas ruas dessas mulheres, depois o encontro dos detetives com elas em hoteis e bares, restaurantes e taxis, e por fim o amor que nasce entre detetive e esposa infiel. Mas, observe, nada disso importa. Não há suspense ou surpresas, o que interessa ao filme é o amor, e somente o amor. Durante todo o filme as pessoas beijam, trocam de parceiro, riem, levam tombos, correm, fumam, vão para a cama e dão a volta por cima. Se voce deseja ação tradicional, voce irá odiar este filme. Mas se voce ama ver gente adorável "vivendo", voce vai usufruir de duas horas de belo prazer. É um filme onde voce mora, não assiste. ------------- O absurdo do filme é que ele tem um final trágico na vida real. Na época, Peter estava feliz e profundamente apaixonado pela ex poster da Playboy, Dorothy Stratten, que era casada. O filme tem a estreia de Stratten como atriz e SEU MARIDO NA VIDA REAL FAZ O MARIDO CIUMENTO QUE SÓ APARECE EM DUAS CENAS AO LONGE. Pois ele a mataria num acesso de ciúmes e Peter mergulharia numa tristeza que o marcou até o fim da vida. Nunca no cinema houve nada parecido com isso. Em absoluta falta de pudor ou senso de distanciamente, Peter, o amante, faz um filme onde John Ritter, alter ego do diretor no filme, se apaixona por Stratten, que tem um marido ciumento. É absurdo! Mas há mais: o filme tem Ben Gazzara, como outro detetive que investiga a infidelidade de Audrey Hepburn. No processo os dois têm um caso e se separam, ela fica com o marido. Pois bem... na vida real, Ben e Audrey, ambos casados, estavam terminando um caso doloroso entre os dois!!!! Vendo o filme, percebemos a emoção de Audrey ao viver na tela aquilo que ela vivia na vida, e com mesmo ator que ela amava. Sim meu caro, nunca se fez um filme assim...e o mais fantástico é: tudo é feito com leveza e humor. ( Dorothy seria assassinada ao fim das filmagens, antes do lançamento do filme, crime que matou qualquer chance de sucesso da obra ). O assassinato de Stratten daria tema a outro filme, STAR 80, de Bob Fosse, de longe o pior filme de Fosse, um drama pesado que ninguém entendeu porque foi escolhido como tema por Fosse. STAR 80 matou a carreira do seu diretor. Como se não bastasse tudo isso, o filme ainda tem no elenco o filho real de Audrey fazendo um belo latino tímdio, e as filhas de Peter fazendo as filhas de Ben Gazzara. E como uma taxista que vai pra cama sorrindo com todo homem que ela simpatiza, temos Patti Hansen, ex modelo, loura e muito alta, que um ano depois seria a senhora Keith Richards, papel que ela faz até hoje. Ela quase rouba o filme. Bastante masculina e muito bonita, ela tem carisma de sobra. Pena não ter seguido carreira. ------------------- Companheiro de geração e de turma de Copolla, Scorsese, Friedkin e De Palma, Peter teve uma carreira muito mais variada e, porque não dizer?, interessante. Eu amo os riscos absurdos que ele corre, o modo como ele ignora a moda cinematográfica da época, o mundo sem ódio e sem horror que ele sempre nos dá. Este não é um grande filme e talvez nem seja mesmo um bom filme, mas eu amo esta coisa que roda na tela. Tudo que posso dizer é OBRIGADO PETER.------------------------ ps: A TRILHA SONORA É TODA DE CLÁSSICOS AMERICANOS, GERSHWIN ETC....QUE BELA SURPRESA OUVIR, EM TODA A CENA NUMA LOJA DE SAPATOS, ROBERTO CARLOS CANTANDO "AMIGO!!!!!!! A MÚSICA INTEIRA ROLA ENQUENTO COLLEEN CAMP COMPRA SAPATOS. QUE LINDO!

RONDA MORTAL, UM FILME DE CLAUDE MILLER

Fracasso no lançamento, em 1983, hoje este filme, inclassificável, belo, perturbador, é um cult francês. --------------- Um detetive não consegue esquecer da filha. Anos atrás a esposa o abandonou e levou a criança junto. Ele nunca mais as viu. Hoje a filha deve ter 25 anos de idade. Sua chefe o encarrega de encontrar um milionário desaparecido. Ao investigar, ele descobre que a namorada o assassinou. A matadora é uma jovem de 21 anos, e aos poucos ele descobre que ela é uma assassina compulsiva. Ela mata todos que a namoram e todos são ricos e belos. ---------------- O detetive, que tem o hábito de pensar em voz alta, passa a seguir a matadora. É testemunha de tudo que ela faz, e sem que ela perceba, a ajuda. O filme se desloca então por várias cidades, vários hoteis, vários sets. Sabemos que ela não é a filha desaparecida, e pela data de nascimento, ele sabe disso também. Mas ele a trata como fosse sua filha perdida. Não importa, ele precisa ser pai. O final do filme é de beleza perfeita. ---------------- Michel Serrault faz o pai. O que dizer? Impossível ser melhor que isso. Serrault é sempre um ator brilhante ( A GAIOLA DAS LOUCAS ), mas aqui ele se supera. O pai é patético, charmoso, triste, ousado, e na cena final, comovente. É uma persoangem dificil de fazer, pois ele não pede que sintamos pena dele. É um homem frio e sofrido, mas que nunca chora. E nem é durão. Humano. Serrault lhe dá dignidade e realidade. Uma das maiores atuações já vistas. A assassina é Isabelle Adjani, um papel mais simples, que ela faz com o distanciamento correto. Óbvio que ela é louca, inventa histórias, muda de nome, mas Isabelle consegue não cair no cliché. A trilha sonora, de Carla Bley, é jazz em alto nível. --------------- Claude Miller começou como assistente de Truffaut e teve uma carreira de sucesso ( menos aqui ). Dirige o filme no tom certo. Em mãos menos hábeis poderia cair na ironia fácil ou no horror tolo. É crível do começo ao fim. ------------------ Causa espanto a beleza dos anos de 1980. Eu havia esquecido de como o mundo era belo então. Entre 1978-1986. Roupas, lugares, tudo exala o esnobismo que era então permitido. É uma elegância que busca a beleza sem pudor algum. Éramos bonitos e sabíamos disso. --------------- Um filme espetacular!

GONE TO EARTH 1950 Jennifer Jones YouTube222

TRÊS GRANDES FILMES DE MICHAEL POWELL E EMERIC PRESSBURGER

Como disse Scorsese, entre 1943-1953, Michael Powell e Emeric Pressburger produziram a filmografia mais variada e rompedora de limites da história do cinema. Assisti nesses dias a 3 filmes da dupla, Powell dirigia e escrevia, Pressburger escrevia e produzia. SEI ONDE FICA O PARAÍSO ( I KNOW WHERE I'M GOING ) é um filme de 1945. Da filmografia de Powell, é o que foi mais recentemente alçado à categoria cult. George Romero ama este filme, assim como Coppola. O famoso estilo de Powell é levado aqui ao limite. Que estilo é esse? O de cortar aquilo que todo filme mostra e exibir aquilo que normalmente os filmes evitam. Dou um exemplo: O filme fala de uma moça inglesa que recebe uma proposta de casamento de um milionário. O casamento será numa ilha no extremo norte da Escócia e para lá ela se dirige. O filme mostra sua chegada lá, seu contato com a vida da ilha e sua mudança de vida, de pessoa controlada e cheia de método, ela se abre ao não planejado. Pois bem, quando a filha ( Wendy Hiller, brilhante como sempre ), diz ao pai, em um pub, que irá se casar, todo filme mostraria a reação do pai, a descrição do noivo pela filha. Mas não aqui. Ela conta que vai casar e o pai a convida para dançar. E quando achamos que durante a dança tudo será discutido, POWELL CORTA A CENA e o que vemos é ela subindo no trem e partindo. Para o filme, não importa a reação de pai e de filha, o que interessa é a partida e é só isso que nos é dado assistir. Powell é sempre assim. Aparentemente seus filmes podem parecer convencionais, porque não ousam em movimentos de câmera, truques de iluminação, não apelam ao sensacional, ( The Red Shoes é uma excessão ). Sua profunda originalidade mora na escrita, naquilo que se conta. A noiva chega à ilha e lá há uma tempestade. Também mal se mostra a chuva e a destruição, o que importa é que ela fica presa na cidade e conhece um escocês, Roger Livesey faz o papel. Ele se interessa por ela, ela não por ele e o romance é discreto, travado, sem nada de romântico. O filme é só isso: um passeio pela ilha, uma festa dos moradores, um castelo em ruínas, um homem que ama falcões e uma águia, um moço que tem um barco, um telefone. Não há herois, não há clima de romance, não se busca a beleza. Tudo é sóbrio, e mesmo com tanto realismo, não se tem aqui aquele tipo de "obra realista francesa ou italiana" onde o diretor do filme toma o posto de heroi em filmes sem herois. O que acontece é que voce gosta de estar na ilha, no filme, na companhia do filme. Original, não uma obra prima, nem mesmo um grande filme, mas sim um filme que se ama. Discretamente. ------------------ CORAÇÃO INDÔMITO ( GONE TO EARTH ) é de 1950 e é um dos fracassos de Powell. David O. Selznick, o gigante egocêntrico que produziu E O Vento Levou, contratou Powell e Pressburger para produzirem um sucesso para sua esposa, a ótima Jennifer Jones. Filmando em Gales, o filme é tudo que Selznick não queria: Original. O que o americano fez? Pegou o filme pronto, cortou montes de cenas, filmou um novo final e assim destruiu a obra. O que vejo em DVD é ele inteiro, refeito, como Powell o queria ( graças a Coppola houve a recuperação do filme ). Na Gales do fim do século XIX, vemos a história de uma moça do campo, rebelde, meia bruxa, que protege uma raposa dos caçadores. Um religioso casa com ela, mas o nobre do lugar a deseja e a seduz, levando-a para sua casa. Ela volta ao pastor, mas o povo do lugar não aceita isso e a situação se torna sem saída. Como Powell conta essa história? Com cenas que mostram Jennifer Jones correndo pelo campo, com a presença do clima local ( a fronteira Gales-Inglaterra ), mostrando os bichos ao redor das pessoas, o céu que se move, a relva verde, os cavalos, a sujeira dos casebres, a grosseria do nobre vaidoso, o modo como ela não é dona de sua vida, ela vive toda ao sabor da natureza, sem decidir nada. Dizem que poucos filmes mostraram de modo tão real o que é o interior de Gales, sinto pena é que em 1950 quase ninguém o viu e mesmo nas décadas seguintes ele passou apenas uma vez na TV americana e na vesão truncada. Scorsese o viu quando tinha 9 anos de idade e nunca esqueceu. É impressionante o modo como os filmes de Powell marcam a memória não com suas histórias ou grandes cenas, mas com uma imagem, um clima que se fixa dentro de nós. É um filme belíssimo. --------------------- Por fim o muito dramático DE VOLTA AO PEQUENO APARTAMENTO ( THE SMALL BACK ROOM ) de 1949. Imagine o choque...Powell acabara de ser aclamado pelo imenso sucesso, popular e artístico, de The Red Shoes, e em seguida, em vez de fazer um filme que lembre seu sucesso, produz este filme, sobre guerra, alcoolismo e com um modo terrivelmente pessimista. David Farrar, numa atuação soberba, é um especialista em explosivos, um tipo de cientista, que trabalha em um departmento do governo, em Londres, durante a guerra. A missão de seu grupo é descobrir como desativar uma nova bomba nazista. Veja que o filme é sobre a guerra mas não sobre batalhas. Não haverá um só tiro, um soldado, um avião, nada. O foco é todo nesse cinetista, no alcoolismo dele, na esposa que o adora, no horrível sofrimento que ele sente, na perna que doi, na sua auto-piedade, sua fraqueza. Todo filmado em bares, salas escuras, no apartamento do casal, no trabalho, nada há aqui que lembre "beleza" ou "poesia" e mesmo assim é um filme belíssimo. O elenco explode em atuações de entrega total e o filme, para quem conhece Powell, surpreende por ser diferente do Powell dos anos 40. Aqui se anuncia o diretor dos anos 60, moderno, duro, objetivo, frio, aquele que faria o doentio Peeping Tom. É o mais forte dos 3 filmes, mas não o melhor pois o melhor é impossível de ser apontado. ----------------------- Um maravilhoso prazer poder os assistir.

ODEIO-TE MEU AMOR! ( UNFAITHFULLY YOURS ), UM FILME DE PRESTON STURGES PARA AQUELES QUE SABEM OUVIR

Feito em 1948, ano que é um dos melhores do cinema, este filme, já da fase azarada de Sturges, é uma das diversões mais civilizadas que uma pessoa pode ter. O ator principal é Rex Harrison, e voce sabe, quando Rex abre a boca tudo se torna mais chique. Ouvir a voz de Harrison é um dos maiores prazeres da tela e aqui, além de falar bem como sempre, ele mostra também seu dom de grande ator dramático, pois apesar de esta ser uma comédia, há cenas de ressonância muito, muito séria. Observe a cena no banheiro, quando ele afia a navalha pensando em matar a esposa. Veja a maldade aterradora exibida em sua face. É momento de um grande ator, e Rex é, ao lado de Alec Guiness, um dos grandes atores que transitam do mal à bondade, da leveza ao peso com absoluta facilidade. E, como se não bastasse, poucos filmes têm cenários tão bonitos, tão bem decorados. Não bastasse ser divertido, o filme é uma aula de finesse. Amamos observar Rex se vestir, fumar, viver em meio àquele conforto extremamente civilizado. -------------------- Preston Sturges tinha um carinho especial por este seu roteiro e em 1948 finalmente o filmou. O filme foi seu primeiro fracasso, ele vinha de 7 sucessos seguidos em apenas 4 anos. Crítica e público não aceitaram a frieza do enredo, o modo como mais da metade do filme é uma fantasia do maestro interpretado por Rex. O enredo é inteligente, como era inteligente tudo que Sturges escrevia. Rex Harrison é um grande maestro. Vaidoso, ele é casado com uma mulher que o adora, Linda Darnell. Mas seu cunhado, Rudy Valee, pessoa chata, que ele odeia, contratou um detetive, que ao vigiar a esposa do maestro, descobre uma possível infidelidade. No começo o maestro despreza a descoberta, mas o ciúme está plantado nele e então, enquanto rege sobre o palco, ele imagina 3 reações diante da esposa: o assassinato, o perdão e o suicídio. Vemos tudo isso acontecer dentro de sua mente e depois, na vida real, ao optar pelo assassinato, testemunhamos a extrema falta de jeito do maestro. O que posso dizer? É um filme fascinante. ---------------------- Preston Sturges, fenômeno de sucesso e de arte, perdeu tudo em apenas 5 anos. De gênio e dono do próprio destino, à desempregado e pária de Hollywood. Ficou por isso esquecido da história do cinema por 30 anos e retornou à moda, triunfante, nos anos 90. Seu cinema é malicioso, amoral e criativo. Ele era uma alma livre. Dirigia, escrevia, produzia. Todos os seus filme falam de mentirosos, de enganos, de quase gênios ingênuos e de larápios pervertidos. Tudo é possível e tudo acontece do modo como nunca esperávamos. Ele sempre nos surpreende. Cada cena é exata, e ela sempre parece rumar para um ponto e então desviar para outro. Não há diretor algum parecido com ele. Mas há dúzias de diretores que o amam. Ver seus filmes é um prazer e em tempos que odeiam o prazer, é um ato de rebeldia. Aprecie sem moderação.

PORQUE DESPREZO TODO O CINEMA ATUAL E SOBRE AS COMÉDIAS BOBAS DOS ANOS 80

Óbvio que estou sendo injusto e é lógico que deve haver algo que preste. Mas eu desisti do cinema feito hoje porque esse cinema me enoja. Não gosto do rosto dos atores, não gosto do tom em que os filmes são feitos, não gosto da melancolia que escorre até mesmo das aventuras e comédias, odeio profundamente as chantagens emocionais. As vozes são de pessoas derrotadas, tristes, e o olhar, em todos os filmes, varia entre um ódio mal disfarçado ou o quase desespero. Qual a chance de eu assistir um filme sobre um gordo gay que sofre sem parar? ------------------ Vamos falar de algo que nos ergue? Comédias. Escrevi em outro post que o período entre 1978-1998 foi o auge da comédia. Talvez possamos traçar o começo em 1972, com o Woody Allen ainda engraçado e Mel Brooks. ------------- Os anos 30 tiveram Os Irmãos Marx, gênios absolutos e remédio certo para qualquer pensamento suicida, e ainda W.C.Fields, o mais niilista dos humoristas. Os anos 40 nos deu os filmes de Preston Sturges, um gênio, e Bob Hope. Nos anos 50 houve Abbot e Costello, Martin e Lewis e Lucille Ball. Nos 60 a comédia caiu. Peter Sellers era genial mas nunca foi humorista de verdade. Blake Edwards era bom. E havia Jerry Lewis. Mas o humor parecia nostalgia. Quando Mel Brooks sai da TV e parte a fazer filmes a coisa renasce. ----------------- Nos anos 80 teremos uma quantidade imensa de humor e humoristas. De Bill Murray à Eddie Murphy, de Steve Martin à John Candy, Lilly Tomlin, Belushi, Martin Short, Leslie Nielsen, o cinema era riso toda semana. Mesmo atores sérios se enfiavam no gênero. Tom Hanks, Travolta, Dennis Quaid, todos deram seus passos no humor. ------------------- Assisto dois filmes simples do gênero. E logo percebo a diferença, ambos seriam hoje impossíveis. Como todo humor verdadeiro, eles não estão nem aí para elegância, boas causas, não sentem medo algum e são coloridos, vibrantes de vida, atirados ao prazer. Ao contrário do humor "útil" ou "consciente" de hoje, ou seja, censurado, são filmes tolos que amam sua tolice. Eles têm luz forte, são claros, coloridos, descompromissados. Nos ensinam a não levar nada tão à sério, pecado mortal para os dias de hoje. ------------------- UM MORTO MUITO LOUCO tem uma história paupérrima e absurda. Dois caras têm de fazer com que todos acreditem que seu chefe está vivo. Isso durante todo um fim de semana na praia. O que há de bom nessa tolice? De bom não há nada, mas ele é divertido pra caramba! Os atores são bonitos, e parecem se divertir muito. A edição não tem pontos mortos e nada nele nos recorda as tristezas da vida. O cadáver se torna engraçado, o que é quase um milagre. Quando eles arrastam o corpo em ski no mar, cara, eu rolei de gargalhar! O que espanta também é a opulência de um mundo que não mais existe. Nos anos 80 as pessoas tinham muitas, muitas coisas e não sentiam vergonha alguma por isso. O que move o filme é dinheiro e sexo e eu digo que esse fato se chama honestidade. O que nos move é sexo e dinheiro e reprimir isso é viver confuso. Ou em estado de passividade. Quem dirigiu foi Ted Kotchef, diretor canadense que foi cult nos anos 70.--------------- O outro filme é DE VOLTA ÀS AULAS, e ele tem Rodney Dangerfield como um muito, muito rico grosseirão, que volta à universidade para ajudar o filho que está deprê. O início seria todo censurado hoje. Uma sequência de comerciais para roupas de gordo. Na universidade ele logo seduz todos, usando dinheiro e sendo o que ele é: um macho sexista bem humorado. Já em 1986, ano do filme, uma professora diz sentir saudades de homens que não se sentiam obrigados a chorar. Hoje ela deve ser uma lésbica. ------------------- Rodney Dangerfield era um humorista, vindo do stand up, tão bom que a gente sente sempre que todos seus filmes são menores que ele é. Caddyshack é a melhor coisa que ele fez, é uma das melhores comédias da história. Esta não. É apenas agradável. Robert Downey Jr faz um esquisito que hoje seria um cara comum. ---------------- Quando voltei à faculdade, em 2011, eu já tinha 49 anos. E de certo modo eu fui um Rodney sem grana. Lembro de entrar na sala, um silêncio deprimido entre os alunos, e começar a puxar conversa com todo mundo. Eu fazia piadas, elogiava as meninas, tirava uma das aulas e conversava com os professores. Andava pelos corredores olhando as meninas bonitas, rindo, falando aos berros, braços soltos, uma anomalia entre gente ensinada a se conter. E eles me procuravam. Me achavam excêntrico. Não sabiam que eu era apenas um homem comum dos anos 80. É isso.

AQUELE QUE SABE VIVER - DINO RISI. O PRIMEIRO ROAD MOVIE.

------------------- Easy Rider, assumidamente, se baseou neste filme de 1962, portanto, feito sete anos antes do americano. Sucesso imenso, Dino Risi e seus roteiristas, Age e Scarpelli, contam a história de um estudante tímido, um sublime Jean-Louis Trintignant, que viaja pela Italia com Vittorio Gassman, este em momento de exuberância magnética. É o primeiro filme on the road e Trintignant seria o que Jack Nicholson foi no filme de 1969, o ingênuo medroso que se entrega à estrada. Dennis Hopper assumiu a influência em entrevistas, mas há aqui um imensa diferença: Isto é Itália e ao contrário do belo filme americano, muito prazer vive nesta obra. Não há equivalente americano à Gassman. Peter Fonda viaja para encontrar um sentido, Dennis Hopper viaja para ser livre, Vittorio Gassman é italiano, ele viaja por puro prazer. ------------------ Os dois, que não se conheciam, se unem, e correm pelas estradas, sempre em alta velocidade e em pleno boom econômico da Italia. O país mudava, enriquecia, as lambretas se vão, começa a era dos carros e das lanchas. Gassman é um tipo expansivo, malandro, endividado, playboy, sorridente, já o francês é um nerd completo. Eles se conhecem no começo do filme e o que vemos é uma amizade de 4 dias. Pela estrada, correndo e conhecendo gente. É a Italia em seu momento mágico. Últimos anos em que sua música, cinema, livros e moda eram dominantes no ocidente. Em 1964 eles perderiam esse posto para a Inglaterra graças aos Beatles. -------------------- Na estrada eles encontram tipos. Se envolvem em trapaças, brigas, seduções, fugas. Ao fim se hospedam na casa da ex esposa de Gassman, que o odeia, e lá vive sua filha, uma Catherine Spaak lindíssima. Trintignant se solta afinal e o filme é dele. Poucos atores souberam fazer um jovem tímido como ele. E então vem o fim. Que não conto. ---------------------- É o melhor filme de Risi e um dos melhores filmes da Europa. Mais que tudo, ele captura um momento: músicas pop ( a música italiana POP é a grande influência sobre nossa Jovem Guarda e não os Beatles ), roupas, carros, tudo parece novo então, a Itália brilha com seus dólares recém chegados. Gassman, sempre imenso ator, consegue revelar uma cicatriz debaixo de brilho malandro de seu personagem. Ele usa o novo amigo, usa a ex esposa, usa toda pessoa que cruza na estrada, mas ele consegue parecer real, toque preciso em personagem que poderia se tornar bufão. --------------- Todo país tem momentos mágicos e a Italia teve seu último aqui, em 1960-65, quando o dinheiro abundava e a arte foi na onda como contrapeso. Divertido, trágico e inesquecível, o nome do filme se tornou parte do vocabulário da Argentina ( lá Gassman era Deus ) e a bilheteria foi rica em todo o mundo. Ser jovem nesses anos em Roma ou MIlano era um privilégio. O filme, alegre e amargo é inesquecível.

OS MONSTROS - DINO RISI. A SABEDORIA DA ITÁLIA. OU SERIA APENAS VAIDADE?

Não existe no mundo país com coragem maior para a auto-crítica que a Itália. Uma cultura que vem de Roma e renasce com Maquiavel, Dante e Bocaccio tem raízes fundas no estoicismo. O mundo é cruel, eles sabem, nós somos muito crueis, eles admitem, vamos exibir isso, eles fazem. Neste filme, Dino Risi nos apresenta uma série curta de sketches que nos dão flagrantes da maldade italiana. É uma comédia, mas muito mais que o riso, ela nos dá raiva e na história final, choro. ( A última história, com atuações milagrosas de Gassman e Tognazzi, nos exibem um momento na vida de dois boxeadores. Nada em cinema, nem Scorsese ou os filmes noir dos anos 40 sobre o assunto, disse tanto de modo tão cru ). O roteiro, esperto, sempre nos surpreende. Pensamos que adivinhamos o final, e somos enganados. Dou exemplo: uma velhinha foge nas ruas. Um grupo de homens a captura. Pensamos: ela fugiu do hospício, da clínica, da família. Mas não! Ela fugiu de um filme de Fellini. Por que? Aí não conto. Veja. ------------------------------ Os dois atores-gênio aparecem em todos os sketches. Eles vão do sublime ao patético. É fascinante ver os dois em ação. Sem pudor algum, o italiano é exibido como ladrão, egoísta, cruel, falso e extremamente vaidoso. O que me faz pensar: um povo que se exibe assim, exibe mesmo seu podre, seu mal, é sábio ou é tão vaidoso que até ao exibir seus vícios se vangloria deles? Não há nenhum outro cinema que escancare de modo tão fundo todo seu lado sujo. E pergunto, por que a Itália tem esse dom? Eu creio ser sua raiz estoica, estoicismo que vem desde Roma e renasce na época de Julio e dos Borgia. Para eles, o mundo é um inferno, mas é um inferno com risos, vinho e belas mulheres. Então vivamos enquanto podemos viver. -------------------- Este filme, como todo grande filme italiano, fala isso. Afirma o homem, ruim e belo, em meio as chamas do mal. Na última história, a única poética, Risi conclui com imagem digna de Fellini. Os Monstros, enorme sucesso em seu tempo, é um bravissimo filme.

UM AMERICANO EM ROMA - STENO. QUANDO UM ATOR VAI ADIANTE

Steno foi um diretor de grande bilheteria na Italia dos anos 50 e 60. Começou sua carreira dirigindo filmes em parceria com o grande Mario Monicelli, depois, quando Mario partiu para a carreira solo, manteve seu foco em comédias que faziam a crônica do boom italiano, o momento em que a velha Italia se americanizava. Neste filme, surpreendente em sua loucura, vemos Alberto Sordi, o ator mais amado pelo povão do país, como um jovem inutil que vive e sonha como fosse um americano. É fascinante ouvir a língua que Sordi fala, um misto de italiano e inglês surrupiado, o tempo todo se lamentando, cantando e procurando se impor nesse inglês cheio de italianismos absurdos. O modo como ele se move, lutando para sufocar o gestual latino e se auto impondo o modo americano de mover mãos, pernas e rosto, é coisa de ator em momento de genialidade. Sordi perde o controle de propósito, seu personagem vai além do comum, ele se perde na sua mania americana. É um filme que nos deixa muito surpresos. --------------- Interessante também observar como coisas que na época do filme causavam surpresa, por serem made in USA, portanto, alienígenas, hoje nos são totalmente naturais, cotidianas. Desse modo, Sordi se surpreende com, e passa a usar mostarda, ketchup, beber leite ( europeus não bebiam leite após a infancia ), refrigerantes, chicletes, jeans, rock, camiseta... Sordi se obriga a comer como um americano e amar tudo que eles amam. Os pais, aterrados, não sabem como lidar com tanta loucura e nós, o público, nos divertimos com os gemidos e trejeitos de Sordi. A Steno só resta deixar a câmera ligada e gravar o ator em um de seus melhores momentos.

OS VISITANTES DA NOITE, O MAU E O AMOR, A POESIA EM FILME

Um letreiro anuncia: O Diabo mandou à Terra duas almas para semearem o desespero entre os homens. França, 1485. Vemos então duas pessoas à cavalo. Cruzam um campo, árido, e chegam à um castelo, branco. Primeiro acerto do filme, o castelo é novo em folha. Vários filmes medievais mostram castelos em ruínas, esquecendo que em 1300 ou 1400 eles seriam novos. A dupla é recebida numa festa que lá se realiza. Anne, jovem bela, irá se casar com o dono do castelo. Em meio ao banquete, o homem, Gilles, canta para Anne. Se instaura a poesia: a canção é belíssima e Anne se apaixona por Gilles. Ao mesmo tempo, o outro forasteiro, que na verdade é uma mulher, seduz o pai da noiva. A dupla, humanos que se venderam a Satã, instauram o desespero usando um falso amor. Cena exemplar: o tempo cessa, todos são congelados, para que a sedução se realize. O amor surge como solidão no tempo, mundo à parte, morte em vida. Mas algo ocorre: Gilles se apaixona de fato e o Diabo precisa intervir para vencer o amor. E mais não conto. ----------------- Raras vezes vi filme tão despudoradamente romântico. Prévert, o roteirista poeta, nos mergulha no amor. Anne e Gilles são torturados, tentados, tapeados, mas se agarram um no outro, em seu mundo além do mundo. Me pego chorando em duas cenas. O modo como Anne enfrenta o diabo é de cortar nosso coração. Paganismo: este mundo é do mal, o amor é de Deus. Deus enfrenta o Demônio a cada vez que um amor real nasce. Ao fim, o casal "perde", são transfomados em pedra. Mas, que surpresa! O Diabo ouve que o coração dos dois ainda bate! Irado, ele chicoteia as estátuas, mas o coração insiste, persiste, vence... Não há como resistir a este filme. --------------- Assiti esta obra prima em 1989, na velha TV Gazeta. Sábados de noite havia um festival de clássicos franceses. Foi lá que vi meus primeiros Renoir, Feyder, Clair...e Carné. A imagem dos filmes era péssima! Não restaurados, alguns eram quase impossíveis de assistir. Mas mesmo assim me apaixonei por este filme. Ele me pareceu mágico. Era um mundo onde o impossível acontecia de forma convincente, lógica, cotidiana. O sabor medieval era autêntico. Então fiquei 30 anos sem o ver! Revi em 2019 e mais uma vez ontem de noite. Não me decepciono! É uma obra prima de fato! ---------------------- Todos os atores são comoventes, mas Jules Berry como o Diabo é a melhor encarnação de satã que vi na vida. Charmoso, elegante e profundamente mau, ele é o oposto absoluto à Anne feita por Marie Déa, um primor de força natural, de beleza bondosa. Fiquei 30 anos com a voz de Gilles dizendo "Anne Anne" ecoando em minha mente! É um dos raros filmes que vive para sempre dentro de voce porque ele reflete algo que respira dentro do nosso inconsciente. A luta entre a sombra e a luz. Mais: o filme desperta uma absoluta vontade de amar, e vemos que o amor é uma solidão, pois ele nos isola do mundo e nos faz viver dentro dele. Ao mesmo tempo, é ele a única força capaz de vencer o medo, o mal e a morte. Anne e Gilles são vencedores porque amam. E nada mais tem a menor importância. ---------------- Pois se os Templários estavam certos, somente O Amor é Deus, e todo o resto é Mundo de Satã. No amor estamos vivos, fora dele somos almas em danação. O filme mostra essa filosofia, profunda, em falas e imagens que parecem vir de algum lugar muito antigo e muito "de sempre", parece remoto e ao mesmo tempo esteve sempre aqui. Jacques Prévert e Marcel Carné criam uma história simples, porém eterna. Não há fala fraca e não há cena inútil, cada fotograma é um lembrete: amor, amor, amor, amor... ------------- Penso em como uma alma cínica, deste século vagabundo, se sentirá vendo este filme. Incômodo? Sono? Raiva? Fuga? Quem hoje tem coragem? Que amor é este, o de 2023, que não enfrenta nada e na verdade obedece? Mergulhados em ruídos e em coisas, onde está a coragem de tecer um mundo solitário? Quem geme e grita o nome do amor em meio a tortura? Quem? --------------- Pois o amor é espírito, é gentil, alma que canta, olho que vê além. Ele vence quando nasce. Ele sobrevive quando morre. Obra de arte, este filme dignifica o cinema francês e dá estatuto de nobreza a uma arte tantas vezes vulgar. Voce sai do filme e deseja se apaixonar. Completamente. É um filme veneno.

O CAIS DAS SOMBRAS, UMA OBRA PRIMA DE MARCEL CARNÉ

Primeiro os créditos iniciais: Schufftan e Alekan são os diretores de fotografia. Alekan inclusive foi homenageado por Wenders em seu filme sobre os anjos em Berlin. Schufftan formou uma legião de diretores de fotografia e nos EUA criou escola. Mais: o cenógrafo é Alexandre Trauner, talvez o maior mestre da cenografia para filmes. Jacques Prévert no roteiro e eis o filme. --------------- Primeira cena e voce já entra no clima: noite, uma estrada cheia de neblina. Um caminhão freia porque há um homem no meio do caminho. Carona. É Gabin em mais um papel mítico. Usa uniforme de soldado, está fugindo, veio da Indochina, colônia francesa. Um cão na estrada, Gabin faz o caminhão desviar, quase briga entre ele e o condutor, fazem as pazes, um Gitanes então. Gabin desce em Le Havre, o cão o segue. Uma cabana grande, bar e hotel, um barraco à beira mar, neblina. O dono do lugar o ajuda, lhe dá comida. Uma mulher, Michele Morgan aos 16 anos fazendo a femme fatale. Boina, capa de chuva transparente, lindissima. A cena em que ela se volta, close, de antologia. Eis o filme noir. Os dois se apaixonam, mas há Michel Simon, seu "padrinho", há um rico metido à gangster, há a fome. Não há vilão mais asqueroso que Michel Simon! Seu rosto, feio como o crime, queixada, olho de cobiça, voz de mentiroso, todo filme com Simon, e são muitos, é uma aula em como ser nojento, como ser repulsivo, mesmo quando ele é o heroi!!!! Pois bem...Gabin herda as roupas e os documentos de um morto da praia, conhece um capitão, irá fugir para a Venezuela ( em 1938 se emigrava muito para lá ). Mas há o amor, antes o amor. Uma noite de amor. E uma ida ao parque, brincar. Os dois descobrem que a vida não é tão ruim, talvez a sorte tenha mudado. Mas ele mata Simon, com um tijolo e tem de partir, sem ela. Na rua, tiros, Gabin morre, foi o playboy que se faz de gangster...Um beijo enquanto ele morre na rua. Ela ficará só. O cão foge do navio, corre pelas ruas, é o fim. ------------------- Conciso, direto, sem nenhuma fala ou cena que sobre, é um filme perfeito. Há obras primas que não são perfeitas, posso citar dezenas, e há filmes perfeitos que não são obras primas. Pois um perfeito para ser obra prima tem de ter um universo inteiro dentro de si. A obra prima, em qualquer das artes, inventa um mundo onde ele reside, ela é centro desse mundo e se torna a onipresença desse kosmos. Ao ver uma obra prima em filme, entramos no mundo daquele filme, um mundo que só existe lá e que TEM DE existir para sempre. Já o filme perfeito, apenas perfeito, não tem uma cena a mais, não mostra falha, jamais hesita, é inexorável. Este filme é as duas coisas, um mundo de neblina e de azar, e de beleza triste, e também uma absoluta concisão perfeita, por isso irretocável. E há Gabin, mais uma vez...desta vez doce, quase bom, sensível e perdido, um desertor, um sozinho. Carné não tem medo algum, ele nos dilacera. O filme é um prazer amargo, um dos meus favoritos, obrigatório.