concerto para piano número 20- Mozart

Todo começo de noite eu passava em frente àquela casa. Alguém mais parava para olhá-la ? Creio que não... eu mesmo não saberia dizer se aquela luz era real. Velas, fogo de lareira, o que iluminava aquela janela ? Uma luz que parecia nada iluminar.
A banca de jornais vendia livros. Livros encapados em couro preto com lombadas douradas. Eu os admirava de longe. Meu hálito voava na já noite de maio. Eu era só. Inescapavelmente solitário.
Os ônibus passavam quentes e com suas janelas embaçadas pelo calor de vários corpos apertados. Meu coração tinha pressa. A janela do casarão prometia alguma canção.
No domingo de manhã, manhã gelada e de vento, um deserto na avenida larga, uma febre ansiosa na minha semana, a vontade de ir logo em algum lugar. Descí do táxi e comprei alguns- vários fascículos. Um deles : Mozart.
Sózinho sobre um tapete de lã vermelha e verde. É final de tarde. Ninguém em casa. Na janela alguns raios de sol. Eles caem sobre um sofá de tom cor de vinho. O que eu quero ?
Primeiro um acorde.
O mais heróico dos acordes. Que é isso ? Esse acorde é forte e fala comigo. Sim ! Fala comigo e grita dentro de mim. Ele diz e imperiosamente ordena : Viva.
Outro acorde vem. Mais baixo, mais suave, ele ronda pelas vielas e pelas sombras. As sombras daquela avenida, daquele mundo e daquela janela amarela. A música ronda pela sala, gira entre todos os cantos e súbito eu não existo mais.
Agora eu sou aquela melodia.
E vejo, alí, nos raios de sol, toda a vida que viverei : Os dias, as noites, os vazios. Me enxergo como um homem que ainda serei. As visões. Amarelas. Orvalhadas.
Percebo que aquela música possui um sentido. Cada nota é impregnada de uma rota e todas essas rotas se completam. Sómente no século XVIII poderia haver Mozart, pois naquele tempo tudo tinha sentido- tudo era uma certeza! Seja a igreja, seja o canhão, tudo era certo. E esta música é a música da certeza- música que grita e sussurra : eis um gênio/ eis a vida/ eis o que vale a pena/ eis o homem.
Quando o piano entra, num dedilhado que é uma ode à mais genuina beleza, eu, orgulhoso ateu, passo, sempre que o ouço, a crer em Deus. Pois este piano, que me faz chorar, só pode ser obra de alguém que foi feito à imagem do divino. Não há como negar : é transcendente.
Pausa....................................
Ao se iniciar o segundo movimento. Ocorre o milagre. A beleza em estado puro : a beleza em música.
Nada pode ser mais doce, belo, calmo, eterno, amoroso.
Vejo a mulher que se esconde por detrás daquela janela de luz amarela. Ela é o consolo da vida. Ela é a anti- morte. O anjo salvador. O primeiro colo ao recém-nascido. O sorriso de seu primogênito. A melodia, sinuosa, enrola-se ao redor de todo sonho que sonhei e de toda ilusão que desposarei. Me seduz e me leva. Ao magnifico vazio.
Se eu morresse nesse momento teria uma vida justificada.
Mas o movimento se encerra. E já nasce a saudade daquele primeiro toque do dedo na tecla que iniciou este momento: é a saudade da menina que se sentava na fila da frente. Da lambida de seu primeiro cachorro. Da primeira primavera neste mundo.
Eu não consigo crer que Mozart tenha um dia existido. Seu mundo é tão superior ao mundo que conhecemos que sua existencia é impensável.
Mas há o movimento final. Um convite à luta. A jamais deixar de crer. A união de carne e alma. A tudo que vale a vida e a morte. Eu olho essa música- ela é visível. Eu a olho e a amo. Ela é o mundo que sonho para mim. É o mais belo ideal e o cume máximo da criação humana.
Este concerto ilumina todo túmulo onde jaz a deseperança e o medo.