AMOR AOS FILMES

   Posso dizer com toda a certeza, que desde meus 20 e poucos anos, nunca tive tão pouco interesse pelo cinema. Mais que em qualquer outra arte, o cinema para mim só existe como paixão enquanto parece ser uma descoberta. Quando eu tinha 14 anos de idade, o cinema era um mundo todo novo. Depois, aos 28, 29 anos, descobri a história mais antiga do cinema. E aos 40, comecei minha coleção de dvds. Com o tempo essa coleção se completou e percebi que 85% dos grandes filmes não eram mais inéditos para mim. Eu planejara ser a hora então de perseguir as novidades, eu passara a ter tempo para o cinema de agora. Mas esse cinema me fez brochar. As manias e os vícios do cinema dos anos 2000 mataram minha paixão e me deram tédio. O cinema morreu. Ele hoje vive como um tipo de passatempo ou uma rememoração daquilo que ele um dia foi. O CINEMA É AGORA AQUILO QUE O TEATRO É DESDE 1900. OU O QUE O JAZZ É DESDE 1960.
  Melhor dizendo, é circo.
  Mas eu vejo filmes ainda. Poucos. Nos últimos meses assisti estes...
  TEMPESTADE, PLANETA EM FÚRIA de Dean Devlin com Gerard Butler, Abbie Cornish.
Mais um fim de mundo. No futuro um satélite nos protege do kaos. Mas ele é sabotado. Butler é o cara que construiu a coisa e vai lá a consertar. Sim, voce já viu esse filme contado de mil formas iguais. Alguém disse que os efeitos especiais já estão em decadência. Eles eram usados para aperfeiçoar um filme. Agora são apenas o mínimo que se espera de qualquer filme. Este é comum. Nem bom nem ruim.
  O ESTRANHO QUE NÓS AMAMOS de Sofia Coppola. com Nicole Kidman, Colin Farrel, Kirsten Dunst, Elle Fanning.
Que filme ruim! Uma refilmagem flácida, tola, capenga, metida a besta, do filme de 1971 de Don Siegel com Clint Eastwood. O original é uma produção esquisita. Um filme de horror, de dor e de medo, em que um soldado confederado é castrado por um bando de mulheres. Clint dá sua primeira interpretação séria, faz um pobre homem ferido que se pavoneia em meio a seu harém, mas que acaba como um objeto quebrado e inútil. Aqui, Sofia, em seu pior filme, pesa a mão no esteticismo árido e o filme não existe. O que era sutil e erótico se torna pesado e falso. Um completo fiasco.
  KINGSMAN, O CÍRCULO DOURADO de Mathew Vaughan com Mark Strong, Colin Firth.
Fraco. O primeiro foi um bom filme, divertido, leve, nada pretensioso. Este é hiper produzido, histérico e se enrola numa história muito forçada. Nada de especial.
  A MALDIÇÃO DA MOSCA de Don Sharp
A mosca da cabeça branca, de 1957, é um pequeno clássico de horror. Foi refilmado por Croenenberg em 1986. Esta é uma continuação do primeiro filme feita em 1965. É ruim. Se perde num romance bobo e não tem uma só pitada de medo. Lixo.
  DESTINATION GOBI de Robert Wise com Richard Widmark
O pior filme de Wise, um diretor que sabia tudo de cinema. A história é fraca, não temos interesse em ver um grupo de soldados na Mongolia.
  BOEING BOEING de John Rich com Tony Curtis e Jerry Lewis.
Feito em 1965, é uma comédia inacreditavelmente machista. Hoje seria impossível de ser feita. Tony é um playboy jornalista que namora 3 aeromoças ao mesmo tempo. Ele mente para a as 3. Jerry vem dos EUA e tenta tirar uma casquinha das meninas. O filme é feito de diálogos maliciosos e de Tony lutando para salvar suas mentiras. Lembro de assistir com meu irmão na TV, por volta de 1976. A gente acreditou que essa seria nossa vida de adultos.
  A PAIXÃO DE UMA VIDA de John Ford com Tyrone Power e Maureen O´Hara.
Ò John Ford ! Este é um dos menos queridos de seus filmes, e mesmo assim ele conseguiu me fazer lembrar da paixão que eu tive um dia por filmes...É a história, simples, singela, ingênua, de um rapaz que passa toda sua vida numa academia que forma oficiais. Juventude, casamento, velhice e morte. Ford canta, não conta, canta sua saga cotidiana e encanta quem ainda crê nesses valores antigos e preciosos. Ele filma fácil. Ele ama seus personagens. Ele é sincero. Amei este filme.
  KIM de Victor Saville com Dean Stockwell e Errol Flynn.
Não, não é nem um terço do que poderia ser. Muito Dean e pouco Errol. Envelheceu mal esta fantasia juvenil passada num oriente de cartoon.
  NUNCA ME DIGA ADEUS de James V. Kern com Errol Flynn e Eleanor Parker.
Começa mal. Muitas cenas com a menina que divide seu ano entre seu pai e sua mãe divorciados. O pai, Errol sendo Errol, é um playboy que adora festas e inventa histórias. A mãe ainda gosta dele, mas está descrente. O filme cresce ao deixar Errol exercer sua suavidade esperta. Ele carrega o filme nas costas.
 

A speck in the cosmos: the inner frontiers of Raoul Walsh’s Pursued



leia e escreva já!

RAOUL WALSH

   O cinema de ação foi criado por 4 ases e um coringa. Os 4 são William Wellman, John Ford, Michael Curtiz e Raoul Walsh. O coringa é Howard Hawks. Hoje é aniversário de Walsh e sem saber disso vi ontem um filme dele. The Tall T. não é um dos grandes filmes de Raoul, mas é um bom filme. O que o deixa um pouquinho gasto é seu humor fora de lugar. Dos cinco nomes citados, apenas Hawks tinha humor natural. Os outros quatro sempre são leves, mas jamais engraçados ( mesmo que Ford tente, ele consegue atingir o dom da alegria, mas não nos faz rir, mas em cenas de brigas ou em família nos faz felizes ).
  Walsh é o mais velho deles. Começou como ator nos anos de 1910, ficou cego de um dos olhos em um acidente, e com tapa olho de pirata, passou à direção. Nos anos 20 fez 3 grandes clássicos de aventura. Seu Robin Hood é ainda o mais animado. Walsh inventou um tipo de cinema de ação todo centrado na comunidade. Ford destaca o indivíduo, Wellman dá foco à dor e à absolvição, Curtiz é aquele que luta por ser impessoal e Hawks é o mais pessoal dos cinco. Curtiz seria o ancião contando uma história e Hawks o jovem que a vive sem se apressar.
  Walsh dá um panorama geral, depois destaca uma ação. Em seguida escolhe o herói e planta sua prova de superação. Vem o desenvolvimento da personalidade e então a chegada do grande teste. Esse esqueleto está presente em todos seus filmes de ação. Vemos onde e quando se passa o filme, depois vem a ação que vai repercutir por todas as duas horas de espetáculo. Em seguida somos apresentados ao herói e acompanhamos seu cotidiano. Se anuncia a volta da grande prova e então vem o risco e a vitória. Ao final, o novo começo.
  Um filme de ação ruim apresenta uma cena de ação inicial sem qualquer significado. Ela acontece sem qualquer peso e sem história. Mata-se, corre-se ou foge-se sem qualquer consequência futura.
  Um filme ruim não apresenta seu ambiente. Mal entendemos onde e quando a coisa acontece. E pior que tudo, vemos o herói apenas em ação. Ele não se torna uma pessoa, ele é somente um tipo de máquina de ação.
  Pior de tudo, a prova final não existe. O filme ruim tem tantas provas que nenhuma se torna definitiva. Cada ação nada significa porque todas são transitórias. Elas nada resolvem. São um tipo de dança sem propósito.
 Walsh sabia construir a ação por instinto. Ele havia sido caçador, pescador, marinheiro e mineiro. Tudo isso até os 20 anos de idade. Ele vivera cenas de ação. Não as aprendera no cinema, as sentira na vida. Desse modo, ele as construía como coisas reais, e não como a fantasia de um mundo sem tempo e sem lugar. Cada ato tem um peso e cada peso tem um preço. Tudo leva à um fim. Um destino ou uma conclusão.
  Quanto a moral da história, ela não existe. Walsh conta uma aventura. E ele pensa que a moral está na aceitação dessa aventura. Mais nada. Para ele, viver é agir. E mais nada.

HOSPITAL BONITO

   Os ladrilhos do chão, brancos, são do tipo colmeia. Não via esse modelo de piso desde os anos 60. E noto que a construção de todo o prédio cheira à anos 40. As escadas são largas, o corrimão creme é pesado, de pedra. O Hospital onde estou foi maquiado, a impessoalidade do gesso e do aço, mas em seu esqueleto se percebe aqui e ali a beleza amarelada de seu tempo de nascimento.
  Estou na Mooca, um dos mais lamentáveis locais da cidade. Mas que estranho, o que percebo é a beleza doente de restos que estão se partindo. Como as janelas de um mosteiro por onde passo, construção hoje tão inútil como eu. Minha mãe está no quarto 512, e dentro do quarto, mais que seu rosto tranquilo, o que percebo é a cor bonita que vem da janela.
  No corredor, largo, com janelas de vidro grosso, vejo um jovem numa cadeira de rodas. Mongoloide se dizia antes. Não sei qual seu novo nome. As pernas, gordas, estão presas em meias elásticas. O rosto, vermelho, enorme, com papada, está caído. A mãe vem para seu lado e imediatamente sua expressão muda. Ela lhe dá um beijo na testa e o rapaz ergue os olhos para ela. Vejo naquele olhar a ansiedade obediente de um cão. E nisso nada digo de indigno, antes o elogio. Ele a olha como se visse nela sua humanidade possível, sua chance de vida, sua espera compensada. Há ali, na minha frente, neles, um entendimento, uma união do tipo só possível entre nós. Humanos. Nos olhos vive uma alma e ela se desnuda para mim porque eu a olhei.
  Ao mesmo tempo duas faxineiras falam alto e riem enquanto lavam o banheiro. Objetos de plástico são esfregados com fúria enquanto uma delas faz fofocas em progressão. Volto ao quarto de minha mãe. Uma ambulância a levará para outros exames em outro hospital. No caminho vejo fábricas que dizem mistérios, moradores de rua com cachorros muito espertos, montes de cacarecos em confusão pastosa e converso com o motorista que conta sua vida em um sotaque que é zona leste em erres e falta de esses. Falo com todos nesse hospital: com a bela japonesa que levou sua avó de 95 anos para fazer um curativo na cabeça. A velhinha, com 140 de altura, sai do hospital rindo e ao falar comigo faz um alongamento de coluna. Ela é um elfo. Vejo uma bela loira que de saia justa espera a mãe que foi fazer uma série de raio X. Uma dupla de amigos velhos troca dicas sobre novos modelos de celular. Minha mãe, numa cadeira de rodas, pensa na sua cachorrinha sozinha em casa.
  Da janela vejo os telhados claros do mosteiro. Ao longe a feia trama de viadutos e ruas sem qualquer planificação estética. Minha alma, sede, busca não o significado, mas a dignidade da beleza em todo canto, mesmo nas escadas frias de uma saída corta fogo. O rosto de minha mãe me vê entrar no quarto e não sorri. Mas eu sei que na sua constância ela é um sorriso. Somos os fortes e ela me conta que seu pai andava à cavalo por duas ou três noites, sem descansar, atrás de lobos, de bruxas e de trabalho. No frio dos montes nús, na geada de madrugadas sem ruído, ele ia com roupas sujas, rasgadas, e ao ficar doente se curava com bebida quente que fervia até virar xarope.
  Há uma ferida dentro dos meus olhos. Ela faz com que tudo que eu veja pareça bonito, nobre, puro e bom. Mas ao mesmo tempo, tudo virá chaga quando toco.

O OSCAR SEMPRE FOI POLÍTICO, MAS ESTA POLÍTICA NADA TEM A VER COMIGO.

   Nos anos 30 o Oscar ajudava Hollywood a parecer culta. Sua política era premiar filmes que parecessem "alta cultura". Mas essa cultura era sempre pop, pra não dizer jeca. Se premiava filmes baseados em livros, em peças ou grandes biografias. Os atores vencedores eram aqueles que pareciam sérios. Por isso Erroll Flynn passou em branco.
  Nos anos 40 a politica era ser "politico". A esquerda de então, um tipo de jornalismo denunciativo, tomou o poder e foi tempo de filmes "sérios". Mesmo que religiosos. Como reação, nos anos 50, e até 1965, grandes produções tomaram a dianteira. Se premiava o tipo de filme longo, difícil de ser feito, caro, hiper glamuroso.
  A partir de 66 surge a nova Hollywood e a onda era parecer jovem. Filmes nervosos, filmes com final irônico, filmes amargos, filmes anti grande produção. Essa onda afunda mais ou menos em 1980, com o fracasso de bilheteria de seus diretores e a febre Spielberg-Lucas. Nos anos 80, esquisitos, se premia o filme grande que tenta fugir ao normal. Isso invade os anos 90, uma esquizofrenia que vai de Coração Valente à Amadeus.
  Pela primeira vez desde 1976 não vi o Oscar. E nem sei quem venceu ou perdeu. Isso porque pessoas como eu foram excluídas da festa. Mesmo sem ver a cerimônia, imagino que foi um tipo de convescote entre iguais celebrando uma diversidade falsa. Filmes bonzinhos e "de mensagem" devem ter vencido. Filmes "do mal" foram ignorados. Mal sabem eles que sua babaquice radical nada mais é que um tipo de espírito Disney. Bambi e Peter Pan em doses de Dumbo.
  Dessa politica eu estou totalmente fora.

O DOM, ROMANCE DE VLADIMIR NABOKOV

   São as impressões de um jovem poeta russo morando na Berlim dos anos 30. Na verdade ele é um vulcão de lembranças, sensações, sentimentos, medos, desejos, raivas e sonhos pesadelos. A escrita de Nabokov, um exibicionista aristocrático, é hiper rebuscada. Se ele pode escrever 70 linhas por parágrafo, porque não aumentar para 90?
   Eu adoro esse estilo, um modo de narrar que não facilita nada para o leitor e que mostra o dom do autor em sua plenitude. E este pensamento me faz pensar nos autores que são muito famosos e pouco lidos. Qualquer pessoa de cultura média conhece Nabokov de ouvir falar. Assim como são famosos Joyce, Proust, Beckett ou Eliot. Mas a questão é: Voce leu esses autores? Gente como Nietzsche ou Kafka são famosos e sabemos que são lidos. As edições em banca de jornais provam isso. Dostoievski e Tolstoi são famosos e continuam sendo lidos. Mas e Nabokov? A editora Alfaguara tem lançado seus livros, mas acho quase impossível que mais de 5000 pessoas, número ridículo, leiam este livro.
  Nabokov, assim como Joyce, deve sua imensa fama à censura. Lolita fez dele um astro, e essa obra prima do humor é seu livro mais acessível. De longe. Sua escrita jamais deixa de ser refinada, é um aristocrata escrevendo para seus pares. É sempre um grande escritor, mesmo em seus excessos.
  Se 5000 pessoas lerem este romance então serão 5000 aristocratas da leitura. É um belo número em termos de sangue azul. Mas diante de sua fama, é quase nada.

VIRGINDADE.

   Fazia um calor dos diabos e eu corri pra janela e a fechei. ( Na verdade era um vitrô. Acho que hoje ninguém mais usa essa palavra francesa, vitreaux ). Os insetos começaram a bater contra a janela e eu ouvia o tunc tunc tunc de seus desastres aéreos. Era verão e acontecia a irrupção de uma nuvem de "oito". Oito era o nome que a gente dava pra um inseto voador formado por uma bola preta grande e uma menor, daí o oito. Eu estava no campo e era três da tarde quando vi a nuvem se aproximar. Corri pra casa da minha tia e me tranquei lá dentro. A coisa durou só uns cinco minutos, talvez menos. E logo a paz preguiçosa do verão voltou.
   Mas eu recordo outra nuvem, essa de cigarras, eu ao lado da minha mãe, e ela se defendendo com um guarda chuva que ela usava pra se proteger do sol. Ela e uma amiga conversando na rua, como se nada houvesse de estranho, e eu sentindo um aturdimento enorme. Os insetos se chocavam contra nossa roupa, caíam e voltavam a decolar. Como eu disse em outro post, a vida nunca estava longe da gente.
  Crianças têm olhos imensos e com eles bebem tudo que está ao redor. São as impressões que gravam como tatuagem no cérebro. A mente está ansiosa por receber imagens, virgem de impressões, e os olhos dissecam cada cor e cada movimento ao redor. Desse modo, uma teia de aranha é um universo completo e um tom de azul uma maravilha sem fim.
  A felicidade do adulto seria a de jamais ter perdido essa virgindade.

VIDA TODA VIDA

   Me leva pra Serra do Mar que eu me encontro lá. Ela é pra mim o que os Andes foram pra Humboldt ou a Sierra Nevada para John Muir. Na Serra eu escuto a voz da minha alma que é a alma do mundo. Não existe dor naquela embrenhação de mata, porque não mora eu nenhum lá. O nós eterno e imorredouro é o que habita cada folha daquele lugar que é todo lugar.
 Desde sempre eu assisti formigas e minhocas. Procurava as estradas de exércitos de formigas e via as saúvas carregando suas folhas verdes para dentro de buracos bem abertos. Cavava na lama dos patos e descobria as minhocas que se enfiavam em túneis esbeltos. E ia correndo atrás das abelhas que nunca me deram medo. Toda minha infância, berço da mente, é um reino de encontros com coisas vivas. Os marimbondos em seu cacho pendurado no telhado ou os ratos minúsculos que se escondiam no meio da roupa suja.
 Mas tão vivo quanto tudo isso eram as nuvens que eu aplaudia no brinquedo de encontrar formas em seu transformamento súbito. Um coelho, uma cara, um deus, um barco, uma flor. Na tela azul do céu a gente via nuvem e cria que ela era casa de um titã. Como vivo era o fogo que comia e rosnava no meio da lenha seca e do papel inútil.
 Havia vida no escuro do quarto de noite. Não só uivos de cães vizinhos. Bater de asas de pássaros aninhando. Havia vida no próprio negror do escuro espaço. Suspeitava e confirmava a vida em suspensão. Detrás e tudo uma dimensão de vida: escondida.
 Andar era sempre ir ao encontro de mais pedaços do universo. Uma pedra mal enterrada ali, uma árvore jamais vista lá. O encontro com um velho coxo, um japonês deformado, uma menina de saia rosa. Avião cheio de pensamentos e um helicóptero levando gente. Em cada trilha de terra uma promessa, em cada riacho uma constelação de peixes e girinos.
 Mais vida nos livros e nas cores das revistas. Dentro do aparelho de TV, vivos elétrons que viravam pessoas, coisas e lugares. Naqueles tubinhos de vidro dourado nascia o mundo de lá além. A TV era uma incubadora. E o rádio uma festa. Multidões de vozes que riam, cantavam, berravam, anunciavam. Um rádio em cada casa, alto, uma casa em cada passo, sol.
 Mais vivo o sol, mas a chuva e a neblina também. O sol erguia os punhos e pulava ao se espreguiçar de manhã. Ele se abanava e à noite andava pra depois de lá. A lua era uma menina discreta que apenas olhava aqui. E a chuva...ela era um animal que anunciava a sua chegada em som e em cheiro. Chuva ser vivo, garoa ser vivo. Eu beijava cada manhã como se fosse um encontro de destino.
 Porque a vida é inevitável e se ainda sei isso é por causa dessa infância que sempre e toda hora a confirmava. Meu coração era a marcação de tambor de toda vida ao redor. Mais que ao redor, dentro e fora. ( E é por isso que ainda hoje me é impossível fechar portas e janelas...fora e dentro são o mesmo ).
 Vou lá...

A INVENÇÃO DA NATUREZA, A VIDA E AS DESCOBERTAS DE ALEXANDER VON HUMBOLDT - ANDREA WULF

   A autora diz no começo desta obra que as pessoas hoje desconhecem quem seja Alexander von Humboldt. Fico surpreso! É sério que vocês não conhecem o cara mais famoso de todo o século que teve Napoleão, Lincoln e Darwin? Pois pra minha geração, aqui no Brasil, o alemão Humboldt é um nome inescapável. Nem que seja como nome de acidente geográfico, escola pública, rua, corrente marítima e cidades pequenas.
  Contemporâneo do romantismo, nascido no iluminismo, Humboldt criou sozinho dois conceitos que nos são muito caros: a ecologia e a holística. Temos a sensação de que desde sempre o homem viu a natureza como coisa interligada e viva. Mas não. Foi preciso o alemão e seus livros de sucesso para dar ao mundo a ideia de que um rio está ligado à um bosque e este ao mar e este ao plâncton e este à lua e....uma corrente infindável. Para ele, os estudos científicos deveriam estar todos ligados, química com biologia com geologia com oceanografia com física com arte e com poesia e ....infindável. Mais ainda, é dele a ideia e a prática do homem de ciência como aventureiro. Humboldt subiu montanhas, adentrou florestas, viveu em desertos. Ele ia o local, via a diversidade, descobria seres vivos e lugares. E assim, com seu modo poético e científico de ver as coisas, pois para ele o conhecimento passa pela emoção e pelo sentimento, ele se tornou famoso. Privou da amizade de Goethe, de Darwin, de Thomas Jefferson. E lançou a ideia de ecologia e mais ainda, de Cosmos, palavra grega popularizada por ele. A vida como uma coisa única em que tudo está ligado e depende de tudo.
  O livro é delicioso, viciante e soberbo. Lemos com curiosidade, prazer e nos educamos. Humboldt criou o andarilho, foi Whitman antes de Whitman e Rimbaud antes de Rimbaud. Mas ele criou também a Thoreau, a Darwin, aos hippies e aos beats, à ecologia de hoje e a ideia de vida que conhecemos. O livro tem ainda um capítulo para Thoreau, um para Darwin e um para John Muir, esse, uma figura interessantíssima, homem que criou na América as reservas florestais e a luta pela preservação. Seus escritos, que este livro mostra, são uma revelação. Ele foi um homem de 2017 que viveu em 1870.
  Direi por fim que temos todos de ler e reler este livro. Ele é mais que bom, ele é necessário e é preciso.
 

CHEGA DE ROMANTICOS!

   Meu coração é romântico, mas meu cérebro é do século XVIII.
Vejo imigrantes venezuelanos entrando no Brasil. Fico triste em assistir mais um dos vários desastres nascidos do romantismo. O gigantesco EU de um líder "sonhador" levou mais uma vez um povo ao desastre. O romantismo, ideia que crê na força do sonho, do ego, da coragem destemida, da força da vontade, perde, mais uma vez, seus seguidores. Mas não seus líderes. "Pensadores" encontrarão milhões de desculpas, e o culpado será sempre o "frio pragmatismo do mundo real". Bullshit! O romantismo sabe e deve lidar com o coração, mas nunca com a razão, com as coisas do mundo real, o mundo do estômago. Poetas e filósofos são péssimos administradores.
  O chavismo foi mais uma versão, das mais fuleiras, do sonho no poder. Essa ideia de que basta querer para poder, é uma desvirtuação do idealismo alemão. Esse idealismo dá sempre na mesma lama, um líder tresloucado indo atrás de um arco-íris de felicidade. E levando consigo uma população inocente, rota, faminta, que ergue as mãos e abraça o ego imoral desse líder poeta-sem-poesia. De Napoleão à Fidel, de Trotsky à Hitler, todos venderam um Novo Mundo Ideal, o sonho de um recomeço, o sonho romântico de uma história pura e inocente. Sem os porcos mercadores. Sem os bancos hipócritas. Sem as fronteiras burguesas.
  No iluminismo do século XVIII acreditava-se na razão como força impessoal. O mundo é o que é, e compete ao homem o conhecer e o compreender. Não há fronteiras para o comércio e para o saber. Não precisamos de grandes líderes, precisamos de grandes ideias que funcionem.
  Estou lendo um livro delicioso sobre Alexander von Humboldt, um homem que foi romântico antes do romantismo e que voltou à razão quando o mundo enlouqueceu no romantismo. A América Latina, lugar que Humboldt amava acima de todos, desde 1820, com as revoluções românticas de Simon Bolivar, teve gravado em seu DNA essa fantasia de um ego salvador. Agora somos obrigados a socorrer os refugiados, inocentes que só querem paz e comida. Somos obrigados a ouvir cínicos a dizer, mais uma vez, que a culpa é do sistema impessoal do capitalismo hiper desumano. Chega dessa besteira toda! Precisamos de gente discreta, gente racional, gente que sabe o que a vida, sólida e prática, é. Estamos cheios de sonhadores.

STONER, JOHN WILLIAMS, A MAIS TRISTE DAS OBRAS PRIMAS.

   Um dos pensamentos mais bobos que existem, e que era moda nos anos 80, era pensar que "antes" de escrever um livro é preciso "viver". Em seu posfácio a este livro, Peter Cameron diz que existem vários livros ruins sobre vidas incríveis, e vários bons livros sobre vidas medíocres. Stoner é um homem medroso, pobre, embaçado, ausente, e tem uma vida tão desinteressante quanto ele mesmo é. Mas John Williams, que viveu uma vida tão boba quanto a de Stoner, consegue fazer desse ser tão vulgar, um herói. O romance, cristalino, é comovente sem jamais tentar ser poético.
   Stoner nasce pobre e vai á universidade. Lá se apaixona por literatura, e vira professor. Se casa e o casamento vira um inferno. Tem uma filha que ele ama, mas que se afasta dele. E faz um inimigo na universidade onde leciona. Morre aos sessenta e poucos de cancer. E é só isso. Williams tem uma habilidade imensa em descrever o clima de uma universidade, em nos falar de uma aula real e em retratar a frustração de um casamento ruim. Mas o livro é mais que isso, e eis um mistério que Peter Cameron levanta: De onde vem esse mistério? O livro é maravilhoso, mas por que é maravilhoso?
   Nunca li uma descrição tão transcendente da morte. No final ele morre e vemos de dentro o que seria morrer. Isso é genial. Mas essas são apenas as 3 páginas finais. E o resto? Ficamos envolvidos por gente comum, gente ruim, gente medrosa, vidas sem significado. E mesmo sabendo que o que lemos é banal, lemos maravilhados. Como John Williams consegue isso?
   Não consigo entender o que este livro tem de tão bom. Mas ele é tão bom quanto um livro pode ser. Ele respira. Ele vive. Ele é real. Stoner é um livro tão bom que a gente tem vontade de o levar no bolso e viver com ele por perto.

STONER E OS LIVROS QUE NINGUÉM LÊ.

   Em 1965, um professor do Missouri lançou um livro chamado Stoner. Ninguém leu e nenhum crítico deu atenção. Era uma época de livros "sensacionais". Era tempo de Norman Mailer, Truman Capote, Tom Wolfe e Gay Talese. Crimes, paranoias, mundo ácido e colorido. O livro do tal professor não poderia ser mais "out of time". Era simples, sem cor, nada sensacional. A narrativa, convencional, descreve a vida de um cara banal. Não há violência explosiva e nem sacadas revolucionárias. Estranhamente, com toda sua convencionalidade aparente, ele não é old fashioned. Não lembra Fitzgerald e nem Heminguay. Ele é estranhamente original. Uma ilha em um mar vazio de ilhas.
  Cinquenta anos mais tarde, eis que a New York Review of Books o reedita. E no boca a boca ele vira cult. O autor, morto oito anos antes, não viveu para ver a ressurreição de seu livro. Não pense que esta história é comum. Livros que são descobertos anos após seu aparecimento são raros. Proust e Joyce podem não ter sido sucessos em seu tempo, mas foram resenhados e amados por críticos e autores de sua época. E mesmo Moby Dick, se foi incompreendido em 1855, foi notório em sua incompreensão. Como Stoner, este livro de que falo, me lembro só de Emilly Bronte e seu Whutering Heights. Um livro que passou em branco e que foi descoberto algumas décadas mais tarde. Tem mais casos. Mas não quero que voce pense que é de lei isso acontecer. A lenda de Van Gogh se aplica a poucos no mundo das letras. ( Kafka não foi publicado em vida. Nada tem a ver com o livro que passa em branco ).
  Uma das coisas mais legais em livrarias é tentar achar um livro mal divulgado e descobrir nele uma joia desprezada. Acho que jamais achei uma pérola.
  Stoner é uma obra-prima.

ALEGORIA DO AMOR - C.S. LEWIS, UM ESTUDO DA TRADIÇÃO MEDIEVAL.

   Lewis vai contra as ideias de Denis de Rougemont. Para quem não lembra, Denis dizia que o amor cavalheiresco, aquele que inaugurou nosso modo de ver o amor ideal, foi uma espécie de sublimamento do amor cristão. A donzela amada posta como símbolo da donzela original, a Virgem mãe inalcançável de Cristo. Denis de Rougemont é engenhoso e seu livro se tornou um clássico. Mas Lewis vai em outra direção ( e não nos esqueçamos de que Lewis se tornou católico pouco depois de compor este livro ), ele diz que o amor romântico é uma ALEGORIA, uma forma de dar imagem e voz à um impulso erótico que sempre houve. O importante para Lewis é a criação da alegoria e não a invenção do novo tipo de amor. ( Estamos falando do século IX de nossa era ).
  Para expor sua tese, Lewis vai aos autores latinos tardios, autores que testemunharam a morte do paganismo e o nascimento do novo cristianismo. Na morte dos deuses pagãos, eles passaram a alegorizar o amor, a guerra ou a cobiça. Sai vênus de cena, sai marte, e nasce O Amor e a Guerra como personagens dotados de rosto e de voz humanas. A nova Afrodite pode ser Guinevere, Isolda ou a musa futura de Keats. A nova Afrodite pode ser inclusive chamada de Amor. Para Lewis, erudito amante das letras, o que influencia uma nova literatura é a própria literatura anterior. E dessa literatura nova surge um novo conceito e um novo modo de pensar.
  Este é um livro árduo, sua leitura não é simples e não o recomendo para leigos.

EINSTEIN, A BIOGRAFIA DE UM GÊNIO IMPERFEITO - DAVID BODANIS.

   Se voce quer começar a entender o que é a ciência moderna, leia este livro. Até hoje, seja em jornal, revista, livro, aula ou conversa, não encontrei nada que explicasse de uma forma tão clara e objetiva o que é a teoria da relatividade, a segunda teoria de Einstein e inclusive a física quântica de Bohr. Como desde então, 1915, a ciência se tornou algo muitíssimo mais excitante que a arte, com mais criatividade e mais ousadia, ler este livro é obrigatório para quem quer começar a entender por que digo isso.
   Dados sobre a vida de Einstein são conhecidos: a escola onde ele foi excelente mas sempre desinteressado, os primeiros empregos humildes, a família com a qual ele sempre se deu bem, o mundo germânico-judaico do começo do século XX. Einstein era não convencional mas ao mesmo tempo não era vaidoso. Simpático, alegre, nada disso é mito, é fato. Foi para a Suíça. E nas décadas finais da vida, EUA. Sua física era feita à base de intuição, criatividade e amor à beleza. Para ele, um afirmação era verdadeira quando representava harmonia, simplicidade, clareza. Daí a clara verdade de suas duas equações geniais. Para Einstein, Deus era lógico, o universo era todo ligado por uma lógica que cabia a nós descobrir.
  Energia e Massa, o universo é feito dessas duas coisas, mas a sacada de Einstein foi a de que energia é massa e massa é energia. Toda "coisa" é uma forma de energia e essa energia jamais desaparece, ela apenas se transfere, se modifica. O que há no universo permanece igual, massa e energia não aumentam nem diminuem. Mudam.
  Vivemos em um universo com múltiplos sentidos, formas geométricas que não temos como ver. Há uma realidade que nos parece invisível, mas ela está presente, em dimensões que só a matemática pode perceber. Peço que aquele que me lê guarde esta frase, frase que acho a chave de todo o universo: "Minha equação é mais inteligente que eu mesmo". Ela vê o que não vejo e diz ser verdade aquilo que ela sabe provar.
  Ela diz que vivemos sobre um lençol, apenas uma fina camada do todo. Sobre esse lençol dispomos da visão dos planetas, das galáxias. Cada "coisa", desde um sol até um alfinete, exerce peso sobre esse lençol, nosso mundo. Ao exercer pressão ele "curva" levemente esse lençol, fazendo com que ele se torne não um plano quadrado, mas um "mundo" encurvado. Essa é a tal curvatura do tempo, do cosmos, do universo. Cada coisa e cada mundo encurvando o plano e assim, por fazer do lençol algo mais ou menos curvo, influenciando  o lençol inteiro. A estrela mais distante faz parte de nossa mesma dimensão, e por estar sobre esse mesmo lençol, ela influencia e é influenciada pelas curvaturas construídas por todas as coisas. Isso vale e foi provado desde 1915. A luz inclusive faz parte das coisas que se curvam sobre o lençol do universo.
  Fora do lençol há dimensões que não percebemos, mas que a matemática nos faz tomar contato. E vem daí o tal erro de Einstein. Quando Bohr surge com a mecância quântica, dizendo que no nível sub atômico não há lei física como no mundo que podemos ver, que elétrons somem e aparecem "aleatoriamente", Einstein se sente balançar. O que a teoria de Bohr traz é a não-lógica para dentro da ciência, o kaos. Partículas que se misturavam e se comunicavam a mundos de distância, partículas que atravessam paredes e surgem em lugares insuspeitos, resultados aleatórios, imprevisibilidade. Para Einstein, o mundo era feito de lógica e de ordem, cabia ao homem o entender; para Bohr, o mundo era impossível de ser alcançado pela mente humana, seria sempre incompreensível.
  Isso fez com que os últimos 20 anos da vida de Einstein fossem passados longe da comunidade da ciência. Ele era o mais famoso dos cientistas vivos, e ao mesmo tempo era visto pelos colegas como uma mente ultrapassada. Não pela idade, Bohr era da mesma idade, mas por não abrir mão de suas certezas. Einstein cometeu o mesmo erro de Freud, não ouviu, se aferrou aquilo que o fez famoso e não quis mudar.
  Leia.