HOSPITAL BONITO

   Os ladrilhos do chão, brancos, são do tipo colmeia. Não via esse modelo de piso desde os anos 60. E noto que a construção de todo o prédio cheira à anos 40. As escadas são largas, o corrimão creme é pesado, de pedra. O Hospital onde estou foi maquiado, a impessoalidade do gesso e do aço, mas em seu esqueleto se percebe aqui e ali a beleza amarelada de seu tempo de nascimento.
  Estou na Mooca, um dos mais lamentáveis locais da cidade. Mas que estranho, o que percebo é a beleza doente de restos que estão se partindo. Como as janelas de um mosteiro por onde passo, construção hoje tão inútil como eu. Minha mãe está no quarto 512, e dentro do quarto, mais que seu rosto tranquilo, o que percebo é a cor bonita que vem da janela.
  No corredor, largo, com janelas de vidro grosso, vejo um jovem numa cadeira de rodas. Mongoloide se dizia antes. Não sei qual seu novo nome. As pernas, gordas, estão presas em meias elásticas. O rosto, vermelho, enorme, com papada, está caído. A mãe vem para seu lado e imediatamente sua expressão muda. Ela lhe dá um beijo na testa e o rapaz ergue os olhos para ela. Vejo naquele olhar a ansiedade obediente de um cão. E nisso nada digo de indigno, antes o elogio. Ele a olha como se visse nela sua humanidade possível, sua chance de vida, sua espera compensada. Há ali, na minha frente, neles, um entendimento, uma união do tipo só possível entre nós. Humanos. Nos olhos vive uma alma e ela se desnuda para mim porque eu a olhei.
  Ao mesmo tempo duas faxineiras falam alto e riem enquanto lavam o banheiro. Objetos de plástico são esfregados com fúria enquanto uma delas faz fofocas em progressão. Volto ao quarto de minha mãe. Uma ambulância a levará para outros exames em outro hospital. No caminho vejo fábricas que dizem mistérios, moradores de rua com cachorros muito espertos, montes de cacarecos em confusão pastosa e converso com o motorista que conta sua vida em um sotaque que é zona leste em erres e falta de esses. Falo com todos nesse hospital: com a bela japonesa que levou sua avó de 95 anos para fazer um curativo na cabeça. A velhinha, com 140 de altura, sai do hospital rindo e ao falar comigo faz um alongamento de coluna. Ela é um elfo. Vejo uma bela loira que de saia justa espera a mãe que foi fazer uma série de raio X. Uma dupla de amigos velhos troca dicas sobre novos modelos de celular. Minha mãe, numa cadeira de rodas, pensa na sua cachorrinha sozinha em casa.
  Da janela vejo os telhados claros do mosteiro. Ao longe a feia trama de viadutos e ruas sem qualquer planificação estética. Minha alma, sede, busca não o significado, mas a dignidade da beleza em todo canto, mesmo nas escadas frias de uma saída corta fogo. O rosto de minha mãe me vê entrar no quarto e não sorri. Mas eu sei que na sua constância ela é um sorriso. Somos os fortes e ela me conta que seu pai andava à cavalo por duas ou três noites, sem descansar, atrás de lobos, de bruxas e de trabalho. No frio dos montes nús, na geada de madrugadas sem ruído, ele ia com roupas sujas, rasgadas, e ao ficar doente se curava com bebida quente que fervia até virar xarope.
  Há uma ferida dentro dos meus olhos. Ela faz com que tudo que eu veja pareça bonito, nobre, puro e bom. Mas ao mesmo tempo, tudo virá chaga quando toco.

O OSCAR SEMPRE FOI POLÍTICO, MAS ESTA POLÍTICA NADA TEM A VER COMIGO.

   Nos anos 30 o Oscar ajudava Hollywood a parecer culta. Sua política era premiar filmes que parecessem "alta cultura". Mas essa cultura era sempre pop, pra não dizer jeca. Se premiava filmes baseados em livros, em peças ou grandes biografias. Os atores vencedores eram aqueles que pareciam sérios. Por isso Erroll Flynn passou em branco.
  Nos anos 40 a politica era ser "politico". A esquerda de então, um tipo de jornalismo denunciativo, tomou o poder e foi tempo de filmes "sérios". Mesmo que religiosos. Como reação, nos anos 50, e até 1965, grandes produções tomaram a dianteira. Se premiava o tipo de filme longo, difícil de ser feito, caro, hiper glamuroso.
  A partir de 66 surge a nova Hollywood e a onda era parecer jovem. Filmes nervosos, filmes com final irônico, filmes amargos, filmes anti grande produção. Essa onda afunda mais ou menos em 1980, com o fracasso de bilheteria de seus diretores e a febre Spielberg-Lucas. Nos anos 80, esquisitos, se premia o filme grande que tenta fugir ao normal. Isso invade os anos 90, uma esquizofrenia que vai de Coração Valente à Amadeus.
  Pela primeira vez desde 1976 não vi o Oscar. E nem sei quem venceu ou perdeu. Isso porque pessoas como eu foram excluídas da festa. Mesmo sem ver a cerimônia, imagino que foi um tipo de convescote entre iguais celebrando uma diversidade falsa. Filmes bonzinhos e "de mensagem" devem ter vencido. Filmes "do mal" foram ignorados. Mal sabem eles que sua babaquice radical nada mais é que um tipo de espírito Disney. Bambi e Peter Pan em doses de Dumbo.
  Dessa politica eu estou totalmente fora.

O DOM, ROMANCE DE VLADIMIR NABOKOV

   São as impressões de um jovem poeta russo morando na Berlim dos anos 30. Na verdade ele é um vulcão de lembranças, sensações, sentimentos, medos, desejos, raivas e sonhos pesadelos. A escrita de Nabokov, um exibicionista aristocrático, é hiper rebuscada. Se ele pode escrever 70 linhas por parágrafo, porque não aumentar para 90?
   Eu adoro esse estilo, um modo de narrar que não facilita nada para o leitor e que mostra o dom do autor em sua plenitude. E este pensamento me faz pensar nos autores que são muito famosos e pouco lidos. Qualquer pessoa de cultura média conhece Nabokov de ouvir falar. Assim como são famosos Joyce, Proust, Beckett ou Eliot. Mas a questão é: Voce leu esses autores? Gente como Nietzsche ou Kafka são famosos e sabemos que são lidos. As edições em banca de jornais provam isso. Dostoievski e Tolstoi são famosos e continuam sendo lidos. Mas e Nabokov? A editora Alfaguara tem lançado seus livros, mas acho quase impossível que mais de 5000 pessoas, número ridículo, leiam este livro.
  Nabokov, assim como Joyce, deve sua imensa fama à censura. Lolita fez dele um astro, e essa obra prima do humor é seu livro mais acessível. De longe. Sua escrita jamais deixa de ser refinada, é um aristocrata escrevendo para seus pares. É sempre um grande escritor, mesmo em seus excessos.
  Se 5000 pessoas lerem este romance então serão 5000 aristocratas da leitura. É um belo número em termos de sangue azul. Mas diante de sua fama, é quase nada.

VIRGINDADE.

   Fazia um calor dos diabos e eu corri pra janela e a fechei. ( Na verdade era um vitrô. Acho que hoje ninguém mais usa essa palavra francesa, vitreaux ). Os insetos começaram a bater contra a janela e eu ouvia o tunc tunc tunc de seus desastres aéreos. Era verão e acontecia a irrupção de uma nuvem de "oito". Oito era o nome que a gente dava pra um inseto voador formado por uma bola preta grande e uma menor, daí o oito. Eu estava no campo e era três da tarde quando vi a nuvem se aproximar. Corri pra casa da minha tia e me tranquei lá dentro. A coisa durou só uns cinco minutos, talvez menos. E logo a paz preguiçosa do verão voltou.
   Mas eu recordo outra nuvem, essa de cigarras, eu ao lado da minha mãe, e ela se defendendo com um guarda chuva que ela usava pra se proteger do sol. Ela e uma amiga conversando na rua, como se nada houvesse de estranho, e eu sentindo um aturdimento enorme. Os insetos se chocavam contra nossa roupa, caíam e voltavam a decolar. Como eu disse em outro post, a vida nunca estava longe da gente.
  Crianças têm olhos imensos e com eles bebem tudo que está ao redor. São as impressões que gravam como tatuagem no cérebro. A mente está ansiosa por receber imagens, virgem de impressões, e os olhos dissecam cada cor e cada movimento ao redor. Desse modo, uma teia de aranha é um universo completo e um tom de azul uma maravilha sem fim.
  A felicidade do adulto seria a de jamais ter perdido essa virgindade.

VIDA TODA VIDA

   Me leva pra Serra do Mar que eu me encontro lá. Ela é pra mim o que os Andes foram pra Humboldt ou a Sierra Nevada para John Muir. Na Serra eu escuto a voz da minha alma que é a alma do mundo. Não existe dor naquela embrenhação de mata, porque não mora eu nenhum lá. O nós eterno e imorredouro é o que habita cada folha daquele lugar que é todo lugar.
 Desde sempre eu assisti formigas e minhocas. Procurava as estradas de exércitos de formigas e via as saúvas carregando suas folhas verdes para dentro de buracos bem abertos. Cavava na lama dos patos e descobria as minhocas que se enfiavam em túneis esbeltos. E ia correndo atrás das abelhas que nunca me deram medo. Toda minha infância, berço da mente, é um reino de encontros com coisas vivas. Os marimbondos em seu cacho pendurado no telhado ou os ratos minúsculos que se escondiam no meio da roupa suja.
 Mas tão vivo quanto tudo isso eram as nuvens que eu aplaudia no brinquedo de encontrar formas em seu transformamento súbito. Um coelho, uma cara, um deus, um barco, uma flor. Na tela azul do céu a gente via nuvem e cria que ela era casa de um titã. Como vivo era o fogo que comia e rosnava no meio da lenha seca e do papel inútil.
 Havia vida no escuro do quarto de noite. Não só uivos de cães vizinhos. Bater de asas de pássaros aninhando. Havia vida no próprio negror do escuro espaço. Suspeitava e confirmava a vida em suspensão. Detrás e tudo uma dimensão de vida: escondida.
 Andar era sempre ir ao encontro de mais pedaços do universo. Uma pedra mal enterrada ali, uma árvore jamais vista lá. O encontro com um velho coxo, um japonês deformado, uma menina de saia rosa. Avião cheio de pensamentos e um helicóptero levando gente. Em cada trilha de terra uma promessa, em cada riacho uma constelação de peixes e girinos.
 Mais vida nos livros e nas cores das revistas. Dentro do aparelho de TV, vivos elétrons que viravam pessoas, coisas e lugares. Naqueles tubinhos de vidro dourado nascia o mundo de lá além. A TV era uma incubadora. E o rádio uma festa. Multidões de vozes que riam, cantavam, berravam, anunciavam. Um rádio em cada casa, alto, uma casa em cada passo, sol.
 Mais vivo o sol, mas a chuva e a neblina também. O sol erguia os punhos e pulava ao se espreguiçar de manhã. Ele se abanava e à noite andava pra depois de lá. A lua era uma menina discreta que apenas olhava aqui. E a chuva...ela era um animal que anunciava a sua chegada em som e em cheiro. Chuva ser vivo, garoa ser vivo. Eu beijava cada manhã como se fosse um encontro de destino.
 Porque a vida é inevitável e se ainda sei isso é por causa dessa infância que sempre e toda hora a confirmava. Meu coração era a marcação de tambor de toda vida ao redor. Mais que ao redor, dentro e fora. ( E é por isso que ainda hoje me é impossível fechar portas e janelas...fora e dentro são o mesmo ).
 Vou lá...

A INVENÇÃO DA NATUREZA, A VIDA E AS DESCOBERTAS DE ALEXANDER VON HUMBOLDT - ANDREA WULF

   A autora diz no começo desta obra que as pessoas hoje desconhecem quem seja Alexander von Humboldt. Fico surpreso! É sério que vocês não conhecem o cara mais famoso de todo o século que teve Napoleão, Lincoln e Darwin? Pois pra minha geração, aqui no Brasil, o alemão Humboldt é um nome inescapável. Nem que seja como nome de acidente geográfico, escola pública, rua, corrente marítima e cidades pequenas.
  Contemporâneo do romantismo, nascido no iluminismo, Humboldt criou sozinho dois conceitos que nos são muito caros: a ecologia e a holística. Temos a sensação de que desde sempre o homem viu a natureza como coisa interligada e viva. Mas não. Foi preciso o alemão e seus livros de sucesso para dar ao mundo a ideia de que um rio está ligado à um bosque e este ao mar e este ao plâncton e este à lua e....uma corrente infindável. Para ele, os estudos científicos deveriam estar todos ligados, química com biologia com geologia com oceanografia com física com arte e com poesia e ....infindável. Mais ainda, é dele a ideia e a prática do homem de ciência como aventureiro. Humboldt subiu montanhas, adentrou florestas, viveu em desertos. Ele ia o local, via a diversidade, descobria seres vivos e lugares. E assim, com seu modo poético e científico de ver as coisas, pois para ele o conhecimento passa pela emoção e pelo sentimento, ele se tornou famoso. Privou da amizade de Goethe, de Darwin, de Thomas Jefferson. E lançou a ideia de ecologia e mais ainda, de Cosmos, palavra grega popularizada por ele. A vida como uma coisa única em que tudo está ligado e depende de tudo.
  O livro é delicioso, viciante e soberbo. Lemos com curiosidade, prazer e nos educamos. Humboldt criou o andarilho, foi Whitman antes de Whitman e Rimbaud antes de Rimbaud. Mas ele criou também a Thoreau, a Darwin, aos hippies e aos beats, à ecologia de hoje e a ideia de vida que conhecemos. O livro tem ainda um capítulo para Thoreau, um para Darwin e um para John Muir, esse, uma figura interessantíssima, homem que criou na América as reservas florestais e a luta pela preservação. Seus escritos, que este livro mostra, são uma revelação. Ele foi um homem de 2017 que viveu em 1870.
  Direi por fim que temos todos de ler e reler este livro. Ele é mais que bom, ele é necessário e é preciso.
 

CHEGA DE ROMANTICOS!

   Meu coração é romântico, mas meu cérebro é do século XVIII.
Vejo imigrantes venezuelanos entrando no Brasil. Fico triste em assistir mais um dos vários desastres nascidos do romantismo. O gigantesco EU de um líder "sonhador" levou mais uma vez um povo ao desastre. O romantismo, ideia que crê na força do sonho, do ego, da coragem destemida, da força da vontade, perde, mais uma vez, seus seguidores. Mas não seus líderes. "Pensadores" encontrarão milhões de desculpas, e o culpado será sempre o "frio pragmatismo do mundo real". Bullshit! O romantismo sabe e deve lidar com o coração, mas nunca com a razão, com as coisas do mundo real, o mundo do estômago. Poetas e filósofos são péssimos administradores.
  O chavismo foi mais uma versão, das mais fuleiras, do sonho no poder. Essa ideia de que basta querer para poder, é uma desvirtuação do idealismo alemão. Esse idealismo dá sempre na mesma lama, um líder tresloucado indo atrás de um arco-íris de felicidade. E levando consigo uma população inocente, rota, faminta, que ergue as mãos e abraça o ego imoral desse líder poeta-sem-poesia. De Napoleão à Fidel, de Trotsky à Hitler, todos venderam um Novo Mundo Ideal, o sonho de um recomeço, o sonho romântico de uma história pura e inocente. Sem os porcos mercadores. Sem os bancos hipócritas. Sem as fronteiras burguesas.
  No iluminismo do século XVIII acreditava-se na razão como força impessoal. O mundo é o que é, e compete ao homem o conhecer e o compreender. Não há fronteiras para o comércio e para o saber. Não precisamos de grandes líderes, precisamos de grandes ideias que funcionem.
  Estou lendo um livro delicioso sobre Alexander von Humboldt, um homem que foi romântico antes do romantismo e que voltou à razão quando o mundo enlouqueceu no romantismo. A América Latina, lugar que Humboldt amava acima de todos, desde 1820, com as revoluções românticas de Simon Bolivar, teve gravado em seu DNA essa fantasia de um ego salvador. Agora somos obrigados a socorrer os refugiados, inocentes que só querem paz e comida. Somos obrigados a ouvir cínicos a dizer, mais uma vez, que a culpa é do sistema impessoal do capitalismo hiper desumano. Chega dessa besteira toda! Precisamos de gente discreta, gente racional, gente que sabe o que a vida, sólida e prática, é. Estamos cheios de sonhadores.

STONER, JOHN WILLIAMS, A MAIS TRISTE DAS OBRAS PRIMAS.

   Um dos pensamentos mais bobos que existem, e que era moda nos anos 80, era pensar que "antes" de escrever um livro é preciso "viver". Em seu posfácio a este livro, Peter Cameron diz que existem vários livros ruins sobre vidas incríveis, e vários bons livros sobre vidas medíocres. Stoner é um homem medroso, pobre, embaçado, ausente, e tem uma vida tão desinteressante quanto ele mesmo é. Mas John Williams, que viveu uma vida tão boba quanto a de Stoner, consegue fazer desse ser tão vulgar, um herói. O romance, cristalino, é comovente sem jamais tentar ser poético.
   Stoner nasce pobre e vai á universidade. Lá se apaixona por literatura, e vira professor. Se casa e o casamento vira um inferno. Tem uma filha que ele ama, mas que se afasta dele. E faz um inimigo na universidade onde leciona. Morre aos sessenta e poucos de cancer. E é só isso. Williams tem uma habilidade imensa em descrever o clima de uma universidade, em nos falar de uma aula real e em retratar a frustração de um casamento ruim. Mas o livro é mais que isso, e eis um mistério que Peter Cameron levanta: De onde vem esse mistério? O livro é maravilhoso, mas por que é maravilhoso?
   Nunca li uma descrição tão transcendente da morte. No final ele morre e vemos de dentro o que seria morrer. Isso é genial. Mas essas são apenas as 3 páginas finais. E o resto? Ficamos envolvidos por gente comum, gente ruim, gente medrosa, vidas sem significado. E mesmo sabendo que o que lemos é banal, lemos maravilhados. Como John Williams consegue isso?
   Não consigo entender o que este livro tem de tão bom. Mas ele é tão bom quanto um livro pode ser. Ele respira. Ele vive. Ele é real. Stoner é um livro tão bom que a gente tem vontade de o levar no bolso e viver com ele por perto.