A TAÇA DE OURO ( THE GOLDEN BOWL )- HENRY JAMES

   Enredo: Maggie se casa com um príncipe italiano falido. O pai de Maggie é um americano milionário que vive em Londres. Colecionador de obras raras. O pai e a filha são extremamente unidos. E a filha, que ao se casar sente ter traído o pai, o convence a se casar novamente. O pai se casa com a melhor amiga da filha. O que ele não sabe é que essa mulher, Charlotte, foi apaixonada pelo príncipe falido. Mas tudo não é um belo arranjo! O pai e a filha podem assim continuar juntos!
  Estilo: Tortuoso. Dificílimo. Este foi um livro escrito na fase final de James. Fase famosa por sua particularidade: Um detalhismo realista-psicológico tão minucioso, tão precioso, que um paradoxo acontece: o hiper-realismo se transforma em abstracionismo! É como ver a pele de um animal em microscópio: o detalhe faz daquilo abstrato.
  Nada, ou muito pouco, acontece. O que temos são pensamentos sobre pensamentos. Todo o processo de análise, sensação e reanálise é dissecado. Longos períodos, sentenças que se dividem em vírgulas e mais virgulas, parágrafos de duas páginas, diálogos suspensos em pensamentos, a vida interior sobre a vida aparente, motivações que são secretas até para quem as vive, sentimentos que nos são irrelevados. Nunca irrelevantes.
  De tudo que já li do autor é de longe o mais árduo. E o menos satisfatório. Os climas construídos de forma tão magistral em tantos outros livros são aqui rarefeitos até a secura. Não há respiro. Nada nos é facilitado. Ao final o que fica é a certeza de que James, senhor do estilo perfeito, tentou e falhou. Quis ir mais além. Ficou aquém. 

ENQUANTO SOMOS JOVENS- NOAH BAUMBACH

   Conheço uma brilhante menina de 16 anos chamada Mika. Ela escuta rock e esta semana descobriu o Stray Cats. Ela baixou todos os discos e assistiu dois shows, um de 1981 e o outro de 1983. Eu nunca tive todos os discos e jamais vi os shows. Mas em 1981 comprei o primeiro disco deles.
   Mika nunca vai saber o que é Não Ter todos os discos dos Stray Cats. Ela nunca saberá o que é não poder ouvir todos os seus discos.
   Semana que vem Mika não mais escutará os Stray Cats. Talvez seja hora de descobrir os Hoodoo Gurus.
   O filme, brilhante é acima de tudo sobre isso. Ele toca na ferida. Pela primeira vez temos uma geração que tem tudo. Eles não sabem o que é querer e não poder. Mesmo tendo dinheiro para poder. Pois não bastava ter a grana para comprar os discos. Você tinha de achar eles. Agora querer é ter. Já. Músicas, filmes, livros, pinturas, lugares, mulheres nuas, violência. Basta querer. Toda a arte e toda a merda de séculos agora e já.
  Gente inteligente nesse mundo, como será...O filme diz que a primeira baixa é a ética. Tudo é de todos, logo, você pode roubar, usar, mentir, editar, ignorar, acrescentar. O mundo não tem dono. Ou é de todos, o que dá na mesma: Faça. Faça e use tudo.
   Um pouco de anos 80, toneladas de anos 20, uma pitada de anos 60. Misture tudo porque tudo é nosso. E seja diferente misturando mais que todos ou dando uma de quem não está nem aí. Mas está. Ser snob com o facebook já é ser hipster.
   Cada canto do globo é guardado numa foto. Cada dia é documentado numa filmagem de celular. Cada pensamento é eternizado num post. Cada opinião afirmada. Um mundinho para cada um. Faça. Eu quero ser e eu sou, agora.
   Minha geração é a última que não conheceu o celular até os 25. E que usou internet só depois dos 30. Ainda damos valor a uma canção. Um livro ainda é de seu autor. Essas coisas têm um preço. Dão trabalho e valem exatamente esse trabalho. O trabalho de achar. De comprar. De conseguir emprestado. Não percebemos que hoje NADA tem valor. São apenas COISAS para serem usufruídas. Como um copo de água ou o ar. Um direito natural.
   É o melhor filme do ano.

The Canterbury Scene on BBC Prog Rock Britannia [2008]



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IN THE LAND OF GREY AND PINK- THE CARAVAN

   Naquele tempo se juntava um grupo de músicos e se ia para o mato. Depois de seis meses numa casa junto ao nada se sabia. Se o astral batia. Se as viagens sintonizavam. Não se pensava em excelência musical ( só o Cream embarcara nessa e dera tudo errado ). O que valia era fazer um som com quem tinha a ver. Magia.
 Sim, isso tudo parece bem bobo nos olhos cínicos de hoje. But, why not...Dar preferência ao astral é no mínimo tão válido quanto escolher um baixista por ser mulher e loira.
 Então os caras nasceram em Canterbury e isso muda tudo. Além de pronunciar o H como se fosse F. Canterbury foi o centro católico da Inglaterra e ainda é o lugar do cardeal que abençoa os reis. Nascer lá é como nascer no foco espiritual da ilha. E se em 1967 toda a nação bretã mergulhava numa viagem mística medieval ( alguns mais, outros bem fake, ia de acordo à capacidade de cada um ), era lá que a coisa pegava de um modo mais "pra valer". Pra valer porque mais discreta. Basta dizer que toda a galera do lugar nunca mais saiu da viagem. Eles não viraram reis do glamour e nem funkearam nada. Continuaram ciganos ingleses. Até morrer.
 Os irmãos Sinclair, Richard e Dave fizeram parte de uma banda fundadora de lá: The Wilde Flowers. Wilde em homenagem ao Oscar. Dessa trupe saiu nenhum yeah yeah yeah. Era 1964 e eles já falavam em decadência e chás suspeitos. Ok. Em 1968, depois da estada na fazenda, gravaram um disco: Caravan. Os irmãos Sinclair com Pye Hastings e Richard Coughlan. Sem ego trip. Não há um líder. O guitarrista, Hastings, nunca sola. Richard Sinclair canta com voz de barítono e toca baixo como ninguém. Mestre. Pye canta com voz de quase falsete. E o hammond organ de Dave Sinclair comanda todo o som. Os caras além de amigos tocam bem.
 Invernal, um leve acento de melancolia, mas sempre com um espírito leve, de paz e amor, letras nonsense, eles nunca se ocupam de temas da vida lá fora. Tudo neles é pra dentro. E são ingleses pra caramba!
  Seu grande disco é o terceiro: In The Land Of Grey and Pink, de 1971. Quase um sucesso. Mas os quatro primeiros são ótimos. É pra ouvir andando no mato com uma xícara de chá. E os amigos. Ou com uma menina de olhos cinzentos enrolada num cobertor. É da lama. E dos cogumelos.
  Viciei-me.

Nicholas Brothers - I've Got a Gal in Kalamazoo



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ROBIN HOOD- AL PACINO- COLIN FIRTH- NICHOLAS BROTHERS- MIKE LEIGH- CAROL REED

   O CAMINHO DAS ESTRELAS de Carol Reed com David Niven e Stanley Holloway
Ingleses de várias camadas sociais são convocados e treinados para a guerra. A princípio são rancorosos, não compreendem a gravidade da guerra. O filme, muito simples, acompanha a transformação desses indivíduos numa unidade coesa. Bom filme. Carol Reed se tornaria em seguida o centro do cinema inglês do período 45-55. Nota 7.
   KINGSMAN, SERVIÇO SECRETO de Dave Gibbons com Colin Firth, Samuel L. Jackson
Firth é um agente secreto, elegante, conservador, um protótipo do inglês de guarda-chuva. Ele treina um garoto, típico garoto de 2015, para ser um novo agente. O filme tem a venerável presença de Michael Caine ( é o que restou... ), mas não diz a que veio. Veja bem, não é ruim, mas tudo nele é banal. Ele tenta resgatar o chique e o apelo dos velhos filmes de espiões, mas ao se dirigir aos teens de agora ele se trai. Fica num meio termo muito opaco. Nota 3.
   NÃO OLHE PARA TRÁS de Dan Fogelman com Al Pacino, Annete Bening, Jennifer Garner, Bobby Cannavale e Christopher Plummer
Mais um produto para consumidores de meia idade. Pacino é um cantor que em 1971 era uma grande promessa, mas que em 2015 é uma estrela, milionária, para velhos acomodados. Então seu empresário lhe dá uma carta perdida de 1971, uma carta que John Lennon lhe enviou e que nunca chegou. Essa carta muda sua vida. Ele tenta voltar a ser um cantor sério. Ok... a gente pode pensar em Rod Stewart, em Paul Simon...mas o cara é bem pior! Ele é Neil Diamond, um cantor que compôs canções geniais entre 1966-1971, e que desde então se contenta em ser o Roberto Carlos de Las Vegas. Eu achei o trabalho de Pacino péssimo! Preguiçoso, flácido, sem pique. O roteiro se fixa na velha ladainha do " desculpe meu filho por ter sido uma estrela "... Poderia ter sido um grande filme, o tema é excelente, mas não passa de um filme família bem comum. Nota 3.
   GRANDE JOGO de Jalmari Helander com Samuel L. Jackson
O diretor é finlandês. Samuel é o presidente americano. Ele cai no interior da Finlândia. Um menino o salva dos terroristas. Podia ser uma boa aventura. Mas tenta ser arte....Uma baboseira sobre entrada na vida adulta, compromisso, vida natural....Fuja!
   SEGREDOS E MENTIRAS de Mike Leigh com Brenda Blethyn e Timothy Spall
Escrevi sobre ele abaixo. Começa em enterro. Passa ao mundo banal de um fotógrafo, uma mãe solteira, uma filha à procura da mãe. Ninguém é bonito, nada é bacana. Tudo o que eles querem não é dito. Existem filmes que conseguem acertar o alvo. Capturam a verdade, uma verdade difícil de ser descrita. É um dos dez melhores filmes dos anos 90. O elenco faz milagres. O final é sublime. DEZ.
   E A FESTA ACABOU de W.L.Norton com Ron Howard, Cindy Willians e Paul Le Mat
American Graffitti transformou George Lucas em milionário em 1973. Ele contava um dia na vida de um bando de amigos em 1960. E é incrível como esse estilo de filme foi imitado desde então. Em 1979 foi feita sua continuação, este filme esquisito, dirigido por um dos amigos de Lucas que não deu certo. Lucas produziu. Eu o vi no cinema, na época, matando aula. Ele se passa em 1964-1967 e é todo centrado na guerra do Vietnã. Vemos o que foi feito daqueles moleques de quatro anos antes. O mundo muda demais e eles se perdem. A melhor história é a do soldado na selva, quase um tipo de Mash em sua loucura. Tem um retrato interessante de hippies em seus inícios, mas as histórias acabam parecendo mal desenvolvidas. É um filme simpático, gostoso de ver. Nota 6.
   SERENATA AZUL de Archie Mayo
Este filme é um forte argumento contra o racismo. Vejam: é um filme pavoroso, com atores ruins, cenas patéticas, roteiro bobo. E então, durante cinco minutos, ele cresce e se transforma numa obra-prima. São os cinco minutos em que os irmãos negros- Nicholas Brothers- podem se exibir. Meros cinco minutos de absoluta genialidade. Míseros cinco minutos, o tempo que o racismo permitiu. Nas cidades do sul esses cinco minutos eram cortados. Deus meu! O que perdemos!!!!!
   RIVAL SUBLIME de William A. Seiter com Deanna Durbin, Kay Francis e Walter Pidgeon
Uma bobagem gostosa. Um tipo de souflê leve e fofo. Uma menina, filha de atriz famosa, se envolve com homem mais velho que na verdade gosta da mãe. Tudo bem filmado, engraçadinho, fácil de gostar. Deanna era ótima! Nota 6.
   AS AVENTURAS DE ROBIN HOOD de Michael Curtiz com Errol Flynn, Olivia de Havilland, Claude Rains e Basil Rathbone.
A super colorida, super grandiosa e super feliz versão da Warner do clássico da aventura. Errol nasceu para ser Robin Hood, e todo o elenco tem tempo para seu solo de brilho e charme. A trilha sonora se tornou molde de vários filmes agitados e a ação escorre por todo lado. Mas...há um problema com este filme de 1938. Ele foi tão imitado, tão copiado, é tão conhecido ( mesmo por quem nunca o viu ), que a sensação de deja vu se torna pesada. O mais leve dos filmes se torna um peso... Outras aventuras de Flynn, como Dodge City ou Gentleman Jim, funcionam muito mais por serem menos conhecidas. Robin Hood tem o mesmo problema de Star Wars ou de Indiana Jones, mesmo aqueles que não os viram sabem tudo sobre o filme. Não há como se surpreender. Pena.

OS CADERNOS DE MALTE LAURIDS BRIGGE- RAINER MARIA RILKE, A GRANDE CRISE

   Escritos entre 1904 e 1911, aqui em tradução de Lya Luft, aviso você, leitor, a se preparar bastante para ler esta prosa poética de Rilke. Mergulhado numa crise espiritual, o poeta está, só e miserável, vagando por Paris. A fome e a sujeira apertam o cerco e ele delira. Memórias de um tempo em que sua família vivia em castelos e esbanjava dinheiro, lembranças que nunca são felizes.
  Raros os livros tão tristes. Tudo aqui é morte e principalmente medo. Estava no ar o fedor da putrefação. Rilke, como outros tantos, teria previsto 1914...
  Pesadelos e medo. Seria Rilke vítima da Síndrome do Pânico antes de que esse mal fosse moda ( interrogação ). Os medos que ele descreve, o pânico nas ruas, as súbitas tremedeiras, o horror pelo outro. Tétrico, este é um assustador livro de gótico. Tudo é mal ao redor das sombras. E as sombras estão em tudo. Ele busca Deus, ele ainda crê, mas sabe que os anjos são agora impossíveis. Santos são solitários. Ele não é um deles.
  Como conseguiu Rilke ter sobrevivido...Cada página, caleidoscópio de terror, cores, quase beleza, possibilidades perdidas, descobertas, é uma dor. Menino mimado e doente, como Proust, Rilke se aferra à mãe. Mas parte rumo à miséria. E conhece esse mundo: a Paris suja, miserável, escura, e indiferente. Mulheres. Doenças. E a poesia distante. Ele escreve como cura. Sabe que vai perder sempre. O destino é torto e vago.
  No começo ele diz que os homens perderam sua morte. Que antes morriam após cultivar uma morte única. Morriam em casa, ou não, em cenário escolhido, morriam a seu modo. Agora todos morrem anonimamente, em lugar indiferente. A grande dor é essa: Não somos donos de nossa morte.
  Se Rilke começa o livro assim, então ele é a tentativa de reaver a morte. Pois morrer era Grande e agora é pequeno.
  Ele tem 28 anos e precisa aprender a ver. E a esquecer. E escreve. Cães e silêncio.
  Uma alma que diz: Toda a humanidade nada aprendeu, vivemos apenas na casca das coisas.
  O poeta faz a faca.
  Bravo!

MINHAS MULHERES E MEUS HOMENS- MARIO PRATA

   Mario Prata nasceu em Lins, nos fins da década de 40. Escreveu novelas de TV, livros e é cronista dos bons. Sabe encontrar humor no comum. Neste livro ele escreve uma espécie de "caderninho de endereços" de gente que habita sua vida e sua memória. São pequenos verbetes sobre gente. Mario fala do cara da quitanda em Lins, do seu avô, da primeira puta. E também de Chico, Caetano e Garcia Marques. Famosos e não famosos são tratados em pé de igualdade. E não pense que os verbetes são como pequenas biografias...Necas! Mario escreve sobre uma lembrança qualquer, uma frase dita, um segundo no tempo. E, claro, o livro varia em valor. As lembranças são mais saborosas quando dos anônimos. ( E entre eles há dois anônimos amigos meus ). A cidade de SP surge em seus 3 momentos: a garoenta e cinzenta cidade dos anos 60, a doida e exagerada cidade dos anos 70, e a cidade ocupada de agora. No meio disso tudo, a cidade doente dos anos 80.
  Mario transou muito!!!! Se fazia muito sexo sem compromisso em seu círculo social. O período entre 77-83 é de puro desbunde. Há um certo clima cafajeste que pode deixar alguns espíritos puros ressabiados. Mas normal...não julgue aquilo que você nunca provou. O Brasil de 1980 era muito malandro. E ria. De tudo. Agora somos mais malandros ainda. E rangemos os dentes.
  Valeu.

O MUNDO E SEUS HERÓIS, ULYSSES BY JAMES JOYCE. ( O BRASIL TEM ALGUM MITO )

   Todas as histórias do ocidente começam em Homero. A Ilíada é fonte de nossas sagas de guerra, vingança e destruição; a Odisseia a raiz de todas as narrativas de viagens, descobertas, e principalmente do retorno. Em Homero está tudo aquilo que nos foi dado como o Herói.
   Povos refizeram a seu modo essas histórias. E se identificaram como pertencentes ao mesmo lugar através desses novos heróis. A Inglaterra em Arthur, a França em Carlos Magno, a Alemanha com Siegrified, Portugal em Sebastião e depois os Lusíadas. A Espanha em El Cid e depois em Quixote. A Itália em Julio César e Roma e depois em Petrarca e Dante.
   Novas sagas foram criadas. Há quem diga que a França de hoje nada mais tem de Carlos Magno, que o mito franco hoje se revela em Montaigne. Mas a função da saga de Carlos Magno já está absorvida, ela construiu a união francesa. Que perdura.
   Essas histórias entram em choque. Na Espanha os catalães se percebem muito mais nos poetas dos anos 1.200 que em Quixote. Italianos do sul não se enxergam em Petrarca ou Dante.
   Na América existiam as sagas de seus povos nativos. Que morreram e morrem com eles. As novas nações foram criadoras de novas sagas. Os EUA criaram Moby Dick, Huck Finn e todo o mito do oeste. E como na Europa, a fonte de tudo isso está no Homero grego. O México tenta, desde sempre, ressuscitar os mitos de seus povos primeiros, os Astecas. Na Argentina temos Martin Fierro como sua Odisseia. E no Brasil ainda esperamos nossa saga heroica.
   A primeira tentativa foi vestir índios em trajes gregos. Iracema e Ubirajara. Não deu certo. E continua não dando. Várias tentativas foram feitas de criar nossa saga nacional: bandeirantes, chefes índios, até o esculacho de Macunaíma. A TV pegou esse vácuo e a Globo por uma década tentou unir nossa raça variada em um ciclo de histórias: Gabriela, Tieta, O Bem Amado. Seria essa a nossa saga: a do malandro baiano. Desmoronou quando o malandro baiano se revelou uma mentira além de toda mentira. Um boneco de papel. Um herói sem heroísmo. Veio o ciclo Rei do Gado, e esse era tão oco e falso que não causou nem marola.
   Não temos heróis. O maior escritor nacional odiava heróis.
   Ulysses de James Joyce cria o heróis possível ao século XX. O homem comum. Um trabalhador de Dublin, que como o Ulysses grego, vive uma saga. A saga de ter de viver um dia em sua vida. A imensa dificuldade que é existir em meio á tantas vozes, apelos, desejos, sentimentos, memórias e fragmentos que se embaralham dentro e fora de sua mente. Ele anda e passa por enterro, bordel, redação de jornal, ruas e mais ruas, bares, a casa, e principalmente ele passa por sua mente, imensa como um mar. Navega. Joyce dedica essa saga irônica não à Irlanda, mas ao ocidente. A Irlanda sempre teve um excesso de narrativas, de Cuchulain, St. Patrick, Elfos, e reside aí sua excelência em imaginação. A ambição de Joyce era maior, ele queria mostrar que todos nós somos Ulysses. Perdidos no Mediterrâneo em busca da volta ao lar.
   James Joyce, todos sabem, falhou. O mito do século XX é alguma coisa entre Clark Kent e um astronauta. Um cowboy e John Kennedy. O grande cientista e Don Corleone. Joyce errou, nenhum desses mitos é um homem comum. Eles todos tentam parecer o Zé Ninguém, o cara como nós todos, mas não são. Todos são excepcionais.
  Mas o livro de Joyce é em si um mito. O símbolo dos livros ambiciosos, dos livros ilegíveis, dos livros super valorizados, o livro que as pessoas amam e odeiam sem nunca ter lido. E que eu li e senti: ora, é apenas mais um grande livro! Proust é melhor, Henry James mais profundo, Thomas Mann mais ambicioso, Eliot muito mais metido e vários poetas são bem mais complicados.
  Ulysses é lindo, divertido e rico. Joyce errou. Mas enquanto escrevia esse erro...foi um herói.

TRAGÉDIA E CATARSE: SEGREDOS E MENTIRAS, UM FILME DE MIKE LEIGH

   Nunca chorei tanto com um filme. A tentação, até o fim dos primeiros vinte minutos, é desistir. As pessoas parecem pouco interessantes. Um fotógrafo de gente do bairro, uma mãe solteira tola e chorona, uma adolescente chata, uma moça negra que procura sua mãe, que a deu para adoção décadas atrás. Um enterro, as ruas, casas sujas e pobres, o estúdio do fotógrafo. Depois dessa apresentação, surgem segredos. A gente pega esses segredos só pelas bordas, nada é muito claro. E com eles vêm as mentiras. E a dor.
   Escolhemos nossos pais, com eles podemos aprender alguma coisa que antes não tínhamos como saber. Essa frase me derruba. Ela é dita pela filha abandonada ( mas que viveu uma vida muito melhor que aquela da mãe biológica ), dita no meio do filme. E daí para a frente, num clímax de dor, a vontade é de jogar o dvd contra a parede. A mãe aceita a filha lentamente, a família se reúne para um churrasco e a coisa vem à tona. São alguns dos minutos, talvez trinta, mais devastadores do cinema. Desde Viver!, a obra-prima de Kurosawa, eu não me comovia tanto com um filme. A verdade é quase insuportável, a dor irrompe, e vem então a catarse...
  Pauline Kael disse que Sciuccia, de De Sica, é um filme quase insuportável. Que a dor que ele mostra, crianças nas ruas, abandonadas, chega ao limite do aceitável. O filme de De Sica não me tocou tanto, mas chorei sim, porque a beleza de sua direção nos consola. Há algo de bom ali, o próprio filme. Aqui não. Leigh é da velha escola trabalhista inglesa, aquela que nos deu Frears, Loach e Boorman, ele não disfarça, ele ama o povo simples, ele ama suas sagas tolas e vulgares, ele lhes dá nobreza.
  Brenda Blethyn é patética. Venceu o Globo de Ouro de 1996 por este papel. Suas cenas chegam ao ridículo e por isso são sublimes. Ela chora, ela se desfaz, ela afunda. É burra, é vazia, nada interessante. Mas é uma pessoa. Uma mortal. Timothy Spall prova mais uma vez ser o melhor ator inglês com menos de 60 anos. O pai é nobre. Sem ter  a menor consciência disso. Um herói possível. Que se acha um fraco.
  Nobre como é este filme. Em meio a dramas banais que falam de gente sempre esquisita ( drogados, loucos, suicidas, paranoicos, ninfomaníacos ), temos aqui um drama excepcional que fala de gente muito banal. Um dos grandes filmes ingleses de sempre, um dos melhores dos últimos 20 anos.
  Sensacional. E prepare-se, você vai chorar.
  PS: O final é perfeito.