HITCHCOCK/ POWELL/ CAROL REED/ JACK CARDIFF/

   GESTAPO de Carol Reed com Margaret Lockwood, Rex Harrison e Paul Henreid
Ando revendo filmes ingleses. Carol Reed forma, ao lado de Powell, Lean e Hitchcock, o quarteto soberbo do cinema clássico da ilha. Cada um com seu estilo definido, eles são mestres consumados e sábios em sua forma de narrar e de seduzir. Reed é o mais realista. Aqui ele narra um jogo de gato e rato entre dois inimigos, um nazista e um inglês, ambos em busca de um cientista. Rex já tem aqui desenvolvida sua forma de atuação, leve, sorridente e elegante. O filme é pura diversão e demonstra magnificamente o modo como os ingleses se percebiam a si-mesmos. Nota 7.
   E UM DE NOSSOS AVIÕES NÃO REGRESSOU de Michael Powell
Revejo os filmes menos famosos de Powell. O modo como ele e Pressburger viam a guerra tem muito a nos ensinar. Ele nunca deixa de ser patriota, afinal, este filme foi feito durante a guerra, mas o modo como ele vê os alemães é não só humano como também corajoso. Eles são gente também, diferentes dos ingleses, lutam pelo lado errado, mas não são monstros, têm alma. Aqui é narrada a missão de um grupo de aviadores que ao voltar de um bombardeio em Stuttgart são alvejados e caem na Holanda. A população holandesa os ajudará a voltar a sua terra. É um belo filme e tem retrato carinhoso do homem comum, não dos heróis. Nota 7.
   PARALELO 49 de Michael Powell com Laurence Olivier, Leslie Howard e Eric Portman
Um grupo de marujos alemães é atacado nas costas do Canadá. Seu submarino afunda e eles devem em terra conseguir voltar a Alemanha. Este é o filme que deu fama a Powell. Sucesso nos EUA, é uma linda aventura filmada no Canadá. Os alemães são individualizados, sim, há um vilão, mas também há um alemão bom. Ver este filme durante a guerra deve ter sido muito estimulante. Nota 7.
   A BATALHA DO RIO DA PRATA de Michael Powell com Peter Finch e Anthony Quayle
Aqui já estamos na fase dificil da carreira de Powell. Feito nos anos 50, o filme fala de um navio alemão famoso por afundar navios mercantes aliados nas águas do Atlântico Sul. O que se narra é sua caçada e sua agonia. Powell mostra o capitão do navio alemão como um homem honrado, quase um herói trágico. O estilo de Powell está todo aqui, ele exibe com calma e cuidado a civilidade dos homens, a camaradagem e o respeito entre os iguais. O filme emociona, mas em seu inicio pode irritar, não estamos acostumados a tanta educação! Revisto, este filme cresceu muito em meu conceito e hoje é dos meus filmes de Powell mais queridos. Estranha a sina desse diretor, a de ser querido só em revisões...todos os seus filmes me decepcionaram na primeira vista ( inclusive Red Shoes ) e se tornaram gigantes na segunda olhada. Nota 9.
   FESTIM DIABÓLICO de Alfred Hitchcock com James Stewart, John Dall e Farley Granger
Que delicia!!! É o famoso filme de Hitch sem cortes. Eu o adoro, mas Hitch não gostava dele. Um casal gay mata um amigo só pelo prazer de cometer uma obra de arte. Convidam os pais da vitima para jantar, e o corpo está dentro de um baú que é usado como mesa de jantar. Dá pra ser mais macabro? O pai come carne sobre o corpo do filho. O humor de Hitch raras vezes foi tão afiado. James Stewart entra em cena como o professor dos assassinos. E nós nos alegramos ao rever esses ator-amigo. O filme é absolutamente perfeito. Nota DEZ.
   CORRESPONDENTE ESTRANGEIRO de Alfred Hitchcock com Joel McCrea, Larraine Day e George Sanders
O excesso de ação atrapalha a narrativa desta aventura de Hitch. Joel é um repórter americano que vai a Holanda cobrir a guerra. Se envolve em jogo de espionagem. Sanders é excelente, mas Joel e Day são muito peso leve, estão no filme errado. Nota 6.
   OS PÁSSAROS de Alfred Hitchcock com Rod Taylor, Tippi Hedren e Jessica Tandy
Uma mulher destrói a harmonia masculina de uma comunidade. Sim, esse é o sentido do filme. Desde a cena na loja de pássaros, até o final inesquecível, todo lugar em que ela pisa surge uma ameaça. Pássaros se juntam e passam a atacar. É um dos filmes aparentemente mais simples de Hitch e o mais absurdo ( em superficie ). Mas seus medos estão todos aqui.  O maior de todos seu pavor das mulheres. Falar de suas cenas é chover no molhado, o filme é muito conhecido. As melhores são aquela que mostra os pássaro se reunindo atrás de Tippi, e o final, eles andando em meio as pássaros que se aquietam, talvez porque ela foi vencida... Vi esta obra-prima pela primeira vez em 1973, na velha TV Tupi. Eu era criança e confesso que tremi todo o tempo. Era uma época bacana pra se assistir filmes de suspense, basta dizer que o silêncio na rua ainda existia e a iluminação lá fora era precária. Nota DEZ.
   FILHOS E AMANTES de Jack Cardiff com Dean Stockwell, Wendy Hiller e Trevor Howard
O mundo de D.H.Lawrence levado ao cinema. Numa comunidade pobre da Inglaterra, vemos uma familia de mineiros. Uma familia infeliz, onde o pai violento tem rancor pelo filho que o renega e a mãe, hiper protetora, mima esse filho que quer ser pintor. A vida desse filho é destruída pelo meio em que vive. Parece bom, mas não é. O primeiro erro é Stockwell. O outro é a falta de criatividade de Cardiff. Ele foi o grande diretor de fotografia de Red Shoes, mas como diretor nunca funcionou.  O filme é chato. Nota 3.

LISTAS DA CRITERION COLECTION

   Criterion Colection top 10`s.
   Encontro essa lista na net, e como sou fã de listas...
   Tem mais de 50 caras dando listas. A maioria nunca ouvi falar. Críticos novatos dos EUA. A lista é legal. A pior é de Diablo Cody. Aff... Destaco a lista de Wes Anderson, boa pacas! Lá vai:
1...MADAME DE...de Max Ophuls.
2...AU HASARD DE BALTHAZAR de Robert Bresson
3...PIGS de Imamura
4...A MULHER INSETO de Imamura
5...LOUIS XIV de Rosselini
6...O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO de Martin Ritt
7....EDDIE COYLE de Peter Yates
8....CLASSES TOUS RISQUES de Maurice Pialat
9....A INFÂNCIA NUA de Maurice Pialat
10..MISHIMA de Paul Schrader
          Digo que os dois primeiros poderiam estar em meus top 10. Dos outros, não conheço os filmes de Pialat. O filme de Ritt é espetacular.

Não dou muita bola para Christopher Nolan, mas sua lista é muito boa.
1....THE HIT de Stephen Frears
2....12 ANGRY MEN de Sidney Lumet
3....THE THIN RED LINE de Malick
4....DR MABUSE de Fritz Lang
5....BAD TIMING de Nicholas Roeg
6....MERRY XMAS de Nagisa Oshima
7....FOR ALL de Al Reinart
8....KOYANAQSTIKY de Reggio
9....MR. ARKADIN de Orson Welles
10...GREED de Stroheim
          Acho que ele não conhece cinema da Europa.

Guillermo del Toro tem uma lista de conhecedor. Ele ama Kurosawa e Bergman e coloca entre os dez, 3 filmes de Akira e dois do gênio suéco.  Seu favorito é TRONO MANCHADO DE SANGUE.

Adam Yauch bota cinco filmes de Kurosawa!!!! Um fã maior que eu !

E há Martin Scorsese:
1....PAISÁ de Rosselini
2....THE RED SHOES de Michael Powell
3....THE RIVER de Jean Renoir
4....UGETSU de Mizoguchi
5....CINZAS E DIAMANTES de Wajda
6....A AVENTURA de Antonioni
7....SALVATORE GIULIANO de Francesco Rosi
8....8 E 1/2 de Fellini
9....A VERDADE de Godard
10..O LEOPARDO de Luchino Visconti
           Lista de mestre. Falar o que?

Olhando toda a lista noto que o DVD fez com que certos nomes fossem reavaliados.
Dos diretores atuais, Wes Anderson e David Lynch são muito citados. E do passado há uma redescoberta de Schlesinger, Mizoguchi e Jules Dassin. E, que surpresa!, o documentário GIMME SHELTER é muito citado como grande filme de rock da história!
Legal né?

TUPELO HONEY- VAN MORRISON, UMA VOLTA À VIDA

   Penso em quantas pessoas que vivem por aí foram concebidas ao som de Van Morrison. O cantor irlandês ( de Belfast ) canta a trilha do amor, sempre, e este é seu disco mais feliz. Ouvir Tupelo Honey é escutar a mudança de vida, o encontro com um novo amor, a volta da crença que em realidade nunca se fora. Morrison está feliz e é um prazer ouvir isso.
  O disco abre com um de seus hits, Wild Night vendeu bem em 1972 e em 1994 até mesmo John Mellencamp o regravou. Som veloz, dançável, saltitante. E é por aí que ele corre. Cada faixa conta um aspecto desse reencontro. Morrison encontra uma mulher, com ela vem a vida nova e ele se sente abençoado. Para contar isso ele se cerca de um time afiado de vinte músicos, dentre eles o venerável Connie Kay, que dá a obra um leve sabor jazzy.
  Mas não pense que ele é jazz, o disco é filho do encontro de Morrison com The Band. Tupelo Honey soa como The Band em versão irlandesa, é folk com soul, mas um pouco mais melódico e bastante menos rock`n`roll. Onde o grupo do Canadá celebra a amizade, o irlandês festeja um casal. Robbie Robertson e seus amigos parecem sempre estar numa estrada, Morrison vive num quarto. Mesmo que aqui ele esteja acompanhado e de janelas abertas para o sol.
  É um disco feito para se ouvir à lareira. Com calma, com sobriedade e com amor.
  O que será concebido então depende de voces dois. Um filho, um poema ou uma bela recordação. Aproveitem.

OS CONTOS DE CANTERBURY- GEOFFREY CHAUCER

   Um grupo de homens e mulheres fogem da peste. No caminho, para se distrair, fazem uma aposta: cada um deles irá contar um conto. O que for eleito melhor ganhará um jantar. E lá se vão eles.
  Se voce pensou no Decameron de Boccaccio pensou errado. Apesar de Chaucer conhecer a obra do italiano, seu livro é muito diferente. Escrito em verso, Chaucer, influência enorme sobre Shakespeare, faz algo que o bardo sabia construir como poucos: escreve com a voz do personagem. Desse modo um monge narra seu conto ao estilo de um monge, um cavaleiro conta como um cavaleiro e por aí vai. 
  O elenco de personagens abrange toda a fauna medieval. E ao lermos a obra nos sentimos lá, naquela estrada rumo a Canterbury. Mais ainda, vivemos em plena idade média. E o que vemos? Que a época é bastante diversa do que nos foi dito. É um mundo de malandros. E de idealistas também. Sexo e religião se misturam. Deus é Ser inatacável, Sua existência não pode ser discutida, mas, por isso mesmo, o diabo também existe e portanto o mal é não só cotidiano como aceito. Ele, o mal, faz parte. 
  As mulheres devem ser virgens, mas os homens tentam apaixonadamente as corromper. Elas devem ser virgens, mas raramente são. Em alguns contos a linguagem é "suja". E deliciosa. Fala-se muito de pau, buceta, cu, bagos. E tudo feito em malandragem ( o que me faz pensar na realidade de meu país hoje ). Usa-se de toda artimanha possível para se ir à cama de uma mulher, seja virgem, seja puta. 
  O dinheiro existe, mas mal se encontra. O que se faz é o roubo. Monges e cônegos são mentirosos, ambiciosos, glutões e tarados. Comerciantes roubam e camponeses são idiotas. E ao mesmo tempo existem contos de fé e de pureza. Fala-se da Virgem com plena fé e em total compreensão. Chesterton desvenda bem isso: no catolicismo tudo é extremo. É uma fé que pede pelo abismo, pelo tudo ou nada. A dor ao limite e a alegria desenfreada. O grande pecado e o grande arrependimento. Nada pode ser sóbrio, a sobriedade é falsa. Desse modo, o sexo e a castidade existem juntas e são hiper-valorizadas. Chaucer exibe esse universo sem retoques. As coisas são o que São. Sem máscaras. 
  Na introdução se conta que aqueles são os ingleses originais, os saxões, o povo britânico antes de 1750, da revolução industrial que domesticou a raça. Eles são aquilo que hoje entendemos como "Povo de Asterix". Nada em comum com Thackeray ou com Jane Austen. São exaltados, apaixonados, brigões e muito diretos. Sua transformação demonstra o poder da educação. Se mudaram para melhor ou pior, fica a discussão. 
  Devo dizer que esta obra foi um dos maiores prazeres em leitura que tive em anos. Coloco-o entre meus vinte mais queridos livros. Suas 600 páginas, em verso, voaram diante de meus olhos. Seu realismo sujo e fétido e sua vitalidade objetiva e prática me encantaram. É um retrato de um tempo, mas é acima de tudo uma lembrança daquilo que somos, seremos, seres que erram, seres sujos e brutos, tolos e espertos, burlescos. Gente. 
  Chaucer foi um dos grandes humanistas de seu tempo ( por volta da metade do século XIV ), erudito, sabia a lingua de todas as classes. Tinha o principal dom do escritor: sabia escutar. Os tipos que ele criou nos seduzem. São maldosos adoráveis. E fiéis sinceros. Não por acaso sua obra vive a mais de 650 anos. 
  Fundador da literatura moderna inglesa, Chaucer é rei. Seu livro é inesquecível.

JULIE CHRISTIE NÃO NASCEU NA INGLATERRA ( MAS SIM )

   Sol de maio em Londres e times jogam sobre a grama verde escura. Recordo então de um Escócia e Inglaterra em Wembley. Era 1977 e eu amava Julie Christie. É isso mesmo. Há uma fase em nossa vida, cheia de frescor e de fé nos sentimentos, em que não os dissecamos, simplesmente os aceitamos, em que sentir amor por uma ideia de mulher, por uma imagem, se faz ato de completa dedicação. Eu amava Julie porque imaginava quem ela era. Criava a saga de sua vida e sentia que ela era feita pra mim. Idolatria. Beleza.
  Hoje vejo que uma alma abençoada fez a mistura perfeita. Colocou no Tube imagens de Julie ao som do Roxy Music. Os dois nasceram um para o outro, Gim e vermute. Julie sendo Gim, ácida e forte, linda, e o Roxy é vermute, enganosamente doce, colorido e inebriante. 
  Sol de maio em 1977. Wimbledon com Connors e Borg. A rainha era a mesma. Penso que a Inglaterra seja o país que deu certo. Desde Charles I não sabe o que seja ditadura. Conseguiu fazer do mais indisciplinado dos povos um modelo de educação. Discrição. A França cometeu o erro de criar a coisa chamada intelectual ativo, aquela falsidade que nos deu Sartre e Lacan, a Alemanha sempre sofreu de um excesso de idealismo fanático, e a Itália é um país que não se acha. A Inglaterra é uma nação que chegou lá. E um passeio pelo Hyde Park irá te mostrar isso. Conseguiram unir o conservadorismo da rainha e do costume com o deslumbre pelo novo e pelo hype. 
  Juntaram Roxy com Julie. 
  E após as brumas de invernos que nunca terminam, sabem fazer piqueniques ao sol de maio.

Julie Christie Tribute



leia e escreva já!

PÔR DO SOL DE WATERLOO NO CAXINGUI EM 2014

   Ora velho amigo, que música pode ser mais bonita que Waterloo Sunset ? I AM IN PARADISE...
 Vejo o mundo pela minha janela enquanto olho o pôr do sol em Waterloo... 
 Sabe, em um dos comentários no Tube um cara comenta que não amar os Kinks é detestar Londres. Matou a coisa cara. Nada é mais londrino que eles. E Waterloo é uma de suas jóias.
 A canção é um tipo de hino extra-oficial de Londres, é como Aquarela do Brasil pra gente. E não a toa abriu o final dos jogos de Londres em 2012. 
 Um outro comenta: O que se passava na cabeça de Ray quando compôs algo tão simples e tão tocante?
 Ora meu velho amigo, se passava aquilo que se passa em quem a escuta, Gratidão. 
 Waterloo Sunset ficou. Como ficou o LP Something Else by The Kinks. E ficou The Village Green. E também ficou Arthur. E mais alguns muitos.
 Em setembro haverá mais um show de talentos na escola. Um menino e uma menina de 13 anos me chamaram para ajudar eles em sua banda. Querem que eu faça backing vocals e toque pandeiro. Daí me disseram o que vão tocar: Vamos tocar Waterloo Sunset...voce conhece tio? 
 Juro que eu quase cai. 
 Sem mais my old champ, cha la la...

Ray Davies(Kinks) Waterloo Sunset Glastonbury 2010



leia e escreva já!

BRASIL, NÃO DESISTE!!!! ( CARTA PARA UM AUSTRALIANO )

   A coisa tá chata cara, e não tem jeito de melhorar. 
 Voce aí na Austrália não sei se sabe, mas agora somos todos macacos. E devemos ter orgulho disso. Acredita?
 Chesterton nos alertava que um dos problemas da modernidade era a constante mudança do ideal. Porque é mais fácil mudar um ideal do que conquistar um sonho. Desse modo, se todos ficam tristes o ideal passa a ser a tristeza e não a alegria. Pois bem, somos o país mais moderno do mundo!
 Se não vencemos o analfabetismo transformamos ser analfabeto em ser feliz. Se não eliminamos as favelas, damos a favela o status de comunidade. Feliz, claro. Se nossa cultura desce a ladeira, fácil é fazer do lixo cultura. Maloqueiros viraram moda. E nosso ex-presidente fez o favor de dar aos incultos o orgulho de serem autênticos brasileiros.
 Agora, como fomos humilhados em campos espanhóis, encontram a saída, burra, de ser orgulhosamente macacos. Sinto muito mas apesar de brasileiro sou orgulhosamente Humano. E não aceito banana jogada no chão. Não a engulo como mico amestrado.
 Voce acha que um jogador da NBA engoliria essa? 
 O plano é claro: como desistiram de erguer o povo brasileiro, botam o ideal pra baixo. 
 Brasil, não desiste! 

UMA FOTO, O AMOR ( O QUE É ) E O TEMPO ( QUE NUNCA PASSA E NUNCA VAI )

   Então foi verdade...
  A foto está aí. Eu, com cinco anos, entre meus primos. Ao fundo tem o hospital, que ainda existe, e mais nada. A esquerda de quem olha a foto se percebe a avenida Paulista. Que fica dez quilômetros além. O alto do Conjunto Nacional e o relógio. No fim da tarde eu olhava as horas por ele.
  É verdade. Existia mesmo esse espaço livre de ruas de barro e terrenos sem dono. Era um mato civilizado. Mato ralo, cortado, limpo. Poucas árvores e muita mamona. Uma imensidão cruzada por córregos com peixes e bilhões de sapos. Cobras sempre possíveis e ratões gigantes. Cigarras. Gafanhotos. Borboletas e abelhas. 
  O céu era grande. E esse ambiente é minha ideia de Paraíso. Não era perfeito. Eu tinha noites terríveis de asma solitária. Vivia a frustração de ter um pai severo, frio. E minha mãe nunca foi carinhosa. E ouvia frases vagas, frases que falavam de um casal que não se dava e de dinheiro que diminuía. 
  Mas o espaço livre compensava tudo. E meus primos que eu adorava. Cantava nas ruas, dormia na relva, ficava horas namorando o céu. E tinha uma sensação de que a aventura era eminente. Eu a sentia em cada moita de capim alto e em toda esquina vazia.
  O sonho podia crescer. Eu ia junto.
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  O amor tenta unir nosso corpo, sedento de carne, com nossa alma, sedenta de sonho. E nunca tente encontrar razão no amor. Não há. E se houver não é amor, é conveniência, amizade ou desistência.
  Porque Eros nos faz loucos. 
  Ela nada tinha a ver comigo. E mesmo assim fui dirigido a ela. Dirigido, pois no amor não somos donos de nós. Somos um outro que é mais eu que todo eu antes fora. E vou à ela como quem deve ir. Quero e não sei. Ou sei e não quero.
  Confio.
  E ela se revela o que eu não pensei que fosse. Ela se encaixa em mim. Mas Eros, deus que leva os partidos a se fazerem um inteiro, sabia desde sempre. Eros sabia aquilo que minha razão não suspeitava. Que ela era a metade perdida. Completude.
  E perdemos o senso. Andamos pelas ruas de madrugada. Ruas escuras, vazias, perigosas. E dormimos na rua sem saber o que possa ser. Porque esperamos pela hora sagrada. Ficamos perdidos na rua para ver o nascimento das estrelas e o apogeu da Lua. E assitimos abraçados a obra que não se repete. ( Só aqueles que não amam pensam que todo amanhecer é igual ). 
 No caminho um sapo cruzou a rua. Na volta um gato branco passou tranquilo. Ela confunde árvores com igrejas. 
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  Eu andava tonto pelas mesmas ruas. Ontem, muito ontem. Mas esse ontem é agora hoje. E amanhã. Escrevi em tempos idos aquilo que seria o caminho. Adentrar o amor é penetrar o caminho. Tive espaço para conhecer e tempo para ver. 
  E como eu sempre soube, era verdade. Sempre a verdade.

A MORTE DO LEÃO ( HISTÓRIAS DE ARTISTAS E ESCRITORES ), HENRY JAMES

   Toda grande literatura ambiciona ser música. Ou pintura. Porque pintura é arte. O pintor tem uma presença aristocrática, em arte, seja bem dito, que a literatura não tem. O literato trabalha a palavra, e a palavra é a mais limitada das ferramentas artísticas. Por ser a mais presa a razão, por dever contas a regra da gramática e do costume. A palavra depende de se conhecer a lingua. A palavra tem código e assim dito, ser artista radical em letras é coisa muito mais estranha que em som ou imagem. Estranha por ser inabitual. Por não ser realmente livre, por estar presa a regras fixas, escrever de modo criativo é sempre sentir o limite da palavra e sofrer a dor da inveja em relação ao mais nobre pintor e o mais livre músico.
  Como posso escrever sobre Henry James ? Ele é o mais perfeito artista da prosa dos últimos cento e cinquenta anos. Talvez apenas Proust lhe seja próximo. James consegue unir forma a conteúdo fazendo assim do texto, arte. Não há uma palavra que lá não esteja como peça importante, nó que faz parte de uma tapeçaria. Ele dá forma enquanto compõe, conta enquanto arquiteta. Parágrafo ou capítulo, tudo tem uma função específica, a de transmitir mensagem estética. Ler Henry James é uma viagem estética que nos faz um outro. Ele aumenta nosso patamar. Faz nosso gosto melhor e nosso padrão mais exigente. Ele diferencia o leitor banal do leitor concentrado. A recompensa flui na própria leitura.
  Em tradução sublime de Paulo Henriques Brito, este livro da Companhia das Letras apresenta cinco contos escritos entre 1888 e 1896.
  A Lição do Mestre conta a história de um jovem que em sua admiração por um escritor mais velho é usado por esse escritor. Cheio da mais fina ironia, uma ironia que congela e nunca é grosseira ( como se a verdadeira ironia pudesse ser grossa ), o conto, perfeito em forma e em invenção, nos arrepia. A forma como o jovem é feito de tolo nos revolta. É uma obra-prima.
  A Coisa Autêntica é pura melancolia. Um casal de nobres falidos vai a um pintor pedir emprego. Querem ser modelos. Mas o que acontece é que eles não conseguem posar como nada mais que Eles Mesmos. Um italiano pobre consegue posar como um nobre herói, os nobres verdadeiros não. O conto, tristíssimo, fala sobre a imagem, a falsidade do que vemos e a mudança de parâmetro do mundo. James não lamenta o fim da aristocracia, ele exibe seu ridiculo, mas também teme a ascensão do comum e do banal.
  Greviile Fane é o conto menos ótimo. É sobre uma velha autora de best-sellers que é explorada por filhos snobs. O filho tem vergonha da literatura pobre da mãe, que os fez ricos, pensa ele ser um grande autor, mas na verdade nada escreve e vive de explorar a velha senhora.
  A Morte do Leão é o melhor dos contos. Um autor é descoberto pela fama aos 50 anos. Envolvido por damas ricas, jornalistas e festas sem fim, ele cessa sua carreira e acaba sem chance de se desenvolver como artista. O conto, cheio de humor feroz, é uma obra de arte perfeita. Humilha aquele que tenta escrever bem.
  O Desenho do Tapete conta a saga de um jovem que tenta desvendar o sentido da obra de um grande escritor. Dizem que James sentia a frustração de não ser bem lido. Ele temia nunca ser entendido. O conto, música abstrata, exemplifica isso. O final, ácido, é um tapa em nosso rosto.
  Lidos os cinco contos fica uma vontade de ler mais. Henry James vicia.

ABANDONE-SE HOJE

   Eu já lera isso ( em Nietzsche, em Agee ) e volto a ler a mesma ideia em Chesterton. A ideia de que o homem tem se tornado cada vez mais frio, contido, reprimido, inumano. Já tenho algumas décadas de memória para contar e devo dizer que o mundo que vi em 1975 ou em 1985 é bastante mais quente que aquele que agora vejo.
 Cada pensador dá sua opinião sobre o porque dessa transformação gradual, mudança que tem feito das pessoas ilhas de indiferença. Para Chesterton o problema é da própria mudança. Uma época que ama a mudança em si-mesma não consegue lutar ou dar valor a nada. Mudar se torna rotina e mudam-se os objetivos, os ideais. Mudar a meta é mais fácil que a alcançar. Derrubam-se totens, a vontade se desfaz e o homem se torna indiferente. Mudar todo o tempo vira rotina. Tudo muda todo o tempo para que nada se construa. 
 Inclusive relações ou arte. Como tudo vai mudar, e assim sabemos que tudo será destruído, para que construir algo de realmente bom, eterno, perdurável ? Se sabemos que o amor não é eterno, para que amar ? Para Chesterton, o primeiro passo para a felicidade do homem ( e ela é possível, aliás, mais que possível, ela existe aqui ), é retomar o conceito de eternidade. E com ela reavivar a moral. Existem coisas que são eternas SIM. E com essa eternidade vive uma moral que é imutável. 
 Um erro repercute para sempre. Um crime será punido com completa reciprocidade. A bondade mora na verdade e a verdade é real e eterna. O amor dá acesso a vida sem fim onde tudo é maior e melhor. A violência é um mal sem nada que o redima. E o principal: Somos todos nós um campo infinito onde se dá a luta sem fim entre o bem e o mal. E, como seres donos de liberdade e de missão escolhida, devemos lutar essa luta. Honrar a vida. 
 Se todo esse modo de pensar parece medieval é porque tudo de mais profundo e imutável que possuímos é medieval. Amamos como homens da idade do romance, cremos como homens de fé, lutamos por um pouco de honra e justiça e sentimos os pavores dos pastores e lavradores de então. Ou, se todo esse mundo agoniza ( é o que observo ) temos a missão, sublime, de defender seus últimos, e derrotados, testemunhos. 
 O coração perdeu. A razão dogmática nos faz crer que o coração é o menos confiável dos orgãos por ser simplesmente o menos controlado. E o que menos aceita dogmas que o reduzem a nada mais que músculo e sangue. Bilis secou.
 Não mais a ira divina, não mais a vingança maligna. Nunca mais iremos morrer por uma ideia. A paixão que move a vida ou a dor que faz com que a vida se revigore. Não mais o mistério. E se voce é cego ao mistério, creia-me, o tédio irá lhe matar. Gota a gota.
 Se um amigo é apenas um contato, se a arte é apenas um evento e se a criatividade nada mais pode ser que uma distração futil, a vida terá o valor da futilidade. Será nada mais que o tic tac de um relógio.
 Vá além. Enlouqueça. E cometa os piores vexames. Seja infantil como todos são e temem parecer. Exiba sua originalidade. Mesmo que ela seja burra. Ame e fale que esse amor é pra sempre. Mas acima de tudo, jogue seu cinismo no lixo e com ele seu egozinho. Confunda-se com a vida. Rasteje. Rasgue. Sangre. E beije. Perca a vaidade de nunca se ajoelhar. Ajoelhe-se. Admita que alguém sabe o que voce nunca irá saber. Apequene-se. E se abandone. E então encontre. 
 É isso.