O ESPANTALHO um filme de JERRY SCHATZBERG ( FILMES COMO PEÇA DE ARTE )

Um bando de diretores apaixonados por cinema europeu toma a América. E dá aos atores fãs de Marlon Brando e de Montgomery Clift, a chance de inventar, criar, e ousar muito. Mas, sem querer, dois desses diretores criam o cinema-pipoca e matam tudo aquilo ( ou salvam os estúdios da inevitável falência ). Quase todos esses diretores, que não sabiam ou não queriam filmar ação e explosões, caem então, no gueto dos filmes de arte. Somente Altman, Scorsese e mais ou menos De Palma e Coppolla sobrevivem. A lista deles é imensa ( vai de Ashby até Yorkin ), Jerry Schatzberg foi dos maiores derrotados.
Numa estrada, Gene Hackman e Al Pacino pedem carona. Hackman é um tipo de cara puro-impulso, violento, macho, mau. Pacino é otimista, engraçado, bondoso, tolo. Por teimosia de Pacino, eles se tornam amigos. Cruzam o país em trens e caronas e vão visitar a irmã de Hackman. São presos e por fim visitam a mãe de um filho de Pacino. O final é digno da época em que foi feito: terrivelmente amargo.
Gene Hackman gosta de dizer que este foi o papel de sua vida. Diz que Jerry ligava a câmera e fazia com que eles improvisassem todo o tempo. Dá para notar isso. Por mais triste que seja a cena, há nela a alegria da criação. Toda a cena tem a duração que deve ter, nunca a duração que a pressa ou o mercado exigem. Gene Hackman comove quando seu tipo durão amolece. Al Pacino faz um tipo que não é seu costume: faz humor. Ele tem duas cenas hilárias, mas o que mais nos marca são seus enormes olhos escuros, a terrível cena em que ele é quase estuprado e o desespero da sua última cena. O filme, magnífico e sem nenhuma concessão, é marca de diretor cheio de caráter. A era Star Wars encerraria sua carreira. A forma iria sobrepujar o conteúdo.
Os atores da época também não tiveram fim melhor. Se Al Pacino, Jack Nicholson e De Niro sobreviveram por ter amigos que sobreviveram, e se Dustin Hoffman perdeu muito de seu status ( mas não todo ), atores estrelas da época como Robert Redford, Warren Beatty, Steve McQueen, James Caan, e até Paul Newman, perderam a vontade de atuar, reconheceram o fim de "seus" diretores e de seu tipo de papel. Atores maravilhosos e não tão famosos ( Jon Voight, James Coburn, Cliff Robertson, Robert Duvall, Lee Marvin, Elliot Gould, Donald Sutherland ) se tornaram caricatos e preguiçosos e toda uma nova geração que veio em sua cola ( penso em William Hurt, Dennis Quaid, Ed Harris, Kevin Kline, John Malkovich ) jamais pode desabrochar. Papéis como o deste filme, que surgiam em dúzias, passaram a vir aos pares.
O cinema criou uma armadilha para si-mesmo: fez nascer uma geração de cinéfilos que amam apenas a ação e o ruído, o escândalo e a sensação. Tentar fazer com que o cinema seja cada vez mais apenas ação e ruído levará à um beco. E então?

OS ANÉIS DE SATURNO- W.G.SEBALD

Se a modernidade/contemporaniedade se mostra via fragmentação ( e também por um sentido que nunca se apreende ), o alemão Sebald é um hiper-radical moderno. Fragmento e sentido escapável, é isso que define seu texto. Seus livros parecem começar pelo meio e não têm "um fim". Histórias são desvendadas dentro de outras histórias, tudo é biográfico, tudo é mundo real. E nada, absolutamente nada parece fazer sentido. A falta de rumo e de objetivo é a única realidade.
Enquanto Sebald vaga pelo leste da Inglaterra, e fala percebendo e testemunhando, da terrível decadencia que se faz em toda parte ( antigas mansões abandonadas, monumentos partidos, praias desertas, bosques doentios, animais em fuga, pessoas flácidas ), ele nos conta fatos que remetem a lembranças e recordam cenas que trazem em sí novos assuntos.
A vida de Joseph Conrad na Polonia, a fuga para a Inglaterra, a vida como marinheiro e por fim sua carreira como um dos maiores autores "ingleses" do século. Conrad esteve no Congo em 1890, pensou ter visto lá todo o inferno possível, e foge em crise para a Europa. Essa história faz com que Sebald fale do livro Coração das Trevas e da exploração do Congo pelo rei belga, Leopoldo. Toda a riquesa da Europa como riquesa da escravidão, do suor, da morte e do furto. Quinhentos mil negros congoleses morrendo por ano, na exploração escrava dos minérios africanos. Negros trabalhando em minas, 18 horas por dia, caindo ao chão e sendo substituidos por mais negros. Hecatombe pior que o holocausto, que o gulag soviético. E isso traz a Sebald a história de Roger Casement ( pois é, ele é o personagem do novo livro de Vargas Llosa ), um irlandês que denunciou o reino belga e que de herói britânico ( paladino do bom mocismo inglês ) passou a pária e foi executado. Isso por ser homossexual e por apoiar a revolução irlandesa.
E Sebald segue incansável. Descreve as faixas de areia onde castelos desapareceram no mar, fala da feiura da Bélgica e do desconforto na Holanda. Fala de Chateaubriand, a familia nobre, que vivia em palácio do tamanho de um bairro e que fugiu da revolução. Na Inglaterra ele se apaixona e não se pode casar por ter esposa na França. Passa a escrever um longo diário que lhe dará fama universal. E tudo ele coloca nesse diário: botânica, poesia, ciência, história, guerras, filosofia... Vida longa, vida escrita.
Já ao quase fim do livro, Sebald fala da criação de bichos da seda e da deterioração das árvores na Europa. O modo assustador como todos os bosques estão expostos aos incêndios, árvores atacadas por vírus, espécies desaparecendo. Amanhecer sem pássaros. Séculos, milênios de devastação. Solo completamente esgotado. Sebald fala do Brasil, país que vive agora a devastação que a Europa viveu no século XVIII. ( No caso europeu a devastação do século XVIII foi a mais recente e derradeira ).
Sebald não enrola. Para ele estamos no começo do apodrecimento. Somos sombras de tempo que está encerrado. Vivemos em sala de espera, com belas distrações, mas É uma sala de espera. O sentido se partiu, a desilusão foi vivida e como acontece na vida particular de cada um de nós, quando se perde a confiança não se pode mais revivê-la ( apenas como farsa ).
Longe de ser a obra-prima que é AUSTERLITZ, este é um terrível legado de um dos autores que mais interessam.

ΟΡΦΙΚΟΣ ΥΜΝΟΣ ΠΡΟΣ ΑΘΗΝΑ (ORPHIC HYMN TO ATHENA)



leia e escreva já!

A LÍNGUA BÁRBARA E A LÍNGUA DOS DEUSES

Os anéis de Saturno de Sebald, ando lendo. Ele vaga pela feia Bélgica e pela decadente Holanda. Vaga pelo leste da Inglaterra, areia abandonada. Pensa em Joseph Conrad e no rei Leopoldo da Bélgica destruindo o Congo atrás de dinheiro, riquesa, poder. Os feios monumentos que esse rei deixou na Bélgica, esse período, 1880/1910, época em que a razão era inquestionada, em que o futuro seria racional. Época que criou a sociologia moderna, a psicanálise e a linguística, apreender a vida em um sistema. A tolice dessas ilusões.
Decadência. Sebald anda e tudo o que percebe é decadência. Campos que são explorados a mais de mil anos. Montanhas erosadas. Animais cheios de medo ou transformados em idiotas. Palácios tomados pela sujeira, pelo vento, pela umidade. Projetos de cidade hiper-racionais que nos dão desalento e vazio grudento. Histórias dentro de histórias que remetem a outra história.
Em dois meses eu perdi um futuro casamento, um emprego, um pai e todas as certezas da vida. Passei a andar e fotografar árvores, casas abandonadas e animais perdidos. Restos de sentido. Do meu sentido. Árvores que sobrevivem em heroísmo. Casas que são memórias do que não fiz. Animais que testemunham o que não pode ser falado. Minhas fotos são o sentido.
Manhã de sentido:
Numa aula de clássicos é lido o fragmento número um de Arquíloco. Respeito silencioso. Mas o milagre é feito no sentido de quando falta rumo: ela o relê em grego clássico. Ergue-se da sala um zumbido. Vejo pessoas se voltando para trás. Sorrisos. Faz-se todo o nexo. O segredo grego é intuído. A língua que eles tinham e sabiam.
A voz ecoa como milhares de sinos. A voz canta em sua fala. Essa língua é canção ao ser dita. Prosa que é poesia e verso que nasce ritmado. Suave como sopro. Sopro de Afrodite. Ela é certa como o mar e a maré, a lua e sua fase. Cadências que sobem e descem, voz/língua humana. Ouço e me comovo. A voz foi feita para aquela língua. Com tal instrumento voce cria a poesia, o teatro e a filosofia. Milagre.
Decadência.
Nenhuma língua tem tal sonoridade. Ela é como deslizar de água em subterrâneos cheios de eco. Entendo porque para eles toda língua soava bárbara. A voz que fala enfeitiça, dá luz, é uma fala de sortilégios e de seduções. Silêncio na sala. O tempo se vai, distância desfeita, versos de 2500 anos.
Poesia só em grego.

SCHLESINGER/ LUMET/ WYLER/ AUDREY/ O'TOOLE/ BETTE DAVIS/ REESE/ GLENDA JACKSON

DOMINGO MALDITO ( SUNDAY BLOODY SUNDAY ) de John Schlesinger com Peter Finch e Glenda Jackson
Poucos filmes são tão poéticos. Poéticos não no sentido de belos cenários ou lágrimas tristonhas, muito mais que isso, este filme é poesia na forma de ver o mundo, em como entende o amor, as relações e a maneira como se dá o ritmo de suas cenas. A história, que nunca é melô, fala do amor de um médico inglês por um jovem artista plástico. ( Atenção! O filme tem cenas de beijo e cama entre homens, jamais gratuitas e nunca exibicionistas. Reais. ) Mas esse jovem é livre, desapegado, e namora também uma mulher que trabalha em escritório. Todos os três sabem do que ocorre, nada é escondido. No final, num domingo, o jovem parte rumo à New York, e em cena magnífica, o médico, Peter Finch ( um ator fenômeno ) se volta à câmera e fala "conosco". Dentro dessa situação do que trata o filme? De quase nada. Jamais se mostra qualquer um dos três como um ser excepcional. Ninguém sofre como mártir do amor. E também nada há de frio ou de distanciado. Schlesinger consegue o equilíbrio perfeito: conta-nos uma história de amor que não é drama ou comédia. Talvez crônica. Visualmente o filme é perfeito. Ruas de Londres com estranhas e assustadoras figuras, uma casa de amigos que é centro do liberalismo que grassava na época ( 1971 ), as crianças fumam maconha numa cena, alegremente, e nenhum comentário moralista é feito ( aliás o filme tem também o mérito de nada comentar, deixa para nós o trabalho de analisar e pesar ). Glenda Jackson faz a mulher. Grande e famosa atriz inglesa, da tradição teatral de Peter Brook, ela logo largaria a carreira para viver. Seu desempenho é de um naturalismo inebriante. Peter Finch, que alguns anos depois ganharia um Oscar póstumo por Rede de Intrigas, domina o filme. Sem medo algum, faz um médico que se joga no amor por esse solto e etéreo jovem idealista. Sua fala que encerra o filme ( "Eu sou feliz, mas eu preferia ser feliz com ele..." ) me arrepia ao ser lembrada. Poucas vezes o cinema foi tão honesto. John Schlesinger é talvez o cineasta central da Inglaterra dos anos 60. Atingiu seu auge com o sucesso de Perdidos na Noite ( Oscars de filme e direção ) e com este filme voltou a ser indicado. Mas estranhamente sua carreira desandaria na década de 70/80 ( drogas? neuras? ). O que dá uma certa melancolia ao filme... saber que foi este o último grande filme de um cineasta de tamanho talento. Original sem ser hermético, dramático sem cair nunca no dramalhão, ritmado sem parecer futil, eis um filme profundamente adulto. Obrigatório! Nota 9.
ASSASSINATO NO ORIENT EXPRESS de Sidney Lumet com Albert Finney, Vanessa Redgrave, Sean Connery, Ingrid Bergman, Lauren Bacall, John Gielgud, Jacqueline Bisset
Um elenco all-star para nada. Apesar do luxo da bela embalagem, Lumet jamais consegue criar suspense, clima, interesse. Ficamos sentados entediados, vendo o desfile de rostos conhecidos e a solução de um crime que não empolga. Ponto muito baixo da longa carreira de Lumet. Nota 3.
L'EAU À LA BOUCHE de Jacques Doniol-Valcroze com Bernadette Lafont
Um dos jornalistas originais que formaram o que viria a ser a nouvelle-vague, Valcroze em sua estréia se mostra constrangedor. Os atores estão perdidos, as cenas são mal dirigidas, sem rumo, sem porque. Tudo parece irritantemente amador. Um desastre! Nota Zero.
COMO ROUBAR UM MILHÃO DE DÓLARES de William Wyler com Audrey Hepburn, Peter O'Toole e Eli Wallach
Um falsário tem uma obra roubada de museu por sua filha. Quem a ajuda é um pseudo-ladrão de obras de arte. A filha rouba o pai para o salvar de ser descoberto como falsário. Bem...é imenso prazer ver duas pessoas como Audrey e Peter na tela. Ela, sempre com visual de Givenchy, desfila seu tipo gracioso, e Peter, irônico, combina bem com seus modos e suas roupas. O filme se vende como diversão de classe ( um gênero de cinema que não é mais tentado, talvez por falta de público de classe ). Wyler dirige com leve interesse ( em fim de carreira, é seu penúltimo filme ). A trilha sonora, do novato John Willians, é talvez a melhor que ele fez. A longa sequencia do roubo vale o filme, o resto é meio vazio. Mas ver Audrey e Peter é sempre um prazer. Nota 6.
A NOIVA CAIU DO CÉU de William Keighley com Bette Davis e James Cagney
A Hollywood dos anos dourados ( 20/50 ) era assim: se prometia um filme X, se fazia o filme X, sem nada de mais, sem nada a menos. Cagney está durão e cínico, Bette explosiva e forte, o filme é tola, óbvia, comum diversão. Mas é também vivo, alegre, nada chato e bem feito. Assite-se com interesse sempre renovado. Fala de noiva que a mando do pai, que não quer que ela se case, é raptada por piloto de avião, falido. O avião cai no deserto e lá se dirigem a cidade abandonada. A ação não cessa, os diálogos são bem escritos e tudo parece inverossímel ( mas voce diz: e daí? ). Uma delicia escapista. Veja e relaxe... Que bom! Nota 7.
COMO VOCE SABE de James L. Brooks com Reese Witherspoon, Owen Wilson, Paul Rudd e Jack Nicholson
O fato de Owen filmar tanto mostra a falta de bons atores de sua idade. Reese não. Ela é uma boa atriz. Sabe ser tola sem ser caricata. Rudd é apenas um tonto e Jack nada tem a fazer. O filme, uma bobagem sobre amor, tem um ponto mal desenvolvido, mas que é tocado: as pessoas aqui amam, mas evitam todo o tempo falar sobre amor. São vazios, não entendem o que seja amar. Esse aspecto salva o filme da completa nulidade. Brooks é um mito da tv. Mary Tyler Moore, que ele escrevia e produzia é uma das cinco melhores e mais premiadas séries da história. Depois ele se envolveu com Taxi ( que lançou Andy Kauffman ) e Os Simpsons ( que dispensa comentários ). No cinema ele ganhou Oscar de direção com Laços de Ternura e voltou aos holofotes com Melhor é Impossível. Mas desde então ele só tem decepcionado. Tornou-se banal, comum, quase vulgar. Uma pena. Nota 3.
HELLRIDE de Larry Bishop com Larry Bishop, Michael Madsen, Leonor Watling, Dennis Hopper, Vinnie Jones
Tarantino produziu e Robert Rodriguez fez a trilha. Mas o filme é uma piada sem graça. Sobre gang de motoqueiros, nada funciona. O roteiro é bobo, as imagens vazias, tudo parece uma gozação forçada. Bishop, como um tipo de durão é lamentável. Este filme é um tipo de MACHETE que não deu certo ( MACHETE é do cacete! ). Nota Zero!

A CANÇÃO DE ROLANDO

Guerra e guerra. A CANÇÃO DE ROLANDO, texto que funda a literatura francesa, traz para nosso cínico mundo pós-moderno a lembrança de que nossa história é a história da guerra. O texto, escrito por volta de 1ooo anos atrás, discorre sobre a morte de Rolando, herói de França, e de seus onze companheiros, dentre os quais Olivier, mortos em batalha contra os árabes em terras de Espanha.
A guerra dói. Vísceras são expostas no livro. Intestinos e fígados escorrem pela barriga, miolos saem pelos ouvidos. Cada golpe de espada é um jorro de sangue. Cavalos são estropiados. E em meio a toda essa sujeira, todo esse horror, irrompe o riso de Rolando, primeiro herói francês. Que herói é esse? Rolando guerreia. E vemos que toda a arte, todo o engenho, toda a inteligência humana se realizam, então, na batalha. Eles avançam com júbilo e matam com prazer. Morrem em dores terríveis, porém, certos da glória. O livro nos choca. É mais imoral que a mais imoral das transgressoras peças de arte moderna. Matar e morrer são o ponto mais elevado da vida de um homem.
Na história real Carlos Magno e seus pares de França ( Rolando e Olivier ) foram pegos encurralados no país Basco. Quem os atacou foram os bascos e mais alguns espanhóis. No livro, escrito cerca de 300 anos após o fato, são os árabes que os atacam. Milhares de árabes matam 60 franceses. O modo como o ódio se manifesta sem culpa nos é hoje odioso. Os inimigos são bestas desprovidas de sentimento. Todo árabe é mentiroso, cruel e traiçoeiro. Uma raça de demônios dos infernos. Matá-los é ter lugar cativo no céu.
Amanhece e o sol brilha sobre relva verde e plana. De cada lado do campo, inimigos se ofendem e se preparam para avançar. Uniformes coloridos, brasões, bandeiras e tambores. Os inimigos avançam. ( Futebol ou Rugby? ). Nada é mais belo para a mente medieval que esse combate. O sangue manchando o verde da mata, cavalos relinchando e armaduras brilhando ao sol. Gritos de ataque. Avante!
Cem anos mais tarde a cavalaria seria tomada pela paixão à Virgem e a mulher ideal, e o amor menestrel se tornaria o centro de sua missão. Rolando celebra o mundo da guerra pré-mulher. Em tempos cínicos, onde fingimos ser tudo paz, a caçada e execução de Bin Laden ( para mim, um assassino indigno de julgamento ) nos mostra que nada mudou. A única diferença, imensa, é que hoje fingimos não ver e não ter nada com isso.

TEMPO E ESPAÇO: A TEOGONIA - HESÍODO

Cada deus que nasce é pai antes de nascer e filho antes de seu pai nascer. Confuso? Ler a Teogonia nos dá uma estranha sensação, em alguns versos voce tem o vislumbre de que o tempo lhe foge, se desvanece, mostra-se o que é: vão. Porque o tempo em que Hesíodo viveu desconhecia a contagem do tempo. Entenda-me, o tempo é uma criação da igreja medieval. Sua função era a de marcar as horas das obrigações cristãs. Por mais ateu que tu sejas, creia, sua vida diária é regida pela igreja ( mas não pela religião, que é atemporal ). Dezembro do Natal, e depois páscoa, corpus-christi, finados, e todos os santos, cada um com seu dia. Hora da primeira oração, da segunda, da terceira. Hora da Ave Maria. Dia de São Pedro, São João, São Lucas e Santa Genoveva. O capitalismo pegou o calendário já criado ( pelo papa ), nós vivemos enredados nessa invenção, tão artificial quanto uma catedral.
Porque no universo não se conta o tempo. As coisas acontecem cada uma em seu ritmo único. E se voce olhar à certa distãncia, todas acontecem ininterruptamente: é tudo agora e sempre agora. Hesíodo sabia disso. Homero sabia disso. Cada deus era dono de seu tempo. E cada vez em que era cantado tornava a nascer e procriar. O homem que eu sou é filho de meu pai e pai de meu filho desde que nasci. Ao nascer, meu filho nascia comigo, e quando meu pai nasceu eu nascia com ele. A morte de meu pai vive ao lado de sua vida que já era sua morte. E eu morri e nasci com ele. Meus descendentes moram comigo desde sempre. E mais: o momento em que estou é meu. Se estou nascendo, morrendo, crescendo ou decaindo independe de uma contagem. É meu mundo. O que fui aos 12 anos está presente e o que fui aos 35 pode estar distante. Então não é o que fui, sim o que é. Voce como uma acumulação de afirmações. OS DEUSES COMO A VONTADE DE SER. Zeus e Cronos querem ser, eles são.
O poema conta o nascimento dos deuses. Seres fecundando seres. Deuses nascendo. Idade do ouro, idade em que trabalho e morte não existem. Idade de Prometeu, aquele que logrou enganar Zeus. Ladrão do fogo, condenado a suportar a dor, a mulher ( fonte de dores ) e a insatisfação eterna. A criação do Hades, o nascimento de Zeus, o pênis do pai arrancado e de seu sêmem nascendo Afrodite, o amor. Guerra de Titãs, guerras e astúcias. Filhos castrando pais, pais comendo filhos. Hesíodo previu nossa era: era do ferro, tempo de ferrugem. Prata e bronze deixadas atrás, o ferro é a época de suor, esforço, velhice. Do trabalho sem fim. Era sem deuses.
O poema, escrito 2.700 anos atrás é forte, é selvagem, é vontade de poder ser. Ele é. Sempre é. O mais viril dos poemas, os mais astutos versos, vontade de nascer sempre.
A Grécia arcaica é a eterna juventude.

UMA PROMESSA ( WALK ON THE WILDE SIDE )

Eu tinha fugido da escola e estava ouvindo um disco. E naquela tarde de agosto, sol de bosta, prometi que nada em minha vida seria nunca jamais "nos conformes". Devo a Lou a primeira vez que tive orgulho de ser um merda.
Eu era jovem pra caramba então. E passei a gostar de pensar que havia a porra de uma maldição sobre mim. Bobagem eu sei, mas devo a Lou a primeira vez em que ser um pseudo-maldito não me pareceu ser um loser.
Nada mudou. Passou um monte de anos e não passou nada. O que me seduz ainda é aquilo que ninguém quer. Se voce gosta de azul eu vou amar o amarelo. Continuo sendo um espirito de porco.
Lou Reed pegou minha orelha com essa linha de baixo que é a melhor da história do universo ( Herbie Flowers ) essa voz que é a voz do cara merdinha das ruas e esse som límpido, safado, sexy. Tinha de haver um coro de black girls, tinha de ter um sax de bêbado. Há um clima aqui que é como cheiro de gim com sêmem jogado no azulejo. Mas a voz de Lou, o merdinha, jamais perde a elegãncia.
Naquela noite eu perdi minha virgindade. Ela tinha cabelo de fogo e peitos de porcelana. E cheirava a walk on the wilde side. Era elegante, mas era todo o pecado do mundo.
All right.

CORAGEM E REMÉDIOS. FIM DE ERA.

Cottardo Calligaris toca num assunto de raspão: toda civilização em estágio terminal torna-se covarde. Ele escreveu ontem sobre essa falta de coragem, essa medrosa reticência das elites de agora. Já não me lembro quem, mas alguém disse que o mundo do futuro seria um mix de spa com hospital. Desde crianças, nossa única fé seria em dietas e pílulas. Na mosca! Mas o buraco é mais profundo.
Toda civilização quando agoniza se torna covarde. Passam a temer o futuro, temer más vibrações, temer a morte. Vivem apenas para a preservação da própria vida ( parece a voce óbvio viver para continuar vivo? És filho de agora! ). O hedonismo surge como único consolo e gerações flácidas desistem de ter filhos e perdem todo vínculo com religião ( verdadeira, religião que obriga a deveres ) ou transcendencia. Viver se faz apenas "sobreviver". Foi assim com os romanos, persas, bizantinos e babilonios. Com aztecas e maoris. As elites dirigentes deixam de ser exemplos e pior, tornam-se patéticas. Seres assexuados, esquálidos, sem vontade ou desejos, histéricos e medrosos. Presas em potencial de corajosos bárbaros, presas de homens com coragem para morrer.
Calligaris fala de que poucas coisas hoje nos fazem correr riscos. Penso na patética segurança da fórmula um, no não-me-toques do futebol, e até penso na guerra moderna, sem vísceras, sangue e corpos mutilados ( veja, detesto a guerra e a violência. Escrevo com razão fria, não com meu coração delicado ). Viver é, para homens e animais, correr riscos, viver e morrer. Quando se foge apavorado de todo risco também se está fugindo de toda vida futura possível. Interrompe-se a corrente da luta. Penso em snowboarders se jogando de montanhas, isso sim, isso é coragem, risco real. Mas penso também em toda essa coragem usada apenas como exibição de coragem, sem um fim que não seja o próprio ato. É coragem verdadeira, bela, mas é um desperdício. Esses atletas correm esse risco porque o mundo não lhes oferece mais nenhuma chance de provação, de risco, de adrenalina natural.
Ah sim... o que me motiva a escrever isto é aquele patético casamento daqueles dois débeis herdeiros da casa real inglesa. Olhe para a cara deles. Herdeiros de reis que precisaram matar e morrer, gritar e sobreviver. Uma elite que era elite POR CORRER OS RISCOS. Ir lá e brigar ( mesmo que fosse uma briga em roubo ou trapaça ). O que eles são agora? Ovelhas de raça? Bonequinhos de porcelana? Triste piada a Inglaterra, país que jamais ousou matar seus nobres, que lhes paga para que continuem a lhes iludir. Grotescamente ridiculo.
Para finalizar, acabo de folhear a revista Caras. Estrelas de Hollywood que estão obviamente doentes, atores com rostos de nenês afeminados, sorrisos falsos. Esses são os modelos? Caraca! Que venha logo o golpe final !

CHÁ NAS MONTANHAS- PAUL BOWLES

Na introdução deste livro, Gore Vidal, que sabe tudo, tece elogios a Bowles. E diz que "os americanos, tanto leitores como críticos, tendem a só dar valor aos escritores que escrevem apenas sobre a América. Autores que vivem e pensam apenas o sonho ou o pesadelo americano". Desse modo, os melhores escritores dos Estados Unidos: Henry James, Edith Wharton e Vladimir Nabokov são sub-valorizados. Henry James por ter vivido sempre na Europa, Wharton por só se interessar pela alta-classe de New York e Nabokov por ser um emigrado russo. Para Gore Vidal, Bowles sofre dessa maldição, pois é um americano que vive e escreve sobre o Marrocos e o México. Waaaallll....
Penso que Henry James é com certeza o maior e melhor escritor que a América gerou. Mas não acho que ele é sub-valorizado. Basta ver a constante reedição de sua obra e a quantidade de filmes baseados em suas histórias. Edith Wharton é sua maior seguidora e não está esquecida. Quanto ao gênio Nabokov, ele só não tem maior reconhecimento pop pelo fato de vivermos em tempos moralistas e também por sua escrita ser muuuuuito refinada. Voltando a Paul Bowles....
Nos anos 80 era coisa de bom gosto fashion-chic ler Bowles. ( Como era ler Gore Vidal ). Paul Bowles tinha uma coisa de maldito, de inconformado e de decadente que muito atraía a geração Chet Baker- Basquiat. Mas isso passou. Os anos 90 enterraram os 80 e o que era chic em 1985 se tornou brega em 1995. Bertolucci ainda teve tempo de fazer um filme sobre Paul Bowles: O CÉU QUE NOS PROTEGE. Ninguém melhor que Malkovich para ser Bowles. O filme é lindo, aterrorizante e desagradável. Assim como a escrita de Bowles: simples, banal e estranhamente assustadora.
Há algo de latente em todos estes contos: a loucura. A gente lê esperando por muita violência, pela explosão de sangue, por decepações. O sexo também paira em cada linha. Sexo sempre não natural. Os contos se passam sempre no deserto, seja México seja Marrocos. E todos exibem americanos perdidos em meio a cultura incompreensível. Tudo pode acontecer nesses lugares, a lógica é abolida. E quase nada acaba por acontecer. Mas acontece... O tempo escorre e os personagens vagam aturdidos.
Não é agradável ler Paul Bowles. Há uma foto dele na contracapa. Rosto de gente ruim. Morreu nos anos 90, vida longa. Tudo o que ele fez ficou em segredo para ele mesmo. Correu mundo, casou com Jane, a genial Jane Bowles ( Debra Winger no filme, brilhante ) e escreveu muito. Mas Gore Vidal diz que o que Bowles queria ser era músico.... aquele tipo de músico erudito dos anos 30 na América, do tipo que botava uma turbina de avião no palco para "tocar" com a orquestra. Ou que escrevia concertos para serrote e piano ou furadeira e cello. Acabou na África, escritor. Bem... seus contos não deixam de ser uma furadeira em papel.

ZURLINI/ ALAIN DELON/ RICHARD BURTON/ KEVIN KLINE/ MALKOVICH/ MELVILLE/ HITCHCOCK/ MILOS FORMAN

O MANTO SAGRADO de Henry Koster com Richard Burton e Jean Simmons
Burton interpreta este soldado romano como se em ressaca. Não reage. O filme, pop épico cristão, é de uma chatice sem fim. Nota 2.
O REENCONTRO de Lawrence Kasdan com Kevin Kline, William Hurt, Glenn Close, Jeff Goldblum, Tom Berenger, Meg Tilly
É o segundo e o melhor filme de Kasdan ( roteirista de filmes de Lucas e Spielberg ). Fala de grupo de amigos que não se vê há mais de dez anos. Se reencontram no enterro de um deles, e esse amigo se matou sem que eles saibam o porque. Após o enterro, que nada tem de trágico, eles resolvem passar um fim de semana juntos. O filme é apenas isso, esse fim de semana, certas feridas reprimidas e relações mal resolvidas. Algumas cenas são bastante emocionantes, mas penso se essa emoção não é mérito apenas da trilha sonora ( é fácil emocionar com you can't always keep what you want ). De qualquer modo é um filme muito acima da média ( concorreu a Oscars em 1983, aliás, um belo ano para o prêmio ). Kline faz o alegre e bem sucedido pai de família, aquele que mais traiu os ideais hippies, Hurt é um ex soldado do Vietnã que ficou impotente, Goldblum é um jornalista cínico, mulherengo, Berenger um ator de tv e Meg Tilly a muito jovem ex-namorada do suicida. Ela é a ponte da geração hippie, que se tornou materialista, e a geração doidinha dos anos 80, que tenta reviver os ideais dos ex-inconformistas. Kevin Costner faz o defunto, todas as suas cenas em flash-back foram cortadas. Todo o elenco brilha, são todos atores adoráveis que teriam tido melhor sorte se tivessem vivido na era de De Niro e Pacino. Bons papéis começam a rarear exatamente a partir daqui, 1983. Para quem tem amigos antigos é um filme obrigatório. Nota 7.
KLIMT de Raul Ruiz com John Malkovich e Saffram Burrows
Picaretagem pura. Um lixo metido a grande arte, um pedante exercício de virtuosismo vazio. Aqui está a afetação máxima em cinema. Odiável! Malkovich está tão ruim quanto. Ah... o filme é sobre o pintor austríaco. Quem espera um retrato da brilhante Viena da épóca, fuja. Nota ZERO.
OS PROFISSIONAIS DO CRIME de Jean Pierre Melville com Lino Ventura
Será Melville o melhor diretor da história do cinema francês?....Quem sabe?...Clouzot, Clair, Bresson, Cocteau...Os filmes de Melville são filmes de quem ama Bogart. Mas são ainda mais viris que Bogart. E mais realistas. Bandidos passam a perna uns nos outros e a policia tenta entender o que se passa. Ventura é um ex-detento. E Melville faz tudo com cenas curtas e cortes muito secos. O filme foge do glamour, mas é cheio de jazz. Poucos entenderam tão bem o que é o jazz quanto este francês. Filme para Homens. Cigarros, carros sujos, botecos e armas pequenas. Eu adoro os filme deste cara!!!! Nota 8.
MURDER! de Alfred Hitchcock com Herbert Marshall
É o primeiro filme falado de Hitch. E é cheio de truques de imagem. Mas percebe-se sua origem teatral, algumas cenas são absolutamente estáticas. Longe das obras-primas do mestre, vale para se conhecer Herbert Marshall, um dos mais elegantes atores ingleses do século. Nota 5.
OS AMORES DE UMA LOURA de Milos Forman
Começa com uma menina tcheca cantando rock em tcheco. É 1965. Época de Kundera e Havel. Três anos antes do massacre. É o primeiro filme de Forman. E é dos seus melhores. Jovens tchecos tentam viver e amar e entre eles há uma moça loura. Quem amar? Os jovens são desajeitados e egoístas, os mais velhos são feios e casados. O estilo de Forman se revela aqui: ele ama rostos banais, gente feia, vulgar e estranhamente magnética. Os ambientes são grotescos, pobres, mesquinhos, mas eis o segredo: são nossos ambientes. É maravilhoso ver um filme com gente de verdade, com fedor, espinhas e roupas sujas. Nada de "mundo cão" falsificado, mas o mundo suburbano como ele de fato foi/é. Há uma cena em baile de soldados, em que as três meninas são paqueradas por três gordos de meia-idade, que é perfeita. A cena é muito cômica, ridícula, comovente e cheia de suspense. Milos Forman já surge sabendo tudo. Um toque: entre 1965/1968 o cinema tcheco era o mais amado por criticos e festivais ( e levaram dois Oscars, em 66/67 ), este filme mostra o porque. Com a invasão dos tanques russos tudo isso seria destruído. Nota 7.
A PRIMEIRA NOITE DE TRANQUILIDADE de Valerio Zurlini com Alain Delon, Sonia Petrova, Renato Salvatori e Gian Carlo Gianninni
Um poema melancólico. A história de um homem que vive sem raiz, sem ilusão, sem afeto. Tenta ser indiferente a vida. Mas se perde ao conhecer uma mulher. É dos mais perfeitos exemplos de uma alma delicada sendo dilacerada pelo mundo estúpido. Belo, implacávelmente belo, este é aquele tipo de cinema que dignifica a arte e em meio a tanta estupidez nos recorda o porque de tanto amarmos filmes. Zurlini era um poeta. NOTA DEZ!!!!!!!!! ( critica abaixo )
A MULHER DO SÉCULO de Morton da Costa com Rosalind Russell
Este filme serve como uma prova: a prova de que alguma coisa se perdeu na América. Porque? Veja: este filme, sofisticadérrimo, foi um sucesso em 1959. Hoje ele nem seria feito. Baseado em peça da Broadway, fala de garoto que é criado por tia triliardária e excêntrica. Ela o ensina a ser livre. O filme é documento de um certo tipo de snob americano da época, o americano novaiorquino que amava arte hindú, poetas russos doidos e professores franceses de arte grega. Rosalind Russell dá uma aula de humor, de elegância, de prazer em viver. Aliás, o filme é um maravilhoso anti-depressivo. Temos a defesa de mães solteiras, de judeus, da diversidade, das "portas que se abrem". Para a época é uma mensagem ousada. Mais que isso, o filme é uma festa, com seus cenários luxuosos, o diálogo sempre interessante, atores carismáticos e cores vibrantes. Assiste-se com esfuziante prazer. E não se emburrece, enobrece-se. Voce assiste e se sente feliz, que mais querer? Obrigatório!!!!! NOTA DEZ!

A PRIMEIRA NOITE DE TRANQUILIDADE- VALERIO ZURLINI

Nós homens fazemos tudo por uma mulher bonita. A beleza de uma boca ou de um seio nos transforma em tolos, asnos ou em heróis e poetas. Mulheres são diferentes. Elas sabem zombar de bíceps ou de belos lábios masculinos. Elas sabem que atitudes são mais importantes que pernas bem feitas. Este maravilhoso filme de Zurlini TAMBÉM é sobre isso.
Existem filmes que são belos por seu argumento. Outros por suas imagens. Mas alguns poucos são belos por um personagem. É este o caso. Danielle, um homem melancólico, um perdedor consciente e proposital, feito com gênio por Alain Delon, é desses personagens que carregam um filme direto para nosso coração. Raras vezes se mostrou com tamanha beleza a saga de um homem sensível sendo massacrado pelo mundo moderno. O filme chega a provocar dor.
Delon é um homem que chega a Rimini. É um viajante, um ser calado, um estrangeiro em seu próprio país. Anda a esmo e vemos então que ele dará aulas num liceu. Estamos no auge do radicalismo italiano ( 1972 ) e de cara ele diz a classe que para ele "esquerda ou direita são iguais, talvez os fascistas sejam apenas mais estúpidos". Mas o filme não é politico ( ou é? ). Logo vemos que ele é casado e que sua esposa é infiel, fato que lhe provoca indiferença. Na aula ele sente atração por uma calada estudante, belíssima, e essa é sua perdição. Ela namora o playboy bad boy da cidade e é também uma prostituta. Delon/Daniele imaginará ser ela um tipo de alma para ser salva. Ele acabará encontrando aquilo que sempre desejou: a primeira noite de tranquilidade, o sono sem sonhos, a morte.
Nesse processo ele fará amizade com três malandros. A vida desses homens é carteado e prostitutas ( e penso em como o cinema americano é incapaz de exibir com naturalidade, sem crime ou neuras, essa vida tão masculina de bordéis e garotas de programa ). O filme tem cenas muito reais e bem feitas de boates e festinhas em apartamentos que mais se parecem com motéis. Nada é julgado e nada cai na chanchada, estamos longe do mundo de virgens de quarenta anos.
Ruas com chuva, um inverno que penetra a roupa, casas em demolição, pinturas e afrescos. Há uma cena chave em igreja onde existe uma pintura de Della Francesca. Delon, que é um professor de arte, descreve como aquela obra foi feita e o que ela significa. Na descrição da obra ( tão pequena, tão simples, tão sobre-humana ), vemos a descrição de Delon/Danielle, do que ele pensa ser a estudante/prostituta e mais: do próprio Valerio Zurlini, o mais delicado dos diretores da Itália. Uma cena perto do fim, em que ele e um amigo vão à casa abandonada é cena de antologia. A prova de que o cinema pode ser arte de nobreza viril.
Poucos filmes são tão tristes. Poucos são tão reais. Aqui a tristeza não é a tristeza da excessão. Não é o drama de junkies, de doentes terminais ou de bandidos de favela. É a tristeza de um homem que não possui conexões, que viveu e viajou demais, que descrê de tudo e que pensa, por um momento, ter encontrado uma fonte de vida nova. O que ele encontra é a tranquilidade. Para sempre. Eis um grande filme!