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Ive Brussel - Jorge Ben Jor Con Caetano Veloso



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SALVE SIMPATIA! - JORGE BEN. PARA ANIMAR A FESTA...

   É comum se dizer que Jorge Ben foi melhor em sua fase "violão". Que ao começar a tocar guitarra elétrica Jorge Ben nunca mais se mostrou o mesmo. Concordo em parte. Os 3 primeiros discos elétricos são maravilhosos! Ben arranha a guitarra, usa-a como um tipo de percussão, faz com que ela bata, repique, ribombeie. E atrás dele, toneladas de bumbos, caixas e pandeiros, e mais tamborim, pandeiro, reco-reco. Um naipe de metais, um baixo suingante e os backing-vocals espertos e sexy de algumas meninas insinuantes. Uma receita unida pela voz de Jorge, voz que faz samba, que funkeia, que derrama letras que são simples, mas que também são retratos perfeitos do momento, de um movimento, de alguém que passa e que vem.
   Salve Simpatia é o segundo disco elétrico de Jorge e dessa fase foi o que mais vendeu. De suas oito faixas, cinco se fizeram hits. Ele fala de boiadeiros, mulatas sensuais, reencontros, jornalistas de botequim, moços simpáticos e tem até mesmo letras em latim. Jorge Ben sempre se interessou por filosofia hermética, alquimia, magos medievais e qual o sentido da vida. Ele às vezes divaga sobre os porques e os praques, mas sempre dá a impressão de que tudo se resume a uma questão de simpatia.
   Em janeiro de 1981, no Guarujá, Jorge Ben tocou sobre a areia para um mar de pessoas. Era o segundo verão do desbunde e as pessoas se beijavam e se abraçavam debaixo de um céu que parecia o mais lindo de toda a história do planeta. Lembro que muita gente subiu no palco e cantou com Jorge, assim como houve uma alegre guerra de areia. Era o quarto show de Jorge que eu assistia em poucos meses e eram todos absolutamente idênticos. Na época ele divulgava o conceito de simpatia. Não posso explicar o que isso seja, mas posso garantir que sei o que é. É o mais perfeito caminho para ser feliz.
   Da primeira canção, que vem em crescendo de ritmo grave, até a última faixa, intimista, tudo no disco é simpático, é união que transforma. União que transforma, encontro que faz diferença.
   Adelita é uma das minhas canções favoritas de sempre. Ela é como fim de tarde em praia e sol se pondo vermelho. É festa que se aproxima. Fala de moça bonita como uma rosa. Ive Brussel foi um sucesso imenso. Descrição de flerte, descrição de reencontro, ritmo de verão. Sempre me lembrou sorvete de limão e garotas de shorts.
   Dentre todas as músicas, Valdomiro Pena é das melhores. Tem um encadeamento de palavras que por si só já é coisa genial. Jorge usa as sílabas como naipes de percussão, células ritmicas. Quando em seguida explode a faixa Salve Simpatia, voce vê a vida simpática diante de seus olhos. O ânimo está presente.
   Ninguém é menos indicado para uma geração frouxa que o vivo Jorge Ben. Ele é esperto, ele é alegre, ele é sempre pra cima. Mesmo quando fala sobre qual o sentido da vida. Na verdade o que ele faz e sempre fez é samba. Música pra cintura e pro coração. Simpática!

Dorival Caymmi "O que é que a bahiana tem"



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Maracangalha - Tom Jobim e Dorival Caymmi



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O REI DA RAÇA. ( ORGULHO DE MEU PAÍS ).

   Era um verão triste. Fim de mais um romance, solidão e vontade de não estar onde se está. Janeiro de 1987? Ou seria 88? Era tarde de absoluto tédio. Então na TV tem uma entrevista com Caymmi. E eu lá queria saber de Caymmi?
  Ia mudar de canal, mas antes olhei a cara de Caymmi e resolvi dar uma chance pra entrevista.
  O homem tava de branco e com uma malinha na mão. E se falava da mania que ele sempre teve de andar com aquela malinha. O que há na malinha? Ele sorri. E ninguém no mundo sorri como Caymmi sorri. E então, na beira do mar, ele toca O Mar.... e eu recordo que num verão sublime, em 1973, eu ainda criança, cantara O Mar na praia de Santos. A letra estava no meu livro de português. ...Quando quebra na praia é bonito....
  Virei fã e sorri durante toda a entrevista. Salvou meu verão ruim. Ter 70 anos e ser Dorival Caymmi... nada pode ser melhor. Espero chegar lá...
  Todo país tem um cara que sintetiza o gênio da raça. Não falo do cara mais criativo ou importante, falo do melhor. O ser que é tudo aquilo que a nação tem de mais particular, de mais secreto, que é só dela. Caymmi é o Brasil em seu melhor. Tudo de bom que ainda se imagina ser o Brasil, é na verdade lembrança de Caymmi. Numa biografia que li sobre ele ( livro dado de presente por meu amor num dia de namorados caymmiano ), Caetano diz que as músicas de Caymmi parecem não ter autor, parecem ter existido desde sempre, como se fossem parte do lugar, coisas criadas pela natureza. Dorival Caymmi é a natureza do Brasil em seu melhor. Ele é a Serra e a praia.
   Ele cresceu ouvindo sambas e Debussy, roda de capoeira e Ravel. E apesar do pai músico, aprendeu a tocar violão só. Em 1938 já era rei na Bahia, foi pro Rio e em meses era rei do Rio e do país. O QUE É QUE A BAIANA TEM? Estourou com Carmem Miranda nos EUA. Foi convidado por Disney em pessoa a ficar por lá. Não aceitou. Tempos mais simples e menos ambiciosos, não queria ficar longe do mar e dos amigos. Algumas músicas de Caymmi rodam o mundo. MARACANGALHA tem versões em alemão, em francês e até existe uma gravação israelense.
   Dizem que Caymmi é preguiçoso, lento, que compôs pouco. É verdade. Levou oito anos para finalizar uma música. Mas suas letras são depuradas ao extremo. Cada sílaba é cuidadosamente casada à melodia. EU VOU PRA MA RA CAN GA LHA EU VOU, tudo matemáticamente ajustado, a sonoridade da letra percutindo na boca, sendo parte do ritmo. O MAR QUAN DO QUE BRA NA PRA IA É BONI TO É BO NI TO.
  Acabo de reouvir EU VOU PRA MARACANGALHA, o quarto disco de Caymmi. Sambas baianos malemolentes, a rica tessitura de arranjos com violinos e metais, vocais de fundo quentes e malandros. E a voz grave, articulada, solar de Dorival Caymmi. Voz que causou espanto nos anos 40 por não ser um "vozeirão", por ser natural. Como são naturais VATAPÁ ( UM BO CADINHO MAIS...), 365 IGREJAS, O SAMBA DA MINHA TERRA ( QUEM NÃO GOS TA DE SAM BA, BOM SU JEI TO NÃO É ), SAUDADE DA BAHIA ( AH QUE SAU DA DE EU SIN TO DA BA HIA...AH SE EU ESCU TA SSE OQUE MAMÃE DI ZIA ... )  e a estupenda ACONTECE QUE EU SOU BAIANO.  Todas essas canções, inexplicáveis, parecem ser parte do folclore nacional, são como o Corcovado e o Pantanal, estão lá, imensas, invencíveis, eternas, filhas de Deus. Voce as escuta e lembra de quem voce é, de onde vem e onde está. Pandeiros macios, o violão cheio de marés e sais, a voz que parece de pajé, de gurú e de irmão mais velho que sabe tudo. Os pescadores e as moças bonitas, os fins de tarde e a noite sem fim, a comida e a Bahia...É tudo tão bonito que até dói. Mas é dor boa, dor de beleza, dor de amor. Um disco que nos ensina a viver relembrando o que na verdade sempre somos.
   EU VOU SÓ EU VOU SÓ EU VOU SÓ....
   Li ontem no jornal que no futuro todos viverão sós, serão auto-suficientes e ensimesmados. Esse já é meu mundo. Ah... Quanta saudade teremos da Bahia... Ah se escutassemos o que mamãe dizia....
   Dorival Caymmi nunca mais. O Brasil era um bairro e vinte ruas. A rua Rio, a rua Bahia a rua São Paulo... Todo mundo se conhecia, se visitava, se via. Mulher, Mar e Canção. Eu realmente amo esse tal de Caymmi. O risonho, feliz, malandro e muito zen Dorival. Que os deuses do mar e do tempo me concedam a graça de ser cada vez mais próximo a sua verdade.
  

Ronnie Von - Cavaleiro de Aruanda



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RONNIE VON É UM CARA MUITO INTERESSANTE

   Uma bio sobre Ronnie Von seria muito interessante. Ele nasceu no Rio, em berço de ouro e viveu várias etapas de uma vida complexa. Aviador, ator, cantor e compositor, apresentador de Tv, brega e chique, doido e andrógino. E sempre um gentleman. Bonito como Alain Delon, namorou várias e encontrou uma no caminho que quase o matou ( e é a única de quem ele não fala o nome ). Mas resolvo escrever isto porque ontem um amigo me mostrou o disco psicodélico que ele lançou nos 60's. Cheio de surpresas, inclusive uma vinheta de rádio e uma conversa ao telefone, as músicas têm influências de Beach Boys, Love, Who e claro, Beatles. Guitarras ácidas e baixos estourados, é um grande disco. Com a voz de Ronnie, que em meio a toda aquela zoeira soa sempre sob controle, distanciada, um Bowie antes de Bowie ser Bowie.
  Ouço falar de Ronnie a exatamente 46 anos. Quando eu tinha dois anos, minha mãe é quem fala, eu já cantava "Meu Bem", a versão dele de "Girl" dos Beatles, um hiper sucesso por aqui. Fui uma criança que cantava, os vizinhos vinham em casa me ouvir cantar. Eu ficava cantando o dia todo e pra mim sempre foi natural me exibir. Com a entrada na puberdade perdi a voz e a confiança. Bem.... E lá estava Ronnie Von na TV, com seu cabelo Chanel e terninho justo "feminino". Eu o achava intrigante e meu pai o detestava. Sei hoje que ele foi um dos primeiros caras no Brasil a escutar Hendrix e Doors. Ele tinha acesso a importações, numa época em que coisas importadas no país eram mais raras que ladrão em Ipanema.
   Depois, nos anos 70, ele entrou numa viagem de ser ator e começou a gravar músicas muito adocicadas. Mas mesmo assim existem coisas de interesse, como a faixa que posto acima, que é de 1974. Eu a escutava na rádio Difusora e gostava pacas. Mas cheio de vergonha, pois ouvir Ronnie Von em 74 já era uma vergonha. Na virada pros anos 80 ele tinha um programa de Tv e lançava músicas à Roberto Carlos, como o hit "Tranquei a Vida". Ficou doente, paralisado na cama, e quase se foi. Deu a volta, e me acredite, o cara é um sobrevivente.
   Hoje ele é um digno representante de sua geração. Conseguiu não ser um tio-doidão e nem um saudosista chato. Se empolga com Bossa Nova e Soul Music, Beatles e Blues. Seu programa de TV é uma coisa totalmente alienigena, tentativa de ser sóbrio e familiar num meio que é hoje histérico e individualista. Ele leva as coisas com seu jeito de bom filho e bom marido, sem baixarias e sem apelações. O ibope é ignorado.
   Caraca! 46 anos ouvindo falar do cara! 46 anos vendo o tempo passar nele e em mim. Falar mais o que? Respeitem o homem. Ele não é pouca coisa.

Gilberto Gil - "Babá Alapalá"



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REFAVELA- GILBERTO GIL ( O MUNDO NOVO É UM MUNDO NEGRO )

   A gente não percebe porque se acostumou, mas se um homem do século XIX ( ou mesmo de 1910 ), viesse cair em Paris hoje, ou New York ou Londres ou Sidney ou meu bairro em São Paulo; o que esse homem do passado mais estranharia? Os prédios? Os carros, as telas acesas?  Não meus caros, seriam os negros. E mesmo em cidades desde sempre negras, como Rio ou New Orleans, esses homens estranhariam negros vivendo e tendo o poder de brancos. A grande revolução do século XX foi a cultura negra se fazer dominante, o homem negro ser, e será cada vez mais, a cara do planeta. Este disco, uma obra-prima irretocável, é uma espécie de biblia desse momento histórico.
   Gilberto Gil foi à Africa e voltou mudado. Não se ia muito a Africa em 1975 e a miséria lá, se hoje revolta, imagine então. Ele voltou ainda mais negro do que sempre fora e aqui ele faz uma coisa que antecipa a moda de dez anos depois: um disco world music. Em 1976 não existia nem o termo. Os criticos não sabiam como classificar este disco, foi mal falado. É genial. World Music com muita testosterona. É reggae, é batuque africano, é funk, é musica de terreiro, é filhos de Gandhi. Gil sempre foi um duende, sua alma é dionisíaca ( Caetano é Apolo ), aqui ele está em casa, feliz, solto, explosivo.
   Refavela a música, começa com lindos acordes e vai num rápido crescendo de percussão. Um monte de instrumentos, uma festa, e um refrão harmônico que é um êxtase. Uma alegria colorida que canta a favela paradoxal. Lugar feliz de miséria e dor. Toda a criatividade de um talento imenso está aqui em pleno poder. Este aliás é seu último grande disco.
   Aqui e Agora. Uma divagação mistica, daquelas que ele tão bem sabia fazer. Gil não é exatamente religioso porque ele não fala de religião. Para ele a religião é coisa resolvida, ele vive nela e pronto. Aqui ele fala do espaço e do tempo, com calma, com tranquilidade. Uma canção suave, soft, de belíssima harmonia.
   Norte da Saudade é reggae primitivo. De sertão, tosco e com um baixo ( Rubão ) absurdamente bom. A banda que o acompanha suinga, ginga e cria sem parar. Jogo de cintura, muito suór e sangue na veia.
   Ilê Ayê fala exatamente da negritude. Rápida, quase agressiva, tem uma levada que não é funk, não é samba, não é reggae, é o que? Um momento de criação solar.
   Babá Alapalá. Uma obra-prima. Isto é uma obra-prima. Ela desliza pelo ar, primitiva e sofisticada. É como um tesouro. O baixo e a percussão mandam, a voz inspiradíssima. Seu corpo vai junto. O disco anuncia: não mais melodia, ritmo e dança, música é milagre, uma coisa que é um nada invisível e que faz a cabeça pensar e o corpo pirar. Como diria o grande Ezequiel Neves: Descaralhante!
   Sandra é linda. Uma canção com letra que é poesia literária, múltipla de sentidos e uma melodia que se parece a hino de harmonização. Ela hipnotiza. Me recordo de aos 18 anos ficar tardes e tardes, ao pôr-do-sol,  cantando essa melodia.
   Era Nova é quase psicodélica. Bastante "mutante", ela tem três andamentos e uma letra complexa, e ao mesmo tempo, festiva. Aliás o disco inteiro é feliz, alegre, otimista.
   Samba do Avião. E ele transforma uma bossa de Tom Jobim em música de Cameroon. Fica bom pra caramba!
   Balafon é mais uma obra-prima. Um primor de ritmo africano, de alegria esfuziante. Impossível voce não sair rebolando pelo quarto, pela sala ou pelo carro. Uma música tão maravilhosa que ela deveria ser vendida nas farmácias, para doentes e perdidos. Voce a escuta e vê trilhas africanas diante de seus pés. E sorrisos bonitos.
   Patuscada de Gandhi. A mais simples das músicas. Uma batucada, meio terreiro, dos Filhos de Gandhi. É preciosa e muito rebolativa. Em 1981, eu, Mauro e Dió destruímos a sala de casa ouvindo isso. Acho que a escutamos dez vezes e ainda ligamos pros amigos pra mostrar nosso novo arranjo. Foi uma das mais brilhantes noites da minha vida.
   Nos anos 80, como aconteceu com todo mundo, de MacCartney a Lou Reed, passando por Bowie e Neil Young; Gilberto Gil se tornou fã de si-mesmo e isso o levou a ser uma caricatura. Seus discos se tornaram hiper-produzidos, preguiçosos e bobos. Mas é impressionante o nível de genialidade que ele demonstrava nos anos 70. Assim como Caetano, Jorge Ben, Tim Maia, Ney Matogrosso, Novos Baianos e tantos outros, Gil cria sem parar, mistura tudo, absorve o ambiente e nos dá uma salada que nunca desanda. Essa linha de evolução seria rompida pelos próprios criadores a partir de 82/83 e nunca mais seria retomada. A música feita no Brasil passaria a ser de segunda categoria, cópia de cópias ou saudosas tentativas de revivier o já ido. Chico Science tentou retomar e até conseguiu. Seu primeiro disco é filho direto de REFAVELA. Mas Chico morreu e o mangue beat se perdeu na nascente.
   De qualquer modo, aqui está o material. O futuro preto e gingado. E genial. Maravilhosa refavela!

PAULINHO DA VIOLA

   Eu juro que era assim: Milagres aconteciam. Para eles acontecerem era preciso tempo, céu grande e um horizonte pra se deixar ir. Sem isso não tem milagre mais nenhum.
   Eu juro. Um dos milagres era Nelson Cavaquinho, o outro era Cartola e tem um vivo, Paulinho. Ele tem o tempo que é dele, tem céu grande e horizonte onde se vai. E é um nobre. E cavalheiro. Se o Brasil fosse perfeito todos seríamos Paulinhos. Único, consegue fazer um pandeiro soar triste como um cello. Faz de uma caixa de fósforos batucada,  uma orquestra de câmara. E tudo com elegãncia. Impossível imaginar Paulinho dando um grito.
   Moço do bem. Tudo o que ele faz é bom, certo e reto. Nunca precisamos tanto de muitos Paulinhos como agora. Suas músicas são canções de janelas com rosas, de jardins ensombreados e de cheiro de sabonete em tardes de verão. Dos prazeres discretos, uma tampinha que cai no chão e o vaporzinho que sai da garrafa gelada.
   O milagreiro de "Coisas do Mundo Minha Nega", uma canção que sem drama, com delicadeza, faz a crônica da melancolia. Nela há toda a rica imagem do nosso espírito com os mais belos versos que nasceram do ar. Porque nele tudo parece etéreo, como se vindo do nada. Inclusive a voz de Paulinho, pequena, exata, fina, do céu.
   Voce sabe, ou deveria saber, em versos de canção fomos um dia os maiorais. Não havia no mundo país com melhores letras. Não há mais letras. Com o fim do tempo e do horizonte se foram os milagres. "As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender". A gente fazia versos assim, simples e lindos, fáceis e tão cheios de mensagens e pensamento. E o povão cantava isso... Basta a letra de "Pra ver as Meninas" pra exibir o milagre. Um romance inteiro em 3 minutos de samba.
   Quero dizer ainda que ele é nosso Fred Astaire. O máximo com o mínimo.
   O máximo de elegância com o mínimo de esforço aparente. Natural como viver. Um milagre.

Nu Com A Minha Musica



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OUTRAS PALAVRAS- CAETANO VELOSO, UM MAPA PARA O MAIS SECRETO

   Assim como temos um "eu" que se manifesta para o mundo e um outro "eu" que nos é secreto e imutável; um país também tem uma face voltada ao globo e uma outra, íntima e imune ao tempo, que só é compreendida pelos filhos daquela terra. Não existe valor nessas duas faces, nenhuma é mais real ou melhor, ambas existem nessa comunhão volátil entre as duas, uma se comunicando com o tempo e o total, a outra impassível diante do que lhe é exterior. Ao escutar uma das grandes canções ( e são milhares ) de meu país, tomo contato com esse "eu" mais profundo. É como se ao ouvi-las me encontrasse na mais sólida das terras, e ao mesmo tempo no mais profundo e tênue dos sonhos. A música brasileira tem esse duplo poder: é sólida e real, mas ao mesmo tempo jamais parece acabada, pronta, definida, ela sempre mantém sua profunda ambivalência de tempo sem tempo e de verdade que se sonha. Ela não é melhor que o jazz ou mais aguda que o rock, mas ela é mais. É minha cara, é a sua cara, e eu te explico o porque. Mesmo que voce seja desses que acreditam ser "do mundo".
   Ao escutar este disco, por exemplo. A gente escuta uma voz que repercute dentro, porque ela é um eco feito por alguém que viu, comeu e ouviu o que a gente viveu. Por mais que tenhamos comido hamburger e pop corn, por mais que tenhamos comprado discos de Led Zeppelin e Sonic Youth, e assistido a HBO e a FOX Life, essa voz que escutamos foi alfabetizada em nossa lingua, adormeceu com a voz de pais que falavam nossa fala e sonhou sonhos brasileiros em lingua brasileira. É um disco feito por alguém que sabe quem é Renato Aragão, Zico, Lula ou Portinari; de alguém que sabe o que é a Serra do Mar, uma chuva de verão e uma menina de bikini azul; é alguém que sabe o que significa ter nascido aqui e chutado uma bola na rua. E por isso, "só" por isso, ele falará direto dentro do seu "eu" mais escondido. Por mais que voce abomine seu sotaque baiano, ou sua pretensão "terceiro mundista", saiba, voce é farinha do mesmo saco. Por mais que voce se esforce, para um inglês voce pronuncia " Tea for Two" como um brasileiro.
   Após cursar linguística, minha apreciação sobre este disco mudou radicalmente. Se antes eu amava aquilo que ele "foi" em minha vida, agora descubro o que ele "é" em invenção de palavras, de sentidos e a complexidade inesgotável que mora em seus sons vocálicos. É um tesouro guardado, e o mapa faz-se como canção. Doce. Com percussões delicadas, sempre, e um contra-baixo estilingado que embeleza ao dar ritmo. A canção do Brasil pode ser triste, alegre, angustiada ou sexy, mas jamais é estúpida, tentar encontrar na MPB a agressividade do rock é querer achar num pássaro a alma de um cavalo.
   Por quatro anos de amor, Caetano foi meu guia e meu pai de santo. De Aninha, por Marina e até Gigi, foram noites de janela aberta sobre a cama cantando à Lua. Fui tão feliz que hoje até dói lembrar. E é tão raro, eu sei, ter tido tanto assim. Dou graças a minha sorte. Sei bem o que é o amor.  Como eu amo esta canção! "Nú com a minha mùsica"... Ela anda como ônibus velho em estradas de poeira lá pros lados de Miracatu. Gingando lento de lá pra cá... Ela é como as janelas dos caboclos nos bananais. O horizonte do mangue e os meninos de bicicleta. E é o céu, o céu que é tudo e que sobe até bem pra mais.
   "Nú com a minha música", é como o banho lento- ansioso antes de encontrar o amor.
    E a música tem um assobio calmo, um violão lindo e uma percussão que só no Brasil.
    A brisa anunciando a chuva, linda como a franjinha de Aninha, o olhar de Marina e a voz de Gigi. Estanca o sangue do tempo e recupera a Lua pra mim. Uma canção que me prepara para sempre amar.
   Linda e tão doída. Uma canção que é uma prece, um caminho que vai de alma acima e não cai.
   Talvez a gente não mereça mais nada assim...
   Culminância de um disco perfeito, calor do meu sangue. Fé de que pode tudo ser.

CINEMA TRANSCENDENTAL- CAETANO VELOSO ( O REINO DE EROS )

   Sempre que estou feliz estou em sentimento erótico e sempre que me sinto em Eros ouço música de meu país. Pretensioso? O fato é que o ressentimento baixa de grau e então me permito ser o que sou desde sempre. Voce sabe, por aqui ninguém é mais vítima de ressentimento que Caetano. Tem uns criticos de rock que adoram falar mal dele ( crítico de rock falando de Caetano....é como crítico de cinema falar de teatro ou de pintura palpitar sobre arquitetura. O que um cara que opina sobre Rem e Clash tem a ver com Caetano? ). Ressentimento. Caetano canta muito, fala muito, sabe muito e pior, parece ser feliz. Imperdoável. Lembro que fui adolescente ressentido. Ateu, revoltado, anti-tudo, nada me irritava mais que aqueles bicho-grilos do Objetivo que amavam Caetano. Asquerosos. O que não queria perceber é que o que me irritava é que eles tinham tudo o que eu queria e não tinha. Parecia que eles estavam sempre em paz, rindo, parecia que rolava muito sexo, droga, folias e festas. Estavam sempre cantando, beijando, meio pelados e cheios de sol. Eu me ressentia e criava uma raiva anti-erótica sombria e mortal. Isso tudo mudou quando amei de verdade pela primeira vez e descobri o sol, o suor, eros e a felicidade. Este disco veio junto. Entendi. Não sou brasileiro. O Brasil não é meu país. Eu sou do Brasil. Por mais que engula litros de Henry James e Roxy Music, eu sou daqui. Sem ressentimentos, please.
   As letras. Gringos diziam que era incompreensível como um país de iletrados podia ter uma música popular de letras tão sofisticadas. Tão profundas. É provável que essas letras ainda sejam escritas, mas não são mais populares. Regredimos. O ressentimento vingou-se de sua ignorância. Oração ao Tempo é filosofia profunda em forma de mpb. Caetano diz ter recebido toda a letra de seu inconsciente enquanto fazia a barba. Não vou citar aqui trecho nenhum da letra, seria injusto não citá-la inteira. Não conheço letra popular mais complexa.
   O disco é todo solar. É pele bronzeada com gota de suor. Areia voando e cheiro de mar. Mas é todo voltado pra dentro, é auto-análise, é divagação aprofundada. Pretensioso? Qual o pecado desde que exista prazer? Uma canção de Jorge Mautner: O Vampiro. Eu amava Aninha e a ouvia todo dia. Feliz mas chorando de amor que crescia sem parar. A canção diz tudo. Não há melhor letra sobre a dor de amar e amar cada vez mais. " Voce é o estandarte da agonia/ Que tem a lua e o sol do meio dia". Só voz e violão e solidão. A voz dele parece cantar para mim e só pra mim. Outra canção é Elegia, baseada em John Donne. Erótica. Tropical. Feliz, muito feliz.
   As mais belas rimas estão em Trilhos Urbanos. Todas as palavras se chamam umas às outra e andam como vento em ruas de verão. É uma aula completa sobre ritmo e poética. Tivesse nascido vinte anos antes e Caetano teria sido nosso melhor poeta "de livro". Mas ele cresceu com Caymmi, João e samba e deu no que deu. Além da voz, a voz que nunca desafina.
   Vale dizer que ao escutar tudo isto durante meses todos os dias aos 15 anos o disco gravou-se em mim. E o reencontrando hoje, impregnado neste dia, de Bergson e de uma primavera que promete, percebo ser este disco mais "eu" que tantos outros eus que conheci em discos e livros desde então. Graças aos céus conheci este mundo a tempo. Nas faixas deste disco mora não só meu melhor lado, como brilha ao sol meu mais feliz mundo.
   COMPOSITOR DE DESTINOS/ TAMBOR DE TODOS OS RITMOS/ TEMPO TEMPO TEMPO TEMPO/ ENTRO NUM ACORDO CONTIGO...
  

CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS E POÉTICAS SOBRE UM VIDEO TOSCO QUE EXIBE A MELHOR MÚSICA DO PLANETA TERRA.

Eles são magros. Muito magros. E jogam bola. A gente logo percebe então: São magros porque é uma época sem hamburger e sem salgadinhos de pacote. Mais: de feijão com bife e sem supermercados. Nas roupas com que jogam bola não há uma só marca: sem grife nenhuma e sem tênis. É bola e pé. No que eles gastavam dinheiro? Não havia celular, internet, tv a cabo, pay per view, plano de saúde, seguro do carro, show caro de artista barato... no que se gastava dinheiro? Que dinheiro? Eles não tinham dinheiro e não trabalhavam em dois empregos pra pagar a nova tv 3D. Jogavam bola e tiravam um som.
Amigos que não vão em balada. Simplesmente se encontram pra jogar bola e fumar um. E fazer um som. Não há qualquer idéia de se construir uma carreira. Não se pensa em música como um emprego, um meio de vida. Faz-se música. Simples assim. O que vier é acidente, não meta. Pensamentos magros em gente magra. Música magra. Portanto, leve. Amigos fazendo um som. E esse som nasce sem um objetivo. Ele reflete apenas, reflete o som que seus avôs ouviam no rádio na hora de se levantar pra fazer o café. Misturado com o som das festas do campo e da praia. E com um toque de discos novos comprados na hora. Mas tudo misturado como peixada, como batida pra beber, como feijoada. Pra dar gosto, pra dar prazer, pra ser encontro. E mesmo com tanta mistura, magro, leve, simples, virtuoso.
Toda música devia ser uma fruta no pé. Uma grama pra jogar. Um gol em meta de paus velhos e tortos, mal medidos. Uma folia de camisetas sujas e de mistureba de times. E a música vem amistosa, doce, com gosto de goiabada com queijo e cheiro de bolo de fubá. E quando ela desliza ela é rio, e quando ela canta ela voa. É uma manhã onde tudo é certo e bom, onde eu me canto, e onde as ruas são sóis vagabundos. A barca corre, a vida corre e nada morre. E eu ia lhe chamar enquanto corria a barca...
Eu ia, eu fui, eu continuo a te chamar, vida.
Os caras magros jogam bola e fazem música e viver ainda me apaixona. Eta música boa demais que eu ouço faz tanto tempo!!!!!!!!!

ETERNAMENTE JORGE BEN

Abominável são os caras da mpb que seguem Chico Buarque. São todos exatamente iguais, formatados em formol. Previsíveis seguidores de Gil. Gritinhos alegres e aquelas frases sobre abacateiros e corpos livres. Cantoras que nem é bom falar: iguais iguais iguais. Mas a coisa muda quando falamos do "namorado da viúva", do "homem gol", do cara que falava dos alquimistas.
Tivesse dado certo, o Brasil seria terra de jorges. Ele é o melhor que o país pode dar, ele é o máximo. Entre 1963/1979 tem uma carreira exemplar. De Bebete até Amante Amado.
Rei de alegria e divisor de águas: o que é bom na música daqui bebeu em discos de Ben. O resto não me importa. De Marcelo D2 a Mano Brown, de Fernanda Abreu até Tim Maia e seus clones, todos são da tribo de Jorge e salve Jorge!
Caetano teve uma boa e breve fase Jorgiana e Os Alquimistas Estão Chegando é meu hino maior. Sempre que minha vida brilha Jorge é presente. Ele dá a trilha de minhas meninas bonitas, de meu futebol manhoso, de meus fins de tarde de luz, das luas novas e das alvoradas. Salve Simpatia!
Vi vários shows de Jorge e todos são iguais ( ainda bem ) mas em 1979 ele se superou. O show grátis que ele fez em Pitangueiras, na praia, no velho festival de verão, 200 mil pessoas, foi o momento mais dionisíaco da história pós-Grécia. Calor, vapores insanos, meninas se dando e areia ao vento. E a Banda do Zé Pretinho mandando deixar rolar. Vida boa, vida solta, vida de Jorgear com swingue.
Presto aqui homenagens ao maior dos melhores. Como James Brown, um criador de nova linguagem e como Chuck Berry um nativo universal. Vi Jorge tocar na França, vi Jorge ser plageado por um inglês. Salve Jorge rei de Taj Mahal do Salgueiro e de Madureira.
Sempre desejei ser Jorge Ben. Porque ele é feliz. Porque ele faz feliz. Porque ele tem um fusca e um violão. Último rei negro, último brasileiro real, músico de ritmo que é sangue e é fogo, Jorge é cavaleiro consagrado ao riso e a mulher que sabe dançar.
Menestrel medieval de espaçonaves siderais, digo e repito mais uma e toda futura vez:
SALVE JORGE!!!!!!!!

ACABOU CHORARE - NOVOS BAIANOS

Quero mais. Só rock é pouco e jazz é pouco também. Como alguém pode só escutar ópera ou quartetos de Haydn ? Eu quero mais. O som de Ravi Shankar e de Trenet. Música pop da Itália e da Espanha. Mariachis e guaranias. Cabe todo som na minha cabeça. Música é para expandir.
Voce odeia MPB à priori ? Pobre de voce. Entre o lixo inominável e a pretensão cabecista existe muita coisa mais que boa. Porque voce, menino do Brasil, devia saber que o som do Brasil é acusticamente insuperável. O segredo nacional não é a ginga ou a percussão. É a harmonia. No som que se fazia no país tudo podia entrar, harmonicamente. A grande música pop do Brasil é fluxo de maré, é embalo de acalanto, é doce e ensina a viver. Pode salvar vidas.
Mas não cabe, talvez, em seu mundinho de trevas.
Bom gosto e bom astral. O disco começa se pondo em campo. Brasil Pandeiro é escalação de seleção, carta de deliciosas intenções. O tabuleiro está posto. Ele é baiano.
Quando então entra Preta Pretinha o gol é de placa. Nascer com esta canção... ela é tudo aquilo que poderia ter sido o Brasil. E é aquilo que a gente insiste em tentar ser : bonito. Talvez seja a mais bonita das canções. É ingênua, é solar, é esperança de vida. Preta Pretinha justifica toda a música nacional, de Caymmi até agora. Quando entra a percussão as meninas dançam e eu sorrio e penso : viver pode ser bom.
Mensagem de todo este disco/manifesto : VIVER PODE SER BOM.
Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer... eu sou um pássaro que vive avoando/ vive avoando sem nunca mais parar/ aiaiai saudade não venha me matar...
O disco não precisava de mais nada. Mas vem Tinindo Trincando que é uma festa de maconha e álcool barato. As cores dançam e o otimismo é rei. Swing de Campo Grande é ressaca carnavalesca. Jogar bola, ver as meninas e cantar, fora isso nada faz sentido, a vida é só bola, menina e violão. Se não é tinha de ser.
É engraçado, na MPB não existe o ódio... rockeiros cobram dela algo que ela não tem, ódio. É como cobrar harmonia de punk rock. Outro mundo.
Acabou Chorare. Se a gente perder de vez o dom de cantar o amor tudo estará perdido. Esta canção é amor de verdade e eu sei, se não se sabe cantar a raiva é porque se vive no amor. Chorare é tristeza confortável. Amor quente, lindo e pra sempre. Beijo em nosso ouvido.
Mistério do Planeta. Uma viagem filosófica baiana. Aquele nada que é tudo sendo coisa alguma. Mas o violão é lindo. Aceitar a vida. O mistério de cantar e imaginar esta letra.
A Menina Dança. Malandrices de quem chega sempre e nunca parte. Tanta malandrice irrita corações azedados. Me dá vontade de viver mais quatro décadas. Repetindo tudinho aquilo que fiz. A menina dança e eu danço com ela. No meu olho.
Besta é Tu. Besta é tu. O quanto cabe de alegria numa canção. Quando eu tinha 18 anos esta canção fez com que eu vendesse meus discos cabeça. Num mundo ideal todas as músicas seriam assim. Num dia ideal a gente acorda ouvindo isto. Porque não viver neste mundo/ se não há outro mundo.... Eu pulo e sorrio. Besta é tu...
Um Bilhete Pra Didi. Música estradeira de bananas e de garotos que vendem caranguejo.
Quantas vezes desci a Serra ouvindo isto ? E me sentindo e tendo consciência de estar completa e absolutamente feliz. O sol no verde, a água espumando e o cheiro... e o mar lá no final. Lindo.
ACABOU CHORARE é viajar para a idéia solar. Mas não vou cabeçar... sem filosofices, o disco é lindo e alegre. Nenhum país faz nada parecido. Este tipo de canção é só aqui. Não é pouca coisa.
Eu ia lhe chamar/ Enquanto corria a barca.... Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer......

S & M - EU AMO ESSES CARAS !

Em 1973 eu tinha 9 anos. Faria 10 em maio. Era domingo e a TV estava no Fantástico. Em meio as matérias, chatíssimas, eram inseridos flashs de "alguma coisa" musical. Eram três seres muito coloridos e muito ridículos. Dois homens pintados e uma mulher ( seria mulher aquilo ? Meu pai tinha certeza que era uma mulher. " Não vês como é uma mulher ? E essa voz ? Já minha mãe falava : Mas não tem seios ! E aquilo não são pelos no peito ? Mas mulher ! Isso não pode ser um homem !!!!! ). Eu achei que fosse um marciano. Meu irmão, 7 anos, apenas ria, e já aprendia a música.
Continuaram os flashs por todo o programa, sem nada os anunciando, sem letreiro, nada. Só no final do programa, Sergio Chapelin falou : " A nova sensação : SECOS E MOLHADOS. "
Pegue os MAMONAS e adicione Blitz mais RPM. Essa mistura chegará perto do que foi o sucesso dos SM. Mas com uma diferença fundamental : adicione à essa fama uma dose de Cazuza e Jorge Ben. Porque eles foram POP, mas foram libertários, foram rock, mas foram tropicalmente rítmicos, foram uma febre deliciosa que durou apenas um ano. Um ano...
O fenômeno foi absoluto. Num tempo sem internet ou clip, eles pegaram todo mundo. O fã de Bowie, o fâ de Roberto Carlos; o maluco que adorava Raul Seixas e o romântico-brega de Benito di Paula. O Brasil amava os caras. Minha mãe, aos 31, eu e meu brother. Meu pai não. Ney Matogrosso era demais para seu mundo.
O fato da ditadura não ter reprimido os SM atesta a esquisitice que este país sempre foi. Porque Ney era tão transgressor quanto Bowie e as letras eram explícitas em sua ansia libertária. Para João Ricardo, português líder da banda e rock'n'roll fanático, a dor existia, mas a festa não tardaria a chegar. No palco eles eram incomparáveis ! Aquele ser andrógino, ridículo e genial, rebolando, púbis quase de fora, caras e bocas, voz de afinação impossível, dando o prazer do " tudo pode" à um povo sedento de liberdade, de quebrar tabus de folia. João em sua pose de glitter lusitano, se achando o maior sex-symbol do mundo, o Marc Bolan da Lapa. E Gerson Conrad, o Charlie Watts do grupo, com sua cara de " que que tou fazendo aqui ? ". Nada foi ou é parecido. Penso que um SM hoje seria impossível. Não há humor para isso.
O disco, recorde de vendas, é ainda coisa única. Profundamente latino-americano, totalmente rock'n'roll. Desde a linha de baixo do originalíssimo Sangue Latino, música que me deu e dá sempre vontade de cantar junto, com sua sinuosa melodia de mata virgem, com seu não-refrão, e essa voz que é enigma de sangue e de sexo. Passando por O Vira, sonho de toda banda "engraçadinha " , com arranjo festeiro de Zé Rodrix. Mas nasce na faixa 3 obra-prima das obras-primas : Amor. Linha de baixo imbatível ( Willy Berdaguer é o cara ). Amor é POP perfeito. Sinuoso, grudento, original, leve e sublime. Poucas canções são tão perfeitas. Tudo nela balança e é certeza de acerto. E esse baixo.... tem coisa melhor ? Vem então a Primavera nos Dentes, momento de reflexão linda e de profunda melancolia. Para brotar então Assim Assado, coisa séria : percussão de índios com solo glitter. A voz de Ney torna-se hilária : estamos nos tempos de Monty Python. Puramente e permanentemente genial.
Mas continua. Mulher Barriguda é Stones. O "Yéahhhh" de João trai tudo : it's only rock'n'roll but i like it ! A Rosa de Hiroxima me fez chorar aos 10 anos... é bonita bonita. Vem uma sequencia de pequenas jóias de um minuto cada. Elas vão do dolorido ao " bem louco". Abrem caminho para a poesia de Fala, beleza etérea e eterna travestida em canção de arranjo de gênio. Fala fecha esta absoluta obra-prima com melodia de sonho e letra de encanto mudo. O disco é completamente do cacete !!!!
Eles terminariam ruidosamente após um ano e mais um disco ( apenas bom ). Deixariam orfãos todos que viram esse disco voador pousar na Terra, no Brasil, e que viram descer dele 3 alienígenas. Sem sexo, sem estilo conhecido, plenos de poesia e boas intenções. O disco zarpou e os levou pra sempre.
Ney se tornou aquilo que sempre desejou ser : dono de seu próprio nariz. Um grande cantor que faz o que quer fazer. Gerson sumiu. João Ricardo teve estranha história. Lançou logo carreira solo ( lembro de um brinde da revista POP, da Abril. Um adesivo-poster de João. O estrelo-glam, terno rosa de cetim, óculos de strass, sapatões brancos, deitado languidamente em sofá de tecido rosa-choque. Um luuuuuxo ! ) mas sua carreira, muito rock, muito glitter, não engrenou. Seu ego, imenso, destruiu seu ideal.
Ficou este disco. A lembrança de uma tarde em Santos ouvindo o LP pela primeira vez. E a bomba nuclear que foi vê-los numa era tão machista, de bigodes, ternos cinzas e bons costumes. Que coragem Ney !!!!! Que audácia João !!!!!!!! Que bonito Gerson !!!!!!!!!
Os SM foram carnaval de sonho em país de trevas. Meu coração sempre será grato ao que me deram. VIVA !!!!!!!!