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BIG SUR BY HENRY MILER + ABBEY ROAD AND LET IT BLEED + UMA CONVERSA COM UM STALINISTA + RILKE

-------------------- Big Sur foi escrito por Miller nos anos 40 e não fala de sexo e nem de drogas bebida ou tudo aquilo que os leitores teen de Miller procuravam até os anos 90. Ele se mudou para o sul da cidade de San Francisco, o Big Sur, uma região selvagem e deserta então, e nos conta como é morar lá. O livro, muito bom, é um elogio da solidão, da percepção que nasce com a observação atenta da vida e das coisas. Não chega a ser ZEN, mas o que Miller diz me agrada porque eu vivi tudo aquilo que ele narra, então eu sei do que se trata. Mas não pense que seja um isolamento radical. Miller mora num barraco, feito por ele mesmo,com dois filhos, câes e tem vizinhos, vizinhos que moram longe, que também amam a solidão, mas que o encontram de vez em quando. Ele aprende a se virar, a construir uma fossa, um chuveiro, moveis, a viver sem eletricidade. Quanto aos vizinhos, o foco do livro é falar deles. ------------- São pessoas interessantes. Gente que largou tudo e foi viver por lá. Alguns são artistas, todos são diferentes, excêntricos talvez, mas jamais malucos. Miller descreve eles, relembra conversas e nos conta suas sensações ao observar o tempo, o mar, as montanhas, uma folha seca no chão. Quando não cai em seu emocionalismo, que eu odeio e por isso não leio os Trópicos, Miller escreve bem. Ele descreve, ele pensa, ele diz. Felizmente neste livro ele se perde em emoções adolescentes poucas vezes. É um adulto falando. E como tal ele conta coisas que interessam. ----------------- Miller já era cult então, por isso recebe visitas de fãs que o acham lá. Ele tenta fugir, mas não há como. Vão a procura do escritor louco cheio de sexo, encontram um quase monge solitário. Com os moradores do lugar ele é simpático. São conversas sobre o clima, sobre consertar uma porta, sobre a escrita, sobre pintura. São companheiros. ----------------- Quanto mais voce usa esse seu celular mais distante da ONDA DO MUNDO voce está. Explico. Miller crê que ninguém cria nada, que há um criador que cria através de nossa mente. Somos antenas. Para acessar essa criação é preciso alguma solidão, silêncio, quietude. Sacou? Uma geração, inclusive eu, que vive conectada não tem chance alguma de entrar nessa onda mental. Daí a pobreza vexatória de nossa arte hoje. São criações de carne e de nervos, não de alma. ------------------ Em 1977, ano em que provei a quase solidão total, ganhei os discos Let It Bleed e Abbey Road. Os escutei diariamente por meses. Como dizia Rilke, voce só entra numa obra de arte quando dorme-vive-é inteiramente dela. A somoridade cristalina de Abbey Road e sua mistura de tragicidade com alegria criativa marcaram minha alma para sempre. Assim como a rebelde sexualidade arrogante de Let It Bleed. Eu morei, sozinho, em cada sulco daquele vinil. Não foi uma experiência estética ou sensual, foi um degrau espiritual conquistado. Minha pergunta é: quem tem uma experiência musical assim no Spotify? -------------------- Rilke diz em certo momento que livros emprestados não lhe tocam como aqueles que são dele. Pois a leitura completa só se dá em livros que têm seu cheiro, suas marcas, convívio físico entre leitor e obra. É preciso que o livro faça parte de voce. -------------------- Reencontro um velho amigo. Mais um. Ele me leva à um café chique, caro, exagerado. Não nos víamos fazia mais de 10 anos, muita coisa para se dizer. Mas.... Ele começa me contando de uma amiga negra, modelo, que só consegue trabalho na Suiça, aqui não. " Porque o Brasil é racista não é?". Depois ele me fala de um amigo que transou com um travesti, e que por isso, está sofrendo a terrível culpa cristã. Então ele fala de sua esposa, que está ganhando muito menos do que merecia, porque o Brasil é machista. Nesse ponto já entendi que aquilo não era um reencontro, ele apenas queria saber meu "grau de direitismo", como eu reagia a esse quase interrogatório. Me corrigiu várias vezes, "Não diga favela, é ofensivo, não diga gay, é machismo..." Então ele pagou a conta, alta e injusta, e disse que eu sou O CARA. --------------------- Fiquei triste. Eu sabia que ele faz parte do mundo dos Liberais Chique, mas pra mim isso é só um rótulo, ele é muito mais. Ou era muito mais. ------------- Nada das conversas sobre livros e sol, nada de mulheres bonitas e saudades, nem uma frase sobre a alegria de se rever um amigo. Apenas os assuntos minúsculos, ensaiados, aprendidos em jornais podres. Ele me pareceu morto. Vazio. Um boneco que nada percebe. --------------- Minha namorada riu. Ela trabalha com moda e diz que uma negra estilosa arruma muito mais trabalho que uma loura bonita. Nascida na favela, ela ri ao dizer que todo mundo nela diz favela. Comunidade é coisa de classe média ou de negro na TV. ----------------------- Eu queria ter falado à esse amigo dos livros que li, das experiências que tive, das pessoas que conheci. Impossível. Eu me sentiria em prova todo o tempo, ele a espera da revelação de minha condição de extremista de direita. ------------------- Enquanto isso pouco me interessa se Henry Miller amava Lenine ou não. O que importa é o modo como ele vê um pássaro e o que ele fala sobre a cor. Posso dizer que ele, morto em 1980, é muito mais próximo de mim que esse amigo perdido. O tempo.... ele é relativo.

WALLS AND BRIDGES, O MELHOR DISCO DE JOHN LENNON

Em 1974 John Lennon estava um caco. Sem Yoko, eles haviam brigado, ele vivia bêbado. Seus companheiros de copo eram Keith Moon, Ringo Starr, Elton John e principalmente Harry Nilsson. Todos conhecidos por seus excessos. ( Moon e Nilsson eram alcoolotras radicais, Elton estava na sua fase cocaína ). Lennon chamaria no futuro essa fase de seu "Lost Weekend " alusão ao filme de Billy Wilder. --------------- Nesse clima ele lançou o disco Walls and Bridges, disco que vendeu muito mas que foi meio esnobado pelos críticos. Eu conheço tudo que John gravou e para mim este é não só seu melhor trabalho solo, como um dos grandes discos da melhor década. Ele abre com Goin Down on Love e voce não imagina o que era ouvir isso no rádio pela primeira vez. Era rica, era complexa, era surpreendente. Mudava de tom, mudava de ritmo, se recompunha. Tinha percussão, metais, tinha rock e era esquisita. Lembrava os melhores trabalhos dos Beatles. A faixa seguinte fora fruto de uma aposta. Elton John gravou com John Whatever Gets you Thru the Night e apostou que ela seria número um na Billboard. John duvidou e disse que se ela fosse, ele apareceria de surpresa no palco em show de Elton. A faixa chegou a número um e Lennon aparece no Madison Square Garden, no meio de um show do Elton, sem avisar. Cantaram 3 faixas e essa foi, sem que ningém se desse conta, a última aparição de Lennon em um palco. Dezembro de 1974. Whatever Gets era outra surpresa quando surgiu no rádio. Era alegre e histérica, meio gay e tolinha. Deliciosa e eufórica. A cara dos anos 70. -------------- Para quem não sabe Harry Nilsson foi um gênio e Old Dirt Road é da dupla Lennon-Nilsson. É a alma do album. Linda de matar, triste de doer, tem uma guitarra slide sublime ( Jesse Ed Davis ) e aquele fundo de orquestra que Nilsson era mestre em usar. A voz de John está magnífica, é triste, é rock, tem um fundo de ironia, é voz de quem perdeu ( o que irrita em John é sua mania de exibir feridas ao público, mas aqui é tudo tão bonito que a gente perdoa ). A próxima, What You Got, tocava em anúncio de TV. É rocknroll. É agitada. Funciona à perfeição após o bode da faixa anterior. Dá até pra dançar. Bless You é uma faixa que poderia ser cantada por Al Green. Ou por Luther Vandross. Seria sexy. Seria soul de motel. Na voz de Lennon, voz incapaz de soar sexy, é bela porém incompleta. Scared é mais uma grande faixa. Um lobo uiva duas vezes e a orquestra entra como em sonho. Lennon repete várias e várias vezes que sente medo, muito medo. Dizem que seu afastamento do trabalho, entre 1975-1980, se deveu a crises de pânico. Se for verdade, eu penso que não, esta faixa entrega tudo. É pesada, soturna, mas é cheia de beleza. Quando inspirado, John Lennon era uma fábrica de produzir coisas bonitas em meio a frases simples. Scared é um exemplo de talento. Se Paul MacCartney é um mestre em produzir harmonia de cristal, John fazia beleza no lodo. E essa beleza é superlativa em Dreams, uma das músicas mais bonitas já gravadas. O som da bateria harmonizado com os violinos que "sonham" é das construções musicais que só um imenso dom, um talento sem limites, faria. Dreams me encantava quando tocava no rádio, em 1974, e me encanta agora, uma vida inteira mais tarde. É perfeita como música acabada e completa. Surprise é a faixa menos boa do disco inteiro. Apenas uma brincadeira rocker. Nada ruim, mas destoa. Steel and Glass é terrível. Terrível no sentido de ser assustadora. Os metais estão precisos, a música progride como destino. John sente medo outra vez. Sou apaixonado por essa faixa desde que a ouvi pela primeira vez, 1980, logo após sua morte, que foi quando comprei o album. Sei que escrevi sobre esta obra uns 10 anos atrás, mas o valor da grande arte é sua capacidade de ser eternamente comentada. Hoje sou outro e o album tem outro valor para mim. Beef Jerky é esquisita e é instrumental. E depois temos mais uma faixa que é puro Nilsson: Nobody Loves you when you're Down and Out. Só John e Nilsson poderiam fazer uma faixa com esse título. É uma longa lamentação de Lennon, pura auto piedade. Ele lambe feridas sem pudor. Mas eu adoro, porque musicalmente é uma maravilha. A massa sonora lembra o melhor de Phil Spector ( John foi o único Beatle que aprendeu com ele. Paul jamais deixou de seguir George Martin, um estilo muito mais refinado que o de Spector ). Essa massa de guitarras, violinos, metais, percussão, se arrasta como se tudo fosse uma imensa ressaca. E é uma ressaca sim. A canção é como uma dupla de amigos cantando na rua às 6 da manhã, com dor de cabeça, dor de corno, dor de viver. É adulta e é feita em espírito adolescente. É uma obra de arte. ---------------------- Minha opinião é que Lennon se afastou dos palcos e do trabalho por ter vivido um "momento de Voltaire". Desde sempre Lennon fora um rebelde ingênuo, um revolucionário enganado, e em 1975, após o inferno de 1974, ele viveu aquilo que Voltaire descreve ao fim de Candido: Ao final de tudo, o melhor é que cada um cuide de seu jardim. Em crise, percebendo a tolice de seus companheiros, ele se volta ao jardim, à família, à casa. Vai criar o filho, fazer pão, ver TV. Uma das raivas que sua morte nos legou é que não assistimos a segunda parte de sua vida. ------------- Walls and Bridges é o momento em que o Lennon chato e infantil morre.

A INGLATERRA É ENGRAÇADA

Para entender qualquer coisa inglesa, pelo menos aquilo que se chamava de inglês até mais ou menos 1990, voce precisa entender que a ilha é engraçada. Sem a consciência de que o inglês é marcado pelo humor, e não necessariamente pela alegria, voce nunca fruirá totalmente da arte ou da vida inglesa. --------------- Quem já cruzou o país sabe, a Inglaterra, a GB, é pequena, fria, úmida, escura, estranhamente pobre. Os bosques são monótonos, as ruínas são decepcionantes, os lagos escuros e as praias medíocres. Ao contrário da França, que sempre parece rica, bem feita, risonha, a Grá Bretanha sempre tem um aspecto de mofo, de neblina, de fim de tarde. Vivendo nessa ilha, isolados da Europa, acossados por vikings e depois franceses, dinamarqueses, espanhois, franceses, nazistas, russos, o britânico desenvolveu o humor. Ou voce bebe até cair ou voce percebe que nada daquilo faz muito sentido, que a terra é hostil e a vida dificil e então começa a rir da piada. ------------- Eu falo não apenas do óbvio, os melhores humoristas são de lá, de Chaplin e Stan Laurel à Monty Python e Steve Coogan, Rick Gervais e Jason Statham ( sim, ele é um humorista 100% do tempo ), mas cito Lewis Carroll, Dickens, Joyce, Woodehouse, Swift, e até mesmo Shakespeare. Voce jamais entenderá a arte da Inglaterra e Irlanda se não tiver em mente que Beckett escreve do pub, sempre do pub, um bando de homens rindo e falando blasfêmias. Beatles é sempre irônico, assim como Mick e Keith são, desde 1962, uma piada. Não leve totalmente a sério Oasis, Smiths, Bowie, os saltos de Townshend, Blur ou Primal Scream. Tudo aquilo é folia, é gozação, é brincadeira de moleques no pub. Mesmo aqueles que se percebem como muito sérios, penso em D.H.Lawrence, Wells ou Bertrand Russell, têm seu lado de " Ora eu não falava tão a sério". Ao lado de uma frase trágica de Keats ou Shelley vive sempre a ironia do bebedor de cerveja preta. Robert Burns e Oscar Wilde são a alma das ilhas. -------------- E no entanto eles são tristes... Pois esse tipo de humor nasce sempre da tristeza, é uma fuga, e nisso se parece muito com o humor judeu. Italianos e americanos, outras duas nações do humor, riem de verdade, eles realmente se descontraem, mas o britânico, repare, ele ri sem perder o pudor. Daí sua genialidade. O absurdo levado como fato real. Quando Chesterton nos faz rir, e ele faz, sabemos que a vida pede por sentido, que a vida é limitada, que somos ilhas a procura de um continente. Já quando Steve Martin nos faz rir, sentimos que somos garotos de high school rindo de alegria pura. O americano ri porque sente-se vivo, o inglês ri para sentir-se vivo. ---------- Não estou falando de humor inteligente. Nada há de inteligente no humor do Monty Python e quem fala de humor inteligente nada sabe de humor e muito menos de inteligência. Humor é ser engraçado, só isso, e fazer rir é sempre um ato inteligente, seja Rodney Dangerfield seja Buster Keaton. O humor inglês ou judaico não é mais inteligente que o humor italiano ou americano, é apenas mais absurdo. E, ao contrário dos USA, na GB o humor faz parte do caráter nacional. ------------------ Posto alguns momentos de Peter Sellers. Ele revela o segredo. Aproveite.

I WANNA HOLD YOUR HAND, O COMEÇO DO FILME SEM HISTÓRIA

Deixo claro desde já, gosto deste filme. O título acima não significa que não goste. É apenas uma constatação. Posto isso, vamos à história. ------------------ I WanNA To Hold Your Hand é o primeiro sucesso de Robert Zemeckis, é de 1978, e é produzido por Spielberg. É portanto o começo da tomada de poder dos amigos de Spielberg no cinema POP. A sacada do roteiro, Bob Gale, outro da turma, é genial: Estamos no começo de 1964, em NY, mais especificamente no dia em que os Beatles iam tocar no programa de Ed Sullivan e mudariam o mundo para sempre. O filme foca em quatro meninas e seus amigos, elas fâs do ingleses, eles relutantes ou hostis. Temos a histérica, a romântica que vai se casar, a fotógrafa que quer fotos boas e uma seguidora do folk, que odeia os conformistas e alienados Beatles, mas que mudará de ideia oa final do filme. ----------- Eu disse que é o começo do filme sem história. Explico agora: Até então eu só me lembro de um único filme desse tipo: UM CONVIDADO BEM TRAPALHÃO ( THE PARTY ), o filme de Blake Edwards, ótimo, com um Peter Sellers diabolicamente genial. Em seu lançamento, 1967, foi um fracasso absoluto. Público e crítica não aceitavam um filme SEM HISTÓRIA. ----------- Mas o que é isso de FILME SEM HISTÓRIA? Lembram de ESQUECERAM DE MIM? O RATINHO ENCRENQUEIRO? DURO DE MATAR? É isso. Uma única situação, uma única trama, que se desenvolve sem história paralela alguma, sem variações, sem desvios, um tipo de situação que daria um curto mas que se estica em hora e meia. O que este filme conta ou narra? Jovens que querem ver os Beatles. Onde se passa? No hotel dos Beatles. O que os personagens fazem? Tentam ver os Beatles. E SÓ QUEREM VER OS BEATLES. Esse o motivo do filme sem história: um único desejo move todo o filme. Centenas ou milhares de filmes desde então podem ser encaixados nesse estilo. Inclusive, lembro agora, TUBARÃO ( JAWS ), um filme que não tem hsitória alguma, é apenas uma ação esticada ao máximo. -------------- Este filme é bom porque é maravilhosamente bem dirigido. Para esse tipo de filme ser aceito é preciso ritmo, leveza, bom humor, e tudo isso há aqui. Além disso vemos, pelo outro lado, o lado dos fãs, o que era a Beatlemania, e tomamos consciência de como, ao lado de Elvis ou de Jerry Lee, os ingleses pareciam efeminados, dandys, nada rock n roll. ------------ E por fim há o fator Nancy Allen, único nome no elenco que fez uma carreira. Ela tem uma das cenas mais sexys e pornôs que já vi no cinema americano ao fazer sexo oral com o contra baixo de Paul MacCartney. Veja para crer. E depois gozando e se molhando ao ver os caras tocando. Só por isso o filme já vale. ---------------- PS: não é ficção. Várias meninas tinham seu primeiro orgasmo nos shows da banda. Alguém no filme diz que aqueles jovens amavam os Beatles e ao amar o grupo SE AMAVAM. Os gritos das fãs eram uma afirmação de amor a si mesmo. -------------- Sem história, mas com repercussão.

AMERICANOS E INGLESES. THE BEACH BOYS E 3 CANÇÕES PERFEITAS.

É famosa a teoria que diz que nos anos 60 e 70 americanos criavam novidades no rock, mas os ingleses, piratas que são, roubavam e embalavam essas novidades. E as vendiam como ideias suas. Frank Zappa foi ousado muito antes do Pink Floyd e os Beach Boys começaram a usar instrumentos estranhos ao rock antes dos Beatles. ( Eu poderia citar mais exemplos, tipo o Velvet Undergorund foi art rock antes de Bowie ou o MC5 foi punk antes dos Sex Pistols....a lista é longa ). Get Around, dos Beach Boys, é o primeiro single gravado na beatlemania e conseguiu chegar ao number one das paradas. E devo dizer que Brian Wilson lança aqui um belo desafio aos caras de Liverpool ( seu primeiro desafio ). Do primeiro acorde da guitarra ao orgão tenebroso que harmoniza o final, da progressão vocal cheia de camadas, à guitarra que avança em meio a melodia, as palmas e um xilofone que pontua, há aqui uma riqueza musical que banda alguma no planeta POP chegava perto de fazer em 1964. Tudo em fantásticos 2 minutos. O falseto de Brian, triste como sempre, e as outras vozes em contraste...é uma obra prima absoluta. All Summer Long está no mesmo LP e abre com um xilofone, o que não era usual. Há tanta riqueza nas vozes que nossos ouvidos não captam sequer metade do que há ali. É verão e há algo de saudoso naquela alegria. No meio da canção brincam um sax e um teclado agudo. Voltam as vozes em tom de despedida. Eles cantam um verão que só existiu na imaginação deles. E que até hoje todos procuram. Little Honda....um GO! de abertura. Então duas guitarras que correm como motocicletas e uma voz, Mike Love, esperta e prometendo. E nascem os vocais de fundo: Faster Faster!!!! Não dá pra ser melhor que isso. --------------- Nessa época os Stones ainda faziam, de modo genial, blues em guitarra e harmonica, e os Beatles compunham maravilhas como From Me To You e 8 Days a Week...mas era música simples se comparada com aquilo que Brian e seus camaradas compunham. O desafio estava lançado e por sorte nossa, Paul MacCartney o aceitou.

VELHOS INSTRUMENTOS

No começo dos anos de 1960 aconteceu uma revolução na música. Beatles? Também, mas não é deles que falo, embora meu assunto tenha influenciado os caras de Liverpool. O que aconteceu foi a gravação de peças clássicas com os instrumentos de seu tempo. Vendeu muito, muito mesmo, nas décadas de 60-70 e 80 ajudou a equilibrar as finanças dos departamentos de música clássica. E saiba, foram as gravações de então, versões com instrumentos de época que fizeram Beatles gravarem Yesterday e Eleanor Rigby. ------------- Até então, quando se escutava Bach, ou Vivaldi, ou Haendel, ou Corelli, o que se ouvia eram instrumentos que não existiam em 1750 tocando músicas que em 1750 deveriam soar de um modo bem diferente. Comeaçava-se a perceber que aquilo poderia ser uma traição. Música do século mais racional sendo executada de maneira romântica. À Schumann. ------- Então um grupo de jovens maestros e músicos ingleses resolveu usar instrumentos como os de 1750. Violinos com cordas feitas de tripa de animais. Flautas de madeira. Cravo no lugar do piano. Bandolin, Corne, afinações antigas. Os andamentos mais acelerados, nada de sentimento exagerado, ênfase na dança, na alegria, no ritmo incessante. Para surpresa de todos, o público comprou aos montes. A dita "Música Antiga" entrou na moda. Em 1969 ouvir Bach era chique e que coisa, era hip ! ----- Trevor Pinnock e Christopher Hogwood são dois dos grandes nomes da onda. Ouço esses dois maestros, Pinnock em Bach e Hogwood em Vivaldi. ------------------ Vivaldi com Hogwood e a Academia de Música Antiga é um compositor diferente. Ele parece muito menos doce. Vivaldi se torna mais despido, mais apimentado, o som áspero das cordas lhe dá urgência. É um som que deixa o fundo aparecer mais. Os violoncelos atacam como guerreiros, a harmonia é mais selvagem. Já escutei mais de 8 versões dessa obra, desde italianas amorosas até alemãs exatas. Após o estranhamento inicial voce começa a preferir esta. ----------------- Trevor Pinnock e o grupo The English Concert tocam os Concertos de Brandenburgo. As cordas são como fossem feitas de borracha, parecem flexíveis. É um Bach menos sangue azul e muito mais camponês. É muito menos saltitante, a complexidade harmônica se revela em nudez. --------------- Era desse modo que Bach e Vivaldi queriam ser ouvidos? Quem prefere as versões tipo século XIX diz que se eles tivessem instrumentos melhores teriam composto para eles, e que portanto seria melhor ouvir piano e violino moderno. Já os amantes destas versões dizem que cada compositor escreve para aquilo que conhece e domina, e somente respeitando isso se pode ouvir aquilo que ele desejou que fosse perpetuado. Eu penso que jamais saberemos exatamente o que eles ouviam porque não há gravação em 1750. O que nos ficou são as partituras. Então toca-las em piano ou cravo é indiferente. O que se deve respeitar é harmonia, melodia e ritmo. ----------------- São dois cds históricos.

AS DUAS BANDAS MAIS INFLUENTES DA HISTÓRIA

Bing Crosby foi o cantor mais influente do século XX. Foi o primeiro a entender o microfone. Cantores não haviam percebido que com o microfone não era mais necessário soltar o vozeirão. Voce podia cantar como se estivesse ao ouvido do ouvinte. Sem Bing e sua voz suava, não haveria Sinatra, nem Fred Astaire, não existiria João Gilberto e nem Roberto Carlos. Claro que mesmo após Bing continuaram a existir as vozes operísticas. Nelson Gonçalves, Tom Jones e Freddie Mercury são tipos pré microfone. No Rock leio que existiram duas bandas influentes. A primeira são os Beatles. Já disse e repito, mesmo se voce os despreza, mesmo se voce acha que Slayer ou MC5 são melhores, foram os Beatles que criaram coisas tão básicas que hoje parecem ter existido desde sempre: o próprio conceito de banda nasce com eles. Antes o que havia era um cantor e sua banda ( Elvis, Buddy Holly, Chuck Berry ). No máximo existiam grupos vocais ( The Platters, Beach Boys ) ou grupos instrumentais ( Shadows ). Os Beatles criam a ideia de banda como célula que compôe, canta, se acompanha e até mesmo produz. Eles inventam aquilo que no rock é dominante até hoje: a auto suficiência construída em três ou quatro pessoas. Secundariamente, é deles também a ideia da dupla de compositores que canta suas próprias composições, dos albuns que contam uma hsitória e até da venda de produtos licensiados. O Black Sabbath ou o Pink Floyd podem ter criado novos estilos, mas continuam sendo bandas em moldes Beatle. Revistas e sites têm cada vez mais lançado a ideia de que a segunda mais influente banda é o Kraftwerk. Dizem até que Computer World ou Trans Europe Express serão em votações futuras aquilo que Sgt Peppers e Revolver são hoje. Eu pergunto por que, e eu mesmo respondo. O Kraftwerk destroi o que os Beatles foram sem para isso voltar aos tempos de Elvis ou Johnny Cash. Primeiro: rock sempre foi e ainda é a mais emocional das expressões. Cantores gritam, choram, ofendem, gemem. Os alemães não. Nem cantar eles cantam. Segundo: Rock são instrumentos tocados com fúria, ou então com lirismo de menestrel. Os alemães não. Terceiro: uma banda tem bateria, baixo e guitarra, seja elétrica ou acústica. Na falta da guitarra, piano tocado como percussão. Kraftwerk não tem instrumento convencional nenhum. Quarto: Rock é sincero. Kraftwerk é ironia. Se os ingleses fizeram nascer toda banda, de Led à Stones, de Nirvana à Radiohead, todas usam o molde formado por cantor sincero, compositores da banda e a mistura que usa como base bateria, baixo e guitarra ( ou teclado ); o Kraftwerk nem parece ser uma banda. Lembro que nos anos 70 eram chamados de "fake". Pois não tocavam nada, apenas apertavam botões. Sem eles não haveria nada de eletrônico. Do Depeche Mode à Marilyn Mason, todos usaram as ideias que em Dusseldorf foram pensadas em 1975. Mais importante ainda, o RAP e o House foram nos anos 80, segundo os próprios caras desses estilos, inspirados por Computer World, o disco de 1981 do Kraftwerk. Até 81 fazer rap era fazer aquilo que Kurtis Blow fazia: usar bases do grupo Chic e mandar a voz por cima. Rap tinha muito piano, guitarra riscada e baixo de verdade. Após Computer World, as bases passaram a ser as de Metal on Metal, a percussão do disco alemão. Não estou exagerando. Os caras do Run DMC sempre falaram que suas vidas mudaram quando foram ver os caras em New York, 1981. Quase 40 anos!!!!! E continuamos fazendo discos que variam entre a banda-Beatles ou a produção eletrônica computadorizada-Kraftwerk. Na verdade, como notou Bowie em 1976, os melhores misturam as duas coisas. No Rock n Roll Hall of Fame, aquele clube que tem até Pat Benatar mas não tem o Jethro Tull, Kraftwerk não faz parte. Isso apenas revela que o estilo criado por eles ainda não foi absorvido. Em 2020 o Depeche Mode entrou para o clube. Os alemães não. Ontem reouvi Computer World. Ainda é inspirador. Pensei em Daft Punk. Pensei em Lady Gaga. Pensei em Rammstein.

CASABLANCA E O COMPLEXO DO BESOURO

   Alguém já te perguntou se voce gosta do sol? Não de sol, do sol. É uma pergunta logicamente absurda. Isso porque sem o sol nada de vida por aqui. E portanto, nem mesmo essa questão seria possível. Mesmo assim voce tem todo o direito de dizer EU NÃO GOSTO DO SOL. Não faz sentido, mas talvez voce esteja querendo ser nonsense. Provocar.
  O que podemos inferir então é que não há como perguntar se voce gosta do sol. Pois só poderão existir duas respostas. A- Sim, pois sem ele NADA do que eu gosto existiria. Ou B- Não. E esse não anula a si mesmo, pois sem o sol nem mesmo a palavra não teria sido criada. Então corrijo o que disse acima e digo que só há uma resposta cabível: sim, eu gosto do sol. Pois o não é apenas um ato de nonsense. Inconsequente e sem lógica alguma.
  Digo então que perguntar se voce gosta de Casablanca te joga no mesmo beco sem saída. Temos duas respostas, sim ou não, mas, ao contrário de 99.99% dos filmes, todo sim parecerá suspeito e todo não será mais suspeito ainda.
  Ao dizer sim, eu gosto de Casablanca, imediatamente parecerá que voce diz apenas o óbvio. Casablanca é um clássico, e como tal, é um tipo de sol. Se eu for adiante e perguntar o porquê, voce dirá que é por causa de Bogey. Ingrid. O roteiro. A fotografia aveludada. Os coadjuvantes. E até por causa de as times goes by. Tudo isso será tão banal como dizer que voce gosta do sol porque ele é quente. Mas, pior ainda será dizer que voce não gosta de Casablanca. Imediatamente será constatado que voce quer apenas causar um erguimento de sobrancelhas. Se eu perguntar o porquê, a resposta será óbvia: Casablanca é superestimado. AS PESSOAS FINGEM GOSTAR DELE. Vemos aí o hiper nonsense. Aquele que diz que SE EU NÃO GOSTO DE ALGO, NINGUÉM MAIS PODE DISSO GOSTAR. A NÃO SER QUE MINTAM.
  Faço todo esse texto para dizer que Casablanca, assim como 2001, não pode mais ser analisado. Não porque haja algum tipo de empecilho, mas sim porque toda análise estará poluída por dois desejos: ser diferente ou demonstrar amor à história do cinema. Então melhor ser lógico e dizer assim: Casablanca é como um sol. Gostar dele é gostar do óbvio, pois é um filme tão conhecido, tão influente, que tudo o que veio depois é resultado de sua existência. Seja o negando, seja o adorando. Portanto não se coloca se voce gosta ou não, muito melhor perguntar como voce REAGE à ele.
  Chamei de COMPLEXO DO BESOURO porque nada é mais claro que os Beatles. Conhecidos como o sol, eles são amados e odiados de um modo sempre ilógico. Sem eles não haveria a ideia de BANDA. Haveria o que havia antes: cantores e seus grupos. Ou grupos vocais. Bandas que tocam e compõe é invenção deles. Portanto se voce vive ouvindo bandas e diz: Odeio Beatles, bem, seria como comer alface e falar: odeio o sol. Ilógico.
  Isso faz com que criticar sua música seja sempre um ato suspeito. Então, melhor calar.

PAUL MAcCARTNEY POR BARRY MILES.

   Se o rock ou o POP um dia tiveram um gênio, seu nome é Paul, e ele nasceu em Liverpool.
  Sua infância foi sem dramas. Ok, a mãe morreu cedo, de câncer, mas Paul teve a sorte de crescer em meio a tias, tios, primas, irmão, e o pai, com quem ele sempre se deu bem. Eram pobres, mas eram felizes.
  O garoto aprendeu a tocar em casa, começou a cantar e entrou na banda de John Lennon. Foram para Hamburgo, a cidade mais cheia de sexo da Europa. Ficaram famosos lá. Voltaram. Foram recusados pela Decca. A EMI os quis.
  O primeiro LP foi gravado em uma tarde. Inteiro. De uma vez só. O resto é lenda. O que entendemos por POP foi inventado pelos quatro.
  Paul compõe como Mozart: sem dor, sem esforço, sem problemas. E rápido, bem rápido. Alguns clássicos foram compostos em meia hora. Outros em dois dias. Raramente mais que isso. As músicas fluíam. Centenas e centenas. No livro Paul as comenta sem grandes pretensões. Fala coisas como; "Esta é boa", esta foi só pra completar um LP.
  Eu havia lido este longo e delicioso livro em 2001. Releio. Gosto. Muito.
  A vida de Paul foi uma vida, entre 1960-1970, o livro vai apenas até o fim dos Beatles, de galerias de arte, cinema, muitas festas e a procura por novos sons. Lennon estava a maior parte do tempo enfurnado em sua casa tomando heroína. Paul ia pesquisar. Vemos isso em fotos: Paul com Jagger, Paul com Ginsberg, Paul com hippies de Londres, Paul defendendo a maconha, Paul em shows de Hendrix e de John Cage. Geminianamente em movimento todo o tempo.
  O segredo dos Beatles é que eles foram a única banda, até hoje, a ser ao mesmo tempo hiper popular e de vanguarda. Eles eram como Michael Jackson misturado com Brian Eno em 1980. Ou como Madonna com Radiohead em 1996. Vendiam como ninguém, e ao mesmo tempo apontavam as novidades, o futuro. Em meio aos mais encantadores POP, uma colagem sonora, um loop, um solo ao contrário, um quarteto à Bach, um ruído. Entre 63 e 68 eles foram a ponta. Em vendas e em arrojo. Em 69 perderam o pé. No mundo novo de Sly Stone e de Led Zeppelin começaram a ficar apenas POP.
  Leiam.

LITTLE DEUCE COUPE - ALL SUMMER LONG - THE BEACH BOYS

   Muita gente gosta de dizer que ama Pet Sounds, mas esquece que Pet Sounds veio de algum lugar, e este lugar é aqui. CD único, com belo livreto, tem dois LPS da banda: Little deuce coupe é do fim de 1963 e All summer long de 1964. Em dois anos eles gravaram cinco LPS. E que maravilha eles são!
   O tema de Little deuce coupe é a estrada, não a estrada como fuga, mas sim como lugar onde se pode correr com um carro. O amor de um jovem por seu carro, esse o tema de todas as canções. Brian Wilson começava a falar de si mesmo, abandonava a praia, lugar que nunca gostou, e passava a contar coisas sobre carros, um dos seus amores. O amor maior ainda era a música.
  Brian Wilson foi o Mozart de sua geração, um gênio tolo, um gênio solar, um gênio feliz. Sim, feliz até o fim de 1964, hora em que ele encontra a marca de seu tempo, a droga e a paranoia. Brian bebeu na fonte de Chuck Berry, dos grupos vocais dos anos 50, em Burt Bacharach, e, incrível!, jamais se deixou pegar por Dylan. A música dos Beach Boys é música de anjos. Há uma delicadeza em cada nota, um encontro harmônico em cada arpejo, uma sinceridade barroca em toda canção de um minuto e meio.
  Veja uma simplicidade como 409. As vozes soam como alegria otimista, são vozes de jovens confiantes, e a instrumentação, elétrica, tem uma leveza que combina com suas asas. As melodias nunca são o "yeah yeah yeah" direto e repetido dos Beatles, são voltas e aperfeiçoamentos que sobem até a beleza sublime. Não é rock. Os Beach Boys se deram mal a partir de 1966, também porque os hippies notaram que eles estavam muito mais para música popular americana que para rock'n'roll. Burt Bacharach, mas também Johnny Mandel, Gil Evans e Cole Porter.
  Quando George Lucas lançou o sublime American Graffitti, encerrou o filme com All summer long. Ele sabia que ali estava o sonho. Tudo aquilo que um jovem queria ser em dois minutos de música e letra. All summer long é ainda melhor que Little deuce coupe, e seu tema é "o cotidiano de um beach boy".  Como diz Scruton, escrever sobre música...como? Escrever sobre os Beach Boys, como?
  Se os Beatles são potencialmente e de fato, a maior banda de rock do mundo, os Beach Boys são potencialmente e de fato, a maior banda de música do mundo. Melhor ouvir Little Honda. Um mundo de pequenos toques musicais na mais simples das formas.
  Menos é mais. Brian sempre soube disso.

BEATLES, ELVIS E SINATRA

   Impressiona muito essa biografia de Sinatra recém lançada pela Companhia das Letras. James Kaplan, o autor, além de dar detalhes, deliciosos, sobre o cantor, fala de tudo o que rolava na América de então. E isso faz do livro, 1.200 páginas que são puro deleite, um tipo de filme super produção com o melhor elenco possível.
   Estou na metade, então ainda escreverei mais sobre a obra. O que desejo falar aqui é sobre Lennon e o rock. Quando Elvis surgiu, em 1956, Sinatra tinha 41 anos e estava no auge. Era o artista mais poderoso do mundo. E se irritou profundamente com o rock. E o motivo principal foi a fala. Elvis trouxe ao centro do mundo, pela primeira vez, a voz dos caipiras. Não era a voz de NY, o padrão de Manhattan. Era a voz inculta dos 95%. Sinatra, que lutou bravamente na infância para apagar seu sotaque suburbano-carcamano, se surpreendeu com aquela voz "selvagem e bárbara".
   É aí que entra John Lennon. Kaplan cita uma entrevista do inglês, onde ele diz que em 1956 ele e seus amigos levaram meses para entender o que Elvis falava. O sotaque "americano" era tão forte que parecia outra língua. Os ingleses, que pensavam que o "americano" era aquilo que o cinema e a música popular falavam, não entendiam nada. Mas adoraram. A letra pouco importava. O que era legal era o som.
   Sinatra era artista da Capitol e a dona da Capitol era a EMI. A empresa inglesa ficava doida com o fato de americanos venderem tanto na América e ingleses não venderem nos USA. Em 1955 um tal de George Martin, funcionário da EMI, foi aos USA assistir uma gravação de Sinatra e banda. Ficou doido com o apuro técnico. Voltou a Londres e nos anos seguintes lançou dúzias de novos Sinatras versão UK. Nenhum vendeu na terra americana. Mas em 1963 ele finalmente acertou...
   Uma coisa que nos esquecemos e que foi central na beatlemania era o fato de que Lennon e Paul tinham um sotaque "entendível". As pessoas conseguiam compreender o que eles falavam. Martin foi esperto e deu a eles a harmonia sonora que o rock não tinha.
   O mundo mudou e Sinatra gravaria Beatles no futuro. O rock mudaria e se sofisticaria. Muito graças aos caras de Liverpool.
   PS: como toque final um adendo: a TV dos anos 50 nos EUA....a NBC já transmitia a cores. Alguns shows usavam até cinco câmeras. Transmissões ao vivo das ruas. Mio Dio!!! Como o BR era atrasado!!!!!

The Beatles - Please Please Me



leia e escreva já!

1963

   Deve ser chato ser inglês e ter de olhar pra trás. Isso porque o país vive apenas de um longo passado. Seja 1600, 1810, 1900 ou 1963. Veja 1963...havia uma combustão de novidades que explodiam no ar. Nesse ano Tom Jones venceu os principais Oscars e Peter Sellers confirmava seu estrelato como Clouseau. James Bond começava a virar mito. Julie Christie e Peter O'Toole eram os atores mais quentes ( mas havia ainda Vanessa Redgrave, Terence Stamp, Tom Courtney e toda a velha guarda ). A Carnaby Street ditava moda. E cantavam os Beatles. Doctor Who na TV. O Santo também. David Bailey tirava fotos. George Best e Bobby Moore começavam a jogar e em 1966 a nação ganharia sua copa ( ao som de Kinks ). E depois...nunca mais...
   Havia Jim Clark, Graham Hill e Jackie Stewart. E nas letras os novatos Anthony Burgess, Iris Murdoch, William Golding e Philip Larkin. Eliot, Waughn e Greene ainda estavam vivos.
   E pela primeira vez, coordenando tudo isso, uma ideia londrina: a propaganda como arte. Nos escritórios moderninhos jovens publicitários pensavam em fazer arte na propaganda e arte na TV. ISSO mudou o mundo. E tudo explodindo em 1963.
   Ouço o primeiro disco dos Beatles e lembro de tudo isso ( engraçado recordar o que não vivi, nasci depois ). A banda foi adotada pela onda meio sem querer. Os Stones ou o Who tinham muito mais a ver com a coisa. Eram mais citadinos, mais snobs e bem mais perigosos. Mas os caras de Liverpool se impuseram porque eles eram muito, muito bons. O disco ainda espanta. Sim, é primo europeu de Everly Brothers e principalmente de Buddy Holly. Lennon imita o gênio do Texas descaradamente. Mas eles vão além. As vozes unidas de Paul e de John arrepiam. Nasceram para se harmonizar. E é impressionante como todas as coordenadas do POP futuro estão lá. Os arranjos enxutos, o refrão grudento, o solo breve no meio da canção, e a sensação de que naqueles dois minutos há mais que aquilo que realmente há. A faixa Please Please Me, se escutada com renovada atenção, se você tentar ouvir com ouvidos "virgens", tem uma exuberância, um tal grau de alegria e de confiança jovem que te faz sorrir imediatamente. Ela já dá a pista do talento milagroso que lá borbulha. PS I love You é outro petardo, e George cantando Do You Want to Know a Secret nos deixa comovidos...
   Deve ser chato pacas ser britânico e saber que nunca mais haverá um John. Assim como não mais um George. Mas...talvez seja ótimo saber que os outros países nunca tiveram e jamais terão Beatles.  

EU SEI PORQUE VOCE NÃO GOSTA DE ELTON....ELTON JOHN, A BIOGRAFIA, DE DAVID BUCKLEY

   Elton John é feio. Não a feiura que pode até criar um certo interesse, como a de Alice Cooper ou de Lemmy. É a feiura medíocre. O feio que voce mal nota que existe. Isso marcou toda a vida de Elton. Ele jamais aceitou sua aparência, sempre odiou sua imagem. Em seus melhores momentos ele relaxou e quase ficou bonitinho. Em seus piores ele se auto-zombava e no processo desacreditava sua música. Se vestia de pato, de Mozart, de rei ou de Liberace. Dizia para o mundo, eu sei, eu sou ridiculo. Os fãs se sentiam incomodados, o resto olhava e pensava: -eu sempre soube, Elton é um palhaço.
  Mas não foi sempre assim, tão evidente. Esse martírio, que sempre houve, mas que se intensificou nos anos 80, foi aditivado por muito pó e muito álcool. Como aconteceu com Rod Stewart, David Bowie e Paul MacCartney, dentre muitos, a década viu a credibilidade dos reis dos anos 70 derreter. A maioria por excesso de drogas, dinheiro e puxa sacos, alguns por tédio e outros por medo de envelhecer ( o que fez com que tentassem se fingir de adolescentes ). Bowie foi dos poucos que conseguiu se reerguer. Elton, para todos nascidos depois de seu auge, permanece como um tipo de bobo rei do pop brega. Nada mais distante da verdade. Assim como Rod, que entre 69/76 foi um grande artista do folk, do rock e criou algumas das melhores letras de todo a cena, Elton foi entre 1970/1977 um grande artista. E era levado a sério. Todos os seus discos, 14 até então, dois por ano, eram ótimos e algumas de suas faixas, 3 ou 4 por disco, eram geniais. Dentre seus fãs, John Lennon, Leonard Cohen, Joni Mitchell e depois Elvis Costello. 
  Improvável sempre foi a marca de Reginald Dwight, o nome de batismo de Elton. Filho único da baixa classe média, nunca se deu com o pai, piloto de avião. Se dava com as mulheres da casa, mãe e tias. Na escola adorava todos os esportes e era bom em tênis e crickett. Baixo, gordinho, ele se isolava com livros e o piano. Teve aulas de piano clássico, mas se interessava por rock, Little Richard, Jerry Lee Lewis, e aos 15 anos começou a tocar numa banda, a Bluesology. Profissionalmente. Era 1962. Ao mesmo tempo Elton se torna um dos maiores colecionadores de discos da cidade. Gosto que ele manterá por toda a vida, ele é capaz de dizer quem toca no disco de uma obscura banda punk de 1980. E mais, qual a gravadora, onde foi gravado e a ordem das faixas. É um fato que pouca gente sabe, mas Elton até hoje continua escutando tudo de novo que surge todo ano. É seu maior hobby. 
  Em 1963 ele vai trabalhar numa editora de música. Tem 16 anos. Continua na banda, de noite. Nessa editora ele pode escutar tudo o que ela publica antes de ser lançado. Isso fará com que Elton seja sempre o primeiro cara a escutar tudo o que os Beatles recém produziram, em primeira mão. Todo o aprendizado se dá nesses anos. Piano a noite em pubs, faixas novas e fenomenais de dia. 
  Em 1968 ele sai da banda. Na editora se une a um jovem poeta chamado Bernie Taupin. Essa será a maior dupla do pop depois de voce sabe quem. Bernie escreve poemas e os passa para Elton. Elton faz uma melodia sobre os versos. Estilo de composição mais dificil, rara, que para os dois funcionou. Ainda morando com os pais, e sem nenhum envolvimento físico, Bernie, que é dos cafundós do campo inglês, vai morar na casa da mãe de Elton. Ele se torna o irmão que ele nunca teve. Hetero convicto, nunca haverá nada entre Bernie e Elton. Que na época estava noivo. Uma conversa com o cantor Long John Baldry mostrou a Elton que sua verdade era ser gay. Ele rompe o noivado e ao mesmo tempo se lança ao mundo do rock.
  1970 tem o primeiro disco. Elton John tem a capa escura para disfarçar sua falta de sex appeal. O sucesso é absoluto. Fica 44 semanas nas paradas. Your Song se torna um clássico e o LP, cheio de arranjos orquestrais do grande Paul Buckmaster, é elogiado por colegas e por críticos. Nos próximos sete anos Elton será responsável por 3% das vendas de discos em todo o mundo. Percentual só igualado em 1984 por Michael Jackson e por mais ninguém. Serão sete LPs seguidos alcançando o primeiro lugar nos EUA ( só os Beatles conseguiram isso ) e mais de 14 singles entre os cinco primeiros postos. Ele fará duas excursões por ano, quebrará, junto ao Led Zeppelin, recordes de público, e se tornará mundialmente conhecido por crianças, velhos e roqueiros. Estará em todo canto. TV, cinema, jornais, tudo. Elvis, Beatles, Michael Jackson e Elton, são os únicos quatro reais fenômenos do rock, pois mesmo os Stones, Led, U2 ou Dylan jamais conseguiram penetrar em todas as classes e todas as idades.  Sete anos em que seus rivais foram todos batidos. Gente como Eagles, Pink Floyd, Bowie, Stevie Wonder, Neil Young, Stones. 
  Bowie era seu grande rival. Porque de certo modo os dois corriam, no começo, na mesma raia. Rock glam agitado e baladas ao piano. Com uma grande diferença, crucial. Bowie queria ser um artista completo. Elton queria se divertir. Desse modo o público de Bowie era menor e fiel, o de Elton imenso, e infiel. Bowie podia se dizer bissexual. Seu público aceitava e até queria isso. Quando em 1976 Elton disse ser bissexual foi o começo de seu quase fim. A maior parte de seu público, conservador, o abandonou. 
  Elton diz no livro que Bowie nunca foi gay. Ele era um hetero que se fazia de gay para causar frisson. Já Elton era um gay que tentava esconder isso para não causar frisson. 
  Generoso, mão aberta, até os 28 anos Elton jamais havia se drogado. A partir daí ele se torna um caco. Cocaína e whisky. São os anos 80. Engraçado observar que ele nunca deixou de vender bem, o problema é que a inspiração se foi. A partir de 1979, e até 2002, Elton só lançaria albuns fracos e muito raramente algum single bom. Quanto aos shows, eles se tornaram forçados, frios, esquisitos. Sempre lotados, mas ao mesmo tempo quase constrangedores. Em 2002 ele grava The Captain and The Kid, enfim um grande disco. Os shows voltam a parecer mais reais. Ele para com as drogas, para com as fantasias, o piano volta a ganhar destaque. É um renascimento. Ele se casa, adota um filho, leiloa suas roupas mais ridiculas, e continua trabalhando ativamente em montes de instituições de caridade. É o mais dedicado dos astros de rock. Ele nunca discursa. ele vai e faz.
  Mas antes...
  Em 1971 exsitiam dois tipos de astro do rock: o glamuroso muito louco e o sofrido herói. Pelas músicas em seus discos ele poderia ser os dois. Mas no palco ele mudava. Se fantasiava para tentar esconder sua barriga, a careca e o rosto balofo. E ria, fazia piadas, pulava, conversava, festejava. Elton não tinha vergonha de ser feliz, de demonstrar prazer por estar num show. E, que ironia, isso destruia sua credibilidade!!!!!!
  Apesar de feio ele conseguia ser o maior dos astros. Mas os criticos começaram a não lhe levar a sério. Era como se um cara tão feliz não pudesse ser de verdade. Explico melhor...
  Lembro que no Rock in Rio de 1985, Rod Stewart cantou numa noite. E eu era fã de Rod ( ainda sou ). Só que aconteceu uma coisa horrível. Rod cantou Sailing rindo!!!! E eu escrevi em meu diário que Rod havia naquela noite destruído Sailing. Sailing era pra ser cantada com lágrimas nos olhos...
  Hoje sei que eu estava errado. Mas então foi minha reação. Rod Stewart perdeu a credibilidade comigo e só a readquiriu exatamente dez anos depois, quando o vi no acústico MTV. Com Elton se dava o mesmo. Ele brincava enquanto tocava Rocket Man, Ticking, Sixty Years e tantas outras. Baladas maravilhosas, de cortar o coração, lindas, tristes, e ele alí, vestido de pirata, rindo...O efeito no pessoal que o levava mais a sério era devastador. Era como se Morrissey cantasse How Soon is Now com o Village People, ou Dylan cantasse Like a Rollin Stone dançando no palco e feliz. ( Hoje eu acharia lindo, mas em 1975 isso seria inaceitável ). Rock era coisa séria, e Elton parecia não ser. 
  E não era. Era talentoso, genial até, mas sempre soube que subir num palco e poder cantar era um presente, uma sorte, uma alegria. Como parecer sofrer quando se fazia aquilo que mais se gostava? Elton era o mais anti-hipócrita possível.
  Poxa! Escrevi muito? É que eu amo Elton e este livro é muito bom. Mesmo para quem não gosta tanto, porque o autor, que já escreveu bios de Bowie, Bryan Ferry e até dos Stranglers, dá sempre uma geral no período. E nunca deixa de criticar os baixos, muitos, de uma carreira tão rica. A loucura do glam, a decadência do estúdio 53, os patéticos anos 80, o sucesso nos anos 90, a paz nos anos 2000. E o que fica é o fato de que Elton é sim um grande cara. Nada RocknRoll, um ET no meio, mas um grande cara. Fala-se de sua amizade com Lennon, com Rod ( que é seu melhor amigo ), e de suas coleções de arte. E a aventura de 1978, quando ele comprou seu time do coração, o Watfort, na quarta divisão, e o levou até a primeira e um segundo lugar...Eu tinha esquecido disso!
  Beleza de leitura.
  PS: Captain Fantastic de 1975. Esse talvez seja sua obra=prima. 
  Para quem quer quebrar o preconceito, aconselho The Tumbleweed Connection, de 1971.
  Divirta-se. E se emocione.

THIS YEARS MODEL- ELVIS COSTELLO AND THE ATTRACTIONS

   O segundo disco do Elvis Costello saiu aqui no Brasil mas ninguém comprou. Em 1978 quem gostava de rock estava ocupado ouvindo Aerosmith e Kiss e tendo a certeza que o Rush era o futuro do rock. Well....de certo modo Aerosmith, Kiss e Rush foram o futuro do rock. BUT! Se a gente ouvir uma bandinha nova inglesa e ouvir Elvis Costello de 1978 em seguida vai perceber que o som é o mesmo. Talvez a única diferença é que a bandinha nova parece limpinha e os Attractions eram very dirty. Hoje o rock é feito por gente que nasceu mimada e cresceu entediada. Elvis cresceu na insegurança e nasceu com genes de raiva. Com a idade ele virou um tipo de Paul MacCartney azedo, mas nos seus primeiros anos ele era um principe. A idade nos rouba anger, raiva, indignação e acrescenta o medo e a preguiça. Fazer o que? Iggy ou Lou não são a regra.
  Em meio ao rock pretensioso e muito produzido dos anos 70, Elvis e sua turma criaram um tipo de rock meio retrô. Limaram os solos, as orquestras, os super shows, os meses de estúdio, e passaram a gravar rápido, cantar direto e tocar simples. Com urgência e com raiva. A fórmula em 2014 me irrita de tão manjada, mas é predominante no dito indie-rock. O interessante agora seria fazer discos com gigantismo. 
  Pump It Up é uma obra-prima, mas não é a única. As 12 faixas variam do bom ao genial e a banda é sempre perfeita. O teclado é tosco e ritmico, o baixo dá um show de swing e o batera, como disse Ezequiel Neves na época, era um maluquete. 
  Reouvi Elvis após uma entrevista de Bruce Springsteen, de 2013, em que ele conta que em 1978 escutava muito Elvis Costello. E que Darkness in The Edge of Town, o disco mais descaralhado de Bruce foi feito sob esse clima. Bem, em 1978 eu ouvia de novidade apenas Cars e Blondie. Ah, e Kraftwerk. Nada chegava aqui e o que chegava era atrasado. Não é desculpa, claro, nas importadoras havia Specials, Clash e até o Talking Heads.  A novidade parecia ser Queen.
  Ouvir este disco hoje nada te trará de novo. Parecerá apenas um bom disco de rock inglês tipico. O que voce deve ter em mente é que Elvis é o cara que ajudou a criar esse tipo de sonoridade. E entender que num meio saturado de Supertramp e de Pink Floyd, esse som era uma ofensa. 

JOHN LENNON MORREU

   Não vou mais uma vez falar do dia em que Lennon morreu. Fazem 34 anos hoje. 1980 foi um dos mais belos anos da história do século e é disso que lembro hoje. O que me dói é a saudade de quem me deu a notícia da morte do beatle. E hoje, em 2014, acho que John Lennon foi um chato pedante. Sim, um cara que faz A Day in The Life merece todas as homenagens. Mas sua carreira solo e bem banal e ter se unido à Yoko demonstra o quanto ele era louco. Como caipira de Liverpool, ficou deslumbrado com a """performática"""Yoko. Ela fisgou o bronco e o resto é fim de história. John passou a ser o pet de Ono. E os Beatles, aturdidos, nada entendiam. Um quinto membro no grupo. E que nem sabia tocar ou cantar. 
   Se Paul deve seu status aos moços com cabelo tigelinha de Liverpool, devo dizer que as novas gerações conhecem John apenas por sua época Beatle. Canções que minha turma conhece, Mother, Dream, Mind Games, estão enterradas. Jealous Guy, que é muito boa, está sumindo no tempo. E mesmo Imagine nada diz à molecada. Elas se renovariam com John vivo, sobre o palco, cantando numa banda com Nilsson e Ringo. E com Yoko ao lado, espantando as moscas e os fãs. Mas elas estão perdidas.
  John se considerava um gênio. E pagou o mico de botar em capas de LP até seus desenhos, horríveis e tolos. O defeito de John, dentre muitos, era se levar a sério demais. Ele e Yoko se viam como lideres radicais. Bullshit! Ele era apenas um rocker. Esqueceu isso. 
  Quando a fonte secou ele teve e decência de se recolher. E voltou em 1980 com um disco tão ruim como os piores de Ringo. Mas ele morreu e deve a Chapman seu status de mito. Como Marley. Como Brian Jones, a morte lhe fez bem. Aumentou um talento que era grande, mas que se fez mitico com a tragédia. 
  Para finalizar lembro que em 1980, numa entrevista para a Playboy, Lennon se elogiava e dizia que achava ridiculo Mick Jagger ainda rebolar no palco aos 34 anos. A resposta de Mick mostra tudo o que penso sobre Lennon. "" Quem pagaria para ver John Lennon rebolar?""
  John Lennon fez Tomorrow Never Knows. Mas era um chato. Um grande chato.
  

1977-1969-2014-SEMPRE...

   Não lembro da loja. Sei que foi em Pinheiros. Na Teodoro Sampaio. Em 1977 ela era uma rua mais decente, ainda tinha algumas lojas bem legais e não existiam camelôs. A esquina com a Pedroso de Morais era bonita, tinha a doceira Docinho. Todas as travessas eram silenciosas, residenciais, ainda não havia comércio na Mourato e na Lacerda. Só a Fradique tinha movimento. Fazia sol, era fim de verão. Saímos do bar do meu pai e compramos dois discos. Abbey Road foi escolhido por ter Come Together. E Let It Bleed por causa da crítica que Ezequiel Neves havia escrito. Voltamos para o bar e ficamos esperando a carona de nosso pai. No escritório que ele tinha a gente rabiscou na porta a data e o nome dos dois discos. Essa porta, com os anos, acabou cheia de escritos. Esse foi o primeiro. 
  Na sala, ao sol, só na manhã do dia seguinte, a gente os escutou no 3 em 1 da Sharp. 
  Lembro que achei o lado 1 dos Beatles muito bom e o lado 2 decepcionante. Com o tempo adorei. O disco dos Stones achei esquisito. Não gostei muito. Meu irmão, que coisa, gostou dele de primeira. Numa manhã, inesquecível, em que ouvi Let It Bleed de meu quarto, enquanto Edú o escutava na sala a todo volume, descobri que aquele era o disco. 
  Existem discos que me são tão vitais quanto meus pulmões. Siren do Roxy Music, Led Zeppelin - Houses of The Holy, o Transformer, Pin Ups de Bowie.  Nenhum mudou minha vida como Let It Bleed mudou. Durante o resto de 77, e agora lembro que errei a data, ele nao foi comprado no fim do verão, mas sim em agosto, eu o escutei sozinho em casa, toda tarde, em frenética excitação. Estudava datilografia às 4 horas e sempre descia a rua até a escola cantando Let It Bleed. 1977 definiu a eternidade da minha mente, foi o alicerce, foi o acordar da infância, foi ver o mundo. O disco da capa do bolo e da roda foi sua trilha.
  Hoje, 28 de novembro de 2014, ele completa exatos 45 anos de vida. Em agosto foram 37 anos comigo. O mesmo vinyl errado ( o selo do lado A está colado no lado B ). Sulcos que me trouxeram blues, sexo, euforia, beleza, raiva. A guitarra de Keith nunca soou tão cortante, o timbre suave e ao mesmo tempo forte, cheia de silêncios, de respiros. A bateria nunca foi tão jazzy, Charlie em plena forma. E Mick, ainda longe da mania dos falsetes, cantando como Mick, um preto. É meu disco favorito? Não sei. É aquele que mais me traz lembranças fortes. 
  Em dezembro desse mesmo ano fomos à praia. No Caravan vermelho de meu pai fomos cantando, eu e meu brother. Ele cantava Country Honky e eu Let It Bleed. A Serra passava voando pela janela, o fim da tarde parecia uma festa e a praia teria gosto de vida. 
  Como voce pode notar, Let It Bleed é mais que um disco. Não há como falar dele apenas como música. Ele, como um terreno fértil onde coisas crescem e respiram pelos anos passados, solo úmido, solo rico, brota e traz frutos e sementes que se espalham dentro e fora de mim. 
  Se a música é a lingua do cosmos, este disco alicerça uma mansão estelar.