LODGER- DAVID BOWIE. A VIAGEM. MOVE ON.

   Foi no fim de 1979. Comprei Lodger como um dos meus presentes de Natal. Foi meu terceiro disco de Bowie. Em 1974 eu havia ganho Diamond Dogs. Adorei. E em 2016 continuo a adorar. Depois, em 1978, comprei Station To Station. E notei que Bowie era "um chato". O disco em nada lembrava Diamond Dogs. Era esquisito. As faixas eram longas demais. Com pouca guitarra. E ainda tinha duas baladas triiiistes... Golden Years eu adorei. O resto não. Em 2016 eu gosto muito desse disco perdido e cheio de cocaína. Mas Lodger...
  Lembro muito da primeira escutada. Numa velha vitrola, a cara junto ao disco. A capa me pareceu muito feia. E o som...Que bosta era aquela!!! Instrumentos embaralhados, amassados. Barulhinhos irritantes que estragavam a música. Músicas que pareciam mal acabadas, simples rascunhos, e que terminavam antes da hora. Pareciam curtas demais, e ao mesmo tempo chatas, irritantes, toscas.
  Me deu pena de Bowie. E do meu dinheiro. ( A relação com a música era mais visceral também porque ela custava dinheiro ). Considerei aquilo um fiasco. E uma doença. Chamei de "disco doentio". Asco.
  O tempo passou. E só o descobri em 1984. Quando minha fase "modernete" veio. Ouvindo Marc Almond, Gary Numan, Cocteau Twins, comecei a entender que Lodger era o pai daquilo tudo. ( E depois ao comprar LOW vi que ele era o pai de Lodger ). Flashs sintéticos. Polaroides de estados emocionais. Bombas prestes a explodir. E tudo o que nele me irritava passou a exercer fascínio. Instrumentos diretos, afiados, sons diretos e puros, intuições musicais. E a voz de Bowie, afinadíssimo, pairando indiferente sobre aquilo tudo. Da sublime Fantastic Voyage, passando pelas estupendas Move On, Boys Keep Swinging ou Repetition, tudo é surpresa. ( E um cara como eu era em 1979, ouvinte de Fleetwood Mac e Rod Stewart jamais entenderia aquilo ).
  Muitos fãs de Bowie que conheço acham Lodger o melhor Bowie. Eu não. A carreira de David é tão magnífica que apesar de sua subliminidade, Lodger fica abaixo de Low, de Hunky Dory e de Dogs.
  Posso afinal voltar a falar do gênio com mais frieza. Ele partiu mas seus discos ficam. E Lodger, que acabei de reescutar, é o testemunho de uma viagem sem fim. Mais uma estação David.
  Move On.

BEATLES, ELVIS E SINATRA

   Impressiona muito essa biografia de Sinatra recém lançada pela Companhia das Letras. James Kaplan, o autor, além de dar detalhes, deliciosos, sobre o cantor, fala de tudo o que rolava na América de então. E isso faz do livro, 1.200 páginas que são puro deleite, um tipo de filme super produção com o melhor elenco possível.
   Estou na metade, então ainda escreverei mais sobre a obra. O que desejo falar aqui é sobre Lennon e o rock. Quando Elvis surgiu, em 1956, Sinatra tinha 41 anos e estava no auge. Era o artista mais poderoso do mundo. E se irritou profundamente com o rock. E o motivo principal foi a fala. Elvis trouxe ao centro do mundo, pela primeira vez, a voz dos caipiras. Não era a voz de NY, o padrão de Manhattan. Era a voz inculta dos 95%. Sinatra, que lutou bravamente na infância para apagar seu sotaque suburbano-carcamano, se surpreendeu com aquela voz "selvagem e bárbara".
   É aí que entra John Lennon. Kaplan cita uma entrevista do inglês, onde ele diz que em 1956 ele e seus amigos levaram meses para entender o que Elvis falava. O sotaque "americano" era tão forte que parecia outra língua. Os ingleses, que pensavam que o "americano" era aquilo que o cinema e a música popular falavam, não entendiam nada. Mas adoraram. A letra pouco importava. O que era legal era o som.
   Sinatra era artista da Capitol e a dona da Capitol era a EMI. A empresa inglesa ficava doida com o fato de americanos venderem tanto na América e ingleses não venderem nos USA. Em 1955 um tal de George Martin, funcionário da EMI, foi aos USA assistir uma gravação de Sinatra e banda. Ficou doido com o apuro técnico. Voltou a Londres e nos anos seguintes lançou dúzias de novos Sinatras versão UK. Nenhum vendeu na terra americana. Mas em 1963 ele finalmente acertou...
   Uma coisa que nos esquecemos e que foi central na beatlemania era o fato de que Lennon e Paul tinham um sotaque "entendível". As pessoas conseguiam compreender o que eles falavam. Martin foi esperto e deu a eles a harmonia sonora que o rock não tinha.
   O mundo mudou e Sinatra gravaria Beatles no futuro. O rock mudaria e se sofisticaria. Muito graças aos caras de Liverpool.
   PS: como toque final um adendo: a TV dos anos 50 nos EUA....a NBC já transmitia a cores. Alguns shows usavam até cinco câmeras. Transmissões ao vivo das ruas. Mio Dio!!! Como o BR era atrasado!!!!!

HATEFUL EIGHT, UM ERRO DE TARANTINO.

    Tarantino sabe dirigir. Sabe enquadrar, cortar, dá ritmo às cenas. Mas seu estilo, sempre vazio, começa a cansar. Ele sempre nada teve a dizer. Seu mundo é o cinema e só o cinema. Tenho a impressão que ele não teve infância. Nem juventude. Seus filmes revelam uma absoluta falta de assunto. Ele não lê. Parece não viajar. Vê filmes. Muitos. E filma filmes sobre filmes.
    Não, não mudei de ideia. Continuo achando Pulp Fiction genial. Assim como Kill Bill ou Jackie Brown. E sempre disse que eram vazios. Tarantino dirige tão bem que consegue nos hipnotizar filmando papo furado. Mas agora, neste filme, a coisa vai longe demais. Veja bem, o filme é bom de se olhar. É teatro, no sentido de que temos pouca ação, quase nula, e muito diálogo. O diretor tem swing e os atores se esforçam. Mas quando o filme acaba nos sentimos enganados. O que foi aquilo! Nada de história, tudo bobo, humor forçado tosco, para que esse filme...
    Quentin Tarantino é um talentoso diretor de mais de 50 anos que continua fazendo filmes que parecem feitos por um genial talentoso garoto de 18. Isso pode ser ótimo. Se ele tiver um roteiro na mão. Uma história. Mas aqui o que ele tem é apenas uma coleção de maneirismos de faroeste italiano. ( Marquis Warren e Mannix são nomes de um diretor de cinema C e de uma série de TV dos anos 60 ).
   O filme, que não é ruim, é apenas tolo. Uma pena, porque nesse mundo de filmes histéricos ou metidos a besta, um diretor relax como Quentin é sempre bem vindo. Mas aqui ele brincou demais.

Frank Sinatra - "Got You Under My Skin" (Concert Collection)



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MAQUIAVEL, GIORDANO BRUNO E ARIOSTO

   Começo este doido ano dentro do renascimento italiano. Dizem que nossa cultura nasceu aqui. Acredito que ela foi adrenalinizada aqui. Tomou novo impulso. Mas ela existia desde 500 ac. ( E neste século ela está sendo sufocada. Mas não vai morrer. Acho... )
   Maquiavel foi irônico. Vivendo em uma sociedade ambiciosa ao extremo, cruel, e participando desse poder, como ministro, conselheiro, formulou em O Príncipe uma espécie de manual do poder absoluto. A maioria, até hoje, pensa que o texto é aquilo que se lê. Não entendem que Maquiavel aumenta e explicita a ambição e assim a critica. A escrita, de uma clareza transparente, se lê com vivo prazer. Ficamos inebriados com o discurso. Aprendemos a escrever melhor, aprendemos a pensar melhor.
   Bruno foi queimado pela inquisição. Não entendemos hoje qual a gravidade. Afinal, ele era crente, nunca foi contra Deus ou Jesus Cristo. Mas ele cometeu uma ousadia indesculpável para aquele tempo: disse que o céu era infinito e que nele mundos sem fim tinham lugar. Ler Bruno é ler uma mente deslumbrada pela descoberta do "ilimitado". Bruno olha o universo e percebe a maravilha. Ele não se assusta, se apaixona. Podemos dizer que Bruno morreu por amor ao cosmos.
   Ariosto escreve uma fantasia de cavalaria sem tirar os pés do chão. Não é realismo ainda, mas aqui, entre cavaleiros, damas, florestas e lutas, nada acontece por magia. Os personagens são gente e agem como gente. Mais que tudo, Ariosto mantém a rima, o metro e a clareza por milhares e milhares de versos. Dá pra cantar.
  Tudo é belo na renascença. Pessoas cercadas de beleza vivendo uma vida nada bela. Deixaram a maior das heranças. Não sei se a merecemos.

DIGNIDADE EM VIDA

   Ele fecha os olhos e suspira. E sabe que sua morte foi a última parte de sua arte. Não escolheu sua partida, mas escolheu o modo como partir. Raros artistas no rock partiram de um modo tão digno. Não conseguimos lembrar de um escândalo. De uma briga. Bowie não teve um momento de vergonha. Não o vimos no palco, alquebrado, tentando cantar. Nunca houve um hotel quebrado. E ele não morreu drogado, bêbado ou abandonado. Se afastou. Saiu de cena. Lançou dois discos. E depois partiu. E conseguiu não ser esquecido.
   Desde 1983 ele não tem um disco de sucesso. E desde 1987 nem um single memorável. Desde os anos 90 sem excursões grandes. E mesmo assim seu mito se manteve. Apoiado na genialidade de sete curtos anos, ele construiu um mundo de fãs e de artistas que lhe seguiram. O perfeito exemplo do artista que vendeu muito menos do que sua fama sugere. A explicação é simples: ele não era apenas um compositor ou um cantor. Bowie era uma filosofia. Sua fama era espalhada pelos seus seguidores. Gente que nunca comprava seus discos era exposta à voz de quem o idolatrava. E mais que tudo, ouviam discos de pessoas que amavam Bowie. A fama era uma teia. Net antes da NET existir.
   A filosofia de Bowie era aquela que desde os anos 80 virou lei : fama é construção. Nada tem a ver com talento. Ser uma estrela é se comportar como uma. Nada tem a ver com sorte ou dom. Rock é show de teatro. Nada de verdade ou de real. Ele foi o primeiro a ter o despudor de falar isso. Depois, nada mais foi a mesma coisa. Para o bem ou para o mal.
  Kurt, Jimi, Jim e Janis eram ingênuos. Acreditaram na fantasia e morreram seguindo o roteiro do rock star. Bowie, assim como Lou, sempre soube que morrer pelo rock era morrer pelo circo. Ele não embarcou nessa. ( O que não o impediu de escapar por um triz....mas conseguiu sobreviver ).
  Morre. E como dizia Shakespeare: "Todos nascemos devendo uma morte à Deus". Morre como quis. Sem alarde. Sem show. Sem contagem regressiva. Acena um lenço da janela de sua nave. Se vai com Lou rumo ao Sattelite of Love.
  PS: Converso com meu amigo Fabio e notamos que o Brasil está muito pouco Bowie. Tomar partido, fazer parte de grupos, dar chilique....Tudo contra a filosofia de David.
  

O PIOR POST DA MINHA VIDA...BOWIE PARTIU...AQUILO QUE QUERIA NUNCA TER DE ESCREVER...

   Te dará um incômodo chato se eu te disser que meus olhos estão vermelhos e inchados...que eu ando chorando por um cara que nunca me conheceu e a quem eu nunca vi de perto...Mas esse é o milagre da arte meu amigo, a gente ama alguém por nos ter dado muito, mesmo que sem querer ou saber.
   Não há nada a dizer sobre o artista Bowie. Todo o rock feito depois dele é outro. Nunca mais foi ingênuo. O teatro entrou na coisa com ele e nunca mais saiu. Se você desconfia da sinceridade de um rock star você deve isso a David.
   Mas todo mundo sabe disso. E eu não quero cair no banal. Eu lembro das mortes de Lou, de Miles, de Kevin, de Lennon...e esta está sendo a pior. A morte, essa maldita, ela nos leva a todos, mas eu não consigo a aceitar. Pobre planeta...cada vez mais vazio.
   Prefiro falar de uma tarde em 1974. Em que um menino de 11 anos viu um clip de um inglês chamado Bowie. Na Globo, anunciado por Nelson Motta no programa Sábado Som. Fazia sol e meu irmão de 8 anos estava comigo. Ele cantou The Jean Gennie e minha vida mudou.
   Ali estava um cara muito diferente. Não era um hippie cabeludo de jeans falando de amor. Não era um cara tentando me assustar falando de vampiros e de morcegos. Nem mesmo um cantor ao piano fazendo gracinhas e falando de amor. Não. Era um cara com roupa estranha, rosto maquiado e fotogênico, cabelo laranja, e cantando como se aquele blues fosse apenas "uma besteira". Não havia suor. Nem lagrimas. Ele não parecia sofrer e nem se esforçar. Sem eu notar ele me ensinava que a vida era uma PERFORMANCE.
  Isso eu carrego pra sempre. E penso nos caras da minha geração que se perderam exatamente por isso. Nós, sempre com  a ideia da performance, passando sempre a impressão de que estamos fingindo, brincando, sendo um pouco fake.
  Agora ele se foi. E estranhamente noto que o mundo tem voltado a negar a performance. Nas redes sociais todos querem ser DE VERDADE....Veementes, duros, sérios...e acabam sendo tão fúteis em sua pretensão...
  Foi isso que Bowie me mostrou. Que um cara sobre um palco ou um palanque não merece ser levado mais a sério que um cara na plateia. O publico é o star.
  Descanse em paz David. E ...espere por mim....

David Bowie - Starman (1972) HD 0815007



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MICHELANGELO, UMA VIDA ÉPICA - MARTIN GAYFORD

   Torturas. Mais torturas. Guerras. Espanha contra Roma. Roma contra Firenze. Milano contra França. Firenze contra todos. Traições. O duque trai o Papa que trai o rei que trai o cardeal que trai o rei que é traído pelo Papa. Assassinatos. Pai envenenado pela esposa que é esfaqueada´pelo amante que é queimado pelo namorado. Sexo. Muito sexo. Homens velhos amam meninos. E nesse caldo de sangue, doenças, fedor, gozo, medo e fúria vive o gênio.
   Michelangelo não ligava para efeitos de luz. Nem para a natureza, a paisagem. Não pintava retratos. Ele só se interessava por homens nus. Religioso, quase puritano, ele via Deus na beleza. O corpo humano como a mais alta criação divina. E o corpo masculino como o reino da força, da nobreza, do caráter e da transcendência.
   Poeta. Michelangelo além de escultor, pintor e arquiteto foi poeta. Dos bons. E em seu trabalho se percebe que seu mundo não teve mulheres. Apenas Vittoria Colonna. Uma paixão intelectual. Ele amava com intensidade a jovens rapazes bonitos. Mas há a possibilidade de que tudo fosse platônico. Isso porque o gênio era além de católico temeroso, um platônico convicto. Para ele tudo aqui é imperfeição. Lembretes de um universo perfeito e divino que vive além.
  Ele era terrível. Amava a solidão, dado a fúrias, irredutível, perfeccionista, desconfiado, chorão radical, paranoico, descumpridor de custos e de prazos, mas jamais mentiroso. Tempo terrível esse em que ele viveu. De corpos dilacerados em praça pública. Religiosos belicosos, luxuriosos, ambiciosos. Tempo de bancos, de acordos secretos, de vaidade ao extremo.
  Nenhum artista foi tão rico, tão famoso, tão adulado, tão preocupado. Puritano que amava a nudez, amoroso e violento, dava fortunas a amigos e ao mesmo tempo, trilionário, vivia como pobre em mansão vazia de luxo. Esse foi Michelangelo, fascinante ser humano que Gayford descreve muito bem.
  Meu livro do verão.

La Pietà - Michelangelo Buonarroti



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MICHELANGELO by MARTIN GAYFORD

   Essa biografia de Michelangelo, lançada recentemente pela Cosac, tem um problema terrível! Ela nos causa uma horrível obsessão. Portanto, fujam dela! Como café, a beleza ou o banho frio, ela vicia. E muito!
   Eu não consigo parar de ler. Estou na metade e tenho de fazer força para lembrar de outras atividades. Escrevo isto na esperança de me libertar. ( Mas já sinto saudades do livro...)
  A escrita de Gayford é leve, agradável, e consegue ao mesmo tempo nunca parecer fútil ou superficial. Ele não doura, mas também seduz. Dá a justa medida do biografado. Não cai em erros que vemos em tantas bios: a de endeusar o homem o transformando num tipo de profeta inefável. ( Freud por Peter Gay é o exemplo pior. ) Michelangelo criou arte genial, mas nem sempre. Era um homem insuportável, mas nem tanto.
  Grosseiro, agressivo, pão duro, cheio de culpa. E ao mesmo tempo arrogante, vulnerável e generoso. Gayford não faz dele um mártir. Nunca. Faz dele um cara como eu e como você. Apenas com uma diferença, ele tinha um talento que ninguém nunca mais teve. E a teimosia de lutar para o expressar.
  Viveu muito. Numa época em que mesmo os ricos morriam aos 40 anos, ele viveu 90. E produziu até o fim. Nascido em família empobrecida, se via como um nobre caído ( não era ). Seu talento precoce o levou ao convívio com os poderosos. E lá virou uma celebridade.
  Firenze e Roma. O que mais seduz e vicia é o elenco do livro. Além de Michelangelo temos os Medici, vários Papas, Maquiavel, Bramante, Botticelli, Pico dela Mirandola, Ficino, e seu rival, Leonardo. Mais ainda: os Borgia, Rafael, Lippi, Julio...Foi o explendor máximo da alma humana, a hora da virada, da mudança, da descoberta, da confiança plena. ( Segundo Yeats o mundo vira a cada 500 anos. 1500 foi o mais recente auge. 2000 o ponto baixo. 2500 o próximo auge. )
  Um fato é que deverei mudar meu conceito sobre Beethoven. Foi Michelangelo o primeiro artista a não se submeter. Se Beethoven foi o primeiro a trabalhar para si mesmo, fazer só o que queria fazer, Michelangelo, apesar de trabalhar sob encomenda, fazia o acordado como queria e quando queria. Se quisesse.
  Em vida foi o homem mais famoso do mundo. E depois de morto nunca teve um só momento de ostracismo. Nossa cultura sempre foi, e até a invasão do Islã, sempre será guiada por sua concepção do que deve ser o corpo humano perfeito. Ele inventou aquilo que entendemos como "belo talhe". E mais ainda, deu aparência física a nossa ideia de heroísmo e de santidade. Criou sozinho os sonhos que nos encantam até hoje.
  Este livro é obrigatório. Se você quer diversão ele tem. História ele tem. E arte, muita arte.

A IRA BRASILEIRA ( 2015 FOI UM SACO )

Quando a gente assiste um filme do Mazzaropi, ou do Oscarito, Zé Trindade, percebemos como o Brasil de 1955 era pobre. As casas nada tinham. Um fogão, um rádio e é só. Coisas que os americanos tinham a uma década, TV, aspirador de pó, batedeira de bolo, lava roupas, aqui era coisa de milionário. O telefone era símbolo de poder! Veja só.
Como nada na vida é uma coisa só, essa pobreza fazia do brasileiro um povo muito fácil de agradar. A vespa da insatisfação consumista não picara ninguém. A ambição era um bife e uma Teresa para namorar. Claro que se sofria por isso! Se sofria por uma caxumba também. Mas eu falo de humor, e esse ainda era a marca do brasileiro típico. Bobo. Mas um bobo alegre.
A coisa começou a mudar durante a década de 70 e se perdeu de vez nos anos 80. Em 1970 a ambição era o fusca e o violão, mas em 1980 já era a casa na praia, o sítio, a viagem à Paris, a nova TV, mais um carro e um monte de roupas novas. O brasileiro ainda se via como um ser abençoado e alegre, mas esse humor, que fora um dia ingênuo, era agora cínico.
Chegamos ao tempo atual e em 2015 foi escancarado o novo fato: o Brasil é muito, muito mal humorado. A gente não consegue mais rir da desgraça. A gente censura quem ousa rir dela. Sim, eu sei, existem motivos: fomos enganados. Acreditamos que seríamos ricos, que o Jeca ia virar Jack, que emprestaríamos dinheiro pros gringos. E notamos agora que somos os mesmos de sempre: endividados, confusos, mal geridos e vendedores de matérias primas. Então estamos irados.
Sem o humor e o riso fácil perdemos aquilo que nos redimia. Ficamos sendo um povo chato. Muito chato. Nós sempre nos demos mal. Nada há de novo. Mas agora somos aqueles otários que se pensaram especiais e viram que tudo era um conto do vigário. Não somos mais os que contam a piada, somos o objeto do riso.
Eu estive lá e sei que o "mito" do brasileiro sorridente foi verdade. Era fácil conversar com um estranho na rua. Muitos risos nos bares. Homens de bigodinho com um sorrisinho na cara. Programas de humor às dúzias na TV e no rádio. O humor era bobo, caipira, inofensivo. E por isso ainda era feliz.
Nosso humor hoje é agressivo, ofensivo, violento até.
Entramos no século XXI como consumistas consumados. Queremos tudo e queremos já. Mas nunca passamos pela cidadania do século XX. Toda a onda de educação, direitos, sindicalismo democrático, informação dos anos 1950-1970 nos foi negada. Como roceiros mazzaropianos, caímos no meio de um shopping em liquidação. E sem entender nada, achamos que tudo era só isso.
E agora, irados, estamos de bolsos furados.
Meus amigos trabalham mais que nunca. Os despreocupados dos anos 90 hoje são ansiosos.
O Brasil virou um pé no saco!