O HOMEM DO MACHADO

   Depois do calor africano a tribo conheceu a Era Glacial. E tiveram de se unir ainda mais em cavernas e cabanas de pele de rena. Impacientes com o frio que não passava, castigados pelo vento, sentiram então, 50000 anos atrás, um novo impulso. No escuro do inverno sem fim, na nostalgia do sol, no sono temperado por fome, no medo e na insegurança, o impulso de criar surgiu. O desespero podia ser mitigado pela representação daquilo que se precisa e não se encontra. A mão usa a pedra e no osso do mamute faz nascer uma rena. A mão se amplia e na parede pinta o verão. A fala acompanha a mão, foi a mão que deu voz ao pensamento, fazendo o homem canta e fala, ensina, consola. No osso do mamute se guarda aquele dia terrível. Aquele dia que viu nascer o milagre: consolando e aliviando esse homem nos deu sua vida. 50000 anos depois, no fim da Era Glacial, nós ainda sabemos dele. O maior desejo daquele Herói anônimo agora acontece: Chega de gelo!
   Muito tempo antes ( Há um milhão de anos ).
   No luxo de verde sem fim, entre feras e presas, frutas que exalavam perfume por milhas e milhas além, um insignificante número de homens vaga atrás de comida. A vida sendo somente o ato de coletar e tentar vencer a fome que dura desde o nascimento até a morte. Uma vida com fome. Mas acontece um outro milagre: Um dentre eles pega uma pedra e a esculpe. Bate pedra contra pedra e afia e faz uma ferramenta. Um machado. Ele corta a carne, corta a madeira, esfola a pele, mata o inimigo. Quem ele foi? Porque ele o fez? Jamais teremos como saber o porque de um entre tantos executar esse ato definitivo. Porque os outros continuaram macacos? Mas não é disso que desejo falar. O que me importa é a razão, essa voz que só tem paz quando encontra uma ordem naquilo que não tem porque. E que inventa coisas na vã tentativa de ordenar e dar respostas ao que nunca se saberá. Foi a carne que desenvolveu nosso cérebro? Dê carne a um orangotango por meio milhão de anos e ele será apenas um macaco mais forte. E assassino. Tristes tentativas de resposta da razão.
   Daquela tribo, nossos pais africanos, um foi caçador, um ficava observando a vida, um era louco, outro mandava, um era tarado, um foi o mais idiota. Houve o nervoso, o sonhador, o mau. E um criou o machado. Somos filhos deles, eles vivem dentro de nós. A imensidão da savana nos seduz, o escuro das cavernas frias nos faz sonhar. O medo é nosso irmão, o terror de ser caça nos faz avançar. Andamos, precisamos andar, é nosso mais forte instinto, quem não anda morre de fome, de sede, é pego por uma fera. E quando somos obrigados  a parar de nos mover, no gelo, na neve, sonhamos e criamos mundos. Dentro do escuro. A sina humana: dentro e fora, consciente e inconsciente, sonho e sol.
  O homem do machado foi o maior de nossos heróis.

A EVOLUÇÃO HUMANA

   Um dia vencemos o canibalismo. E depois, bem depois encerramos com alivio os sacrifícios humanos em honra de deuses. Veio o fim das execuções em público e só depois disso paramos de vender gente.
   Um dia as guerras acabarão. E as veremos com vergonha.
   E só então iremos acabar de trucidar animais. E teremos a decência de os perceber como iguais.
   E esse homem do futuro olhará para nós e pensará: - Homens de 2014...Selvagens que comiam bichos!

LIGEIRAMENTE FORA DE FOCO- ROBERT CAPA

   o melhor fotógrafo de guerra relata sua experiência na segunda-guerra. Na verdade era para ser um roteiro de cinema ( e que filme soberbo ele seria! Principalmente se botassem Huston pra dirigir ). Heminguay deu uma ajuda ao amigo, o livro tem um másculo sabor que remete ao autor americano de O Sol Também se Levanta. Mas isso é marca do tempo. Escrever em inglês em 1940/1960 era geralmente escrever como Heminguay. 
  Capa salta de paraquedas e é dos primeiros homens a cruzar o canal e aportar na França. É o dia D. Suas fotos são definitivas. E seu relato? É bom, nos sentimos lá. Capa esteve nas guerras da Espanha, da China, na França, na Alemanha, em Israel e na Indochina ( Vietnã ). Aqui é só França e Alemanha, O melhor episódio é seu encontro com os espanhóis que lutaram pela França. O coração de Capa está com eles. A sua guerra foi a revolução da Espanha. Guerra que marcou todos aqueles que lá estiveram. Heminguay, Capa, Orwell, Dos Passos, Steinbeck...
  O livro, da Cosac Naify, tem algumas fotos que eu nunca vira. São maravilhosas. Rostos de soldados, aviadores, camponeses, a resistência em Paris. Robert Capa nunca deixa de dar suas cutucadas. Tem humor irônico. Vê o absurdo, sente medo, mas nunca foge. A narrativa é entremeada por seu caso com uma inglesa em Londres, Pinky. Na verdade Capa teve muitas mulheres mas só um amor. E esse amor morreu numa explosão, na Espanha.
  Li todo o livro em poucas horas de prazer. Uma bela história de guerra. Sangue e confusão. 
  

A DITADURA SEMPRE VENCE ( MESMO QUANDO PERDE )

   É claro que havia uma imensa massa de gente faminta e ignorante. Mas é fato também que a elite tinha uma educação e uma elegância que se perdeu. Mario Simonsen, dono da TV Excelsior e um dos donos da Panair era de uma finésse hoje impensáveis. Ser saudosista é crer que tudo era melhor. A vida é assim, se perde para se ganhar, a questão é entender se valeu a pena.
  Ditaduras sempre ganham. Mesmo quando derrubadas a vitória é definitiva. Porque aquilo que elas querem destruir é para sempre estragado. Nunca saberemos o que seria a Rússia dos czares. O que Lenine queria ele conseguiu, destruir a elite europeizada ( velha guerra eslava que se repete na Ucrânia agora, a luta do eslavismo contra a corrente européia ). Jamais iremos saber como seria a Alemanha, e o mundo, sem a ditadura Nazi. Eles conseguiram o que desejavam, matar a velha Europa da Belle Époque.
  Aqui o movimento de 64 desejava destruir todo o liberalismo de JK que se implantava. Jango foi uma desculpa, o ódio era do novo Brasil, o Brasil que podia ter dado certo e que nunca vamos saber. A Panair é um exemplo disso. Ontem assisti um doc sobre sua história.
  A Panair tinha aeroportos construídas por ela mesma. Linhas que ligavam o país a Europa. Tinha fábricas e oficinas. E levava remédios, via aviões anfibios, a Amazônia e Mato-Grosso. Sem a Panair, o Brasil não tinha contato algum com o mundo além do rio Negro. Em seus vôos havia uma elegância cortês que ainda não foi, e pelo jeito não será, repetida. Seus Constellations eram servidos pelas melhores aeromoças. Champagne e luxo, calma e tratamento caloroso. A companhia mantinha uma sala no melhor hotel de Paris. Lá, brasileiros podiam ir e passar o dia matando as saudades, conversando, bebendo e tendo atenção e socorro para qualquer problema. O mesmo em Roma e Londres.
  Pois bem, em 1965, da noite para o dia, os militares resolvem que a Panair não pode mais voar. Suas linhas são dadas a Varig. Os aviões e as posses são vendidas em leilões fajutos a preço de banana. Sem indenização, 5000 funcionários perdem o emprego. Um dos donos, dono também dos seguros Ajax, que fazia o seguro das docas de Santos, perde seus direitos. Coisa incrível, uma empresa é falida dando lucro!
  A Panair, como a TV Excelsior, desaparece para sempre. Com ela se vai o Brasil de JK. Um certo Brasil cortês, calmo, ainda inocente. Abre-se o caminho para o descaramento, para a lei que pode tudo, para a elite revanchista, burra, deslumbrada, arrogante. Os velhos militares democratas são exonerados. Morre um país que nunca mais irá voltar. A Panair, para toda uma geração, simbolizava esse mundo. O Constellation voando até o mundo, sobre o Rio, sobre Minas, sobre SP.

O CLUBE DALLAS, JEAN-MARC VALÉE

   A coisa começou com Robert de Niro em Touro Indomável e não parou mais. Um ator emagrece pacas, ou engorda, ou fica feio, e ganha um Oscar. Outro modo é fazer papel de doente. Ajuda muito. Neste filme Mathew faz as duas coisas. Oscar com certeza. Bruce Dern está muito melhor. Mas Mathew emagreceu.
   Sobre Jared nem dá pra falar. É uma atuação Ok. Nada mais.
   O diretor, Jean-Marc Valée tem um filme soberbo: CRAZY. Este não é nem bom nem ruim. Parece um daqueles telefilmes que se fazia nos anos 80. T.Rex fecha o filme. É a melhor coisa. ( Aliás parece que o mundo afinal começa a perceber que o glitter foi o auge do auge ).
  Quero dizer também que críticos de cinema da Folha estão de dar dó! O cara escreveu que o filme se passa nos anos 70!!!! Arre égua! É 1984/85 bocó!!! Quero deixar claro que gosto de Mathew. Mas há um erro em tanta festa. Vão estragar o melhor ator de comédia romântica que há.

O QUARTO E O MUNDO

   Olhando o teto do quarto ele via no branco um mundo sem palavras possíveis. Para que sair de lá se a aventura acontecia sem cessar? Os amigos da escola gritavam seu nome, mas ele se deixava ficar. No tapete bonecos interpretavam papéis sem enredo. Improvisos. Seus desenhos pintados com lápis colorido era testemunhas do mundo que ele criava. Da janela descia o lusco-fusco do outono, pálido, ele ficava tão pálido quanto o sol daqueles dias. O chá era tomado enrolado nas cobertas úmidas. Da luz amarelada da noite mal iluminada ele via as sombras de seu futuro. Lá tudo tinha sentido exatamente por não precisar de um sentido.
  Hoje ele diz que toda sua vida foi a extensão daquele quarto. Ele o levou para o mundo de fora. Isso ele diz. E agora, velho, ele volta ao quarto fisicamente. E vive.
  Toda aquela geração foi da rua. O espaço ainda era livre e mato havia onde. Pete, Paul, John, Eric, Rod, Roger, Raymond, todos saíam de casa cedo e voltavam sujos e machucados de noite. Exploravam as ruas, os bairros, se perdiam em bosques e trilhos de trem. Compensavam a monotonia das casas germinadas, o tédio de um mundo sem TV com aventuras vividas nas ruas sujas e cheias de garotos como eles eram.
  David não. David Bowie, fico sabendo agora, vivia em seu quarto, e nisso ele antecipa ( oh David!!!! Mais uma antecipação!!! ), toda a geração anos 80, a geração, a minha, trancada no quarto, a geração Morrissey e Robert Smith. Com uma diferença: Bowie criava, Morrissey amava seus mitos e sofria.
  Não sei se fui um garoto do quarto. Eu variava tanto de humor que acho que tive anos de quarto e anos de rua. Nisso sou mais Pete Townshend que foi também os dois. Aos 15 passei meses ouvindo Mozart, Beethoven e lendo romances russos e ingleses sem quase sair de casa. Inclusive larguei a escola. Mas aos 16 estava na rua jogando bola, muito mal, e andando a esmo pelas ruas e aparecendo na casa de amigos a meia-noite. O mesmo na infância.
  Na verdade se eu fosse um artista eu diria que o que levei comigo para o mundo foi meu bairro, as ruas onde nasci e cresci. Meu quarto tinha nove quarteirões e um campo sem fim.
  Quanto mais conheço Bowie mais o admiro.

Julie Christie sings in "Far from the Madding Crowd"



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LONGE DESTE INSENSATO MUNDO- JOHN SCHLESINGER...E JULIE, ALAN, TERENCE, PETER, NICK...

  Deve ter sido interessante. Os bastidores deste filme, de 1967, tiveram as presenças da agitada Julie Christie, que era então a grande nova estrela do cinema inglês, recém vinda de Dr. Jivago, Terence Stamp, símbolo sexual e participante ativo da cena swinging London, Peter Finch, grande ator e homem atormentado, o diretor John Schlesinger, mais interessante cineasta jovem e que faria na sequência Perdidos na Noite. Ainda temos Alan Bates, meu ator favorito da época. O diretor conseguiu administrar tantos egos e ainda entregar ao público um grande filme. Que foi perseguido pela crítica de então. Why?
  Schlesinger vinha de filmes ousados em termos de tema e de técnica. Aqui ele faz um filme mais clássico, ao estilo Carol Reed, isso deixou críticos perplexos. Um tipo de preconceito que se repete até hoje. O diretor jovem faz um filme que homenageia seus mestres e críticos acham que isso é uma traição. Pff...
  Thomas Hardy escreveu o livro em que o filme se baseia. Fala de uma bela viúva que tenta administrar sua fazenda. Enfrenta o clima, a doença que ataca as ovelhas, desastres. É ajudada por um ingênuo agricultor, papel de Alan Bates. Ele rouba o filme. O simples e eficiente trabalhador que ele faz traz em si toda a mensagem do filme. Ele se sente traído várias vezes, mas é persistente, trabalha pela viúva e fica firme em seu propósito. Terence Stamp faz um vaidoso soldado. Ele aparece no lugar e fácilmente seduz a viúva. Seu modo é todo sexualizado. Mas ela descobre que ele a trai e em sua cena final descobrimos sua humanidade. Ele carrega o corpo de sua amante e depois se entrega a morte. Stamp era um grande ator que se deixou destruir pela fama. Hoje, após longo tempo, é conhecido outra vez por pequenos papéis exóticos. 
  Peter Finch faz um rico dono de terras, mais velho e um grande chato, que se casa com a viúva. Logo descobre que ela não o ama e humilhado se mata. Com toda essa melodramaticidade, Finch mantém a fleuma, frio, ele decai. Uma cena belíssima.
  A fotografia do filme, de Nicholas Roeg, é das mais belas do cinema. Longos campos, sol e névoa. verdes intensos. E temos a trilha sonora estupenda. Inclusive com uma soberba canção folk interpretada em cena de sonho.
  Por fim Julie Christie, nunca mais tão bela. Leva o filme nas mãos. Uma estrela que nunca ligou para o estrelato e que abriu mão dessa posição alegremente.
  Um grande filme. O final é inesquecível.

HORAS ITALIANAS- HENRY JAMES, UM TURISTA ESPECIAL

   Impossível ler esse livro, coletânea de textos sobre viagens a Itália escritos por James entre 1877 e 1890, sem pensar no quanto mudou nossa noção do que seja um turista. James reclama muito das invasões que alemães e belgas promovem em Veneza e Firenze, mas o que esses homens de 1880 procuravam? Quem esteve na Europa neste século sabe que lá existem coisas chamadas Estações de Águas. Pois era isso o que o turista mais banal queria naqueles velhos tempos, um clima melhor para passar o inverno, águas medicinais e também poder conhecer gente diferente, exótica. Os italianos eram, com os espanhóis, os grandes exóticos europeus. As pessoas iam a Roma para usufruir do calor, conhecer esse povo tão romântico e claro, ver o Papa. 
   Henry James é um turista culto. Ele se encanta com a elegância dos venezianos, se empolga com a decadência glamurosa do país e comenta a pobreza da Itália. Mas o que ele quer é a arte, e em arte a Itália é berço e mãe. Giotto, Ticiano, Bellini, Tintoretto, Henry James escreve belas páginas sobre a arte nobre, etérea, incomparável dos mestres latinos. Nisso somos hoje como ele foi. Pessoas mais cultas ainda vão a Itália para ver Giotto ou Rafael, pessoas comuns vão para fazer compras e comer. 
   Não há em 1880 essa moda de comprar aquilo que só o país tem. Vinhos ou massas da Itália são apreciados, mas ninguém viaja por isso. E o hábito do restaurante ainda era só para gourmets. Se comia fora, mas não era algo de muita importância. Flanar a pé, vendo as casas e as pessoas, sendo visto e cumprimentado, essa era a experiência central. Isso se perdeu, poucos se dão a chance de andar a esmo por Roma ou Milão, cidades que existem para serem andadas. Mas as obras, as mesmas que James viu e amou ainda estão lá, e alguns ainda percorrem milhas e milhas para as ver.
  Apaixonado por Veneza, a lúgubre e decaída cidade, James escreve, em seu estilo de longos parágrafos elípticos e musicais, três capítulos sobre Veneza, centro e sabor do livro. Eles nos levam para dentro da mente do autor, a seus sentidos e gostos. 
  Mestre central das letras, é um prazer raro poder ler um gigante escrevendo sobre assunto inesgotável. A Itália é para sempre, Henry James a acompanha.

NEBRASKA, UM FILME DE ALEXANDER PAYNE

   Primeiro: O quanto perdemos com o fim do preto e branco. O preconceito fez com que muitos perdessem o dom de saber apreciar a sutileza da ausência da cor e da presença dos contornos e sombras. Preto e branco é o cinema mais cinema. Quem ama essa arte tem amor pelo p/b porque 80% dos grandes filmes foram feitos em p/b. 
  Segundo: Andei reclamando das trilhas sonoras. Elas apelam para canções pop ou não conseguem criar um tema que gruda, que fica. Aqui temos um belo tema. Complementa as imagens e leva os atores. 
  Atores: Payne sempre foi bom. Aqui ele é grande. Ele faz algo cada vez mais raro, dá tempo e espaço aos atores. Vemos o desenvolvimento de uma personagem. De várias personagens. Sutilezas. Silêncios. E humor. O filme é um céu de melancolia. Mas a gente ri muito. Duas vezes.
  Alexander Payne não tem medo de fazer em 2014 um filme que é em tudo anti 2014. Não é colorido. Tem só gente feia. Nada de chocante. Sem canções gracinha. Nada denuncia. Cinema como se fazia em 1973. O foco não é naquilo que acontece. O foco é na pessoa. 
  São perdedores. E o ambiente é desolador. A imensa América que é um vazio. E uma ambição que é uma patetice. Mas eles se movem. Viver, na América, é se mover.
  Grandes cenas. A TV na sala, o roubo, o encontro com a dona do jornal. O filme tem sempre um porque, não se perde, não se estica. É exato.
  Bruce Dern foi o mais hippie dos atores. Da turma de Jack Nicholson. Fez filmes com alguns mitos: Hawks e Hitchcock. Cara conhecida nos anos 70. Mas nunca um astro. Um coadjuvante. E sempre forte, duro, diferente. Aqui um show. Como o filho, feito por Will Forte também dá um show. O filme é deles.
  NNa força da paisagem sem fim, nos rostos marcados, na estrada, no bar, Alexander Payne faz, finalmente, sua aguardada obra-prima.

B DE BUNDA, B DE BRASIL, B DE BANDIDO E B DE BRAHMA E BOLA

   Hordas de barracas atravancam as ruas vendendo lixo: bonés tortos, rádios já quebrados, relógios que atrasam, perfumes fedidos. Ervas suspeitas, fumo seco, tênis descolantes. As ruas são sujas, ninguém imagina que elas possam ser lavadas, só a chuva as molha. Árvores doentes tentam crescer na fuligem e no cimento que as estrangula. Papéis voam e enormes crateras se abrem a cada semana. Bandos de motos berram por entre os carros e ônibus bamboleantes carregam corpos amassados que suam aos litros. Os olhares se cruzam hostis. Imensas bundas espremidas em calças claras se intrometem no campos de visão. Rostos cheios de espinhas e precoces papadas se orgulham das bundas empinadas. Carne gordurosa exposta em açougues ao sol e as moscas. Dobras sobram na camiseta transparente, manchas de gordura do churrasco asqueroso.
  Na rua dita chique, rachaduras e canteiros secos. A falta de espaço por entre as saídas de carros e as mesas que atravancam. Os turistas sorriem da estranha exoticidade daquela vida pretensiosa e pobre. Pobres habitantes de classe média fecham as janelas e aumentam o som fazendo força para se crer educado e superior. No batincum vulgar de sons "de primeiro mundo"sonham com a loira de Miami e a casa da Riviera. Bebem a pior das gasolinas e votam nos piores dos piores. Mas são chiques, muito chiques.
  Nas lajes se come carne de quinta e se bebe cerveja aos ectolitros. Crêem que o país é original, único, de Deus, foram bem treinados, domesticados, jamais civilizados. Um cara é morto na esquina, a policia não policia só sabe punir e os professores matam o tempo em meio a falta de interesse geral. 
  O presidente manda, o povo aceita, e quem tem alguma visão se envergonha. O país tem carnaval com bundas, funk com bundas e cerveja com bundas. Mas não tem mais nada, nada. 
  Ele paga o imposto, imenso e cruel, por 40 anos e tudo o que esse imposto lhe deu em troca foi uma máquina para poder votar com rapidez. Porque hospital, escola, luz, água, aposentadoria, tudo ele precisou pagar a parte, em particular. O que o país lhe deu? Cinco copas, cinco copas e cinco copas. 
  Estádios banais, com arquitetura que já está ultrapassada crescem em terrenos mal escolhidos. Metrôs atrasam, trens quebram, ônibus se incendeiam, carros levam balas. Nos protestos nada se pede, se destrói. A proposta é acabar com bancos, com carros e com palácios. A policia bate, os caras batem e quebram e a gente vê...
  Rodovias são inauguradas já velhas, rios são secos e matas invadidas. 
  A beleza do Brasil é só aquilo que o homem não fez: mar, mata e rios. O que o homem fez nada vale, não temos museu, nem cidades lindas, nem monumentos nem nada, Posso dizer que aquilo que Deus deu nós destruímos.
  Mas tem bundas e cerveja.

Lawrence of Arabia - Main Theme - Maurice Jarre



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