SONATA KREUTZER- TOLSTOI

   Pessoas viajam num trem. Uma delas começa a perder o controle. Depois que os outros descem, ela conta sua história. É um assassino. Matou sua esposa e foi absolvido. A novela é terrível !
   Terrível porque entramos na cabeça de um sofredor, sofredor nada simpático, uma pessoa que nos repugna. Mas o mais chocante é sua clareza, sua inteligência. Ele conta seu modo de ver a vida, o modo certo. O amor não existe, ele é apenas sexo. As pessoas fingem não perceber, mas todo mundo está o tempo todo flertando. Os homens agem como libertinos e as mulheres como putas. A vida se transformou num bordel, mas é ainda pior. O sexo é sempre ruim, e todos fingem que é o máximo. Sexo se tornou uma obrigação, uma conta a ser paga. Pessoas virgens têm vergonha de serem puras, o que é um absurdo! A pureza é que pode conhecer o amor, a partir do momento em que voce conhece o sexo, o amor se torna impossível.
   E o assassino vai nesse ritmo, coerente apesar de chocante, corajoso. E o leitor quase entra nessa armadilha, quase lhe dá razão. Mas...Segue-se a descrição do crime, o inferno no casamento, o ciúmes que ele sentia, os filhos...E voce percebe então que o que Tolstoi está demonstrando não é o erro do século em matéria de materialismo, não é o tédio e o ódio entre casais, mas sim o modo engenhoso como nossa mente cria toda uma filosofia, todo um emaranhado de sutis razões para justificar um crime. Tudo aquilo que ele expôs, toda aquela maneira de ver as relações, nada mais é que um modo de se justificar perante nós e perante si-mesmo. Percebemos que assim funciona o mundo. O que antes era errado se torna o certo, o mal vira bem, o bem se faz um mal, tudo de acordo com o interesse do momento, e esse interesse é a absolvição de um ato violento, de um crime.
   Desagradável. E soberbo.

OS ÚLTIMOS DIAS- LIEV TOLSTOI

   Transcrevo trechos:
   Uma das principais causas do suicídio do mundo europeu é a falsa doutrina eclesiástica cristã sobre o paraíso e o inferno. Não se acredita nem no paraíso e nem no inferno, e no entanto, a ideia de que a vida deve ser ou o paraíso ou o inferno penetrou de tal forma na cabeça das pessoas que não se admite uma compreensão sensata da vida tal como ela é, a saber, não paraíso e nem inferno, mas uma luta, uma luta incessante, incessante porque a vida está só na luta, mas não a luta darwinista, de seres contra seres, mas na luta das forças espirituais contra seus limites corporais. A vida é a luta da alma contra o corpo.
   ...Mas havia pessoas para as quais a violência era vantajosa, e elas não reconheciam isso, e convenciam, a si próprias e aos outros, de que atacar e matar aos outros nem sempre era ruim, mas que há casos em que a violência é necessária e pode até ser boa. Tanto a violência quanto o assassinato continuaram a acontecer...
   Cristo desmascarou essa falsa justificativa para a violência. Ele mostrou que qualquer violência pode ser justificada, como acontece quando dois inimigos lutam um contra o outro e ambos se justificam. Não devemos crer em nenhuma justificativa para a violência, e nunca se deve usa'-la, sob nenhum pretexto..
   ...podemos fazer tudo para nossa vantagem e nosso prazer, e para isso usar a violência contra as pessoas usando o pretexto de que é para o bem das pessoas.
   Homem estúpido e ignorante, diz o homem de ciência, Você não entende que a ciência está a serviço da ciência, não da utilidade. A ciência estuda o que é possível estudar, não pode escolher. A ciência se abre ao todo, não se ocupa com ninharias.
   E o homem simples quer apenas que o ensinem a viver melhor.
   A ciência contemporânea não só não contraria o gosto e as exigências do setor dominante da sociedade como lhes é completamente servil: satisfaz a curiosidade ociosa, deixa as pessoas admiradas e lhes promete ainda mais deleite. A ciência de nosso tempo, ignorando tudo o que seja silencioso, modesto, simples, não conhece limites para a autobajulação.
   Um dos sintomas de nossa decadência é o fato de um louco clínico como Nietzsche ser levado a sério.
   Em todas as sociedades humanas em determinados períodos de sua existência, houve época em que a religião começa a se afastar de seu sentido original, e depois se afasta mais e mais, perde esse sentido original e, por fim, se petrifica em formas fixas, de modo que sua influência sobre a vida das pessoas vai se tornando cada vez menor. Nesses períodos, a minoria culta, tendo deixado de crer no ensinamento religioso, apenas fingia acreditar nele, por considerá-lo necessário ao controle das massas populares no modo de vida já existente. As massas populares, embora por inércia, mantivessem as formas religiosas pré-estabelecidas, já não conduziam sua vida cotidiana por ensinamentos religiosos, mas apenas por hábitos gerais e leis do governo. Mas nunca houve o que está acontecendo agora. Nunca houve um momento em que a minoria rica e culta se convencesse de que em sua época não há mais necessidade de religião alguma. E passasse a professar não só a inutilidade de toda religião, como a condenasse como símbolo de atraso e prejudicial ao desenvolvimento.
   Bom, essas são algumas frases pegas no livro. Agora é hora de comentar e explicar o sentido geral do que Tolstoi pensava em seus últimos 20 anos de vida.
   O centro de suas preocupações é a queda da civilização européia, e essa que da se liga a transformação da violência em regra geral. Profético, Tolstoi morre em 1910, e a sociedade que ele denunciava faria em 1914 a primeira guerra e em 39 sua continuação. Duas organizações promovem a violência: a politica, que precisa ser util e importante, e para um politico ser importante é ser o guia em momentos de crise, ou seja, ter inimigos, fazer o povo temer e odiar, e precisar dele para o defender. E a outra força social que promove a violência é a igreja, que finge esquecer os ensinamentos de Cristo e se torna cúmplice dos piores contra os inocentes. A mensagem de Cristo é simples: Fazer o bem. Dar a outra face. Jamais ser violento. Fazer ao outro o que desjas que se faça a ti. Seguir a lei do amor, dar sem pensar em receber. Agir agora e saber que o futuro não pode ser antecipado.
   Segundo Tolstoi, todo homem quer que essas regras cristãs sejam seguidas, a maioria procura as seguir, mas a sociedade impede isso. Em um tempo em que o lucro, o trabalho e a disputa são o valor que move a vida, ser um cristão verdadeiro, um homem que ajuda e não disputa, cede e não briga, reparte e nunca acumula, é o grande pária. Para que o mundo do lucro exista é fundamental eliminar a verdadeira religião.
   Tolstoi também fala muito da hipnose em que todos vivem. Um mundo europeu cheio de distrações, de pequenos fatos sem sentido, de brilhos que hipnotizam, de sons que calam, de ordens que são obedecidas sem que se saiba o porque. Outra característica do mundo moderno é dar ordens desde sempre. As crianças são treinadas a ser um membro atento que dará valor ao valor já estabelecido, a ciência será um tipo de circo do maravilhoso ( e esse maravilhoso raramente se ocupa daquilo que o cidadão simples quer: viver melhor e viver bem ), e o que se chama igreja fará o papel de bobo da corte, fingirá ser religiosa perante gente que finge crer.
   Tolstoi diz que é um mundo vazio de sentido, vitima de tédio e de crueldade. Sem sentido e sem esperança.
   Irrompem então os espertalhões, aqueles que percebem o estado podre da sociedade e gritam a plenos pulmões que o homem sempre foi esse traste sem porque e que a vida sempre foi sem sentido. Tolstoi diz que esse tipo de artista, de filósofo, é o mais nocivo corvo de todos, é o aproveitador, o propagador da falta de talento, o homem vil que comemora o fato do mundo ter atingido a sua insignificância. Esse arauto do desespero não ergue a vida, não ajuda, ele comemora sua vingança: eis que a vida me faz justiça! Ressentidos contra a vida.
   O livro tem dois textos terríveis! Em um deles Tolstoi descreve os horrores de um matadouro. E diz ser tipico dos tempos que as pessoas criem bichos de estimação, detestem ver a morte de um animal, mas se banqueteiem com quilos de vitela. De Olhos vendados, elas se alimentam sem pensar e sem nunca discordar. Em outro capitulo ele descreve o trabalho numa mina e faz o contraste com o passeio dos donos dessa mina no campo. Tolstoi foi um socialista, mas sempre radicalmente contra a violência. Cristo era seu guia. O amor sua única lei.
  Cartas trocadas entre Tolstoi e Gandhi, entre Tolstoi e Shaw também estão presentes ( os 3 eram as pessoas mais discutidas de 1910 ). E há um longo texto onde Tolstoi chama Shakespeare de autor mediocre. Sua tese é a de que Shakespeare foi escolhido como autor mais importante do mundo, por exibir em suas peças toda a violência e amoralidade da nova classe dominante e não por valor estético.  Provávelmente isso é verdade, mas WS não é ruim...
   Bem, Tolstoi pensa como eu penso em 99% dos casos. Penso nas guerras, na igreja sem sentido, no mundo do espetáculo, no sexo como distração, na nossa aceitação passiva da violência. Penso que a resistência pacífica nunca foi usada por palestinos, por exemplo, e que olho por olho dente por dente nunca deu certo. Sim, a ciência nunca pensa na moralidade do que faz e muito menos no bem das pessoas ( só as vezes a medicina ). E que chegamos a um ponto em que nem sequer conseguimos imaginar que possa haver outro modo de viver.
   O livro é triste, pessimista, irado, e infelizmente, verdadeiro.
   Haverá uma era cristã?
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PARIS- ROBERT DOISNEAU, O FOTÓGRAFO DA VIDA SIMPLES

   Porque precisava de dinheiro, pois nem todo fotógrafo tem a sorte de ser rico desde sempre como Bresson, Doisneau conseguiu um emprego de fotógrafo de publicidade, na Renault. Mas faltava tanto que logo foi mandado embora. E essa é a filosofia de Robert: "Desobedecer é uma questão de viver bem". Este belo livro da Cosac Naify, fotos da cidade de Paris, desde os anos 30 até a década de 90, exibe a vida de Doisneau, a mistura das fotos com seus comentários.
  Primeiro que ele nada tem contra o progresso. Diz jamais chorar sobre um edificio que desaba. Mas se assombra com a nova Paris. Tece um comentário perfeito sobre a impessoalidade dos novos prédios de aço e vidro:: "São todos idênticos. Querem o anonimato, a não-personalidade. Pessoas que lá vivem têm um anúncio de conformidade."
  Nos anos 50 Doisneau foi convidado para trabalhar na Vogue. Ficou apenas dois anos. E chegando sempre atrasado. A Paris que vemos em suas lentes é suja. E rica, muito rica. Ao contrário de Capa que buscava o drama, ao contrário de Bresson que sempre trazia o abstrato, Doisneau é um poeta, suas imagens são sentimentos. Todo o tempo.
   Fotos das ruas em labirinto, cheias de crianças, de gente, de ação, as fachadas que nunca s repetem. Cenas de Les Halles, com seus açougueiros, o sangue, o lixo na sarjeta. Bares de strip, as moças peladas, e a tocadora de acordeon, o rosto de pedra. Os moços da resist6encia, nas trincheiras, belos como modelos da Dolce e Gabanna! Vida real que parece um anúncio de modas...Doisneau é esteta por instinto!
  Crianças brincando, maio de 68, jovens bonitas de minissaia. Chuva no chão, fotos com cachorros, a França e seus chiens. Diz Doisneau que era comum um músico tocar na rua ( ainda é ), a diferença é que as pessoas cantavam com ele, em coro. Se cantava muito no metrô também. Em grupo.
   Bares com seus copos de Marc, de Absinto e de Calvados. O rio, bateau, muita gente pescando nas margens do Senna. E vinho.
   Robert Doisneau é feliz, porque ele vê a alegria mesmo no açougue. Percebe o medo na foto do bombardeio, mas mesmo assim a foto é bonita, tem equilibrio, tem charme...
  Se viver em SP tendo consciência de sua decadência é uma bosta, viver em Paris agora e saber aquilo que foi perdido...une merde!
  Mas...a vida segue, e Doisneau sabe viver. Os escuros das gráficas onde franceses imprimem panfletos, os discursos nas ruas, o homem com um falcão no ombro, o nobre com sua limousine cheia de cachorros, o salto sobre a poça de chuva, o olhar discreto na bunda de uma pintura... Discrição, sutileza, charme, o charme sempre, a discrição bonita, a sutil afirmação da presença.
  E o beijo, que tanta gente pensa ser foto de Bresson. A mais chic das fotos ( apesar de tão batida! ), a Mona Lisa das fotos de pessoas na rua... Não negue, ainda mexe!
  Que prazer de livro!!!

BRASIL, O PAÍS DO FUTURO!

   Um amigo me manda uma matéria em que uma revista conta que o futuro é dos idiotas.
   Qual a nova?
   Se eu der uma de Pondé e falar aquilo que penso, aliás que muitos pensam e que ninguém diz, falo que quanto mais os imbecis tomam o direito de mandar ( através do acesso ao consumo ), mais tudo fica de acordo com esse denominador comum, um denominador quase zero.
   Se eu falo, e acho que voces nem acreditam, que em 1976 a Rede Globo exibia peças de Gogol e Lorca em horário nobre ( Teatro Vivo, 21 horas ) e sinfonias de Beethoven também, isso se devia ao fato de que os mal nutridos não tinham sequer acesso a . A programação da TV mais popular era feita para 5% da população. E mais uns 30% que viam Silvio Santos e Chacrinha.  Uma felicidade hoje eles comprarem TVs, mas essa entrada no mercado não veio acompanhada de entrada na cultura. Então agora eles pedem Ratinho, Pânico, Casé e muito crime-da-vida-real.
   E não me fale do capitalismo. O capitalismo verdadeiro se encontra na Coréia ou na Alemanha. O Brasil nunca conseguiu chegar ao capitalismo de fato. Improvisamos um camelódromo. Somos camelôs. Educação rima com alto consumo. O que aconteceu é que fomos incapazes de mudar a educação. Aliás, nada mudamos, continuamos exportando matéria prima e dependendo de marcas estrangeiras para termos carros, PCs, relógios, remédios, telefones e um imenso etc. A taba manda soja, compramos avião.
  Em Pinheiros, após longos anos, a praça em frente a igreja está pronta. Quer dizer, pronta em "brazilian style". Está velha e decadente antes de terminada. O estado é incapaz de construir alguma coisa que pareça terminada. Tudo fica com aquele jeito de "nas coxas"...um buraco aqui, uma parede suja lá...
  Soube que no Brasil os projetos são desenhados após o término da obra. Ou somos muito espertos ou este país é de uma deprimente burrice. Voce escolhe a alternativa.
  Óbvio que os estádios da Copa ficarão mais ou menos terminados. E que ao fim do evento eles já vão parecer velhos e decadentes. Manutenção não é uma virtude brasileira. Nada de manutenção, que se construa de novo!
  Se o futuro é dos idiotas, podemos dizer que somos mesmo, e sempre fomos, o país do futuro.
  Quando americanos e japoneses estiverem confusos com sua nova realidade, uma realidade feita de improvisos, jeitinhos e desrespeito a acordos, o Brasil surgirá como pioneiro e poderá enfim ditar as regras.

T Rex (Marc Bolan) - Don Kirshners Rock Concert - 1974



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OS QUARENTA ANOS DE QUARENTA ANOS ATRÁS

   É duro falar sobre 1974, um ano que dura 40 verões. Isso é inacreditável. Em minha vida tive anos marcantes, 76, 77, 80, 84, 86, 91, 93, 95, 98, 99...sim, todos esses anos são diferentes, têm personalidade, marcam um tempo novo. Alguns tristes, como 77, mas todos importantes. Mas o sabor de 74 é o da descoberta. Foi quando descobri coisas que me deixariam em rota para ser aquilo que sou agora.
  Portanto não vou falar daquilo que só descobri anos depois. Eu não sabia o que era Roxy Music em 1974, ou Woody Allen, Jack Nicholson e Philip Roth. Mas eu sabia de Nelson Motta e de um programa das tardes de sábado chamado Sábado Som. Nelsinho aparentava 18 anos então ( ele já tinha 30 ), e comentava os clips antes de os apresentar. Pink Floyd foi o primeiro. E eu achei um pé no saco. ( Falo de meus 11 anos ). Em outros programas a coisa me agradou mais. Meu irmão pirou com Jean Gennie do Bowie. 
  Sábado era um dia muito especial. Acordava e ia pra sala ouvir rádio. Difusora e Excelsior. Elton John era meu ídolo. Ele tinha 6 músicas de sucesso rolando ao mesmo tempo! Nunca mais vi isso! ( Eram Don`t Let The Sun Go Down On Me, The Bitch is Back, Lucy In The Sky, Sweet Painted Lady, Beannie and The Jets e Ballad of Danny Bailey ), e havia Wings, George Harrison, Ringo e Lennon ( tocava muito Band on the run, Miss Vandebilt, Dark Horse, Ding Dong, Only You, Goodnight Vienna, Whatever gets you thru the night, Dream, Goin down in love ), era TEMPO de Barry White, Stylistics, Billy Paul, Marvin Gaye, Stevie Wonder. Rolava Rebel Rebel do Bowie e Only RocknRoll dos Stones. E mais Alice Cooper, Bad Company, Slade, Sweet, Clapton com I Shot the Sheriff...e muito Secos e Molhados.
   Em 74 minha mãe me disse que éramos ricos. Fiquei contente, mas jamais pensei que iríamos começar a cair em 1975, lentamente, ano a ano. Em 1983 a coisa ia virar de vez...
   Nunca vi meu pai tão contente como naquele ano. Foi quando ele comprou um Opala exatamente como ele queria, vermelho-lotus, duas portas, um tipo de muscle-car brasileiro. Lembro dele trazendo o carro, a lataria vermelho brilhante, imenso, adentrando a garagem e exalando o cheiro de carro novo. Dormi aquela noite dentro dele. Nas noites seguintes ele nos levava para passear. Adorava olhar as luzes dos postes. Cantávamos. O rádio era Bosch-Blaupunkt.
   Nas tardes de sábado íamos a Pinheiros, ao bar do meu pai. A alegria era enorme, raras vezes fui tão feliz. Uma alegria cheia de ansiedade. Porque, consumista que sempre fui, ia ganhar mais um carrinho da Matchbox. Tinha um laranja, um vermelho com hélices, um marrom enorme. Quando não ganhava um carrinho, ganhava discos. Singles, na época se chamavam compactos simples. Chegar em casa e os escutar era um momento de cerimonia. Deitava debaixo da vitrola e ficava olhando o motor girar.
   Em 74 eu comecei a colecionar revistas da editora Ebal. Homem-Aranha, Superman, Tarzan, Batman, Superboy. Ainda posso sentir o cheiro do papel novo, tinta preta, capa em cores. Eu ia as segundas levar meu irmão a escola e na volta comprava revistas. Pelo resto da semana eu iria as reler. 
  Nesse ano fui apaixonado por Josie e as Gatinhas. Melodie. E via Mary Tyler Moore. Meu pai adorava San Francisco Urgente e Cannon.  A TV era toda de séries americanas. 
  Na escola comecei a jogar bola. Sempre muito mal. E tinha uma relação de ódio e admiração pelo cara mais folgado da sala. Chegamos a brigar. Mas eu adorava ir a escola. Sempre adorei. O som de gente ao meu redor, nada é melhor.
  Em 74 fomos a praia. Ficamos num apartamento que tinha uma criação de cabras no vizinho. Foi nesse ano que as meninas começaram a me deixar louco. Eu ficava na varanda todo o tempo, esperando uma menina passar...mas era um desejo envergonhado, sem que eu soubesse o que fazer com aquilo. Eu nem sabia me masturbar!
  1974 foram longas tardes de inverno, na janela vendo a rua, naquele mundo onde quase nada acontecia e onde aquilo que acontecia acontecia pra sempre. Pra 40 anos.
  Minha mãe fez uma promessa. E por isso fomos o ano inteiro em todas as missas de domingo. Eu odiava ter de ir. Era quente, chato, lotado, e eu queria ficar em casa ouvindo rádio. Depois da missa a gente ia na feira. Eu comprava bolachas. Bolachas velhas. Sempre gostei de bolachas velhas. 
  Penso agora que talvez 74 seja tão especial por ter sido o primeiro inverno em que não tive bronquite. Eu dormia muito bem, enfim! Minha vaidade começou a aparecer, comecei a estufar o peito, a me achar forte. A bronquite se foi.
  1975 viria, e tudo o que 1974 trouxe seria desmentido por 75. Mas naquele natal, dezembro de 1974, tive um momento de absoluta felicidade, da certeza total na beleza da vida, de paz completa. Eu estava no centro de uma decisão, no centro de uma familia. Sabia que os caminhos se abriam. E queria todos eles. Pra valer. 
  Hoje, inacreditável 2014, ano em que 100 anos passaram pós 1914, 1914 que inicia o fim das alegrias possíveis, hoje, sinto 1974 vivo em tudo aquilo que me fala de amor.
  Preservo meus amores. Respeito meus amores. 1974 é sempre.

CLOSTERMANN HOLLAND 1944-45



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O GRANDE CIRCO- PIERRE CLOSTERMANN, MEMÓRIAS DE UM PILOTO DE CAÇA DAS FORÇAS DA FRANÇA LIVRE DA RAF.

   A editora C&R lança livros de guerra no Brasil. Preenche um buraco, esse gênero tem muito prestigio em todo o mundo, aqui mal se encontra. Livro bem cuidado, belas fotos e desenhos dos aviões.
   O pai de Pierre lutou em 1914/1918. Perdeu as duas pernas na carnificina, mas mesmo assim apoia o filho quando ele resolve se alistar como voluntário na segunda=guerra. Familia rica, negócios pelo mundo, Pierre poderia continuar sua vida na segurança do Canadá ou do Brasil. Mas não. Vai lutar na Royal Air Force, a RAF, a aviação inglesa, única força a deter Hitler em 1940.
   A França não. E o livro, o diário real desse piloto, começa com o lamento pelo triste papel feito pela França. Ela não lutou, ela se rendeu. Mas, fora do país, De Gaulle organiza o ataque, franceses das colônias, franceses americanos, lutarão. Pierre estranha a Inglaterra. Mas logo se sente em casa. É 1943. As batalhas de Pierre Clostermann começam.
   O estilo é admirável ! Nos sentimos dentro do avião. Ele sabe descrever a surpresa do inimigo que chega, as batalhas feitas de medo, de suor, frio, confusão. Os aviões se misturam, se caçam, atiram e erram, se perdem. Amigos morrem. Aos montes. Eles levantam vôo de manhã, de tarde, de noite, sentem fome, sentem sono, dor. E o medo que não se vai.
   Pierre odeia a guerra. Ama a aviação. Ao final do livro ele fala de sua admiração pelos ases da aeronáutica alemã. Pilotos soberbos, que venceram 200 duelos. O luto que se abateu sobre a base quando Nowotny, um inimigo, foi morto. Porque acima de tudo eles eram aviadores, irmãos nos ares que deviam lutar. Pierre contrapõe a terrível carnificina da infantaria, com sua lama, seus membros despedaçados, a sujeira, e a guerra nos ares, limpa, fria, elegante, homem a homem.
   Mas sim, ele sente a dor de ter bombardeado cidades. Aviões ainda a hélice, o que os obrigava a ver a explosão, ver o fogo, gente sendo explodida. Guerra olho no olho, se olha o piloto inimigo que atira.
   Numa das folgas Pierre vai pescar. E faz amizade com o dono das terras onde ele pesca. Um velho inglês, de cachimbo e tweed. Esse homem, que janta com ele, morrerá num bombardeio. E Pierre descobre que a esposa e o filho do velho inglês já haviam morrido em 40, ele na batalha da Grã=Bretanha, ela em Londres, num bombardeio. Pierre passa a admirar a Inglaterra. As bombas caem e eles jogam cartas. A casa em chamas e o chá sendo servido em ponto. O fato que Hitler nunca entendeu, os ingleses não saem do costume, a fleuma permanece.
   Pierre não gosta dos americanos. Porque até mesmo Hitler manteve as cidades de pé, nunca bombardeou para arrasar. Os americanos, e os russos, não. Para deixar seus soldados mais "protegidos" eles fazem um bombardeio arrasador. Destroem tudo. Sem pensar, sem remorso. Dresden, Munique, Berlim, Caen, Strasburgo, Dieppe, todas são incendiadas, anuladas, riscadas do mapa. É uma vingança fria, sem honra.
   Churchill e Roosevelt discutiam muito por esse motivo, Churchill queria que se preservasse o máximo possível, Roosevelt ( e Eisenhower ) queriam a aniquilação. Venceram.
   As missões se sucedem. Novos aviões, os nazis lançam o primeiro jato, o primeiro missil, mas é tarde. A guerra em seu fim é desespero. Batalhas aéreas gigantescas. 90 aviões contra 120...Os alemães constroem fábricas subterrâneas, 400 novos aviões por mês, 500, 1000...Mas a Inglaterra não desiste! Spitfires, Hurricanes, Typhoon, os nomes dos aviões são lendários! Pilotados na unha, com sangue saindo do nariz, sem ar, a 25 abaixo de zero!
   Pierre Clostermann sabia escrever. E viveu muito! Morreu aos 92 anos, em 2002.
   Homens como ele? Não mais.

New York, New York - On the Town



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A FELICIDADE EM FILME, OS MAIS FELIZES DOS FILMES

   Pegaram FANCY FREE, uma obra genial de Bernstein e Jerome Robbins e transformaram neste filme impactante. Criticos snobs da época torceram o nariz, afinal não respeitaram toda a obra-prima, mas caramba, que filme bom!
   A primeira cena, com a música de Lennie Bernstein, já conquista qualquer cara de gosto refinado. Um trabalhador se lamenta por ser segunda-feira. De um navio descem marinheiros em férias de 24 horas. Um luminoso marca o tempo:: segunda, 7 horas...
   New York, os 3 marinheiros andam pela cidade e cantam. É excitante, é feliz, é wonderful ! Gene Kelly é um entusiasmado rapaz que se apaixona pela Miss Metrô. Jules Munshin é um grandão que só pensa em garotas e Frank Sinatra faz o tipo de papel que ele fazia nos anos 40, um ingênuo desprotegido. A cidade, gloriosa, é percorrida pelos amigos e pelas mulheres que eles vão conquistando pelo caminho, uma taxista e uma antropóloga. Nesse frenesi alegre e atlético, o espectador acompanha o espírito do filme: alegria sem ironia. É o mais feliz filme já feito. 
   Sucesso em seu tempo, curto e direto, sem muita pieguice, e com um final perfeito, UM DIA EM NEW YORK é uma obra-prima de Gene Kelly e Stanley Donen. A primeira direção dos dois.
   Fariam alguns poucos anos mais tarde SINGIN IN THE RAIN.
   O cinema tem duas cenas que são seus emblemas: A cena no chuveiro de Psycho e Kelly dançando na chuva. Quem foi feliz sabe, quem é feliz sabe, aquela dança simboliza tudo o que sentimos aos nos descobrir felizes. Kelly canta, pula, chuta a água e em toque de sublime delicadeza termina a cena dando seu guarda-chuva para um senhor molhado que o agradece. A felicidade ignora a chuva, ignora o guarda, ignora a elegância ( é uma dança deslegante ), e se dá a um anônimo. Como Kelly e Donen conseguiram fazer algo de tamanha perfeição? É uma prova palpável de que milagres existem.
   Mas há mais! Bem mais!
   Make em Laugh, com Donald O`Connor é absurdamente alegre. Dança que faz rir, um artista dando o máximo e chegando ao pós-limite. Há Debbie Reynolds no simples e leve All I Wanna Do, lindo momento como noite de natal. Linda, ela, leve, brilha. Fadas existem?
   Uma subtrama séria ronda o filme: O quanto somos esmagados pelo star system. Nossos padrões são altos e irreais demais! Queremos ser charmosos como Fred Astaire, elegantes como Cary Grant, bonitos como Gary Cooper, másculos como Bogart e dispostos como Erroll Flynn. Esses os moldes, voce pode substituir pelo astro de seu tempo, Clooney, Pitt, Depp, Butler, MacConaughey... O padrão é muito alto, e ficamos frustrados.
   Mas nada impede que cantemos Good Morning! Tenho amigos que piram com essa cena! Como não pirar?
   No Oscar de 94 Stanley Donen finalmente ganhou seu Oscar. E dançou com ele! Se Kelly era o perfeccionista ( e são dois filmes absolutamente perfeitos ), Donen foi chique e feliz. 
   Um musical precisa de pelo menos três momentos tipo "Arrasa Quarteirão", aqueles apogeus em que o público se levanta e aplaude. Em que o show explode. Pois estes dois filmes têm mais de 6 desses momentos.

RED 2/ MATO SEM CACHORRO/ LUC BESSON/ MINELLI/ BO WIDEBERG

   RED 2 de Dean Parisot com Bruce Willis, John Malkovich, Helen Mirren
Um grande elenco numa diversão interessante. Humor de menos ( o primeiro Red era bem mais engraçado ), boas cenas de ação. Pode ver sem medo. Nota 6.
   MATO SEM CACHORRO de Paulo Amorim com Bruno Gagliasso e Leandra Leal
Uma comédia muito boa. Bruno, ótimo, é um cara timido que se envolve com Leandra ( linda e simpática ), uma radialista. Um cachorro os une. Eles se separam, e Bruno rapta o cão. O filme é cheio de personagens vibrantes e exala simpatia. Gabriela Duarte quase rouba o filme como uma alcoólatra boca suja. Muito ritmo na direção de Amorim. Nota 8.
   MUITO BARULHO POR NADA de Joss Whedon
Whedon é um roteirista quente. Estreia como diretor nesta coisa que usa o texto de Shakespeare em cenário e tempo chic de 2013. Fica tudo very strange. Ralph Fiennes fizera igual com Coriolano, texto do bardo em tempos de agora. Duvido que alguém consiga digerir. Nota 1.
   ELVIRA MADIGAN de Bo Widerberg
Um grande sucesso dos anos 60 que se conserva mais ou menos. A trilha popularizou o concerto 21 para piano de Mozart. As imagens, campestres, são lindas. Mas o filme é frio. Fala de casal, ele um soldado, que tenta se amar em paz nos anos de 1880. Mas ele é um desertor...O diretor sueco usa climas de Truffaut, improvisa. Quando uma cena tem um acidente feliz, ele a usa, não a corta. Mas apesar de bonito, é um filme distante. Nota 5.
   A FAMILIA de Luc Besson com Robert de Niro e Michelle Pfeiffer
Muita gente elogiou esse filme sobre familia mafiosa que se refugia na França. Os filhos e a mulher não perdem o costume, continuam sendo hiper-violentos. Achei o filme desagradável, chato, sem porque.
   YOLANDA E O LADRÃO de Vincente Minelli com Fred Astaire
Em que pese o lindo technicolor e a bela produção da MGM, o roteiro é tão bestinha, tão boboca que não há como gostar deste musical. Fred, para piorar, canta e dança pouco. Nota 5.

FRANK- JAMES KAPLAN, O INFERNO

   Abaixo eu escrevi sobre toda a primeira parte do livro de James Kaplan sobre Frank Sinatra. A segunda parte é o inferno. A partir de 1946, ou seja, após a guerra, o gosto médio americano muda. O grande centrão do país, o interior profundo, passa a ditar as regras e o que faz sucesso é menos sofisticado, menos urbano, mais simples. Cantores como Perry Como, Eddie Fisher, Frankie Laine...Como aconteceu com o Brasil a partir de 1990, o povão começa a ter acesso a cultura, e a cultura que eles consomem é a mais simples possível, quase infantil. Sinatra não quer e não pode se encaixar nesse mundo. Então ele desaba. E como nada vem só, tudo começa a desmoronar.
 Ele se apaixona por Ava Gardner. No começo tudo é lindo. Mas logo começam as brigas. Nesse terremoto, ele se separa de sua esposa ( o que gera a ira de 90% das mães americanas ), estreia um show de TV que é um fiasco, perde seu contrato de cinema e é acuado pela imprensa por suas ligações com a máfia e com a esquerda americana. Capacho de Ava, falido e sustentado por ela, despedido da gravadora, desesperado. Tenta se matar duas vezes, vaga solitário pelas ruas...
 Ava desiste dele. Dorme com contra-regras, atores, atletas e toureiros. Principalmente toureiros. Frank tenta a reconquistar. Patético. Ela faz dois abortos que o revoltam. ( O segundo não era dele, mas ela não conta...). Ava se torna a atriz mais quente do mundo. Sinatra o cantor que ninguem mais quer. 
 ( Uma frase de Humphrey Bogart para Ava nos bastidores de um filme que fizeram juntos: " Todas as mulheres querem dar pra Sinatra e voce prefere dormir com um cara que usa capa e sapatilhas!").
 Uma nova gravadora, a Capitol, tem um jovem diretor. Com menos de 30 anos, esse garoto fez a moral ao ser incumbido de criar um selo de discos infantis. O cara cria o Bozo! E estoura. Em seguida ele chama Nat King Cole, e faz dele um sucesso. E Frank Sinatra aparece, o cantor que ninguem mais queria. Alan Livingston, esse o jovem produtor, traz Sinatra e Nelson Riddle para os arranjos. E a coisa acontece. Nasce o cantor que conheceu o inferno, a dor,   nasce o homem forte, o cara que venceu o mal. Las Vegas, que nasce naquele tempo, se torna seu QG, Sinatra passa a ser o icone do big boss, o modelo a ser copiado, o cara que pode tudo, o adulto, o juiz, o fodao.
 Sinatra renasce. A maior volta por cima da historia da musica popular. Do desemprego ao topo do mundo. De novo.
   Ao mesmo tempo vem o cinema. Ele ganha o papel em A Um Passo da Eternidade ( sem a ajuda da mafia, com ajuda de Ava ), e leva o Oscar. O cara que toda Hollywood gostava de odiar vence. Porque ele mereceu, apenas por isso. As pessoas sabem que Sinatra tem tudo de um filho da puta: vaidade, infidelidade, teimosia, egoismo; e tambem genialidade, vulnerabilidade, timidez, generosidade e a VOZ. The Voice. Ele.
  A ultima cena do livro: Frank com seu Oscar, em 1954. Anda pelas ruas de Los Angeles, madrugada, com o Oscar em maos. Sozinho. Feliz. Novo. Aos 39 anos. 
  Um grande livro.