FLORENÇA, UM CASO DELICADO- DAVID LEAVITT

   Em 1966 houve uma grande enchente em Florença. O Arno transbordou e pinturas, esculturas, livros, todos ficaram debaixo das águas barrentas. Na época o senador Edward Kennedy estava lá. Ele ficou abismado com o que viu: milhares de jovens, voluntários vindos de todo o mundo, debaixo d'água, em fila, salvando a arte de Florença. No frio de novembro, sob chuva, eles vinham de todo lugar, sem dinheiro e sem planos, para tentar dar vida ao que se perdia. Acampavam no campo, comiam o que os italianos lhes podiam dar, eram aventureiros. O livro de David Leavitt termina narrando essa saga. E começa com um dado: apesar de ser uma cidade média ( em termos brasileiros ela tem o tamanho de Santos ), Florença possui um quarto de toda a arte superior do mundo. Isso mesmo, em pintura, arquitetura e escultura, de cada quatro obras-primas do mundo, uma está na pequena Firenze. Daí a ocorrência da Síndrome de Stendhal, mal que foi descrito em 1980, tendo por base uma lembrança do autor francês quando lá esteve. Que sintomas são esses? Falta de ar, vertigens e confusão mental. Às vezes, desmaio. Confundido pela profusão de obras acachapantes, a personalidade do pobre visitante, acostumado a mediocridade segura, se aturde e como que se desfaz. A pessoa tem então uma cruel percepção de sua insignificância. Perde  a persona.
   David Leavitt é um autor quarentão gay militante. Seu livro não é a história da cidade. O que ele conta é o porque dela atrair tantos ingleses "esquisitos". O motivo é simples. Na época vitoriana, ser gay era crime na Inglaterra. Voce podia incluisve ser dedurado e preso. Na Itália, desde sempre, atos homossexuais eram tolerados. Dessa forma, levas e levas de ingleses, desde 1860, aportaram na cidade. Dentre 800.000 habitantes, 200.000 têm origem ou cidadania inglesa ou americana.  É a vida desse mundo, feito de fofocas, arte e vagabundagem que Leavitt trata. Se na Inglaterra, arte era o que tinha utilidade ou relevância social, na Florença dos estetas, arte é gozo.
   O livro mostra, deliciosamente, a vida de seus duques e condes italianos, amorais que se unem aos ingleses desbundados. Festas e decadência. Tudo a sombra do David de Michelangelo.
   A mais bela cena do livro é sobre a segunda-guerra. A população da cidade escondeu as obras de arte em sitios e palácios da periferia para as salvar dos bombardeios. Leavitt nos conta a história de um grupo de soldados americanos, que ao adentrar um palácio vazio, para pernoitar, se surpreende. Um deles entra num quarto e grita: "Giotto!!!", outro da cozinha berra: "Há um Donatello aqui!!!", e por fim o sargento, lá do porão, ri e comemora: " A Primavera de Botticelli!!!!!"  É uma história verídica.
   Aldous Huxley odiou Florença. Reclamava dos sodomitas e das lésbicas. Logo se mudou para Roma. Forster escreveu seu melhor livro lá. Mas ficou pouco tempo. Henry James tinha uma relação de amor e ódio com a cidade. Mas também preferia Roma. Lawrence idem. O que Leavitt nos revela é que a cidade tem um efeito maléfico sobre a inspiração. Cercado de tanta arte, o autor desiste de produzir com uma sensação de não valer a pena tentar. Daí a grande quantidade de "artistas" que "quase" foram grandes que lá moraram. Os realmente grandes logo partiam.
   Florença viveu duzentos anos de grandeza e cinquenta de soberba genialidade. E depois, apenas lembranças. Tudo na cidade é melancólico. Há nela um ar de "perda de inocência". Os ingleses, que mesmo após décadas na cidade continuavam com seus chás e jardins sem história, viviam como em teatro, criando tipos e compondo um cotidiano que logo seria feito biografia. Uma imensa quantidade de auto-biografias saiu da cidade. De certo modo o livro de David é mais uma. Pequena e boa.
   PS: O jardim inglês é sem história porque ele é feito de grama, arbustos e rosas. O jardim italiano é feito de fontes, estátuas e caminhos. O percurso narra uma história dentro do jardim. Quando os ingleses compravam uma villa a primeira coisa que faziam era destruir o jardim italiano e fazer um inglês. Esse foi o maior sintoma de seu auto-encarceramento. Eles fugiam das prisões inglesas, mas carregavam a Inglaterra na cabeça. Transavam com adolescentes italianos, mas detestavam alcachofras, azeite e saladas, e aniquilavam vinhedos para construir uma quadra de tênis. 
   Bem, uma coisa os britãnicos trouxeram de melhor: os cães. Italianos achavam estranhíssimo o amor que os ingleses davam a seus cães. Para italianos, cães só prestam se forem úteis. Não são melhores que um burro ou uma cabra. Para ingleses, e alemães, são seres que devem ser amados. E amados por serem companheiros. Nessa visão conflitante se revela toda a diferença entre saxões e latinos. Os individualistas saxões e os hiper-sociáveis latinos, uns com suas etiquetas e cachorrinhos, outros com suas festas e grupos de amigos. Firenze vive essa mistura. Fascinante.

FICAR VELHO É FODA

Passei todo o ano doente. Com a sensação de que a gripe ia me pegar. E me escondia. Nos banheiros, na biblioteca, na praça. Foi a mais forte experiência de inadequação que vivi. O inferno na Terra. Um tipo de anjo caído do paraíso. Porque apenas seis meses antes eu morava no céu. Era percebido, desejado, respeitado. E agora eu virara um tipo de pária. Só, ignorado, auto-sacrificado. Odiava tudo com todas as minhas fés.
No banheiro eu rabiscava as paredes. Na biblioteca eu me perdia nos longos corredores de livros mofados. Meus cabelos, longos, estavam sempre sujos e por mais que eu lavasse eram oleosos. Eu teimava em usar um paletó de couro, gelado. E naquele inverno apavorante, cheio de vento e umidade, ele era como um tipo de placa de aço. Minha garganta doía toda manhã.
No mundo inteiro eu tinha só dois amigos. Um era um garoto ansioso, sujo e fedido, que tinha o rosto cheio de espinhas e a expressão mais masturbatória que já vi. A gente ia ao cinema, um pulgueiro, ver filmes de sexo e olhar pras vagabundas da rua. Depois ficava conversando de madrugada, na calçada. O outro amigo era um idealista. Ele adorava Jimi Hendrix, adorava tanto que se parecia com ele. Caminhávamos pela cidade, com pressa. Sonhávamos em montar uma loja de discos. E bêbados, imitávamos uma banda de rock. Com uma vassoura na mão ele era Jimi, e eu, com um tubo de desodorante como microfone, copiava todos os trejeitos de Mick Jagger em It's Only Rocknroll. Todo esse universo de fantasia era destruído quando eu chegava em minha nova escola- um lugar que era a ilha da disco music. Menos pra ela...
Ela gostava de exibir a calcinha. E o namorado, um magrelo com cara de raposa, estava sempre rindo, com os dentes amarelos. Ela não era bonita. Era sublime. Baixava um pedaço do jeans justo e mostrava o começo da calcinha roxa. Eram duas aberrações naquele ambiente tão banal. E eu, tímido, seguia os dois, calado, sempre por perto, sombra. Matavam aula para beber nos botecos do centro. Eu não ia. Andava pelas ruas geladas e esperava. Uma manhã ela me deu um beijo. Seco e breve. Desandei.
Suado e cheio de raiva eu chegava em casa. Um lugar sempre vazio, minha mãe ia à ginástica e meu irmão estudava todo o dia. Botava os discos e delirava. Ouça:
Existe uma época pra tudo. A gente aprende quando fica velho- O tempo pra amar por exemplo. A gente pode amar a vida toda, claro, mas tem um tempo que é o melhor tempo de amor que voce terá. Assim como há o melhor tempo de ter raiva, de odiar ou de sonhar. E acontece na vida também o grande tempo de leitura, de ver filmes e de ouvir música. A vida toda eu fiz tudo isso, mas jamais existiu época melhor pra escutar um disco que esse ano de 1979. Eu tinha um tipo de alucinação com os discos. Enquanto escutava criava histórias, via cenas de romance, me inspirava e fazia parte do que ouvia. Não acontecia de ser 'eu' ouvindo o disco, era 'nós' na música. Meu mundo era aquilo, e doía. Escutava com raiva.
Sticky Fingers é doente. Cheira a ampolas usadas, a algodão com álcool. E é todo desespero. Os solos de Mick Taylor são todos sublimes- e voce sabe- sublime é a beleza terrível. Se na capa há uma pistola escondida num jeans justo ( Warhol ), aqui, nos sulcos, há a tentação da morte. Não só em Sister Morphine, a mais seca das canções drogadas, mas em Moonlight Mile, a mais triste canção de Jagger.
Por isso é dificil escutar isso agora, em 2012. Porque minha raiva se foi. minha solidão virou conforto e a menina da calcinha foi esquecida.
Ficar velho é foda. Voce percebe que a vida é uma sucessão de traições. Ouvir os discos daquele tempo, e são poucos, dói muito. Porque em todo esse tempo eu traí aquele moleque. Todos os sonhos e todas as raivas foram despedaçadas. E as ruas geladas nunca mais foram visitadas...
Ou não.
Talvez ter feito o moleque sobreviver, e hoje, aqui, poder escrever isto para voces, seja uma vitória. Meu compromisso em 1979, agora percebo, era com Brian Jones, e ele morreu. Eu queria ser ele, na verdade eu o era. A vitória foi ter passado por aquele inferno e ter vencido.
PS: Hoje eu sei- e sei por ter lido a bela bio de Eric Clapton.

Cream - Tales of Brave Ulysses



leia e escreva já!

Alice Ormsby Gore - Legendary Celebrity



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O MAIS HUMANO DOS ROCK STARS. ERIC CLAPTON, A AUTOBIOGRAFIA.

   Ler a bio de Clapton não é ler a bio de um rock star. Muito menos a de um guitarrista. É a biografia, muito sincera, de um homem. Desde o começo de sua vida Eric teve apenas uma coisa em mente: construir uma vida. Jamais ele desejou ser uma estrela. Nesse processo, doloroso, ele se desconstruiu sempre. Fugiu do estrelato, fugiu do virtuosismo instrumental e na pior das batalhas, fugiu de sua própria vida. Chegou a uma situação de absoluta destruição. E sobreviveu. O foco é na luta interior, o rock é a segunda, às vezes terceira linha.
   Clapton nasceu pobre no subúrbio. Mato e espaço. Sua timidez vem do sentimento de se estar sobrando. Quem ele pensava ser sua mãe era na verdade sua avó. A verdadeira mãe lhe foi apresentada como irmã. O jogo só foi revelado na puberdade. A verdadeira mãe, fria, nunca baixou a guarda. Mas por sorte os avós eram ótimos.
   Na escola Eric evitava brigas e fugia do centro das atenções. Péssimo aluno, melhorou quando foi estudar design. Bom desenhista, um dos assuntos favoritos de Clapton em todo o livro é a moda, as artes visuais. Ele descreve roupas, móveis, tapetes e quadros. Bom gosto, dom que se reflete nos acordes que ele sempre produziu em suas guitarras.
   O blues ele descobriu no rádio. Sentiu-se no paraíso. Com violões ruins aprendeu a tocar sózinho, copiando discos. Além do blues, Buddy Holly. Bandas de bar, de pub e então vêm os Yardbirds, uma banda de blues. Purista, caiu fora quando a banda estourou fazendo um tipo de versão de blues- pop. Eric não queria ser como os Beatles, queria ser Muddy Waters. Com 19 anos as ruas já apareciam grafitadas: Clapton is God.
   Grava com John Mayall. Os Bluesbreakers são puro blues. Mas ele adorava Jack Bruce e quando ele o convida para tocar se forma o Cream. Ginger Baker vem pra batera e Ginger e Jack se odeiam. Tocar é bom, e eles criam a jam session no rock. Por ter pouco repertório tocam versões de dez minutos de cada faixa. Os shows são hiper concorridos, sucesso em palcos, o Cream é a banda mais fashion em 67. Clapton começa a circular com Jimi Hendrix. Os dois vão a bares onde tocam juntos, de surpresa. Ao mesmo tempo Clapton circula com a nova invenção inglesa, os hippies de sangue azul. São os filhos de barões e duques que caem na estrada e se tornam um tipo de ciganos chiques. Para essa galera, Eric Clapton é a coisa mais "In" que existe. Ele se envolve com Alice Ormsby-Gore, uma das mais ricas herdeiras (há uma foto dela, fascinante ), mas já nesse tempo, o coração dele tem dona: Pattie, a esposa de George Harrison.
   O primeiro disco da The Band faz Clapton sair do Cream. Ele quer fazer aquele som. Simples, não uma ego-trip como o Cream se tornou. Forma com seu amigo Steve Winwood o Blind Faith, uma tentativa errada de ser The Band. Ao mesmo tempo toca com Lennon, Harrison, Stones e quem mais vier. Pattie o rejeita e ele vai pros EUA. Faz papel de músico de apoio na banda de Bonnie Bramlet e conhece muito pó, muita heroina e grandes músicos de lá. Namora a irmã de Pattie, traça várias fãs on the road. Vem Layla com uma nova banda: Derek and The Dominos, uma tentativa de zerar tudo. Afunda. Layla, dedicado desesperadamente a Pattie não faz com que ela largue George.
   Fica 3 anos em casa, entre álcool e drogas, casos vazios. Pete Townshend o obriga a sair e faz em 74 o show da sua volta. Grava o disco do retorno, o muito bom 461 Ocean Boulevard, onde descobre o reggae. Mas desde então ( 1974 ) até o fim dos anos 80 a vida de Clapton se resume a garrafas e mais garrafas.
   Nesse torpor de bebida se casa com Pattie. O que foi o desejo de sua vida se torna um inferno. Eric Clapton exibe coragem, conta tudo. A patetice, a idiotice. Ao contrário de Keith Richards ele nunca glamuriza: é o inferno. E se diverte. Eis a dificuldade: beber é divertido. E pior que isso, parar de beber significa abrir mão do que dá sentido a vida, beber.
   Começa a tocar mal, grava discos ruins, bate o carro, escala edificios, ofende amigos, perde tempo. Tenta um tratamento, falha. Tentará novamente bem mais tarde. Numa cena comovente, se ajoelha e se entrega. Desiste de lutar. Se salva nesse momento. A partir daí o livro é a reconstrução da vida de um doente. Eric diz, minha prioridade não é minha música ou meus filhos, é me manter sóbrio. ( Ele não bebe a mais de 25 anos ).  Tem um filho com uma italiana, esse garoto morre ao cair de uma janela. Tears in Heaven. Seus amigos do AA agradecem por ele não voltar a beber mesmo com essa dor. Eric passa a trabalhar pelos AA do mundo todo.
   Uma bela vida? Uma sábia vida.
   Guardo dois momentos de Eric Clapton comigo. O show para George, no aniversário de um ano de sua morte. E aqui no Brasil, recentemente. Olhar para ele é ver um homem são. Um cara que esteve lá e voltou. E que não se faz de "louco profissional". Sério. E agora, calmo, muito calmo.
   Nas amenidades, Carla Bruni foi namorada de Eric nos anos 90. E foi roubada dele por Mick Jagger. Desde então Eric passou a sentir aversão por Jagger ( Jagger é famoso por roubar namoradas de amigos ). Bob Dylan, que é descrito por Eric como um cara impossível de se conhecer. E que chegou a morar numa tenda num jardim, nos anos 70. Fala do quanto Paul e John esnobavam George. Sua praia sempre foi o blues, blues de Buddy Guy, John Lee Hooker, Muddy e BB King. Duane Allman e Stevie Ray. Há também belos elogios a Hendrix, e a JJ Cale, um cara que mudou seu som.
   Ao contrário do que acontece com a bio de Keith, esta dá vontade de conhecer o cara, de conversar com ele. Ele fala dos outros, não só de si, fala das artes ebulientes de 1960, de bandas como Small Faces, Who e Traffic, de pintura, de Ferraris, de muitas mulheres. E fala pouco de sua técnica, de como toca ou canta.
   Disse que em 1967, filhos de nobres, belos e ricos, começaram a se vestir como ciganos, a se entupir de ideias zen e cair na estrada. Disse que Eric era o rei entre eles. Foram sábios esses nobres. Eric Clapton é o mais nobre dos ciganos e o mais humano dos rock stars.

O QUE TEMOS DE MAIS MEDÍOCRE DENTRO DE NÓS?

   Qual o assunto principal de nossas vidas nos últimos 200 anos? Do que falam os filmes, livros, peças e a maioria de novas áreas de estudo? A resposta é tão óbvia que se torna até opaca: relações pessoais. De 1800 para cá, a impressão que temos é a de que viver se trata de se relacionar com alguém. Mas a questão que se deve colocar é: isso é verdade? O centro da vida é a relação pessoal, ou isso é mais um tipo de crença ideológica que nos foi imposta? Ian Watt, professor em Stanford e figura de centro dos estudos literários ingleses, vai fundo. Sua abordagem engloba história e filosofia, antropologia e arte. A resposta? Somos filhos de uma conjugação que une religião protestante, capitalismo e romance. E todas essas forças, alinhadas ao acaso, levaram àquilo que somos, seres ansiosos em busca de alguém. Porque? E quem é esse alguém?
   O primeiro romance: Robinson Crusoe. Um homem em sua ilha. A aventura de se virar sózinho. A técnica salvando um homem da miséria. Ele faz da ilha uma fábrica. Com ferramentas ele enriquece. E nunca sente a solidão. Seu medo é o de perder sua liberdade. O homem vencendo o meio natural. Sózinho. Daniel Defoe cria o romance de ação pura, de realização. Ele descreve a realidade. Nada é sobrenatural. Nada é obra de acaso ou de deuses. E Crusoe não é especial. Ele é como nós. Classe média.
   O romance é a primeira forma de narrativa que exalta o banal.
   O segundo romance. Clarissa de Richardson. Uma moça virtuosa que é seduzida pelo patrão. Mas ela vence, os dois se casam. Aqui nasce a descrição da vida interior. Homero, Petrônio, Bocaccio, e mesmo Cervantes pouco falam da vida interior. Pouco analisam sentimentos e motivações. Pouco descrevem, eles contam, narram, sem se preocupar com realismo. É fantasia sem culpa. Porque as coisas mudaram então? Com Clarissa, Richardson cria o romance como arte da feminilidade. Ou voce nunca percebeu que romances são coisa de mulher? Que mesmo machos como Tolstoi ou Faulkner observam a vida em detalhes e cuidados femininos? Homero é a hiper-masculinidade. A ação pura e direta. A aceitação sem observação. O romance é delicado.
   A indústria levou o povo para a cidade. E na cidade o que havia era medo e confusão. No campo todos sabiam de todos. Agora não mais. No campo se trabalhava e se via o resultado. Voce plantava e colhia, criava e comia. Fazia e vendia. Na cidade voce passa anos fazendo uma asa de xícara. Sempre a mesma. E na vida do campo voce via a vida, começo meio e fim. Na cidade não mais. O que voce vê são paredes. Sózinho, sem tempo para nada a não ser trabalho, solitário como jamais antes, sem parentes próximos ( no campo uma familia se compõe de tios, primos, avós ), o que voce faz? Cria sua ilha imaginária de auto-suficiência. Voce lê a vida que não pode ter. Ou melhor, lê aquilo que te dá sentido. Lê sobre voce.
   Mas vem daí um problema. Quem tem mais tempo livre? As mulheres. Romances desde o princípio são coisas comerciais, populares, com público alvo, e esse público é a mulher. Os romancistas que se destacam sabem falar à mulher. E mulheres gostam de sentimentos sutis, vida interior, a casa e o quarto.
   Outro fato: em 1700 há uma grande crise do casamento. Os homens não desejam mais se casar, ocupados que estão com o dinheiro. Solteiras se proliferam, mulheres que não sabem se manter, que são inuteis. Surge nessa época a ideia do casamento como coisa sublime, desejável, suprema. O calvinismo ajuda nesse processo. Pois veja: no catolicismo homem santo é aquele que se isola e vive para a alma. O homem sublime é solitário. No calvinismo o homem sublime é pai de familia, tem filhos e uma boa esposa. Solidão seria egoísmo para Calvino. Mas há mais. Para católicos a iluminação vem de Deus para o fiel, para os calvinistas ela vem quando encontramos Deus dentro de nós. Introspecção versus iluminação. Romances são introspectivos. Nada há de introspectivo no mundo pagão de Homero ou no catolicismo de Cervantes. Mas na Inglaterra de 1700 tudo caminhava para isso. Solidão nas cidades, vida ditada pelo trabalho  e pelo tempo, introspecção espiritual, e a transformação do casamento em ato sagrado e no único sentido para a vida. Tudo o que entendemos como romance está nesse perfil.
   Posso então voltar a pergunta: Porque os livros são como são? Porque somos criados a acreditar que tudo se resume a relações pessoais?
   Voce nunca teve a sensação de que um grupo de amigos falando e falando e falando sobre namoros, flertes e noitadas se parece com um bando de solteironas falando sobre noivados? Nunca pensou que isso é extremamente limitante? Que seja Proust, Conrad ou Mann, sejam filmes de Antonioni, Von Trier ou Lynch, a questão de fundo sempre é: eu e alguém. Voce não sente alivio quando vê ou lê alguma coisa que foge disso?
   Faz duzentos anos que oramos, estudamos, ganhamos dinheiro e fazemos ginástica ou terapia com apenas uma coisa em mente: a relação com o outro. E o que pergunto é: isso é nato ao ser-humano? Não, claro que não. É ideologia, como é o catolicismo e todo ismo que existe. A ansiedade por relação passa a existir apenas no momento em que o homem perde sua familia, a enorme rede de segurança de primos, tios, vizinhos etc. Passamos a colocar tudo no amor. O amor deverá ser nosso deus, nossa familia, amigos e prazer. O romance surge exatamente nesse momento crítico e se ocupa desse universo.
  Um grego iria rir de nós. Nos acharia débeis, atrofiados, feminilizados. Suas narrativas eram sempre sociais, o herói e a cidade, o estado e os deuses, a guerra e o destino. O homem para eles é parte de um todo. Ele não se interioriza e ansia por companhia porque ele vive sem solidão. Ele sofre, claro, chora, mas por outras razões. Por dores relacionadas a familia, ao estado e a injustiça. Nunca por solidão e muito menos amor de romance.
   Já nós somos capazes de num filme de guerra nos interessarmos muito mais pela mocinha e seu amor que pela Inglaterra e a Alemanha. É isso que temos de mais medíocre.
  

ABBEY ROAD, 1969

   John vai á frente. E em sua postura se percebe a vontade de ir sózinho. Branca é a cor do luto no oriente. Os outros são crianças pra ele. Ringo está pensando em seus filmes. E no alivio que seria não mais ter de tocar bateria. George olha para o nada. Azul cor de céu, a longa perna esticada. O caminho lhe parece reto e certo. Tudo é promessa.
   Mas Paul... vai descalço e olha fixamente para a nuca de John que se afasta. Ele parece pequeno, solto, estranhamente só. Ao fundo a rua não acaba. Há um fusca e um senhor que olha. Um grupo a esquerda e as árvores. George Best jogava bola. Muhammad Ali soltava golpes. E Pelé socava o ar. Os 4 cruzam a rua. Que bela história eles fizeram! E na foto podemos ver: o terrível peso que oprimia essas quase crianças. Foram apenas seis anos! De 63 a 69. Uma era em seis verões. ( Que privilégio ser de uma geração cantada pelos quatro...e por Dylan e por Jagger...Não, a minha não é essa, a minha foi lamentada por Morrissey, Michael Stipe e Prince ).
   O primeiro acorde desse que é meu disco favorito dos Beatles já mostra o estilo: Clássico. Estou falando em termos de "arte", pintura e literatura. Os Beatles vivem numa época romântica, mas nunca deixam de ser clássicos. Como Mozart e Velazquez, eles são perfeitos, geniais, completos e ao contrário dos românticos, nunca se deixam levar pela emoção. Por mais que suas canções nos emocionem, elas não são "emocionais". Tudo neles é "bem feito". O acaso, o desleixo, o rascunho lhes é estranho. Cada som é puro, é definido, o prato da bateria soa disciplinado, e até quando Paul grita é um grito bem acabado. Polido, clássico.
   Outra definição do classicismo é o de jamais ser confessional. Mozart compunha coisas alegres mesmo desesperado. O clássico fala através de personagens. Repare como eles criam personagens, como quem fala é sempre alguém, nunca são os Beatles. Claro, isso mudará quando a romântica Yoko faz com que John comece a se revelar. John se torna confessional, centrado no Eu, se torna um romântico. O grupo, clássico em forma e em atitude não poderia o segurar. Quando John diz que cresceu e que eles eram infantis a coisa é mais complicada. John descobriu a alegria de ser Beethoven, Goethe ou Hugo.
   Mas Paul... Paul vai morrer sendo clássico. Ele é educado. Ele não se revela. Tem pudor. Música não é confessionário. Não fica bem. E a arte deve ser polida, acabada, o objetivo é o EQUILÍBRIO. Há um belíssimo equilíbrio nos Beatles. Mesmo um disco "doido" como o Album Branco é equilibrado. Os sons, os efeitos, os ruídos têm definição, as faixas se completam, o todo é coeso em sua variedade. Nada, nem mesmo John, parece acidental. Nunca nada é feito "nas coxas". Comparar os Beatles com românticos narcisistas extremados como os Stones ou The Who é uma experiência muito rica. Tudo em Keith ou Townshend parece improvisado, mal feito, parece jorro de inspiração. ( Só parece ). Os Beatles trabalhavam duro. Nunca pareceram boêmios. Por isso pararam de fazer shows. Palco não é lugar de perfeccionismo. Principalmente em 1967.
   Something é perfeita. Os acordes claptonianos da guitarra são claros como água e a bateria soa como percussão de peça erudita. E os violinos de fundo, o famoso dom de Paul para fazer tudo se harmonizar. Deus às vezes parece gostar de música.
   Sim, eu tenho algumas restrições aos Beatles. São espirituais demais, bonzinhos demais, neles não existe sexo, carne ou diabo. Mas o que falar diante daquilo que eles fazem no lado B do vinil? Alguém pode reclamar de Pascal ou de Montaigne por eles não serem sexy? Quando Carry that Weight está terminando tudo clama: eis a perfeição no rock. Nada nunca mais será tão "belo".
   Dizem que os Beatles temiam se soltar por suas origens plebéias. Havia neles o desejo de agradar típico das classes mais pobres. Músicos de origens privilegiadas tendem a ser mais românticos, a ter uma atitude mais "foda-se". Jagger perto de Paul era rico. Além do que eles eram de fora de Londres. Caipiras. OK. Pode ser verdade. Mas isso não poderia ser visto como uma dádiva a mais? Proletários que se firmam costumam ter muita fibra.
   Mas Paul... Muita gente desde 1970 ficaria cobrando dele "o grande disco". Sua obra-prima final. Queriam que ele fosse o Cole Porter de sua geração, que ele deixasse uma coleção de radiografias ferinas e bem-humoradas sobre uma época. Hoje sabemos, sua grande obra é o conjunto de tudo o que ele fez. Ele não deixa um grande disco genial. Ele deixa um monte de momentos de gênio.
   Olho a capa. Eles têm entre 28 e 26 anos na foto. Como seria ser um deles? Tenho a certeza que nem eles jamais souberam o que foi ser um Beatle...

OLIVER REED/ STEVE CARELL/ SCOLA/ NICHOLAS RAY

   DEPOIS QUE TUDO TERMINOU de Michael Winner com Oliver Reed, Carol White, Orson Welles
Um publicitário bem sucedido larga tudo e volta a seu emprego antigo, editor de uma pequena revista literária. No processo ele abandona esposa, filha e duas amantes. Mas antigos contatos são insistentes...Os primeiros 50 minutos deste filme são gloriosos! Winner filma com vida, calor, dá movimento a tudo, surpreende com cortes magníficos. Mas ele não é um gênio e portanto não pode manter esse ritmo. O filme cai em seu tempo final. Mesmo assim jamais se torna banal, é um dos grandes filmes de seu tempo. Belo retrato da Londres de 1966, tem montes de cenas nas ruas. Winner prometia muito em seus primeiros filmes, mas naufragou. Nos anos 70 filmaria coisas com Charles Bronson. Oliver Reed era um dos atores não-shakespeareanos da época. Ele e Michael Caine trouxeram as ruas inglesas para as telas. Carol White era adorável. O filme dá vontade de ver outra vez. Nota 9.
   A TERRA DO NUNCA-A ORIGEM de Nick Willing com Rhys Ifan
Conversei com um amigo sobre a "falta da mentira", teoria de Wilde que na verdade é de Ruskin. Veja: o realismo mata o futuro. Explico. Quando um cineasta faz um filme que é "real", ele comete dois erros: primeiro que o real é incapturável. Segundo que o real é estéril. Ele pode até ser impactante, mas não fertiliza mentes. Umberto D é magnífico, mas De Sica é eterno pela poesia real e mentirosa de Ladrões de Bicicleta. O cinema de hoje morre em realidades tolas. Veja este filme. Pegaram Peter Pan e resolveram reescrever. O que fizeram? Deram explicações para tudo. Mataram o mito. Acho que foi Jung quem disse que o mundo moderno caça e mata mitos. Aqui Peter é um ladrão de rua. Gancho é o chefe do bando. E Neverland é um globo que caiu do céu. Ou seja, tudo é explicado da forma menos "mentirosa" possível. O nome disso? Falta de coragem. O efeito? Pasmaceira. Peter Pan, o livro, o desenho, tem milhares de significados, de possibilidades. Aqui temos apenas uma verdade. É isso e fim. A nota? É Zero e cale a boca.
   O HOMEM DO SPUTNIK de Carlos Manga com Oscarito, Jô Soares e Norma Bengell
O satélite russo cai no galinheiro de um caipira. Ele passa a ser paparicado por todos, russos, americanos e franceses. Jô Soares, jovem, faz uma soberba imitação do que seria um americano típico. Quem rouba o filme é Norma. Imita Brigitte Bardot e compõe uma das mulheres mais sensuais que o cinema já mostrou. Suas cenas explodem de lascívia ( nunca usei essa palavra ). O filme vale por ela. Nota 5.
   A VINGANÇA DE MILADY de Richard Lester com Michael York, Faye Dunaway, Oliver Reed, Richard Chamberlain
É uma grande produção e é um grande desastre. Em meio a ação, Lester, diretor dos filmes dos Beatles, não consegue manter nenhum interesse. Além do que York é um herói fraco. Faye se salva, está bonita e transpira maldade. A impressão é que ela está no filme errado. Ah sim, o tema são Os 3 Mosqueteiros. O filme vale um zero.
   PROCURA-SE UM AMIGO PARA O FIM DO MUNDO de Lorene Scafaria com Steve Carell e Keira Knightley
Faltam 3 semanas para o fim do mundo. Steve, faz um cara down como sempre, é abandonado pela esposa. A população pira. Pessoas se drogam, crianças bebem, muita gente rouba. Ele conhece uma moça doidinha ( como sempre. Hal Ashby criou uma tradição ). Ela quer ir ver os pais, vão juntos. É um filme tipico dos anos 70, fala de estradas novas e de romper laços; mas claro, tem o estilo de 2012, é vazio e nada tem a dizer. Mas se mantém, por um fio não afunda. Triste, tem uma cena linda ao som de The air that i breathe dos Hollies. A moça é fã de vinis e fala uma frase bonita sobre o que eles significam. Mas é gozado: isso é tudo o que ela tem, seus discos, mais nada. O final não é feliz, é o fim. Este filme passou por aqui? Não lembro. Vale a pena. Nota 6.
   A VIAGEM DO CAPITÃO TORNADO de Ettore Scola com Massimo Troisi, Ornela Mutti, Emmanuelle Beart e Vincent Perez
Que lindas são Ornella e Beart!!!! O filme fala de uma troupe de atores, que em carroça se apresenta em meio ao kaos do século XVI. Todo filmado em cenários fechados, ele tem um clima de sonho. Troisi, que morreria jovem logo após fazer O carteiro e o Poeta, domina o filme. É um ator maravilhoso. Tinha o dom de parecer comum, o que é raro em atores. Nota 7.
   A BELA DO BAS-FOND de Nicholas Ray com Robert Taylor, Cyd Charisse e Lee J. Cobb
Voce se lembra de Os Intocáveis de De Palma? Lembra da cena do taco de beisebol? Foi tirada daqui. Lee J. Cobb numa reunião mata com um pedaço de ferro um dos mafiosos da familia. A cena é a mesma. Este fala de um advogado que trabalha para a máfia. Seu mundo muda ao se apaixonar por garota de programa. Taylor tem o papel de sua vida. Duro como pedra, amoral, vemos lentamente, dia a dia, sua consciência começar a rugir. Ray dirige de forma explêndida. O filme não cessa de caminhar em sua trilha feita de crueldade e de cinismo. De ruim, as cenas musicais, são 3 cenas chatas. Mas duram apenas dois minutos, os outros cem compõe um dos fortes filmes noir. O tema de Ray está todo aqui: seus filmes falam de gente torta no lugar errado. Nota 8.

O FIM DA ESCRITA EM JORNAL SE FAZ COM TEXTOS COMO O DE ONTEM

   Um cara escreveu uma coisa sem pé nem cabeça ontem. Foi tema da decadência da escrita jornalísitica, aula dada hoje. O pseudo-autor começa se lamentando pelo fato de uma guria de 13 anos não ter entendido um doc sobre politica e ter preferido uma fantasia de 007. Bem....Não ocorre ao autor que a guria não entendeu o dito "ótimo doc" simplesmente por não ter prestado atenção. E que sua atenção não foi capturada pelo fato mais óbvio ainda da falta de sedução do dito doc. Tudo bem, eu também me lamento quando um colega se revela insensível a um filme de Dreyer ou de Ozu, mas dái a viajar na maionese vai uma distância imensa. Lamento o fato desse colega viver em mundo que não é o meu e fim de papo. O que faz o dito autor? Tece toda uma teoria, ao mesmo tempo óbvia e ao mesmo tempo forçada, da loucura. O que ele tentou dizer com isso? Que não pensar como ele é ser doido? Ou que o mundo está doido e influencia a adolescente a não saber gostar do doc? Por favor!!! Falta de cultura não´é loucura! E doc ruim, talvez ele seja ruim, não é vitima dos tempos. Ozu e Dreyer se beneficiam de tempos ruins. Hoje eles se destacam com mais facilidade que em 1960. ( Aliás Dreyer era doido ).
 Estou estudando Ian Watt, Locke e Descartes. Metido sou né não? Mas o que importa é que até a época de René e de John, o tempo era ignorado e todos faziam parte de um tudo. Isso se prova na literatura. Um livro era escrito para o sempre. Não porque fosse durar, mas porque tudo era um sempre constante. Ninguém estava interessado em algo passado em 1510 ou em 1610, ninguém queria saber da vida de um Jim Davis ou de um Jean Molin. A vida era o geral, porque tudo era sempre o mesmo para sempre. Dessa forma, se lia sobre Aquiles porque Aquiles continuaria a ser sempre atual. Se escrevia sobre o que era "para sempre" e Aquiles era para sempre. Livros desses tempos falam apenas sobre o que é grande, único, atemporal, geral.
 Com a revolução industrial e a filosofia empírica o tempo nasce. Watt diz algo perfeito: Antes se escrevia para o pastor, agora é para um juri. E o juri quer detalhes, quer crer no que é contado. Detalhes físicos e psicológicos nascem. O relógio e a régua comandam a ação. Jim Davis tem de ser descrito e acreditado. Tudo deve parecer real. Sai-se então do mundo do geral e se chega ao mundo particular. Não se escreve mais um livro sobre o "tudo que há em todos", mas sim sobre "a originalidade de cada um". O caminho do mundo não mais mudou. Cada vez mais nos individuamos em auto-suficiência.
 Digo tudo isso para contar que a loucura em 1600 era aquele que se individualizava e se cria único e fechado em si. A loucura em 2012 é acreditar em ser parte de um cosmos simbólico, delirar e desfazer seu eu em fragmentos multi-facetados. Um homem típico de 1600 na NY de hoje seria trancado. Um homem de 2012 em Roma, 1600, seria enforcado.
 Deu pra sacar?

AS SOBRAS DO PORÃO

Ela estava na chuva sem saber se cruzava a rua. Olhava fixamente. Depois me seguiu até em casa. E eu na dúvida se deixava ela entrar na minha vida. Entrou.
Todo dia Henrique aparece na escola. Sem caderno nem nada ele vem pra comer e tomar banho. O cara já roubou um monte de gente. E está sempre rindo.
Ela aparece agora e noto que engordou. Vive entre lá e cá, sem familia e nem nada. Prestes a ir pra rua. E com um filho que não é como ter uma familia. Eu gosto do corpo dela. E ela enlouquece com seus planos doidos de ficar rica.
Ele diz que é gay mas namora uma menina bonita. Eu sei que ele é gay mas ele fala que é bi. E conta que começou aos dez anos. Com uma menina de 13. Mas ao mesmo tempo ele fazia ballet para estar no meio.
Ela nunca assiste aula e não gosta de ler. Mas mesmo assim fala de livros pra ver como é. Ela não tem dinheiro mas vive indo pra NY. E o tempo todo fica cantando uma frase dos Stones.
Fabio toca numa banda de blues e tem um filho de um casamento antigo. Ele fala da paz e tá sempre agressivo. O tempo escoou e seu baixo é o melhor. Percorre uma estrada longa que vai de lá pra cá. Sem fim.
Mas eu fico brilhando quando vejo os olhos dela que são cor de água. Os pés de dedos finos e o cabelo é uma bagunça. Ela é delicada e grande e uma mistura sem sentido. As roupas são só dela.
Outra tem calça rasgada. E anda aos pulos como se fosse um carneirinho. Tudo nela parece rasgado. Vive na casa de um amigo e de outro amigo e de outro e de outro...E finge gozar na escada.
Fernando cada vez mais se parece com o Grande Lebowski. Então devo dizer que ele conseguiu o que eu queria.
Caraca Velho! Da Bahia pra SP é uma longa viagem! Morando um pouco em cada vila do caminho ( só nas vilas ). Uma longa mudança!
Ela vende droga e parece ser tão bacana. O trabalho não faz o homem, né não? Eu adoro o modo como ela usa os peitos. Tem uma bomba dentro do corpo.
Um encontro num bar terminou numa ida à igreja. Uma dúzia de mulheres o deixam vazio. Ele não é Deus, mas tudo nele são linhas tortas. Cadê meu Big Pink?
Sabrina foi comida pelo namorado na frente da irmã. E pra deixar tudo ok ela aproveitou para dar um trato na irmã também. O que dá vontade a gente faz. Pega e leva. Ela é assim.
Aquela menina é a alegria da rapaziada. De repente ela cresceu. Um dia ela me mostrou sua tattoo. Pra ouvir sua voz encosta a boca no meu ouvido.
Meu amigo veio do centro do Nada. E casado cinco vezes descobiu a alma. Ele tem a certeza de que é negro como Marley. Mas seu pai era espanhol e a mãe italiana.
Molecada do rugby, molecada do funk, molecada do banheiro.
Tijolo a tijolo eu fiz uma torre de cristal. Olho a vida lá embaixo. Sobe aqui menina dos olhos de água. Me mostra de novo seus pés.
Dirigindo parado deu pra ouvir todo o disco.
Sami começou com uma briga. Então foi fazer pintura e descobriu Sinatra. Pulou o muro e foi com um amigo. Por um quarto. Agora ela faz hora na casa de uma amiga. E recolhe cachorros da rua.
Mi era a mais nerd das nerds. Mas escutou um som e foi pro fim do mundo. Montou uma banda no sertão da Paraíba. Todos de preto ela me pede novidades de Patti Smith.
Parada na chuva ela não sabia nada. Eu até pensei em ignorar, mas não. Hoje ela deixa minha mãe louca.
Minha torre de cristal é onde espero encontrar Deus. Enquanto isso olho e canto pra voce, olhos de água. Sobe aqui e vamos esperar juntos.
( Uma modesta saga ao estilo The Basement Tapes, quem escutou entendeu. É o único disco que se compara a Exile em riqueza. )

MANFREDO- LORD BYRON, O HOMEM COMO TENTATIVA DE SER SOBRE-HUMANO

Não poder morrer e não poder mais viver. Saber tudo o que é a vida, e saber que esse saber é nada. Definhar ficando cada vez mais forte. O tédio de viver, a vida como algo que nada tem a oferecer.
Obedecer apenas a si-mesmo. Sem igreja, sem governo e sem ciência. Criar sua igreja pessoal, seu governo próprio e sua ciência. E então descobrir que mesmo seu Eu Não é Seu.
Alma romântica, indestrutível alma atormentada. Ela morreu? Nunca mais. Somos todos, mais de duzentos anos passados, ainda românticos. Com apenas uma diferença, crucial: Somos acomodados. O tédio era combatido com a procura da loucura, do êxtase, da criação. Hoje esperamos que nos vendam essa experiência. Nada criamos. But...
Manfredo é de 1815. Byron fala em forma de teatro de um homem que tem o poder. Ele sabe tudo e invoca espíritos do universo. O que deseja Manfredo? Esquecer. E ninguém pode lhe dar esse esquecimento. Manfredo tem o desespero extremo. Mais que morrer, ele queria nunca ter sido.
Leio a peça e ainda sinto a febre. Ela se passa no alto dos Alpes, em solidão. A morte sempre perto, a dor mais dolorosa, o abismo e a vertigem. Byron. Leio e sinto a febre. A dor da minha adolescência. O tempo em que eu queria tudo, queria saber, queria sentir. A noite, o dia, a febre. Byron me faz sentir essa dor nessa hora e meia em que leio seu texto. Frases que entram em mim e me levam de volta ao lugar de onde nunca estive ausente.
Na Europa, no mundo, Byron foi o rei. Goethe, Napoleão, Beethoven e Hugo. Superstars. Cada época tem suas estrelas. Até em São Paulo, fim do mundo em 1820, jovens queriam ser Byron. E o que era ser Byron? Viver em absoluto limite. Provar venenos e néctar, amor suicida e sexo viciante. Românticos. Keats morreu doente. Shelley se afogou na Itália. Byron morreu na guerra, lutando como voluntário pela liberdade da Grécia. Drogas, sexo e poesia. A galéra dos anos 60 foi a última a tentar ser Byron. Ambiguidade. Hermafroditismo. Satanismo. Loucura. Em 2012 a gente assiste Crepúsculo e acha que Von Trier é o cara. No conforto de uma sala high-tech e com pílulas de "ficar doidão" à mão tentamos matar nosso tédio romântico, acalmar nossa ânsia por saber. 
Manfredo não é Fausto. Fausto faz um pacto com o diabo, Manfredo nem no diabo confia.
Byron tinha fixação por Prometeu, o deus que deu ao homem o fogo da inteligência. O deus que pagou por nós, pois Zeus raivoso o fez passar o resto dos tempos tendo o fígado comido por abutre. Manfredo é Prometeu. O abutre é ele mesmo. Ele se come.
Byron dormia com a própria irmã. Para ele era natural. Platão dizia que somos seres incompletos a procura da alma irmã. Byron teve zilhões de amantes ( apesar de coxo ), homens, mulheres, sexo grupal, hermafroditismo. Mas foi sua irmã seu grande amor. Mas até Byron sentiu culpa. Manfredo é essa culpa.
A linguagem de Byron é musical. Magnífica. Tchaikovski viria a musicar a peça. Schumann também. Em 2002 foi apresentada no teatro São Carlos em Lisboa. É essa tradução que li ( João Almeida Flor ), muito satisfatória.
Manfredo, o homem que não se sentia humano....Que sublime beleza fez-se aqui!