CHARLIE E EU

Eu não choro por Charlie, meu velho cachorro, ter se ido. Choro por mim.
Não tenho a ilusão de pensar que cães são "humanos" ou que pensem e sintam como nós. Não. Eu adoro cães pelo simples fato de eles serem maravilhosamente cachorros.
Eles cheiram mal, são sujos, não têm vergonha, fazem bagunça. São completamente maloqueiros. E é por isso que eu os amo.
Meu Charlie, um meio-boxer totalmente canino, morreu ontem. Acordo hoje e o encontro morto em sua cama. Tinha 11 anos e meio. Era mal-humorado, antipático, preguiçoso e egoísta. Mas eu olho seu corpo frio e penso exatamente isto: sentirei falta de seu cheiro, de sua baba, de sua cachorrozidade.
Chorei, e chorei muito. Por mim. Porque cada vez mais eu percebo que amadurecer é realmente dizer montanhas de Adeus.... Enterrar os mortos.
Caraca Charlie!!!!! Voce podia ter ficado mais um pouco comigo!!!! Que merda!!!!!
O canto dele ficará vazio. O resto é a vida minha que segue...

OS SETE SAMURAIS- AKIRA KUROSAWA, O TEMPO É O ÁRBITRO QUE CONTA

Fazem vinte anos que vi este filme pela primeira vez. Hoje o vejo pela quarta. E penso nessas duas décadas em quantos filmes vieram, causaram sensação e foram esquecidos em seguida. Assisti Os Sete Samurais em 1991 pela primeira vez, numa cópia horrorosa, e mesmo assim o filme me pegou. Feito em 1954, ele causou sensação no Ocidente e lançou várias idéias que logo se fizeram cliché. Até então não se faziam filmes sobre grupos de heróis, não existiam filmes com heróis que eram derrotados ( embora a derrota aqui seja parcial ) e não havia esse tipo de ação vertiginosa. Kurosawa e este filme são até hoje molde de todo filme de ação épica. É estudado quadro a quadro por todo diretor que almeja o ápice.
Em pouco mais de 3 horas, vemos uma aldeia camponesa, no Japão de 1500, ser assaltada por bando de bandidos ferozes. Cansados de sofrer, esses camponeses contratam samurais para os defender. São os sete que se unem e salvam a aldeia. Mas, é claro, o filme é muito mais.
Samurais já se vêem então como raça em extinção. Seu tempo já é passado e eles trabalham por comida. Pior, os camponeses desconfiam deles, não gostam desses assassinos profissionais e nada os une de fato. Apesar do filme ser ágil, leve, às vezes até mesmo cômico, a sombra da tragédia e da solidão paira sobre os samurais. Eles não fazem parte da comunidade.
As cenas de ação são bastante violentas e nada possuem de "heróico". Todas as mortes são feias, cruéis. As pessoas morrem como ratos, aos berros e em agonia. Kurosawa é famoso por ser um mestre em ação, por saber como ninguém usar várias pessoas em ação coordenada, mas sua violência é sempre sem glamour, árida e desajeitada. Kurosawa realmente odeia a guerra.
Cada samurai tem sua personalidade muito bem definida, mas este épico apresenta um show de Toshiro Mifune. Ele faz um samurai palhaço, bruto, sujo, sempre aos berros, com gestos simiescos. É uma criação de coragem, uma criação de originalidade plena. Não bastassem seus outros filmes, este garante o lugar de Mifune entre os quatro ou cinco maiores atores do cinema. Ele brilha e encanta sem jamais parecer querer agradar. Coisa dos deuses.
A mais lembrada cena é a longa sequencia final, feita na chuva e na lama. Ninguém filmava a chuva como Kurosawa e aqui há sua prova. Um diretor menos genial filmaria tudo do alto, colocaria música de ação e faria cortes de plano e contra-plano. Kurosawa não opta pelo fácil nunca. O som é o ruído de galope de cavalos e gritos. A ação é filmada a altura do chão. O que vemos são patas que correm espirrando lama, ouvimos gritos e berros e temos então a sensação de estar na luta em si. Os cavalos correm de lá pra cá, nossa visão é detrás do abrigo, a lama espirra e a chuva escorre. O que ocorre é confusão, mortes feias e o medo em forma de cinema.
Mas o filme não é só isso. Há a procura e escolha dos sete samurais, a aldeia sendo treinada, a floresta e seus riachos, e o final, um dos mais conhecidos e amargos do cinema. Os samurais percebem nada ter ganho, nada terem encontrado e pior, não terem mais lugar no mundo de trabalho e paz do futuro.
Kurosawa, mestre maior ( não consigo pensar em diretor maior, talvez apenas Ford e Hitchcock lhe cheguem perto ), jamais filma fácil. Cada tomada é pensada em seu melhor modo e nunca no mais simples. Mas atenção: nada é feito como exibicionismo. Se toda cena tem seu esmero e seu desafio, tudo gira ao redor da história e jamais ao redor do efeito vazio. A história anda, avança, somos levados para dentro daquele Japão e colocados ao lado daqueles personagens. Esquecemos que há um diretor-gênio por detrás de tudo aquilo. Ele não é o filme, ele faz o filme.
O tempo julga com justiça toda arte. Os Sete Samurais está sempre em catálogo. Garotos de 15 anos o descobrem em 2011. Prêmio maior não existe.

SPINOZA E A ECOLOGIA

Por sermos temporais, individualmente pessoais e conscientes, tendemos a imaginar Deus como um ser no tempo, um ser individual e um ser consciente. E se não cremos Nele, tendemos a crer ser impossível existir um ser que seja atemporal, não-individuo e não-consciente. Nossa mente sómente vê aquilo que por ela é percebido, tudo o que percebemos se dá em sua forma. ( Como a mente do computador que só entende a linguagem binária ).
Na ignorância, os sentidos nos mantém inconscientes de nossa ignorancia. Na ciência, o intelecto nos torna conscientes de nossa ignorancia. Pela sabedoria o intelecto nos livra da escravidão da ignorancia.
Nada na natureza é feito duas vezes. Toda manifestação da natureza é única, pois a natureza/Deus é infinita. Integrar-se ao todo cósmico, essa é a missão de cada um de nós. Mas essa integração não é feita ao modo oriental ( em que a integração se dá pela despersonalização ), aqui a integração se faz sem a perda da individualidade. Não devemos perder nossa individualidade por ser ela obra única. Nada na natureza pode ser desperdício.
Compreender é estar livre ( frase tão cara aos freudianos ), ser livre é ser livre da ignorancia. Conhecer a verdade é estar livre. E para ser livre é preciso estar liberto do que é ignorado.
Ser livre é ser livre do medo e do ódio. Toda prisão é medo e é ódio. Ver a vida como processo eterno. O que faz parte da vida é eterno no processo eterno da vida, na infinita variedade da natureza infinita e incriada.
Ser aliado da vida. E saber que Deus não é a natureza ( pensamento oriental ) mas está com a natureza. Deus não está em tudo, não é tudo. Deus está ao lado de tudo. Enorme diferença: se Ele está ao lado Ele não é tudo. Cabe a nós o livre arbítrio de ver Deus nas coisas e não as coisas em Deus.
A alma é uma potência que ansia por agir. A alma é plena na ação a que é naturalmente inclinada. A potência é a alma. Triste é tudo aquilo que restringe a força da alma. Alegre é o que a afirma em sua potência. Humildade é a ideia de nossa fraquesa. Amor-próprio é a ideia de nosso poder.
Cada objeto desperta o sentimento que lhe é natural. Assim, o amor que lá é despertado não será o mesmo amor que ali é despertado. Cada amor é amor por aquele objeto/ser. Nenhum amor pode ser igual a um outro amor. Como também cada tristeza, desejo ou ódio é peculiar a cada objeto entristecedor, desejável e odioso. Há tantas espécies de alegrias e tristezas como há coisas no mundo.
Existe em toda alma a potência para governar toda paixão. O desejo de cada um é diferente do desejo do outro. A alegria de cada um é diferente da alegria do outro. A tristeza de cada um é diferente da tristeza do outro.
Ao estar nas mãos das paixões o homem deixa de contar com seu livre arbitrio e passa a contar com a sorte. A paixão leva o homem ao acaso, onde o melhor pode vir a fazer o pior. Não existe paixão na natureza, não existe paixão em Deus. Nada na natureza é fora do certo, pois nada é feito com paixão. A natureza desconhece o que seja acaso/sorte. As coisas são em sua certeza e em sua clareza. Quando o homem reclama da natureza ele reclama de sua paixão. A natureza não o atrapalha, não o castiga, não lhe faz favores ou sortes. O homem é que a enxerga assim.
Portanto, nada na natureza é bom e nada na natureza é mau. Mas nela há a perfeição, perfeição sendo a livre manifestação de seu poder, de sua potência.
Tudo que postei acima são muito breves relatos de Spinoza. Uns poucos grãos de seu pensamento. Mas que pensamento! Qualquer dessas sentenças pode ser desenvolvida ao infinito e é isso que define um pensamento correto: ele é potente, leva a novos pensamentos que não o negam, que antes o fazem crescer.
Pego por exemplo o último que escrevi: a livre manifestação de uma potência é o bom na natureza. Um vulcão não é bom ou mau para nós. Não é bom ou mau por sua consequencia. Não é útil ou destrutivo. Não é necessário ou supérfluo. Mas se for um vulcão em plena e livre potência de seu poder "vulcânico", será uma potência boa. Vai daí que talvez o homem seja muitas vezes ( por paixão ) um bloqueador de potências. Um rio que deixa de ser rio, uma ave que se faz cativa ou um andarilho que é impedido de andar. Por inveja, cobiça, ganancia, fazemos de uma floresta um deserto ou de uma criança naturalmente sã uma neurótica. Potências que são bloqueadas para ter sua energia usada em outro canal: eis o mal. Eis a neurose.
A atualidade de Spinoza é surpreendente.

ANTONIO E CLEÓPATRA- SHAKESPEARE, RETRATO DE UMA PAIXÃO?

Antônio foi o último herói. Ele representa aquele tipo de lider que se impõe pelo carisma e pela palavra. Sua linhagem nasce com Alexandre, passa por Julio César e encontra em sua alma a última pegada desse líder hercúleo. Depois de Antônio, como bem diz Harold Bloom, o que vemos são burocratas e gerentes de reis.
Quando a peça começa, Antônio, já em meia-idade, está perdido no Egito, desacreditado, tornado escravo por amor a rainha Cleópatra. Roma se volta contra ele. Todos os cinco atos representam a decadência desse outrora dono de meio-mundo, agora feito animal de estimação, homem que hesita, teme, se desconhece. Vemos sua despersonalização. Antônio sabe não ser mais Antônio.
O texto é surpreendente. Onde esperávamos um drama pesado, lemos comédia, onde achávamos encontrar um casal louco de amor, encontramos um casal entediado. Onde a paixão de Antônio? Onde o amor de Cleópatra? Genialidade do bardo inglês: suas peças são inesgotáveis. Admitem múltiplas leituras. Antônio ama a sí-mesmo via Cleópatra. Embaralha-se nesse amor e quando acuado, precisando voltar a ser o herói, não consegue mais se ver como fora um dia. Se perde e mesmo em seu suicídio demonstra incompetência. Antônio beira o patético.
Cleópatra apaixona-se pelo papel que desempenha na história. E nela o texto se faz pós-moderno. Ela tem consciência de ser ficção, leva o papel adiante por saber ser esse seu destino: atuar no drama de sua vida. Suas falas sempre são auto-conscientes, parecem distanciadas, quase nascem ensaiadas. Mas a peça é ainda mais. Vários personagens vêm e vão, são todos bem definidos, íntegros, não-gratuitos. E vemos em Otávio o futuro do mundo.
Shakespeare acreditava no amor? Impossível saber. Mas é flagrante que aqui é o amor que destrói o homem, que faz de um herói um pateta, e leva uma mulher ao vazio. Shakespeare é sempre realista, o amor infantiliza. Mas o que lhes resta mais?
Gregos sabiam que o amor era uma falha, que amar aquele com quem se deita era ser vulnerável. Sexo sem amor, sempre. Amor aos filhos e aos amigos, nunca ao desejavel. Antônio, romano, falha nisso. Deixa de ser soldado, se feminiliza. Shakespeare exibe por cinco atos o suicidio desse homem. E no magistral ato final, o suicidio de Cleópatra, que não é uma derrota, antes uma afirmação de independencia.
Ler Shakespeare é recordar sempre o quanto podemos ser grandes. Esta peça é um milagre.
PS: Harold Bloom insiste em que só podemos apreciar plenamente o bardo no palco. Suas falas são maravilhosas se lidas, mas são nascidas para a fala. Weeellll.... ele fala da glória de ter visto a jovem Helen Mirren como Cleópatra, a melhor rainha do Egito dos palcos. Mas aqui, em SP, ver isso onde?

GINGER ROGERS/ JAMES WHALE/ OTTO PREMINGER/ RIO/ XAVIER BEAUVOIS

MÃE POR ACASO de Garson Kanin com Ginger Rogers e David Niven


Como ator coadjuvante Niven é excelente, mas não se segura como ator romântico central. Ginger está esperta e sexy como sempre, mas Niven não lhe faz contraponto adequado, além do que, Garson Kanin sempre foi bom escritor, mas nunca bom diretor. Um filme que tinha tudo para brilhar, decepciona. Nota 4.


HOMENS E DEUSES de Xavier Beauvois com Lambert Wilson e Michel Lonsdale


Primeiro uma explicação: eu não escrevo sobre os filmes que desejo escrever aleatoriamente. Escrevo sobre os filmes que assisti naquele período. Portanto, são estes os filmes que vi nos últimos dez dias. Este é um filme que irritará os preconceituosos ( parece ser o caso da Veja, que o taxou de anti-islã ). Bobagem! É apenas um filme que admira a fé e a coragem de religiosos católicos que não abandonam região islâmica onde correm perigo. A França tem essa tradição: é país de imenso ateísmo e ao mesmo tempo é berço do catolicismo mais puro. Beauvois e Bruno Dumont tentam ser os Bresson/ Rhomer de agora. Não conseguem. Digamos que este é um filme simples. E bastante sincero, portanto, corajoso. Só isso. Nota 5.


O RETORNO DE TOPPER de Roy del Ruth com Roland Young, Joan Blondell e Carole Landis


Moça é assassinada e seu fantasma é ajudado por Topper, o senhor simpático e simplório que consegue ver as almas do além. Comédia dos anos 30: ou seja, sem medo de ser feliz. É a terceira continuação do sucesso de 1937. Longe de ser tão divertida quanto a original, mesmo assim é um passatempo agradável. Nota 6.


THE OLD DARK HOUSE de James Whale com Melvyn Douglas, Charles Laughton, Boris Karloff, Gloria Stuart


Que grande diretor era Whale!!!! Para quem não se lembra, é ele o assunto de Deuses e Monstros, o belo filme de Bill Condon. Homossexual assumido e nada discreto, foi ele o criador do Frankenstein original. Aqui ele conta a história de grupo de viajantes que se abriga em casa misteriosa. Lá vivem um senhor misterioso ( e obviamente gay ) uma velhinha hilária e tétrica ( um personagem genial ) e trancafiado num porão um louco piromaníaco ( outra criação genial ). O filme é assustador e ao mesmo tempo é assumidamente hilário. Whale subverte tudo, seu cinema estava antecipando os anos 70. Lembra De Palma e lembra Mel Brooks. Gloria Stuart está sempre em negligé branco, longa, magra e sexy, e Laughton faz um balofo e alegre jovem playboy. O filme, todo feito em casa escura, suja e úmida, é soturno e ao mesmo tempo animado, vivo, alegre, pleno em criação. Para amantes de cinema é uma festa. Nota 9.


A CASA DOS MAUS ESPÍRITOS de William Castle com Vincent Price


Castle era o picareta rei dos drive-in ( cinemas para ver filmes dentro do carro ). Isto é uma bobagem sem clima, sobre festa em casa assustadora. Foi refilmado em 2000. Uma chatice. Zero.


O GATO PRETO de Edgard G. Ulmer com Bela Lugosi e Boris Karloff


Em termos de cortes e angulos de filmagem é de absoluta modernidade. Ulmer, recém vindo da Alemanha, traz o tipo de cinema de Lang e Murnau consigo. Décors cheios de arquitetura modernista ( à Bauhaus ) e figurinos futuristas. Mas há tanto exibicionismo aqui, o clima é tão opressivo ( Nazi ) que assistir a este filme é um quase sacrificio. Nota 1.


CZARINA de Otto Preminger com Tallulah Bankhead, Anne Baxter e Charles Coburn


Lubistch produziu e não dirigiu. Uma pena. Com Lubistch o filme ( sobre a sedução que Catarina, a Grande, da Russia, impõe a tolo soldado patriota ) seria leve e borbulhante. Com Preminger ele é travado. Os primeiros minutos prometem um filme delicoso, graças a excelencia dos diálogos, mas ele emperra nas cenas de sedução. O jovem soldado é feito por ator inexpressivo e chega a dar raiva sua falta de tato. Tallulah, mito do teatro americano, está ok. Preminger foi excelente em policiais e em dramas de denúncia, em comédia lhe falta convicção. Nota 4.


RIO de Carlos Saldanha


Longe da poesia sublime de Wall.e ou da riquesa de Ratatouille, este é mais um bom desenho desta era de bons desenhos. Ter preconceito contra cartoons hoje é não querer ver o óbvio: eles são mais sérios que 99.99999% dos filmes pseudo adultos. Falam do que importa e não têm medo de tentar. São pop e são sinceros. Em 2100, se alguém ainda estudar cinema, os anos 2000 serão lembrados como era de desenhos. Divirta-se!!!!! Nota 7.

LOW......DAVID BOWIE....ENO....IN BERLIN,1977

TODO PALHAÇO DEVERIA SABER. Low é o melhor disco da história ( do pop ).
TODO PALHAÇO DEVERIA SABER. lOW NÃO É POP. nem é rock. é outra coisa.
Cada faixa é um MANIFESTO. poesia sem poética e música. QUE MÚSICA?
PLÁSTICA.plástica. o som é como inumana emoção. QUE EMOÇÃO?
( TODO PALHAÇO SABE ( OU NÃO?): low inaugura toooooooodaaaaaaaaa a música feita desde então: toooooooodaaaaaaaa banda pretensamente moderna bebe neste disco. TODAS ELAS.
MAS DE ONDE BEBE LOW? bebe de roxy e de kraftwerk e de certos sons da américa ( suicide?). MAS LOW É MELHOR QUE SEUS PAIS? ALGUM PALHAÇO SABE?
eno disse a bowie: FAÇA MÚSICA QUE NÃO EXPRESSE NADA. FAÇA LETRA QUE NADA TRADUZA EM EMOÇÃO. mais que isso: pegue suas letras e corte frase por frase: mais que isso:embaralhe essas tiras e as cante. mais que isso.
BATERIA QUE É COMO GUITARRA E GUITARRA QUE É PERCUSSIVA.
ToDO palHAÇo sABe.
LOW É.

David Bowie - Speed of life



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A ROSA SECRETA de WILLIAM BUTLER YEATS ou MINHA DECISÃO DE ESTUDAR INGLÊS

No Brasil não há um só livro de Yeats em catálogo. O que levará incautos a pensar que Yeats é menos importante que Pound ou Eliot. Não. Yeats está para a poesia em inglês assim como Pessoa para a em português, ele é popular e erudito, central. Mas então porque em Portugal tudo de Yeats está em catálogo e nada nas terras tupis? Porque tive de comprar todos os livros em edições portuguesas, preço em euros, e não em edições brasileiras, com boas traduções daqui? Why?
Não sei. A última edição de Yeats é uma coletânea de 1991 !!! Em Portugal em 2010 tudo dele foi lançado. Penso que os portugas talvez compreendam melhor a poesia de Yeats. Coisa de quem vive nos cantos da Europa. Portugal, assim como a Irlanda, tem aquela sensação de viver entre pedras, ao vento, numa terra que ninguém desejou, em meio ao nada e nas bordas do vazio. E não à toa um dos contos deste livro chama-se "ONDE NADA EXISTE DEUS EXISTE".
Sim. É um livro de contos. Yeats recolheu vários contos folclóricos irlandeses e os publicou em 1900. Contos que falam de heróis e de magia. Recolher essa tradição, dar-lhe nova vida, foi a forma do poeta lutar contra a opressão inglesa e contra o racionalismo estéril do seu tempo. Na nota introdutória fala Yeats da maldição que foi para ele ter lido racionalistas ingleses na adolescencia e em como toda a sua vida foi uma longa estrada de retorno à religião.
Estrada de Yeats que é a minha estrada. Sou um homem profundamente religioso, mas não sou um homem de dogmas ou de igrejas. Nomear Deus, dar-lhe voz é para mim negá-lo.
Não consigo entender como alguém pode viver vendo na vida apenas células e luta evolutiva. A verdade não é apenas isso. A verdade é também isso. Mas é muito mais. Mas se voce quiser ser apenas um monte de sangue e ossos, é seu direito. Eu não sou. E entenda, dizendo isso não digo que Deus exista ou não, digo tão somente que a ideia de Deus existe em minha vida diária. Penso em anjos e em deuses: isso me basta. Não me importa se eles são "reais". São tão "reais" quanto são o amor ou o ódio. Os sinto. Me são dados. Vivem em mim.
Quero também dizer que meu ateísmo deve muito a negação de meu pai. Eu sempre precisei ser o oposto de tudo o que ele foi. Se ele era português eu odiaria Portugal e se ele acreditava em Deus ( apesar de odiar padres ) eu não iria crer. Desde de sua morte estou me sentindo livre para experimentar quem sou. Mais que isso: PERDI A VERGONHA DE SER FILHO DE MEU PAI. Me assumo como "purtuguesinho", filho de camponeses, católico, desconfiado e macho. Pedra e secura.
Quero também falar que desisto de estudar francês. Que ficar quatro anos falando de Baudelaire e de Rimbaud não dá!!! Estou cheio dessa coisa tão USP de acreditar que tudo é Merleau-Ponty, Levi-Strauss e Saussure. Em literatura só se fala de Valery, Flaubert e Mallarmée. Caraca!!!!! E Blake? Wordsworth? Se ignora Whitman, se ignora Keats, se ignora Shelley, se ignora Stevens. Chega de francês!!!!!! Eu adoro Yeats, Eliot, Henry James e Joyce. Apesar de Proust e de Stendhal, é da cadência de Shakespeare que sou par. Adeus França, é a língua de Sterne e de Wilde que abraçarei.
O livro de Yeats, creia-me, me fez ver tudo isso. E é para isso que existe a voz poética ( mesmo em prosa ).

UM PRESENTE PARA MEUS AMIGOS

Me recordo de ser muito, muito jovem, e de ler em algum jornal as lembranças de Paulo Francis sobre seus tempos em Londres. O privilégio de ter estado lá, no auge do teatro inglês. Mais tarde em minha vida li a bio de Peter Brook e de Olivier e depois os comentários de Tynan.
Bem meus amigos, aí estão os quatro monstros sagrados da lingua inglesa. Olivier, Gielgud, Richardson e Redgrave. Olivier era o mais versátil, Gielgud o de melhor voz, Richardson o menos pretensioso e Redgrave o mais elegante. Podem olhar e se extasiar com Olivier em Hamlet, Gielgud recitando Shakespeare, Richardson com Keats, e meu momento favorito em atuação masculina no cinema: Michael Redgrave em The Browning Version. Nosso tempo de vulgaridade e de efemeridade tem esse consolo: momentos de gênio preservados para sempre ( mas haverá quem os possa apreciar nesse "para sempre"? ).
Acredite-me, voce é um privilegiado por poder ver estes quatro momentos. Aprecie sem moderação nenhuma.
Ps: Se esses são para Francis os quatro gigantes, ele também escrevia naquele dia distante sobre os peso leve. Atores britânicos de grande talento, mas não geniais: Alec Guiness, James Mason, Rex Harrison e Peter O"Toole. Videos deles em breve.

The Browning Version 1951 The Gift



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MUSICA

Até o inicio do século XIX música não era mais do que a TV é hoje. Toda música. De Monteverdi a Bach, passando por Mozart e Haendel, a música era considerada apenas uma arte utilitária, servia para missas, festas, jantares e para o amor. Nada mais que isso. A literatura e a pintura eram as artes nobres, verdadeiras, e a arquitetura vinha em seguida.
Isso começa a mudar em fins do século XVIII, com a criação da sinfonia, por Haydn. A marca da ambição mundana, do não-utilitarismo começa a aparecer. Seria preciso um deus para dar o passo decisivo. Beethoven.
Beethoven vem como titã. Ele brada sua fé em si-mesmo. A partir dali, o artista produz arte não mais para Deus ou para um rei, ele produz para seu próprio deleite. Mais: ele necessita fazer o que faz. Seu ser clama por expressão. Digamos a verdade: Beethoven, sózinho, mudou o mundo.
Ele cobra para ser ouvido, e ao mesmo tempo, ele tem desprezo pelos burgueses que o aclamam. A música passa a significar tudo: alma, ritmo da vida, sentimento abstrato, potência, mistério. Beethoven não conta histórias, não traduz funções, faz música, mais que isso: faz arte. Arte.
Sua revolução foi tão gigantesca, que no final do seu século, toda arte passa a ser considerada um desejo de ser música. Dessa forma, a poesia vira música, a prosa tentativa de fazer música em narrativa, a pintura um ritmo em pinceladas, a escultura harmonia musical em formas sólidas. Os artistas centrais do mundo, que antes de Beethoven eram pintores como Michelangelo ou Velazquez e escritores como Cervantes e Montaigne, passam a ser compositores. Wagner é o artista central do século e os outros se chamam Brahms, Verdi e Mahler. Com Beethoven arte se torna sinônimo de música. E creia, não era assim.
Seria como se hoje, em 2011, surgisse alguém que transformasse a dança ou o teatro em arte central. Mais que isso, fizesse com que a música, a literatura, se tornassem menores perante a dança ou o teatro.
A TV pensou ( e só pensou ) em ocupar esse espaço. As HQs ambicionaram isso. Por toda a década de 60 havia quem pensasse que o cinema era o centro de todas as artes. Mas não. Música, literatura e artes plásticas continuam em suas posições privilegiadas desde 1800. Arte verdadeira é livro, partitura e quadro. A TV, a HQ e o cinema não criaram seu Beethoven.
Porém, falemos a verdade: a música também não conseguiu criar outro Beethoven....
Dar a uma arte modesta estatuto de "A maior das artes", e fazer com que nessa esteira não só o futuro da música, mas a própria história musical fosse reavaliada ( Bach e Mozart só se tornam Bach e Mozart à luz de Beethoven, após a instituição da música como arte central ). Um deus que abriu caminho para seus descendentes, mas que também iluminou seus antepassados. Eis o gênio de Bonn.
Ps: meu compositor favorito é Mozart. E os outros são Debussy e Ravel. Beethoven, que foi o maior, é contrário ao meu temperamento.

A IMPORTÂNCIA DE SER PRUDENTE- OSCAR WILDE

Interessante observar que o Wilde do Brasil e dos países latinos não é o mesmo da Inglaterra e dos EUA. Por aqui Oscar Wilde é o gótico que escreveu Dorian Gray e o sofredor do Cárcere de Reading. Onde se fala inglês Oscar Wilde significa teatro e humor, acima de tudo humor.
Após Shakespeare é ele o autor mais representado. A dificuldade que apresenta em ser traduzido ( seu humor é baseado em trocadilhos e sotaques ) não é o que explica a raridade de Wilde em palcos tupis. A falta de atores Wildeanianos é o principal motivo. Temos excelentes atores para Tennessee Willians, para Lorca ou Pirandello; não os temos para Bernard Shaw, para Pinter e principalmente para Wilde. O sabor da palavra, o gosto pelo modo de pronunciar, a riqueza de dialogar sobre coisa nenhuma, esse rico teatro de Wilde não é aquilo que mais agrada ou mais dá possibilidades a nossos atores. Somos mais pés-no-chão, Nelsonrodrigueanos, afrancesados Molierineanos e muito noveleiros Diasgomesneiros.
Não temos Michael Redgrave.
A Importância de ser Prudente é sobre nada. Dois dandys e sua ida ao campo. Se fingem ser o que não são para poder casar com duas mocinhas. Fingem se chamar Prudente. O tema é apenas esse, e eu iria trair a memória de Oscar Wilde se começasse a falar do que significa tal enredo. Porque apesar de percebermos todo o tempo que a peça é mais do que é, que tudo aquilo é uma crítica àquilo que tanto glorifica, na verdade o que Wilde mais desejava era mostrar que a arte/vida era puro esteticismo, que a Londres de 1890 era centro de luxo em decadencia e que o sentido de tudo aquilo estava na frase que nada parece dizer e muito subentende. O epigrama Wildeano.
Milhões de páginas podem ser escritas com as frases de efeito de Wilde. Todas "absurdas", infaliveis, agudas. Engenhosamente feitas para não ir de encontro ao senso comum. Dessa forma tudo é dito ao contrário: mentiras mantém a honra de um homem e faltar ao trabalho dá dignidade à vida. Frases que lidas numa terceira vez começam a se mostrar muito mais sérias do que aparentavam ser. Debaixo de todo aquele riso ebuliente do dandy Wilde começa a surgir um leve gosto de desencanto.
O mundo de 2011 não pode ter mais um Oscar Wilde porque produzimos tantos falsos Wildes nas décadas passadas que a forma se desgastou. O humor é hoje mais duro, cinico, violento, explicitamente politico. Oscar Wilde adoraria fazer stand-up ( para se exibir ), mas odiaria o humor do stand-up, o público do stand-up e o próprio nome: stand-up. Vulgar.
Assim como é a arte de Beardsley e de Whistler, os escritos de Oscar Wilde estão presos aquele momento específico. Uma nação em seu momento de esbanjamento, um império que sabia ( com apreensão ) iniciar então sua inexorável descida, decadência "de luxe", empobrecimento em clima de calma e volúpia.
Todos sabem como tudo terminou. Wilde na prisão e a Inglaterra esfacelada em duas guerras. Até hoje, e para sempre, aquela ilha está condenada a chorar e festejar aqueles últimos anos de liderança. Oscar Wilde é um desses últimos suspiros.