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OTTO MARIA CARPEAUX, PAULO FRANCIS, MOZART, NELSON FREIRE, COWARD E BEBÊS

   Alvíssaras! Hallellujas!!!! O maior dos pianistas toca em São Paulo a melhor das músicas! O inigualável Nelson Freire toca o concerto número vinte para piano e orquestra, de Mozart. Na sala São Paulo. Ouvir o concerto 20 de Mozart justifica toda uma vida. O gênio da Austria antecipa o gênio de Bonn. É música absoluta, existencial. Tudo o que se pode expressar de belo e de terrível em arte é dito nesse concerto. Que se inicia com os mais soberbos acordes. Já escrevi sobre esse concerto anos atrás. Digite Mozart aí ao lado e leia. Mas preciso dizer:  ninguém que diga amar a música pode ser levado a sério se não houver vivenciado a honra de escutar esta peça. Se minha vida fosse mais elevada ela seria digna de um acorde desse concerto. Recordo que ao o escutar pela primeira vez, em 1979, pensei: "Deus existe!" Pois essa música nos dá a certeza de que um punhado de neurônios e de proteína não poderia criar tanta emoção. Se Deus não existe, então Mozart criou aqui a Sua melodia. Justifique a sua vida, vá ver e ouvir.
   Sairam dois volumes com textos de Otto Maria Carpeaux. O famoso OMC. Carpeaux civilizou esta taba. Escrevendo em jornal e revista, ele formou o gosto de três gerações. Otto dá a sensação de ter lido tudo, visto tudo e escutado o que vale a pena escutar. Seu "História da Música Ocidental" é tudo aquilo que se deve ler para se iniciar nos segredos da grande música. Nestes volumes ele fala de escritores, filósofos, pintores, amigos, e outras coisas mais. Se voce quer dar um salto de qualidade em sua vida leia os dois. Foi OMC quem, com seus verbetes na velha Barsa, me abriu ouvidos para compositores e olhos para certos autores. O que me leva a pensar o seguinte: as pessoas ainda entram em enciclopédias, mesmo virtuais, para conhecer aquilo que não conhecem? Procurar quem são os maiores autores ou os grandes pintores? Ou precisa um professor, um amigo, ou pior, uma noticia de jornal, para que o garoto ouça o nome de alguém que ele já deveria ter conhecido por iniciativa própria. OMC vai ajudar muito esse garoto. Mas acho que quem irá lê-lo é aquele que já conhece aquilo sobre o que ele fala. Pena.
   Publicaram um volume com colunas de Paulo Francis. Aconselhável para aqueles que entenderam a frase de Scott Fitzgerald que Pondé citou: "Inteligência é a capacidade de ter duas ideias divergentes ao mesmo tempo. E mantê-las." Francis era o máximo da inteligência. Já falei e repito, sem ele eu jamais teria sabido apreciar os atores ingleses ( Rex Harrison, Gielgud, Redgrave e Olivier ), ou autores como Waugh e Huxley. A única coisa que me irritava nele era sua idolatria a Wagner. Fora isso ele era perfeito.
   Escrevi por aí que SP tinha a alegria de ter peça de Noel Coward em cartaz. Esqueça. Transformaram o mais fino dos ingleses em um tipo de "Sai de Baixo" de segunda. Harold Pinter não teve melhor destino. Seu beco sem saída, sua acidez, se transformaram em teatrinho de raivinha. Um saco.
   Mas "Pina" de Wim Wenders ainda está em cartaz. Espero que voce mereça ter esse deslumbramento.
   Leio na Veja que as pessoas viverão até os 100.
   O que me irrita na esquerda é sua cegueira, e o que me irrita na direita é seu otimismo cor de rosa. Vamos viver até os 100? Quem vai pagar a conta? Os jovens irão ter menores salários? Ou as aposentadorias começarão aos 85? God!!! Um mundo cheio de velhos de 90 se comportando como adolescentes!!!! Pior, uma adolescência que irá dos 10 aos 90 !!!!! Bandas de rock com 100 anos de estrada e "Se Beber não Case" parte 38.... Socorro!!!!!
   Meu professor fala que o feto é marcado para toda a vida por tudo aquilo que a mãe lhe fala e pelo som ambiente. Não tenho culpa de ter sido um feto vivendo no paraíso. Cantos de pássaros, galos de noite e Sinatra que meu pai ouvia de manhã. A depressão que sinto às vezes decorre de ter conhecido o paraíso e de hoje ter de me conformar com o apenas "legalzinho". Se hoje nossos bebês estão conhecendo a vida via Funk, carros que buzinam e anúncios barulhentos na TV; eu recebi as boas vindas ao som de conversas na sala, vozes de crianças na rua e Beatles mais Roberto Carlos no rádio de minha mãe.
   Não consigo imaginar paraíso melhor.

PRAZERES SECRETOS

Uma coisa que é só sua e de mais ninguém. A revolução da mente humana se deu quando o homem se viu, pela primeira vez, como individuo único. Ele percebeu que só ele vivia aquela vida, só ele sentia o que ele sentia e só ele sabia o que ele sabia. Mais que tudo, ele possuia sua vida e com ela seus segredos e mistérios.
Todos, ou quase todos, viveram um primeiro amor. E é nesse amor envergonhado e recolhido que pela primeira vez descobrimos o prazer de se ter um segredo. Nossos pais não podem saber disso. É aí que damos o salto, ficamos á parte da familia, temos algo que é só nosso, o amor. E o acalentamos. O deixamos crescer dentro de nós. Torna-se sagrado. Entenda, em sociedades arcaicas isso não existe. Tudo ocorre ás claras, não há segredo e individuação, voce é sua comunidade, voce é tudo.
Ontem, conversando com um amigo, ele me conta da "vida compartilhada" de agora. Tudo que voce faz deve ser dividido com os outros. Voce só existe para eles.
Ora, isso é antigo, muito antigo. E é irônico que a tecnologia nos leve cada vez mais para hábitos de um remoto passado. A certeza de que uma coisa só tem valor se for "da comunidade, da rede". Seja um show, uma festa ou uma viagem, ela só é válida e "importante" se for dividida e de preferência bastante compartilhada. A pessoa abre mão da experiência pessoal, e a transforma sempre num tipo de reportagem para todos.
O caminho que temos, cerebral, sempre foi o de sentir, absorver, guardar, elaborar e memorizar. Depois vinha a transmissão. Agora o trajeto é sentir, elaborar e transmitir. Não há tempo de absorver, nada se guarda e a memória se encurta. A experiência é logo expelida para a rede e prontamente esquecida. O cérebro se esvazia e fica ávido por mais uma experiência ( cérebros abominam o vazio ), e essa nova experiência logo vem...e outra e outra e outra.... O amadurecimento se torna impossível. A vida interior se faz rala.
Penso então nos Beatles. Sim, nos Beatles. Eles tiveram a sorte de passar anos à margem do mundo. Tocando, compondo, se afirmando. Elaborando toda uma carreira dentro de si. Pegando aquele som tão "cover", Buddy Holly e Everly Brothers, e fazendo suas tentativas de originalidade. Até que anos mais tarde explodissem e se tornassem mundiais. O que seria deles hoje? Em 1960 já teriam videos na rede e faixas para download. Sentiriam desde o inicio o "gosto" da exposição. E pior, seu espirito se atiraria para fora, para o que os outros esperam. Amadurecimento, recolhimento, espera, jamais.
Outro exemplo. Ingmar Bergman.
Bergman passou dez anos fazendo um filme por ano. E nada acontecia fora da Suécia. Ninguém o conhecia. Então o que ele podia fazer? Podia aprender. Com calma, sem se sentir exposto, dentro de si, ele foi desenvolvendo um estilo pessoal. Sem pressa, filme a filme. Quando estourou em 1956 já tinha firmeza, certeza, calejamento. Estava pronto. O que seria dele hoje? Teria desde "PORTO", em 1946, seu fã-clube. E normalmente o que ele faria? Se conformaria em ser para sempre o ídolo desse fã. Na rede, precocemente ele se acreditaria pronto. Faria fé do hype criado a seu redor.
Prazeres secretos. Alguém ainda os tem?
Existe algum segredo? O prazer de comprar um disco do Velvet Underground no Brasil em 1981. E saber que nenhum amigo conhecia essa banda. E então, amar essa banda em solidão. E chegar a crer que ela é sua. Mais ainda, que seu amor a mantém viva. Cuidar desse amor que é seu e portanto se TORNA VOCE. Esse é o aprendizado da individuação.

BEATLES E ROLLING STONES, A GENÉTICA DO POP ( BASEADO EM TESE DE KEN EMERSON, ENCICLOPÉDIA DO ROCK, ROLLING STONE )

   Os Beatles nasceram pobres. Tiveram uma educação truncada e começaram a ralar desde cedo. Seu objetivo era a sobrevivência. Trabalhar e ser aceito.
   Os Stones que contam ( Jagger, Keith e Brian ), cresceram no seio da ascendente classe média inglesa dos anos 50. Estudaram em escolas de arte ( Mick se formou em economia ). Seu objetivo era se exibir. Ser famoso e incomodar.
   Essas são as duas atitudes opostas que marcaram todo o pop feito desde então.
   A atitude Beatle, em que a banda ama seus fãs, e em que a ingenuidade idealista permeia tudo o que é feito. Os Beatles, mesmo quando de vanguarda, sempre procuram se comunicar com seu fã. E fundam a Apple em pensamento de extrema naive. Uma gravadora de amigos para os amigos.
   Os Stones sempre foram indiferentes a seus fãs. Eles desejam ser amados, nunca nos amam. Nada neles é ingênuo, tudo é calculado. A Rolling Stone Records existe apenas para administrar a carreira do grupo. A atitude deles é sempre a de "vejam como sou diferente".
   Ingenuamente Paul acreditou nos Beatles, ingenuamente John acreditou na paz, ingenuamente George acreditou em gurus e ingenuamente Ringo acreditou nos anos 60.
   Jagger e Richards jamais acreditaram em nada que não fosse neles mesmos. Jagger acreditou também em sexo e dinheiro. Richards em drogas e no blues. E todos os Stones nunca tiveram a ingenuidade de crer em seus fãs. Para eles os anos 60 foram cinicos.
   Os Beatles sempre são sérios. E tudo o que cantam luta para ser sincero. São reis do lá lá lá cantado em coro com seus fãs. Devolvem o afeto que recebem.
   Os Stones nunca parecem sinceros. E jamais são sérios. Eles podem ser assustadores, vaidosos, sexys ou raivosos, mas nunca são confessionais. Não fazem nada para ser cantado em coro e sugam o afeto que recebem. Devolvem ele em forma de risos e deboche.
   Nos Beatles há toda a herança do meio em que cresceram. Eles são trabalhadores. E têm um modo cristianizado de agir. Há dor e culpa sinceras neles.
   Os Stones são pagãos. Seu modo de ser é completamente classe-média. Estão na coisa para se dar bem. Para fazer algo contra o tédio, contra o anonimato. São blasé.
   Let it be ou Hey Jude, All You Need Is Love ou I Am The Walrus são impossíveis no mundo dos Stones. Elas são todas confissões. São espirito.
   Sympathy For The Devil ou Under My Thumb, Let It Bleed ou Brown Sugar são impensáveis para os Beatles. São todas "do mal". São carne.
   Todo o pop desde então conformou-se a essas atitudes. Ou voce ama seu público ( U2 ), ou é frio com eles ( Led Zeppelin ).
   Amável ou excitante, naive ou cínico.

VIDA, UM LIVRO ( ENERGÉTICO, LIBERTÁRIO, VITAL ) DE KEITH RICHARDS

O maior elogio que se pode fazer a Keith Richards é chamá-lo de negro. O objetivo dos Stones sempre foi esse: ser uma banda de black music, de preferência como as de Muddy Waters ou John Lee Hooker. Em 1965, nos EUA, músicos da Stax lhe disseram pensar que Satisfaction fosse alguma canção americana. Era dificil para aqueles negros crer que aquela música fosse feita por branquelos da terra dos Beatles. Esse foi o maior elogio que KR poderia receber.
Ele sempre foi do blues. Assim como Charlie Watts foi do jazz e Jagger do soul. E mesmo quando ele foi country ou disco, era um tipo de country-blues e disco-blue. Quando em 1973 Keith foi morar na Jamaica, os batedores de tambor das favelas jamaicanas logo o chamaram de negro. Um garoto feio de Dartford-England, nascido em meio ao ruido das bombas nazi, ter conseguido ser um preto do Tennessee e um rasta da Jamaica... bem, é um milagre.
Keith não faz drama com nada. Sua lição é: foda-se! Da infancia rebelde, filho único de mãe alegre que traía o pai com o vizinho mais jovem, aos momentos ( vários ) de quase-morte, nada vira drama, nada é lamentado. Ele é muito forte. Keith Richards é um cowboy, um pirata, e porque não, um herói.
O livro é cheio de momentos curiosos, de coisas que mesmo os fãs não sabiam, e melhor, nada é muito fantástico. Ele não aumenta, não mitifica, escolhe ser simpático, mas nunca hollywoodiano. Ficamos sabendo que Bobby Keys é seu melhor amigo, que Charlie Watts é um dandy que só gosta de jazz. Me chóco ao saber o quanto KR chama Brian Jones de escroto, um cara que se achava o máximo, um músico que deixou de tocar e que se afundava em auto-piedade. Keith conta a noite em que Marlon Brando tentou ir pra cama com ele e Anita ( sua esposa ), e melhor, descreve o clima de Londres em 65/67: Londres com seus pintores Pop, os herdeiros de sangue azul se entupindo de LSD, a descoberta de que tudo era permitido, os escritores, os cineastas, as groupies. Mick Jagger como um atlético conquistador, KR como um cara que precisava de carinho, dormir junto, ter alguma história.
As drogas. Ele passa tempos enormes vivendo por e para elas. Na década de 60 drogas eram coisa desconhecida. Eram usadas como descoberta, afronta, porta para fora da sociedade. Nos anos 70 elas se tornam moda, são usadas como documento para ser "in", e nos 80 são remédios para fazer tudo funcionar. Hoje são coisas para divertir, produto para criar uma sensação rápida e passageira.
Keith nunca demonstra o menor arrependimento. Ele usava drogas porque lhe davam prazer. É só isso, nada mais, e ele deixa isso bem claro. Tomava uma droga para acordar, uma outra pós-café para ficar ligado, droga de trabalho, droga para se acalmar, droga para pensar melhor e droga para ficar 3 dias de pé. Ele diz sentir saudades das drogas antigas, que não são mais fabricadas. Conta que o segredo para ter sobrevivido é nunca ter tomado nada de segunda, sua cocaína era Merck, direto do laboratório, tão pura que flutuava no ar; sua heroína era papoula 100% tailandesa, barbitúricos de farmácias de confiança e por aí vai... não há nada de sofrido, nada de culpa, nada de "agora vi a luz"; e também nada de "veja como sou louco". As loucuras que ele conta são nada glamurosas, e nenhuma é sexual.
Pesada é apenas a história de Anita, a maravilhosa Anita, modelo alemã, ex-Brian Jones ( tem uma história muito boa dela e de Keith fugindo de Brian no Marrocos ), mais doida que KR e que tinha conexões com Andy Warhol, Fellini e Roger Vadim. Nos anos 70 ela entra na paranóia pura e o casamento naufraga. KR é salvo por Patti Hansen, uma saudável modelo americana, sua esposa até hoje. È bonito perceber então, já lá no fim do livro, que Keith nunca mudou. O guitarrista espinhudo do Ed Sullivan Show é o mesmo cara do Piratas do Caribe. Como eu, Keith nada joga fora. Se ele descobre rap, reggae, disco, funk, o que for, ele os adiciona ao que já conhecia; ao contrário de Jagger, que para se reciclar precisa jogar fora o passado, KR preserva e revaloriza sempre tudo o que foi. Ele soma, nunca substitue.
Gram Parsons é o cara a quem ele tece os maiores elogios. É ótimo ler o que ele fala sobre amizade. Assim como é legal ver o que ele diz sobre John Lennon, um cara que aparecia sempre em seu apartamento, que tentava seguir seu ritmo de drogas, mas que sempre terminava a noite no banheiro, desmaiado ao lado do vaso e dizendo: "Onde estou?"
Stones e Beatles se comunicavam sempre: " Hey John, estou com uma nova aqui, voces vão lançar algo agora?...Então espera 3 semanas, eu lanço agora e voces depois." Paul foi procurar Keith quando brigou com Heather Mills ( 2005 ) na Jamaica ( Keith mora lá, vizinho de Bruce Willis ), os dois chegaram a compor juntos e Keith disse a ele que a grande diferença entre Beatles e eles é que os Beatles sempre foram um grupo vocal. Tudo neles tem a voz por base, a parte instrumental só como acompanhamento; os Stones são um grupo instrumental, a base é sempre um riff, uma levada de guitarra. Brancos e negros, certo?
Ele conta como gravaram o Banquete dos Mendigos, em gravadorzinhos Phillips, apenas violões em volume alto que se distorciam pela pouca potência do gravador. Um tipo de som que hoje se perdeu. Conta a saga das gravações de Exile e desce a lenha em Jagger.
Não vou falar dessa parte. Acho dificil. Mas concordo que MJ tentou ser David Bowie na década de 80 ( todos tentaram e se ferraram. Bowie em 1983 estourou como ídolo teen-inteligente, todos os caras de sua geração tentaram operar o mesmo milagre, de Ferry a Rod, de Paul a Eric ). Keith acha um absurdo Jagger querer ser Bowie, pois Jagger é muito melhor que Bowie, o que ele fez foi se rebaixar. Dá pra discordar?
Keith diz sonhar em sempre fazer blues, Jagger odeia recordar Exile ou Let It Bleed.
É lindo ler sobre seu reencontro com o pai, trinta anos sem o ver. O pai, velho, tornou-se um tipo de pirata, um velho de pub, conquistador, forte, duro, o cara. ( Há uma foto linda no livro, os dois juntos ).
Já no fim, quando diz passar muito tempo lendo, Keith toca numa coisa Junguiana, não sei se sem querer. É quando ele fala dos horários. Que é uma besteira da revolução industrial, um conto do vigário, essa coisa de que devemos comer ao meio-dia, dormir oito horas por noite... tipo: hora de comer, hora de acordar, hora de transar...Foda-se, Keith diz que o certo é comer quando dá fome, dormir quando se tem sono e transar quando há desejo. E a droga entra nisso também. Cada um tem seu tempo, seu limite, seu ritmo, cada um é um.
E vem daí aquela fala linda que ele escreve, de que ele sabe ser um simbolo, e que todo cara que se fode trabalhando num emprego de merda, com um horário cruel e uma vida sem sal, tem dentro de si um Keith Richards asfixiado e que cabe a ele representar esse cara que insiste em viver dentro de cada um.
Isso é lindo. E o livro é lindo.
Dá uma puta tristeza quando acaba. A gente pensa: Que merda, eu estava me acostumando a ficar com Keith toda tarde! Que bosta de saudade desse cara do caralho!
Após ler o livro eu não aumento meu amor por Keith Richards. Isso seria impossível. Ele é meu anjo do mal desde 1974. Mas aumentou meu respeito por ele. Keith Richards é um grande cara!

RAM- PAUL MACCARTNEY- SILLY LOVE SONGS

Paul MacCartney exemplifica à perfeição tudo o que tenho escrito ultimamente ( Amor cortês, individuação, religião ). O fato de o subestimarmos ( desde sempre ) e hiper-valorizarmos Lennon prova nosso vício em colocar a dor como dom supremo. O sofrimento, como os cristãos tão bem o sabem, dá uma aura de superioridade ao artista. E Paul parece à prova de verdadeira dor. Será? Ou não terá ele optado, em ato de nobreza exemplar, pelo riso?
Se acreditarmos em Kierkegaard, Paul, o feliz Paul, estaria num degrau acima de Lennon, Dylan e de outros sofredores. Que culpa ele tem em crer no amor tolo e feliz? No fundo ele é um camponês, e nisso mora todo seu gênio, porque se o rock um dia produziu genialidade é Paul o maior de todos. Ele criou o Pop branco, divulgou o rock sinfônico e é responsável por 75% do que os Beatles venderam. Quando lembramos os anos 60 tendemos a pensar em Dylan, Morrison, Hendrix, Lennon, Who, Reed, grandes mortos ou grandes sofredores. Mas é Paul o centro da década, consequentemente centro da arte Pop. O problema é que ele não parece "heróico". Será?
Ao contrário de Lennon que surgiu e morreu seguindo o modelo Elvis ( acrescentando doses imensas de Dylan no processo ), Paul surge seguindo Buddy Holly e Little Richard, e não se apaixona por Dylan. Ele cai de amores pela black music americana ( Marvin Gaye, Otis Redding, Joe Tex, Wilson Pickett e Aretha ), pelos sons sinfônicos que George Martin lhe mostra e principalmente pelos Beach Boys. RAM é seu segundo album solo e é um disco delicioso.
A capa, com um carneiro, já entrega do que se trata: PET SOUNDS, dos Beach Boys. Paul, que nunca escondeu seu amor pela obra-prima dos californianos, usa aquele tipo de arranjo e de produção multi-facetada, caleidoscópica, que é o que dava aos Beatles toda sua riquesa de arranjos. As músicas são como flashs, polaroides de emoções fugazes, canções de estados sensitivos. Music-Hall, folk britânico, pop americano, doo-wop, tudo cabe aqui. E aqueles arranjos vocais nos quais Paul exibe toda sua maestria ( arranjos de voz como ele fez, só os próprios Beach Boys e os Byrds conseguem ).
O disco começa com simples violão e simples canção de amor. Mas ele foi e é sempre assim. Para ele a vida é simples: uma esposa, filhos, e uma casa no campo. As pessoas tendem a pensar que ele é só isso. Mas é aí que nasce seu heroísmo, o cara que fez Yesterday e Helter Skelter optou pela simplicidade e nessa opção tentou nos mostrar um caminho. Blackbird e Martha são as obras-primas que inauguram sua escolha.
Ram depois envereda pelo blues e chega aos arranjos à Brian Wilson. É aí que o gênio-mago aparece. Uncle Albert é trilha de minha infância ( com Another Day ). Tocava incessantemente no rádio e aos 5 anos me apaixonei pela canção. Eu me emocionava ao ouvi-la e se tornou padrão daquilo que considero canção-criativa ( e feliz ). Ela muda de clima e de andamento cinco vezes!!!!! Linda!!!!! Na sequência ele faz um rock mais azedo e completa o album com sua costumeira habilidade em ser belo e aparentemente fácil.
Mas nunca é. Tente compor uma canção à MacCartney. Tente arranjar quatro vozes em ondas de idas e vindas. Tente harmonizar guitarras com metais e teclados. É preciso saber tudo de musica, de melodia. É preciso ter gosto. E principalmente, ouvido. Nisso tudo, ele é imbatível.
Sempre lhe faltou sexo. Paul está longe do perigo. Nada nele remete à James Brown, Sly Stone ou Mick Jagger. Paul seria puro espírito. Nada carnal. Mais uma vez eu digo: e daí ?
O movimento de individuação é maravilhosamente exemplificado pelos Beatles. Sua separação, em busca de sua afirmação individual, teve toda a tragédia amarga da vida de todo homem adulto. Ringo cresceu e optou pelo que podia ser: embaixador eterno da beatlemania. George mergulhou na religião e se tornou um espiritualizado bon-vivant. John levou sua rebeldia de Elvis+Dylan vida afora, mas que ironia, terminou como um tipo de Paul in New York -amor, esposa e filhos. Paul não brigou com seu passado. Se tornou filho de seus pais, sobrinho de seus tios e carinhoso pai de família. O Mr.Feel Good. Seus discos continuaram a ser filhos dos Beatles.
Qual o problema?
RAM é feliz e é criativo. Porque não dizer: ele é um herói por ter sobrevivido são, sorridente e sem pretensão. O que mais um menino caipira de Liverpool pode querer e poder ser?
I LOVE PAUL !