UMA TARDE DE HORROR ( ATOM HEART MOTHER, PINK FLOYD ), O DISCO DA VACA

   Foi uma péssima viagem. As sombras de um fim de tarde frio e os móveis pesados, madeira e mármore, na sala que fedia ao mofo de cortinas e tapetes. Um grande tapete cinza e as cortinas com forros e rendas. Do aparelho de som que estava em outro cômodo, vinha a música. Que música? Eu abominava aquilo. E mergulhava numa deprê sem nome, pura melancolia. Eu me afundava naquela música do lado 1, uma coisa dividida em segmentos, mais de vinte minutos de tortura.
   Metais que não se encontram e ruídos de vozes, teclados que soam como sirenes e aviões que caem. Uma melodia que lembra cemitérios e barulho incessante. Coro de vozes que me fazem ter medo e guitarras soterradas em explosões. Suplico para que esse pesadelo termine logo. Esses gritos...
   Então tem If.
   E agora me vem um sono que me desabo. E esse solo de guitarra bocejante que dura pra sempre.
   Então vem Summer of 68.
   Que é o tema do Jornal Nacional de então.
   E mais duas faixas que me esqueço de ouvir.
   Não estranhe. Minha madrinha me deu esse LP de presente. Eu tinha 11 anos. Conhecia Beatles, Elton, Monkees....Fiquei abismado ao escutar essa "doidice sem sentido" naquela tarde maldita.
    Mas um dia, mais de vinte anos depois, eu lhe dei outra chance.
    Uma rica viagem. Surpreendentes climas que se mudam em emoções conflitantes. Timbres inusitados e a doce melancolia de uma poesia triste. Trágica quase.
    A beleza de If. Que tem um piano que é a coisa mais linda do mundo.
    A nostalgia de Summer. Que se ergue em cadências.
    E as duas viagens de LSD finais.
    O êxtase num café da manhã. Em torradas, em ovo frito, na boca que mastiga.
    O medo de ontem é o prazer de hoje.

SEQUESTRADO- ROBERT LOUIS STEVENSON

   O começo do século XX foi péssimo para Stevenson. Se tornou um escritor infantil. Era a época dos romances mais ambiciosos da história. E gente como Stevenson, escritores que "apenas" contavam uma história, foram jogados na vala do comum, do banal, do infantil. Mas, a partir de 1950, a coisa começou a mudar. Uma overdose de experimentalismo deixou o leitor com saudades de uma boa narração, de uma aventura. Stevenson voltou a ser considerado. Assim como Conrad e London.
   Este é considerado por muitos seu livro mais bem escrito. Conta a aventura de um jovem, David Balfour, que na Escócia de 1755 tem sua herança roubada e cai nas mãos de uma tripulação de navio bêbada e hostil, para
 depois dever percorrer meio país, desviando de facções rivais e de armadilhas da natureza.
   A Escócia de 1755 é um país em ebulição. Clãs lutam entre si e contra os representantes da Inglaterra. A gaita de foles e o padrão xadrez estão proibidos. Não se pode vestir o kilt e nem falar o gaélico.  É esse o ambiente social do livro. Stevenson sabiamente não sataniza os ingleses. Sua simpatia vai aos escoseses mais calmos, menos radicais.
   Todo o inico, e toda a viagem de navio, contornando a Escócia pelo norte, são soberbas. Stevenson se supera nas descrições de tempestades, no clima de suspense entre a tripulação. Depois ele deixa bastante cair o interesse. Nota-se que a narrativa se estica, se alonga. Mas nada que prejudique o prazer de se ler esse autor que hoje volta a ser central na história do romance do século XIX.

SAUDADES DE QUANDO GAINSBOURG ERA POSSÍVEL

   Um cara me policia. Descobriu que às vezes creio em anjos. E agora esse cara tem certeza de que sou burro. Ou que tenho um tumor na cabeça. Um outro me fala que eu deveria ir a umbanda. Porque é legal. E outro acha que sou materialista demais. Diz que sou muito agressivo.
   Um velho amigo pensa que sou muito etéreo demais. E outro fala que eu deveria ser menos anos 2012, ser mais Che Guevara e Neruda. Uma amiga me manda uma mensagem. Diz que não deveria mais ficar arrumando briga por aí. Fala que às vezes lhe dou medo. E uma outra conta que pra ela sou um gurú indiano.
   Me vigiam também os desconhecidos. E ser vigiado por amigos é um elogio.
   Estranhos falam que sou saudosista demais. Que tenho preconceito contra Von Trier e Nolan. Estranhos, outros, dizem que sou moderninho futil. Que deveria descobrir Tarkovski e Bunuel. Uns dizem que não posto nada de inteligente. Outros falam que sou pedante. Pensam que sou gay, e já fui chamado de machista. Anti-americano, direitista, francófilo, vitoriano.
   Chegaram a comentar que amo a guerra.
   Nada disso importa. O que interessa é que todo mundo mete a colher no angú de todo mundo. Todos querem formar uma imagem de quem mal conhecem. Te fazer um personagem.
   Bem Vindo ao futuro.

Gainsbourg et le Tabac, Zippo, Gitanes



leia e escreva já!

AS CENTENAS DE FILMES DA SIGHT AND SOUND

   TerrEnce Malick deve ser o maior diretor da história do cinema. É o único que obteve 100% de seus filmes indicados. Acabo de ver os cerca de 1500 filmes que foram citados pelos votantes na enquete dos 250 melhores da revista inglesa Sight and Sound. Nessa lista, publicada em ordem alfabética, temos várias justiças, algumas surpresas boas e esquecimentos surpreendentes. Malick é o único diretor a ter tudo o que produziu
 citado, e seu ARVORE DA VIDA é o filme melhor classificado ( dentre os americanos ), dos que foram feitos de 2000 pra cá. O que a gente logo percebe é que neste século a produção se pulverizou. Hong Kong, Coréia, China, Irã, Turquia, Formosa....são esses os países com a nata das citações.
   Wes Anderson tem apenas um filme entre os 1500 citados e Tim Burton apenas Edward Mãos de Tesoura. Já Tarantino tem seis filmes lembrados, e os irmãos Coen quase todos. Mas não vou ficar aqui falando detalhes, quem quiser que veja a lista. Está disponível a dois toques de teclado. Prefiro comentar as surpresas.
   Maravilhosamente Chuck Jones tem cinco desenhos dos Looney Tunes entre os maiores. Desenho é arte e Jones, assim como Tex Avery, Bob Clampett e alguns outros sempre soube disso. Mas ao mesmo tempo vemos uma injustiça com a Disney. Citaram apenas Mogli !!! Logo Mogli, um dos menos bons da fase clássica. Deixar Pinóquio ou Dumbo de fora é esquecimento de gente que deveria ter pensado melhor. De qualquer modo, WALL E éstá ente os 80 melhores filmes já feitos. Justo.
   Michael Powell continua valorizado. Tem seus principais filmes citados ( mais de dez ), esqueceram CONTOS DE HOFFMANN, mas tudo bem, Powell está no posto que merece, é um dos 3 melhores da história do cinema britânico. Esqueceram Stephen Frears, nenhum de seus filmes foi lembrado, e Carol Reed está em baixa, citaram apenas 3 de seus filmes. Com David Lean se esqueceram de OLIVER TWIST, provávelmente por ter fama de racista. OS EMBALOS DE SÁBADO A NOITE está entre os 1500, mas senti uma certa má vontade com o cinema dos anos 70. De qualquer modo, os básicos da década mais louca estão lá. O que não aceito é entre oito filmes de Robert Altman citados, ninguém ter lembrado de MASH....imperdoável.
   O Brasil tem lembrado quase tudo de Glauber e muita coisa de Nelson Pereira dos Santos. Adorei ver meus dois filmes favoritos made in Brasil lembrados: MACUNAÍMA e O BANDIDO DA LUZ VERMELHA estão presentes.
   Bacana lembrarem do pouco visto AS 3 MORTES DE MELQUÍADES de Tommy Lee Jones. Esse filme, de 2007, é uma bela homenagem a Sam Peckimpah.
   Vincente Minelli, Raoul Walsh, Howard Hawks, Billy Wilder, o cinema clássico americano está muito lembrado. Buster Keaton tem um monte de filmes citados e John Ford aparece com mais de 12 filmes. Mas é estranho não terem citado Scarface de Hawks, Asas de Wellman e Inimigo Público de Le Roy.
   Jean-Luc Godard é talvez o maior vencedor da lista. São dezenas de filmes lembrados. Godard fazia aquilo que todo cinéfilo sonhava, se divertia filmando. Interrompia a narração quando se entediava, enfiava cenas improvisadas ao ter uma inspiração, liberava seu desejo. Godard fazia tudo o que um diretor não pode fazer hoje, inventar . Daí  sua valorização atual. É de longe o francês mais citado. Bresson vem logo depois.
   Todos os grandes gênios estão fartamente lembrados. Não há um só Bergman ou Kurosawa que merecesse ser citado que tenha sido esquecido. São 19 Bergmans e 15 Kurosawas. E há também uma tonelada de Dreyer, Bunuel, Lang, Kieslowski, Tarkovski, Fellini...
   A Itália é o grande perdedor. Sim, eles citam os De Sica, Antonioni e Visconti obrigatórios. Tem Pasolini às dezenas, tem Bertolucci, Rosselini...mas o cinema da Itália foi tão grande que dá uma frustração ver apenas um Scola, um Risi, dois Zurlini e dois Monicelli.... Lembraram dos ETERNOS DESCONHECIDOS, mas esqueceram BRANCALEONE!!!!!
   Todos os Clint Eastwood que valem a pena foram lembrados ( esqueceram Bird, e eu acho justo isso ), assim como Scorsese, De Palma e Woody Allen.
   Vertigo de Hitchcock é o maior de todos. Não sei se é o maior, mas também não sei se ele não é o maior. Hitchcock tem mais de vinte filmes na lista. E mesmo assim tem alguns que mereciam ser incluídos e que ficaram de fora. Ele conseguia unir o cinema pop a arte mais sofisticada. Ação e introspecção. Humor e horror. Senso de imagem e dom para diálogo. Erotismo e romantismo. E tudo isso mantendo sempre o senso de beleza, de diversão e de comunicação. Não sei se foi o maior de todos, mas se for, lhe fica muito bem.

PETER PAN E O LORAX, DOIS MODOS DE PENSAR SOBRE A INFÂNCIA

   Em meio a um céu de Technicolor, o pai de Wendy, Miguel e João, vê finalmente o navio de Gancho, navio em que agora Peter Pan navega. Então o pai, modelo de praticidade e de "adultêz", conta que aquilo no céu faz com que ele quase lembre de alguma coisa de seu passado...
   Peter Pan tem tanto material poético que daria para se criar toda uma filosofia sobre a infância. Ou se preferirmos, sobre a idealização da infância pelos adultos do século XX. Não importa, a obra de James Barrie é uma das jóias do século e sobrevive muito bem ao icônico desenho da Disney. Vamos ao começo.
   Wendy é avisada de que deverá mudar de quarto, não poderá mais dormir com seus irmãos. Amanhã ela começará a ser adulta. Óbvio que Wendy menstruou. Mas ela insiste em esperar Peter Pan, em deixar a janela aberta e conta ao pai não querer jamais crescer. Peter virá e Wendy irá costurar a sombra que ele perdera. Sombra que pode ser tanta coisa... o medo de Peter, seu interior, seu gêmeo...
   Os dois, mais os irmãos, partem à Terra do Nunca e voam sobre uma deslumbrante Londres vitoriana. Não nos esqueçamos, Peter nunca teve mãe e Wendy deverá cumprir esse papel. Para Peter, mãe é quem conta histórias, geralmente sobre ele mesmo. Na terra de Peter existem sereias que o adoram, indios que lhe têem respeito e os piratas... tudo gira ao redor desse Peter, orfão que não cresce e que se ama em tudo que o cerca.
   Gancho é o contrário absoluto de Peter. Ele jamais brinca, nunca fantasia e vive com ódio e medo. Ele está preso no tempo, um jacaré-relógio, com seu tic tac neurotizante deseja o engolir. E Gancho vive assim, no medo do tic tac e no ódio a Peter Pan. Peter é tudo aquilo que ele não pode ser: criança. Em Gancho dói a fuga do tempo.
   Wendy tem pai e mãe, precisa voltar, precisa crescer. E volta. E é nesse final melancólico que o pai quase lembra do que foi um dia.
   O Lorax, já um exemplo seguro do que é o século XXI, joga a criança no mundo em que devemos ter um papel a cumprir. Uma responsabilidade. O desenho é ótimo e eu concordo com tudo o que ele advoga, mas que diferença imensa do mundo de Peter Pan! Se antes o que se tentava era descobrir o mundo secreto e mágico da infância, se antes tudo era voltado ao simbólico, ao interior; agora o que vemos é pura exterioridade, a chamada a ação, a intervir no real. Nesse sentido, nada mais Gancho que Lorax.
   A Terra virou plástico, e num estilo Matrix, todos vivem num tipo de "mundo fake". O ar é vendido em garrafões e tudo precisa ser mantido assim, porque é assim que a grande empresa quer. Mas um menino descobre o que aconteceu no passado e tenta plantar uma árvore...
   O desenho é todo do bem e isso não me irrita. Ele fala das coisas mais importantes e sérias do mundo de hoje. E essas coisas devem ser defendidas com força e sem concessões. Pagamos por água, e me creiam, água já foi de graça um dia. Pagamos por TV, que também já foi grátis. E pagamos por escola, hospital, poder cruzar uma estrada...estacionar. E não notamos o absurdo de tudo isso. Um dia haverá a taxa do ar. E assim, as árvores se tornarão dispensáveis.
   É fato já antigo de 15 anos que enquanto os filmes de adultos se ocupam com o mundo irreal, os desenhos cada vez mais se ocupam do mundo real. Serial killers, heróis de HQ, casos médicos e viagens mentais, com raras excessões, o cinema adulto só fala desses temas. Já os desenhos se ocupam de ecologia, vida familiar, honra, passagem do tempo e modos de viver. São temas muito mais vastos, menos particulares, mais sociais. Adoro-os e considero que na média os desenhos dão de dez a zero nos filmes que são lançados.
   Mas o que falo aqui é:  Não seria uma tentativa muito esquisita essa de se jogar na criança toda essa educação? Parece que desistimos dos adultos ( um bando de tarados que só quer a pornografia de corpos dilacerados e de mentes confusas ), e tentamos desesperadamente salvar a próxima geração, dando a elas a percepção do mal que fizemos e do quanto elas devem fazer. Salvem a natureza crianças! Salvem a familia! E deixem o papai com seus filmes cheios de sangue, maldade e niilismo cego.
   Peter Pan fazia com que adultos desejassem ser crianças. Lorax reza para que as crianças sejam adultas logo.
   Há algo de muito podre neste nosso mundo.

OS VINGADORES/ MAHLER/ KEVIN KLINE/ DIANE KEATON/ PECK/

    OS VINGADORES de Joss Whelan
Nick Fury fuma um enorme charuto. É sexy ao nível Clooney de ser e é  musculoso. Está na meia-idade e tem um humor ácido, desencantado. Isso nas HQ, porque aqui ele é Samuel L. Jackson....eu adoro Nick Fury, o filme me fez odiar Jackson. Tem mais. Me fez pensar nos grandes sucessos de bilheteria da história. Todos são escapistas, e isso nada tem de ruim. Mas depende do tipo de escapismo. Se ...E O vento Levou era a afirmação da saga individualista americana, se A Noviça Rebelde era a propaganda de bons sentimentos em época de más noticias, e Star Wars era nostalgia travestida de saga futurista,  Os Vingadores é puro militarismo triunfante. Oitenta por cento do filme é propaganda de armamanto. Computadores militares, tiros e explosões, aviões, soldados. A história nada mais é que o enquadramento do incontrolável Hulk, a dessacralização de Thor e conscientização do Iron Man como soldado obediente. Não é por acaso que todos têm rancor contra Thor, afinal ele é um semi-deus. E o pobre Hulk é apenas uma besta que deve ser disciplinado. Destruição como fetiche ( após Star Wars todos os big hits têm a destruição como gozo, desde um navio que afunda até a perseguição de uma raça ). Nos extras o diretor desta coisa fala que se trata de um filme "so sexy"....
   MAHLER de Ken Russell
Tchaikovski era tão exagerado, pomposo e falso como este. O problema aqui é que Russell esqueceu daquilo que salvava o seu filme anterior: a beleza. Tchaikovski é um filme lindo, Mahler é ridiculo. Quando surgem as cenas nazistas começamos a achar que Ken tomou a droga errada. Foi este o filme que começou a destruir sua carreira. Se ele surpreendera o mundo com belas adaptações de Lawrence e filme cheios de imagens originais, aqui ele se perde em puro sensacionalismo. Nota 2.
   A CONQUISTA DO ESPAÇO de Byron Haskin
O que é isto? Deveria ser um pop e divertido filme B dos anos 50. Mas o que vemos? Um grupo viaja à Marte e seu lider enlouquece. O filho desse lider acabará por matá-lo. Em Marte há um clima de culpa, de medo e de consciência da inutilidade daquilo tudo. Simples? É um dos filmes mais doentios que já vi. Tudo nele é classe B, os atores ruins, os efeitos mediocres, os cenários pobres. Mas o roteiro é incrivelmente profundo trazendo antecipações de 2001 e até Solaris.
   MATANDO SEM COMPAIXÃO de Ted Kotcheff com Gregory Peck
Western dos anos 70, ou seja, ppouca ação e muito clima de fim de mundo. Peck é um ladrão barato, que foge em deserto de xerife "do mal". Um mestiço é o amigo de Peck e o filme, claro, fala de racismo. Não é um bom filme. Ele jamais emociona e fica sem saber onde ir com seus personagens. Peck, um ator imponente, não tem muito o que fazer. Nota 4.
   MEU QUERIDO COMPANHEIRO de Lawrence Kasdan com Kevin Kline, Diane Keaton, Dianne Wiest e Richard Jenkins
Kasdan foi um dia um dos grandes. Roteirista da turma de Spielberg, despontou a trinta anos com o marcante e icônico O Reencontro. Este é seu novo filme, recém lançado, e se está longe de ser ruim, nada tem de novo. Uma mulher, a sempre ótima Keaton, esposa de um médico, o sempre excelente Kline, acha um vira-lata na rua. O abriga. Depois de dois anos, em viagem ao Colorado, o cão some e isso expõe as dores da familia. Na busca pelo cão o que vemos é uma sessão de terapia dos personagens. O filme mantém o interesse, as pessoas são reais e os cenários deslumbram. Fácil de ver, falta ao filme um momento grande, um centro de catarse. Ele acaba sendo discreto demais, simples demais, comum demais. Mas pelo menos Kasdan não tenta fazer "arte". Ninguém é bem louco ou perigoso, a câmera nunca treme ou alça vôo. Nota 6.
   FANTASIA de Walt Disney
Grande orgulho de Disney, fracasso em seu tempo, reabilitado vinte anos mais tarde com os hippies. Vamos por partes. Porque orgulho de Disney? Porque ele trata de "grande arte". Afinal, é um looooongo desenho que cria clipes para músicas de Beethoven, Tchaikovsky e até Stravinsky. Típica jequice, achar que usar Dukas ou que falar da criação do mundo faz de um desenho "arte". Pinóquio era Arte sem nada de pedante. Os hippies descobriram que assistir Fantasia com LSD dava uma viagem ótima. Visto agora, tem seus bons momentos, mas seu espirito de "grande arte" faz dele o mais antipático dos desenhos. Nota 4.

A FILOSOFIA PERENE- ALDOUS HUXLEY

Um desses ateus militantes ( ateu militante é uma vergonha para um ex-ateu verdadeiro. A beleza do ateísmo está na indiferença individualista às coisas da religião. Militar dentro do tema é fazer parte dele, falar sobre aquilo que não se quer fazer parte ), mas como ia dizendo, esse ateu superstar diz que o que motiva todo religioso é o medo de morrer. Aí está o que acabei de falar. O cara se mete a falar sobre aquilo que não sabe e solta um chute no vazio. O auge de meu medo de morrer foi entre meus 15/20 anos. E foi ao mesmo tempo minha época mais descrente. Eu sentia pavor de morrer e odiava toda forma de religião. Via em todas uma forma de consolo para fracos. E só. Para mim, islamismo, gnosticismo ou hinduísmo eram iguais. Assim como eu não conseguia perceber que igreja e religião são tão diferentes como são rimas e poesia. A igreja se move na matéria, no comunitário e no comum, a religião é inefável, individual e original.
Ando tentando terminar A FILOSOFIA PERENE, de Aldous Huxley. É dificil. Há uma profusão de informação, de nomes, de citações. Huxley passeia pelos sufis, pelos católicos do inicio da idade média, pelos profetas menos conhecidos. E de começo ele já fala o que intuitivamente eu sempre soube: Nada é mais anti-religioso que a igreja. Qualquer igreja. Porque a verdadeira experiência religiosa é individual, não pode obedecer a ritual ou a leis exteriores a própria experiência. Mais que isso, para se viver essa experiência é preciso ter sentido de forma profunda a inadequação, o não-conformismo e a ânsia pelo "algo a mais". Huxley fala então do Eu, e isso encontra mais uma de minhas certezas, a de que toda infelicidade nasce da hiper-valorização do eu. O objetivo final de toda vida religiosa é a destruição do eu. Pois detrás dessa cortina enganosa vive aquilo que nos é mais precioso, verdadeiro e forte, o não-eu, o sem-nome, o inenarrável. A vida que é eterna por não ser eu.
Como dizer então que a motivação da religião é o medo da morte se seu objetivo e seu único pensamento é exatamente a morte do eu? Enquanto materialistas se distraem com bebidas, sexo e ciência, enquanto se envaidecem com sua razão, suas respostas óbvias e sua "coragem", o verdadeiro religioso se obriga a encarar o vazio, o nada, a destruição do ego. Onde o conto da carochinha?
Por favor, não pensem que sou um religioso. Se fosse não estaria aqui exibindo minha tese. Há vaidade no que falo e isso coloca por terra minha espiritualidade. Adoro dinheiro, sexo e gosto de beber. Mas ao menos tenho a humildade de admitir que pouco sei sobre a experiência de São João da Cruz ou de Rumi.
Hippies adoravam Aldous Huxley. Assim como amavam Hesse. Os dois, quando mal entendidos, pareciam dar um aval para um tipo de espiritualidade fácil. Uma espiritualidade "numa boa", individualista sem solidão e criativa sem riscos. Dava pra ler Sidarta e cair no mundo do sexo e drogas como se o barato fosse parte de uma auto descoberta. Para alguns poucos foi. Mas isso descambou num tipo de nova igreja. A igreja da religião util.
Hesse se perdeu mais que Huxley e o inglês escrevia melhor. Na visão de Hesse sempre há o âmago do romantismo alemão. Em Huxley o gosto de século XX é mais forte.
Por um breve milionésimo de segundo eu um dia pude quase ver. Senti o não-eu e pude me livrar de todo peso. Êxtase ou transcendência, palavra não há pra falar daquilo que não foi criado por palavras e por discursos. Não há como esperar uma mensagem ou um sermão tirados dessa visão. É a intimidade solitária de cada um perante o todo do universo.
Nesse centro do ser tudo é silêncio.

LADRÃO DE CASACA- MAURICE LEBLANC

   Foi Marcelo Coelho ao escrever sobre o personagem mítico de Maurice Leblanc que me acendeu a vontade de finalmente conhecer seus livros. Criado nos começos do século XX, Arsene Lupin seria a resposta francesa ao hiper-sucesso de Sherlock Holmes, mas claro, como bom francês, ele teria de ser o contrário do detetive inglês. Arsene Lupin é um ladrão.
   Um ladrão fino, elegante e ético. Um ladrão de bom gosto, que rouba obras de arte, móveis e jóias, um bandido que nunca usa de violência. Suas façanhas são descritas pela imprensa e a população ama seus feitos. Inteligência, é tudo o que ele tem como arma. Os contos têm o estilo Conan Doyle, são baseados no detalhe, no clima noturno e de mistério, tramas intricadas, complexas, e de uma clareza de conclusão absoluta. Deliciosos.
   Maurice Leblanc criou Lupin por acaso. Jornalista, havia fracassado em suas tentativas de ser "um autor". Um dia o editor lhe pede alguma coisa para ocupar um espaço, um "conto policial". Nascia Lupin e com ele uma febre nacional ( logo mundial ).
   Até os anos 80 se encontrava livros de Arsene Lupin em qualquer banca de jornais. Junto aos livros de Agatha Christie e Sherlock, Lupin era lido por estudantes, donas de casa e intelectuais. Um tipo de literatura de entretenimento que nunca envergonhava ou irritava. Não sei se ainda é lido. Há um livro de LPM nas bancas. Procure e leia. Voce vai se viciar. No caso, vicio sem culpa.

AS INFÂNCIAS DE MANOEL DE BARROS

Cresci brincando no chão, entre formigas. Eu tinha mais comunhão com as coisas que comparação.
Eu via toda tarde a mesma lesma se despregar da sua concha. Esses pequenos seres tinham o privilégio de ouvir as fontes da Terra.
Meu avô ganhou o desnome de lavador de pedras. Os andarilhos, os passarinhos e as crianças têm o dom de ser poesia.
Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que informam.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Tenho abundância de ser feliz por isso.
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande.
Sempre compreendo o que faço depois que já fiz.
São frases, pegas a toa, do livro desse menino Manoel. Todas falam como se fossem minhas. Ele cresceu no mato, lá pros lados de Corumbá. Era passarinho e insetos e rãs e lesmas. E o rio que passava detrás da casa.
Como escreve bonito o Manoel ! Ele mistura e tempera palavras e faz com que elas cantem. Elas sorriem e vivem soltas, inuteis, preciosas.
Tudo nele é feliz. Porque ele ama as coisas que são dele. Não ansia o distante ou o inexistente. Ele, como criança, olha a formiga e ama a formiga. A curiosidade de quem aprende. O amor de quem olha e vê.
Dá vontade de ler o livro todo de novo.
E vi que o homem não tem soberania nem para ser um Bem Te Vi....
Eu também amo aquilo que é pequeno, que passa despercebido, que ninguém dá bola.
Pombos, latas velhas, árvores mirradas, casas ensombreadas. Sapos, minhocas e pés de Mamona.
E também amo coisas grandes. Como Manoel de Barros. Seu livro é inacabável.