greengrass/abrams/fincher/miyazaki/stanton/boyle-seus favoritos

Se fala no blog da Folha sobre uma matéria da revista "SightnSound". Diretores conhecidos de hoje falam sobre suas preferências. As perguntas são : Qual seu plano favorito ( tomada ) e Que filme voce gostaria de ter dirigido.
Danny Boyle tem a resposta mais óbvia - queria ter dirigido APOCALYPSE NOW de Coppolla. Plano, qualquer um de SANGUE NEGRO.
J J Abrams acha que a aparição de Grace Kelly em JANELA INDISCRETA é a mais bela tomada do cinema, e queria ter assinado NÚPCIAS DE ESCÂNDALO de George Cukor. J J acaba de ganhar um zilhão de pontos comigo.
James Cameron fala na cena do osso em 2001 de Kubrick como a melhor, e gostaria de ter em sua filmografia JURASSIC PARK.
Paul Greengrass vê o take final de O CHEFÃO 2 de Coppolla como o melhor momento. Gostaria de ter feito A BATALHA DE ARGEL filme esquerdista de Gillo Pontecorvo.
Pedro Almodóvar adora a cena do olho sendo cortado em Buñuel e queria assinar A DAMA DE SHANGAI de Orson Welles.
Miyazaki, diretor de Shihiro e tanta coisa boa é fã ardoroso da cena em que Wyatt Earp anda de braços dados com Clementine, em PAIXÃO DOS FORTES de John Ford.
Sam Mendes ama TAXI DRIVER. O filme de Scorsese tem a melhor tomada e é o filme que ele queria fazer.
David Fincher vai de LAWRENCE DA ARÁBIA. Ele considera a entrada em cena de Omar Shariff a melhor já filmada. Seu filme é JANELA INDISCRETA.
Andrew Stanton, diretor do ótimo Nemo e do genial Wall.E, elege uma cena de Lawrence da Arábia : Peter O'Toole andando sobre o trem. O filme é CINEMA PARADISO.
N. Shyamalan não escolhe cena. Só de Hitchcock seriam centenas. O filme é A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA de Peter Bogdanovich.
E por fim, Guillermo del Toro, fã de FRANKENSTEIN, cena e filme são dessa obra de James Whale.
Beeem... JANELA INDISCRETA e LAWRENCE DA ARÁBIA, eis dois filmes muito valorizados por quem dirige filmes. Hitchcock, o cara que levava o espectador para onde queria levar; e David Lean, o diretor do mais extremado bom gosto. Único a fazer super produções com cara de filme intimista. O cinema sente muita falta dos dois. Eles sabem.

COMO SER DIFERENTE ( HOJE )

Eu estava num lugar qualquer fazendo qualquer coisa, quando veio o assunto : como ser diferente hoje. O que seria ser do contra, ser perigoso, ser original. ( Não estava só. Um amigo estava comigo nesse lugar qualquer ).
No tempo em que todo homem andava de terno escuro e chapéu, andar de roupa colorida e cabelo comprido já era uma ofensa. Nessa época passada, de sexo escondido e casamentos para sempre, transar sem compromisso e viver junto era um desafio. Depois, quando cabelo comprido era moda de gerentes de banco e locutores de futebol, veio a onda do cabelo muito curto, da roupa preta e do anarquismo em tudo. O mercado adorou e começou a vender calças detonadas, fivelas punks e gravatas fininhas. Desde então, tentou-se ser diferente usando cabelos verdes, roupas new-hippie, coturnos, ombreiras imensas. Materialismo, green-peace, nova direita, esquerda chique, grunges, um vale qualquer coisa.
A última coisa que chocou ( e não foi um revival ) foi a moda de calças largas caindo, tênis chamativo e bonés. Uma atitude de "eu sou o máximo". A coisa do hip-hop. Mas isso tem mais de vinte anos!!!!!!! E agora ? Rave é revival de festas de hippies em Ibiza. Toda sua politica, todo seu estilo de vida é Kevin Ayers com Daevid Allen. Emo é um dark-baby. Jogadores de futebol usam moicano! Vovós se tatuam, crianças usam piercing. Como ser original?
O mundo hoje é consumo, tecnologia e pressa. Mas ser contra o consumo é ser fashion. Ser anti-tecnologia é fazer parte de uma tribo, pregar a calma e a volta à natureza é ser parte do new-age. Querer ser diferente, aliás, é tema de toda campanha publicitária. A GM, a Vivo, todas usam isso. Qual o tabu a ser quebrado ? O que irrita um teen ? O que seria ridículo para um fashionista ?
Ser velho. Nada é mais endeusado que a juventude eterna. Ser velho. Assumir idade, rugas, mal humor. Não tentar parecer jovem, se desligar de cremes, ginásticas, loções e plásticas. Ser um feliz e chato dinossauro.
Meu amigo complementa : ser Humphrey Bogart - um velho/ macho/ fumante/ duro/ na dele. É isso.
A última revolução possível : ser jovem já era. E viva Clint !

CAÇANDO, PLANTANDO, PASTOREANDO?

Eu ando lendo 3 livros sobre a história da arte. Sobre 3 períodos que me interessam muito : a pré-história, a era clássica e a época bizantina. Nada direi sobre o que foi feito em Bizancio. Concordo com Yeats quando ele diz que foi a época do apogeu da beleza no mundo. Algumas pinturas em paredes ( anônimas, sempre ) são, talvez, a coisa mais cheia de cor e de paz já pensada e executada por mão humana. Tudo o que foi feito por essa civilização esbanja sabedoria e tem, ao mesmo tempo, um estranho ar de irrealidade imutável. É como se fossem retratos de nossa alma.
Acabei me desmentindo e dando um toque sobre a arte bizantina, mas o que preciso falar é que o autor diz que a arte foi criada pelos xamãs pré-históricos ( 15.000 a/c ).
Primeiro- não confunda um xamã com um curandeiro. O curandeiro é um médico/ político que trabalha conscientemente. Ele quer ser curandeiro, ele quer o poder. Jamais trabalha em transe. Faz parte do sistema. O xamã é bem diverso.
O xamã é um psicótico que em sua doença sente-se à beira da destruição total. É dominado por espíritos e visões. Essa pessoa, fora da sociedade, obtém o conhecimento de como se curar, para depois curar a alma da aldeia. Ele não desejou ser o que é, ele nasceu para o ser.
A sua cura se dá pela arte primitiva. O xamã pinta nas cavernas aquilo que o atormenta, faz totens sobre seu medo, dança sua visão, conta à tribo seus delírios, canta sua cura. Ele passa a ser o guardião da alma da tribo e sua reserva de saúde mental.
Caçadores.
Tudo isso nasce no estágio humano da caça. Nascemos míseros coletores, comedores de restos, de carniça, de fruta estragada. Mas um dia aprendemos a domar nosso medo e a caçar. Mas atenção, no estágio de caçador o homem sente-se inferior ao animal. O homem sabe ser mais fraco. Ele não voa, não nada e sente frio. Então ele cria primeiro a armadilha e depois a arma. Mas, muito mais importante, ele usa o xamã para caçar. Porquê?
Sentindo-se parte da natureza, o homem sente um grande conflito ( que atesta a sofisticação de seu sentimento ) - que direito ele tem de matar ? E se amanhã a caça acabar ? E se os deuses, deuses que são tão animais quanto o bisão, o urso ou o cavalo, lhe castigarem pelo massacre ? Matar um bicho não equivale a matar a natureza ? O homem faz cerimonias para aliviar esse conflito. O xamã invoca os espíritos dos animais mortos, faz com que eles renasçam usando seus ossos, suas vísceras, pinta suas eternidades na pedra, honra seu sacrifício. Após a cerimônia, em paz com a natureza, o caçador parte para a floresta, com a certeza de que a alma do animal está reencarnada. A caça poderá prosseguir.
Inimaginável para nós tamanha união com a natureza. O homem não como um animal, mas como menos que um animal. Um ser que deve tributo e pede perdão ao caçado.
Você pode pensar que tudo isto é um chute. Mas não. Esse modo pré-escrita, foi verificado em pleno século XX nos esquimós, em relatos de tribos indígenas norte-americanas do século XIX, nos lapões da Finlandia, nos maoris da Nova Zelandia. No que restava de pré-histórico em nosso tempo.
O que me fascina é imaginar o quanto ainda carregamos em nossos genes desse caçador. O quanto devemos sofrer inconscientemente pela culpa de estuprar a ordem natural da vida. Andamos de pé para olhar pela savana, para avistar a presa. Falamos para organizar a caçada. E nossa arte é manifestação dessa realidade.
Com a agricultura deixamos de ser um bicho em meio a vida natural e passamos a modificar esse meio. Derrubamos a mata, afastamos os animais e fazemos algo que nenhum homem fazia antes : observamos os ciclos da vida. Começamos a nos ver como um ser fora da ordem natural. Todo animal caça. Nenhum faz uma horta. Mais que isso, ao plantar a semente no solo ( aparentemente morta ) e vê-la gerar vida, criamos toda uma religião baseada no renascimento. Enterramos nossos corpos também. O homem toma consciência de sí como estranho em meio aos outros seres vivos. Nós, como somos até agora, nascemos aí. Não vamos atrás da caça. Nos fixamos e esperamos.
Cães, cabras, porcos e cavalos são usados como bichos-instrumentos, e com sua domesticação é perdido o último grão de união à vida original. Não mais pedir perdão. Usar.
No ócio de passar o dia vendo cabras pastarem nasce a filosofia grega. Mas essa é outra história. O que penso é na arte visceral de Picasso. Em como ele entendeu tudo isso e viveu tudo. Como sua arte se parece com a arte dos xamãs de milhares de anos atrás. Como ele foi o psicótico-curado, o sonhador-anunciador, o caçador-perdoado. Picasso, e também Klee, são xamãs perdidos na época errada, ou, mais provável, homens que fizeram a maior das viagens : entraram tão dentro de sí mesmos, foram tão fundo, tão longe, que viram, por um terrível segundo, a cara do caçador, a mão do agressor, e mais ainda : viram aquilo que todos nós perdemos- a alma livre. Voltaram então, e pintaram. As imagens de nossas caçadas domadas, o xamanismo de nossa loucura.
Da caverna em Altamira, no norte da Espanha, em 15.000a/c, até Pablo Picasso, em Barcelona, 1910. Um segundo num pensamento. Evoluímos? Para onde?

white light/VU/white heat

WHITE LIGHT vem uma massa de som mal gravado. Uma embolação de piano, guitarras e vocais. Tudo esmagado entre os sulcos do vinil azulado. E uma vozinha irritante, cínica, sobre toda essa montanha de cacofonia.
WHITE HEAT ele fala sobre algo a ver com machos e gays. Eu soube que os técnicos de som do estúdio ligaram os botões e foram embora. Não queriam ouvir o que ia ser gravado. Eles estavam acostumados a trabalhar com Miles Davis e Bob Dylan. Aquilo não tinha nada a ver. Na verdade, não tinha a ver com nada.
OOOOOOOH...WHITE LIGHT no rocknroll tudo sempre foi de verdade. Lennon era de verdade, Hendrix era de verdade, James Brown era de verdade. Mas esse chato era irônico. Não era de verdade, ele era feito por sí mesmo, ele era distante, ele era...argh...confuso. Não era símbolo de adolescente nenhum. E não se metia a artista bacana. Que droga ele era?
OOOOOOOOOOOOOOOOOOOH...WKITE HEAT e era amigo daquele tal de Andy Warhol, o cara fake, que chamava seu ateliê de Fábrica, que disse que todos seriam famosos por 15 minutos no futuro, que se mantinha distante da vida, cercado de telas/ cãmeras e puxa-sacos, que dizia que o símbolo de nossa era seria a lata, a estrela pop, a produção em massa, a publicidade. ( Andy criou o mundo de 2009!!!!! mas em 1967, quem poderia saber ? ).
WHITE LIGHT termina sem ter começado. Um zumbido de algum instrumento de cordas, os vocais mal ensaiados, um cabaret de algum buraco de grande cidade cheia de óleo e gás, uma porcaria de música mal tocada e mal gravada. Mas
Agora até dá pra dançar. Um bumbo ( queria entender o porque de se botar uma dona de casa nas baquetas...) e uma guitarra que tenta solar. Faz zumbido, se enrola pela melodia como uma trepadeira venenosa. Esta tem melodia ! Será que este troço vai melhorar? John Cale começa a falar: ele narra um pacote. Um embrulho. É um rap de branco galês formado em música erudita de vanguarda. Eu mostrava essa música para meus amigos fãs de Zappa. Eles riam e não levavam a sério : uma piada. Parece ressaca de ópio.THE GIFT. Mas
A coisa se destrói de vez. Uma porra de massaroca de som molenga e confuso que se parece com um aviãozinho caindo de cansado. Tem uns vocaizinhos de brincadeira. Uns ruidozinhos de acidente. O tal bumbozinho batendo com ritmo invariável. Que droga é esse Lou Reed? Fica com essa pose de Ginsberg/ Burroughs/Kerouac...Ele tá se achando! Pra que gravar isto? Não estamos na época de all you need is love? Então para que pintar de preto a capa de Sgt.Peppers?
SHE EVER COMES HERE NOW. O fiapo de voz de Lou. Como um farrapo. Por esta cançoneta todo compositor inglês daria a vida ( e todo cara esperto a tem plagiado desde então ). Caraca, isto é bonito pra cacete!!!! Mas não é flor e cor; é ressaca de heroína e escuridão. Vamos virar este vinil pelo qual paguei uma semana de trabalho e esperei um mês de alfândega...................
Agora fodeu! Isto não tem o menor sentido! É apenas barulho! A guitarra é uma serra elétrica cheia de microfonia, todo o resto é um frenético ribombar de explosões histéricas, e os vocais... sonâmbulos zumbis em catatonia pagã. ( Seja lá isso o que for... ). Tomara que este pesadelo acabe logo...Acaba!!!!! Que bosta, ACABA LOGO!!!!!!!!!!
Todo pesadelo pode ser pior. SISTER RAY. SISTER RAY. SISTER RAY. SISTER RAY. SISTER RAY.
SISTER RAY.SISTER RAYSISTERRAYSISTERRAY SISTERRAY SISTER RAY. S IS TER R AY
Nada nunca foi assim. Nada nunca mais será assim. Nada nunca será outra vez como antes foi. _Esta música mudou a vida de todos que a ouviram na hora certa. _Depois dela nenhuma música pode me chocar. Nada nunca será louco demais após sister ray. Ela vem como manada de paquidermes trotando. Ela vem como ópera de mendigos de marte com raios nos olhos. Vem como o enterro de flores cobiçadas. Vem como agulhas enfiadas nas unhas. Ela vem e vem e vem.
Esse disco de merda acaba.
Amanhã vou escutar de novo.
Faz vinte e cinco anos que o escuto de novo.
Faz quarenta e dois que ele é o disco central da história do rock.
Sem ele nada que interessa teria existido. Nada. Nada. Nada.
Ele nada vendeu. Mas há o mito : os poucos que o ouviram se tornaram artistas. Formaram bandas, pintaram quadros, escreveram peças e romances. Ou simplesmente piraram. Nada.
Existem discos mais bonitos. Mais satisfatórios. Criativos. Mas nenhum tem o seu potencial destrutivo, a sua coragem, a sua INTELIGÊNCIA. O que irrita nele ( como em tudo que Lou e Cale fazem ) é o fato de que eles são e sabem que são mais inteligentes. Colocam qualquer gêniozinho irado ou sofredor no bolso do colete. Derrubam qualquer poeta. Fazem com que todo barulho perca sua originalidade. Após White Light nada é novo de novo.
OUTRA VEZ.

SOMOS DEUSES PARA ELES....

Encontrei esse deus em minha vida. E devo lhe dizer que vejo seus milagres todo dia !
Veja só: todo dia, não sei como ele faz isso, mas todo dia ele me alimenta. Milagrosamente, ele faz de minha tigela vazia, uma tigela cheia! E transforma o dia seco, numa vasilha repleta de água fresca.
Bolinhas de borracha brotam de suas mãos, e como um titã poderoso, ele faz dessas bolinhas cometas, que voam alto e caem longe. É meu dever sagrado à esse deus recuperá-las todas.
Ele surge em minha frente com mágicos discos de plástico, com ossos que surgem sem que eu veja nenhum esqueleto por perto, com mantas que me aquecem, com toques milagrosos que fazem desaparecer minhas pulgas. Um deus que cura minha sarna...
Tento, há tanto tempo... Decifrar sua língua sagrada. Sinto que se dominasse a linguagem celestial, eu poderia evoluir, atingir uma espécie de nirvana. Mas tudo que compreendo é tão pouco...
Meu deus se posta em profunda meditação. Fica horas diante de uma tela luminosa, paralisado. O que se passará em sua magnífica mente ? Depois ele segura um pouco de papel diante do rosto e fica parado, por toda a tarde, sem se mover. Dorme ? Não, seus olhos estão abertos. Qual o segredo ? Ora, sou apenas um mortal, como saber ?
Esse deus me ergue do chão e me leva às alturas, e me coloca em meio ao vento, quando vejo a paisagem rodar. Faz milagres diante de mim, e eu o adoro em minha pequenês.
Ele não sente cheiros, é superior a isso; não tem pêlos, evoluiu, é puro pensamento. Me guia pelas ruas, me protege de chuva e de sol, e me leva`a assustadores semi-deuses que me purificam com água e espuma, num ritual simbólico. Assustador. Eles fazem chover e ventar!
Meu deus pode dispor de minha vida a seu prazer. Rezo para que ele a mantenha. Meu deus pode me abandonar e me deixar à solidão e ao abandono, peço à sua bondade celestial que me poupe dessa dor. Ele é meu pastor, com ele nada me falta.
Deito-me em seu colo e folgo em seu calor...
...........
Escrevo este texto na esperança de que todos os humanos sintam a imensa responsabilidade que é ser um deus para alguém, mesmo que esse alguém não fale e tenha quatro patas.

SÍMBOLOS

Sem meus símbolos não há razão para minha vida. Tudo que importa é simbólico. A realidade não tem nenhum peso em mim.
Cada mulher que amei foi signo de algo maior que eu mesmo e que ela. Fomos toda uma galáxia. Todo amigo traz um significado maior que sua presença. Um é uma alvorada, outra é literatura, outro é a morte.
Toda arte é mais que vida. É um caminho me levando à vida que vale viver. Um filme torna-se um mito, uma canção é código de honra, uma pintura é minha alma e um poema é um deus.
A chuva não é água que cai. A chuva é hora de poesia, momento de nostalgia, grama verde, alma de criança, páginas amareladas, luz de vela, pele nua, guarda-chuva que é uma sinfonia, sonhos de paixão. Não é apenas um cair de gotas, trata-se de um símbolo.
A França não é um país. É um quarto de mofo e suicídio, vinho e pão e radicalismo, livrinhos no bolso do sobretudo, terra fértil e girassóis, é uma mulher que ama com falsidade, desejo de ser eterno, a França é pensamento, flanar pelo espírito, becos com putaines e Gitaines.
Uma França real, de Renault e Sarkozy, filmes coloridos e Gaultier, não me interessa. O símbolo me basta.
Símbolo que é esta letra que voce lê agora. Este azul que é o que voce imagina ser, agora. Eu vejo símbolo em tudo. Um rosto espreita por detrás de cada objeto e há uma segunda voz em toda palavra.
Impossível viver sem um totem, sem um mito, sem um hino. Ver o mundo das pedras, pra quê ? Tudo tem um apelo secreto, tudo é uma sedução enviezada, cada dia é uma charada de outro dia e o tempo é a chave para o maior dos símbolos.
Símbólico eu que me surpreende todo dia. Sou sinal cifrado para mim mesmo. Poetas maravilhosos, romancistas abstratos, construtores de novelos e de labirintos. Yeats, Mallarmé, Proust, Gauguin, Chagall, Baudelaire, Eliot, Blake, Shelley, Joyce.
Satie, Debussy, Ravel, Fauré.
A torre, o barco, o chá, a ilha, a vaca, o ópio, Abril, o tigre, o pássaro, a Grécia.
O sol não é uma bola de fogo e o mar não é feito de água. São infinitos deuses e infinitos motivos de mitos. Apenas isso importa.
Deixo aos outros suas pedras e seus metros.

MIZOGUCHI/BOETICHER/OS ELEITOS/WILDER

A MONTANHA DOS SETE ABUTRES de Billy Wilder com Kirk Douglas
Escrevi mais longamente abaixo. O inferno da midia já existia em 1952. Um jornalista antológico feito por um Kirk muito inspirado e uma pobre vítima num big-brother do inferno. Filme fiasco em seu tempo, hoje é considerado obra-prima. Nem tanto. nota 7.
JUVENTUDE TRANSVIADA de Nicholas Ray com James Dean, Natalie Wood, Sal Mineo.
O que é ser adolescente ? Bem... nada mudou. Ser isolado/ não compreendido/ querer algo sem nome/ amar sem saber amar. Dean foi um criador- este filme é seu testamento. Todo ator jovem de hoje o imita ( inclusive e principalmente na vida pessoal ). Todos falam seu evangelho. O filme é muito fraco quando Dean não está em cena. Com ele, somos hipnotizados. nota 6 para o filme.
CONTOS DA LUA VAGA de Kenji Mizoguchi
Ele foi antes da segunda guerra o mais querido diretor do Japão. Após a guerra foi chamado de velho e jogado ao canto. Este filme, dos anos 50, é sua volta por cima. Um filme politico e feminista, que é também um poema sobre fantasmas e amor. Algumas das cenas têm uma beleza plástica inesquecível. Mizoguchi nunca corta se puder não cortar. Um mestre. nota 9.
OS ELEITOS de Philip Kauffman com Sam Sheppard, Dennis Quaid, Ed Harris, Fred Ward, Barbara Herschey, Jeff Goldblum.
O melhor filme americanos dos anos 80 e um dos melhores dos últimos quarenta anos. John Ford habita esta épica aventura sobre heroísmo, fracasso, fama e amizade. Chuck Yeager, aviador real, torna-se mito, mito daquilo que a América gostaria de ser e não pode ser mais ( jamais ). Para se ver, rever, trever e decorar. nota DEZ!!!!!!!!
AVANTI ! de Billy Wilder com Jack Lemmon e Juliet Mills
Um milionário americano, apressado e ranzinza, vai a Itália recolher o corpo do pai para enterrá-lo em seu país. Conhece a filha inglesa da amante de seu pai e se apaixona por ela e pela Itália. O contraste entre Itália e América nada tem de novo. Mas Wilder, em mais um de seus fracassos, conduz esta comédia com muita leveza e finesse. Um prazer ver Lemmon trabalhar e uma diversão fofa e que jamais nos trata como idiotas. nota 6.
EXTASE de Gustav Machaty com Hedy Lamarr
Nos anos 30, na Austria, Hedy foi lançada como atriz sexy neste filme. Uma das piores coisas que já assisti. Hiper pretensioso, rígido, muito mal interpretado, ridiculo. nota ZERO!
SETE HOMENS SEM DESTINO de Budd Boeticher com Randolph Scott, Lee Marvin e Gail Russel
Lee Marvin faz história neste western. Com longo lenço verde, ele traz à tela um vilão inteligente, simpático, glamuroso. Rouba o filme e cada cena com ele é uma festa. Este filme, considerado pelos críticos-cineastas da Nouvelle-Vague, uma obra-prima, é de uma simplicidade absoluta. A história, com poucos personagens e maravilhosos cenários, se desenvolve exata, sem atropelos, sem lentidão, econòmica. Budd, aventureiro-diretor-toureiro, dirigiu dúzias de bons filmes baratos. Este é o melhor. Nota 9.
MULHERES DA NOITE de Kenji Mizoguchi
Em sua época de má fama, Mizoguchi dirigiu este filme, muito triste, sobre prostitutas no Japão devastado pela guerra. Apaixonado pelos filmes italianos do neo-realismo, Mizoguchi faz a versão nipônica de Rosselini. Os escombros do que restou de Osaka e Tokyo são fascinantes : o Japão como uma imensa favela, dominada por ladrões, putas e contrabando de drogas. O filme é muito bom, mas sua força embrulha o estômago. nota 7.
UNDERDOG de Frederick de Chau
Cumpre o que promete. E é assim nosso cinema atual : como um produto numa gôndola, ele tem um rótulo onde se diz : drama-romantico/ quadrinhos/ arte/ aventura. Se a lata matar o apetite por cinema ( matará esse apetite por duas horas ), sua função estará cumprida. Colou. Este cola. O herói é simpático, tem uma adolescentizinha bonitinha, uma liçãozinha de moral. Valeu. nota 5.

Desonra- Coetzee

Um horror.
Tudo de podre que existe no mundo hoje, nesta pequena Africa em que vivemos, habita sorrateiramente este livro. O professor em crise ( no fundo um idiota ), vigiado por colegas, pelo vizinho da filha, por todos; a filha, paralisada pela culpa daquilo que não fez; a aluna, presa no mutismo de uma geração molenga; a própria Africa, dividida em rancores históricos e tentativas de esquecimento. Todo o romance transpira desespero. Porque o que sentimos é vazio de transcendencia.
O professor não percebe o que poderia salvá-lo : a bondade. Ele é seco, estéril, um anti-pai. A filha não quer enxergar o que poderia a salvar : a absolvição. Ela não é culpada pelos crimes coloniais. E os negros não podem encarar o óbvio : vivem no rancor destrutivo. A vida torna-se uma farsa, onde ninguém escuta ninguém e onde o que acontece é negado.
Coetzee escreve muito simples. Frases e capítulos curtos, vocabulário básico. Mas escreve com elegância, descrevendo o que precisa ser visto. Seu amor aos animais está presente em todo o livro, amor que o professor tem dificuldade em aceitar, pois não é racional. Não é sexual.
Interessante perceber como para ele, David, amar está ligado a possuir carnalmente. Preso nessa armadilha, ele não percebe que assim lhe é impossível amar a filha e os bichos com os quais é obrigado a trabalhar. Amor preso a carne, portanto, amor falho e perecível. Tonto. Ele jamais amou a aluna. Ele jamais amou a prostituta que o atendia. Ele as possuia. Quando tenta expressar amor verdadeiro, é um desastre. Perde sempre.
No final, eis um bom livro de um autor central deste tempo de autores periféricos. Leia.

HEROÍSMO HOJE

Byron escreve sobre um anjo caído, anjo do mal. Lúcifer. Um ser-coisa, que se guia pelo desejo de seu coração, o desejo de seguir o mal. Esse desejo o leva a absoluta solidão. Byron se via nesse anjo caído. Lord Byron viveu isso. E tombou na revolução grega, arma na mão, famoso em todo mundo, maldito na Inglaterra, voluntário pela causa da liberdade. Tinha 36 anos. Sua vida foi um tumulto de sexo, drogas e liberdade. E poemas endereçados aos céus.
Gauguin nasceu no Peru. Pais franceses, logo voltaram para a França. Paul se casou, teve filhos e enriqueceu como corretor da bolsa de valores. Pintava como hobby. Aos 40 anos, largou tudo, mulher e filhos, dinheiro e conforto. Passou a se dedicar exclusivamente à pintura. Viajou para o Tahiti. Defendeu a causa dos nativos contra os colonos franceses, apaixonou-se pelas jovens nativas nuas. Sentiu fome e muita dor. Vendeu quase nada e usava tintas ruins, telas ruins. Teve sifilis. Morreu no amado Tahiti.
Modigliani tinha uma absurda beleza. Nasceu em familia rica, no conforto do sangue azul italiano. Mas se apaixonou pela boemia. Largou tudo e foi viver em Paris. Rei dos bares de má fama, roubava pedras das ruas para esculpir. Enamorou-se de modelos-prostitutas. Namorou e viciou-se em absinto. Jeanne Hebuterne, jovem comportada, apaixonou-se por Modi. Tiveram uma filha. Mas o absinto cobra contas, e Modigliani pirou. Brigas, rompimentos, voltas. Ele morre jovem. Ela se atira pela janela em seguida. Nenhum pintor pintou nada tão erótico quanto Amedeo.
Rimbaud começou a escrever ainda criança. Tornou-se famoso entre os poetas franceses por isso e também por sua beleza. Verlaine, bem mais velho, larga tudo apaixonado por Rimbaud. Os dois viajam pela Europa inteira. A pé. Vivem juntos e são perseguidos pelo preconceito. Aos 17 anos Rimbaud escreve toda sua obra principal, que irá o imortalizar. Era o anúncio da sensibilidade do futuro. Larga Verlaine e vai para a Africa. Aos 19, sua carreira literária se encerra: nunca mais escreverá. Na nova vida, ele resolve ficar rico. Faz comércio de café, tráfico de armas, talvez até escravos. Endurece, cresce, torna-se um outro. Morre de gangrena, em algum buraco da selva. O que ele terá sentido ?
E há tanto mais para ser dito. 200 homens perdidos no Pólo Sul. Sem comida, sem abrigo, sem comunicação. Sobrevivem e são resgatados. Três anos depois.
Thor Heleyal atravessando o Pacífico numa balsa feita de papiro. Só. E consegue.
Jean Vigo dirigindo seu único filme deitado numa maca; morrendo de tuberculose. Termina a última tomada e morre. Deixa-nos uma obra-prima: Le Atalante.
Eddie Aikau se mandando para o fundo da tempestade para salvar náufragos. Com sua prancha, surfista famoso. Salva alguns e desaparece no mar.
Chuck Yeager voando pelo prazer de voar, indo mais rápido, mais livre, mais solitário.
O que é o heroísmo? Se sacrificar ? Por quem? Um soldado se sacrifica, é não é necessáriamente um herói. Então o que faz de um homem um herói ?
É aquele que cai na terra e segue seu desejo. Todo herói é um anjo caído. Que segue, sem se abalar, seu destino. Ele faz o que precisa ser feito e que só ele poderia fazer. Faz por sí mesmo, e como consequencia, afeta uma humanidade ao seu redor. Mas faz para satisfazer sua originalidade. Só ele sabe o que só ele deve e pode fazer. Todo herói está isolado.
O herói hoje está perdido não porque toda montanha foi conquistada ou todo mar rastreado. O que mata o heroísmo é que toda individualidade está cerceada, vigiada, acomodada num rótulo padrão. Byron seria um freak narcisista, Gauguin um irresponsável pedófilo, Rimbaud um giletão arrependido, Modigliani um playboy viciado, Aikau um cara que se deu mal, Yeager um caipira bronco, Mozart precisaria de um empresário melhor e Beethoven seria uma estrela psicótica. Thor teria cruzado o pacífico para vender os direitos do filme sobre sua vida. Rótulos para heróis. Rótulos de supermercado. Um herói precisa esquecer tudo isso : não se julgar, não se auto-analisar, não se corromper. Ele não mira um alvo definido, ele vai fundo no que sua alma quer. Seja o que for. Enxerga o fundo do escuro interior e sai para a vida, fazendo o que seu daimon ordenou. Sem se justificar, sem ser rotulado, sem pedir paz, sem desistir, sem se iludir. Jamais pensando em ser como os outros são, nunca como deveria ser. Um herói se desnuda, larga o supérfluo, não carrega malas, não tem garantias. Nada é menos heróico que um cartão de crédito, um GPS, um comprimido de Prozac. O herói tem como única garantia seu desejo. Seu desejo, não o de ninguém outro.
Cervantes escreveu Dom Quixote na prisão, longe de seu país, esquecido.
Shelley passou a vida lutando pela igualdade dos sexos e pela extrema liberdade em polìtica. E pelo ateísmo.
Tolstoi perdeu tudo por sua fazenda socialista, onde todos eram iguais.
O herói não almeja atingir fama. Ele faz porque TEM que ser feito.
Para entender o que é isso, assista O SOL É PARA TODOS, filme já analisado aqui. Tudo está lá: aquele é o único tipo de heroísmo que nos resta. E é belo, muito belo.

FABLES OF RECONSTRUCTION- REM

Posso ver. Em meio ao capinzal, há um barracão de blocos cinzas. Cercado pela chuva caindo e entupido de teias de aranhas. Posso ver. Há um vazio em todo redor e uma imensa coragem. Eu vou só. Jamais estive tão só. Aquele disco estava rodando. Era 1985 e minha vida era uma merda. Era 1985 todo mundo queria ser David Bowie ou Bryan Ferry. Todo mundo era cool e as meninas queriam namorar Sting. E O REM queria ser Robbie Robertson!!!!!! Caraca!!!!! Todo mundo queria ser moderno e eles eram Byrds e Flying Burritos !!!!!! Eles estavam no barracão, ao meu lado, eles eram comigo, eles tinham a faca que abria minha casca e estraçalhavam o meu medo. Eles me apaixonaram. Eram eu.
Gravaram FABLES OF RECONSTRUCTION na Inglaterra, com Joe Boyd, produtor de folk dos merry 60's. Mas o disco é Atlanta, é Mississipi, é do céu, do céu, do céu, do céu... No barracão cheio de teias e vinho eu me apaixonei por uma menina solitária como eu e como este disco é. Rodando ela e eles no meu coração, e rasgando minha carapaça e minha febre e traçando rastros de ódio e sendas de paixão e loucura. E o heroísmo de se ir contra. Sempre contra, pois quando eles se tornaram mainstream perderam o tesão. Que está aqui inteiro.
A capa do disco dá medo como dava o descampado. Mas há o som de tantos violões juntos e de milhares de guitarras de 6 cordas e de uma bateria pesada e Stipe está cantando rouco e parece estar dormindo ou talvez tenha morrido e tudo neste disco seja uma mensagem para quem já viu o inferno. Mas o meu barracão começa a ser aberto e as teias se vão e sinto pena das teias. Maldita década onde até quem não queria ser Bowie e Ferry queria ser poeta romântico e este disco é Rimbaud. Rimbaud viu a verdade.
Eu não sabia que a América podia ser tão profunda e eu não sabia que amar podia ser tão só. Mas eu sabia que tudo se resolve na estrada e o barracão desaba e a rua pede que eu vá com ela. Vou. Pois este disco é um milhão de estradas cruzadas. Como ele é toda uma sinfonia de cordas quando o mundo só escutava uma sinfonia de teclados. Falando de paixão todo o tempo. Falando como uma faca fala.
Lá bem no final do disco tem uma estranha que me aguarda. E nada tem a dizer a não ser que ela sabe que sou tão estranho quanto ela. E que nunca estaremos juntos como agora e aqui. E esta música, sobre amantes estranhos, chega a beira do absurdamente bonito e do magnificamente simples. E nada tem a dizer.
Ao final, uma canção para Wendell Gee. Cheiro de pinho e de café e frio de neve e cowboys que não sabem montar. E um banjo que vem como a mão quente de alguém. O REM alcança as alturas que só The Band alcançou um dia. Lá no alto, no ar claro, no absolutamente certo, no que é para sempre. Quando ainda se acreditava no ser para sempre. Quando acaba não termina. Fica. Isto fica. isto nunca vai mudar. Isto era, é, será. No mundo de Robertson, McGuinn, Parsons, Stills, Furay, Young, Dylan...

A RAIZ DA INFELICIDADE- PAUL AUSTER

Lendo "O inventor da solidão" de Auster. É mais uma tentativa de gostar desse autor. Lendo-o percebo o porque de me irritar sua escrita: ele é um típico escritor do estilo blog: escreve tudo o que faz e pensa, imaginando que isso possa interessar a alguém ( e pelo jeito interessa à muitos ). Quem inventou essa praga de que se voce escrever com sinceridade e com algumas citações bacanas, seu livro se fará por sí mesmo ? Fazem décadas que uma tonelada de gente que escreve fica detalhando seus pensamentos e seu cotidiano nada interessante e chama isso de literatura. Onde está o estilo? Onde a criação? A fecundidade?
Auster é estéril. O livro é uma confissão masturbatória. O estilo é o de todo narcisista-eu eu eu eu. Eu sou só. Eu moro em tal lugar. Eu penso. Eu escrevo. Para esse tipo de escritor, eu oponho Italo Calvino, Borges, Machado de Assis : o reino da criação. O autor cria um mundo, jamais copia sua realidade. Ele fecunda.
Há um belo pensamento no livro : " Toda tragédia do homem vem de um único fato- sua incapacidade de ficar quieto em seu quarto". Isso é Pascal. Isso é fecundo. Porque me faz pensar. Onde existe hoje a liberdade de se ficar quieto em seu quarto? A liberdade de se ser só. O mundo invade meu quarto : estou conectado à tudo. Pior que isso: se ficar duas horas sózinho, me sentirei, condicionado que estou, a me sentir infeliz. Será?
Minha nostalgia ( nossa? ) da infância é a nostalgia de se ficar em paz no quarto. Um lugar onde tudo parecia estar à mão: cama, brinquedos, comida, água, calor, proteção. Um ninho. Será que as crianças classe média de hoje têm essa experiência? Um espaço protegido, a prova de invasão, para elaborar sonhos e desejos? Um mundo de eterno presente e portanto, de eterna e deliciosa nostalgia?
Todos nós construimos quartos- hoje mais que nunca a vida não é comunitária. Ninguém entra na casa do amigo sem avisar ( e quando fui adolescente ainda se fazia isso. Meus amigos surgiam em meu quintal sem avisar ). Portanto, em um quarto onde há tv-computador-banheiro-geladeira-telefone, voce pode passar meses sem qualquer privação. Nunca foi tão fácil viver nesse tal quarto. Mas observe melhor a frase de Pascal : ficar quieto em seu quarto. Preciso explicar?
As mais deliciosas lembranças de minha infância são as tardes em que ficava quieto. Me deitava de barriga pra cima, sem absolutamente nada para fazer e sem pensamento algum. Logo me vinha um calor delicioso na região da barriga, um bem estar que subia pelas pernas, uma doce preguiça que me envolvia os braços. Não dormia. Ficava escutando a tarde. Os pássaros, o vento nas folhas, vozes distantes vindas de casas vizinhas. Nada mais. Quieto em meu quarto. Nada para fazer, nada desejando, nada incomodando.
Hoje, às vezes, sinto tudo isso de novo. A delicia desse calor. Mas é uma saudade: ele vem, delicioso sim, mas vem como coisa invocada, pedida, desejada. Não é natural, é um trabalho. Trabalho para atingir o vazio. Isto é uma incongruência.
Eu me propus a falar do livro de Paul Auster. Falei de Pascal. Creio que explica o que é seu livro.

3 grandes ( e muito influentes para os dias atuais ) filmes.

A MONTANHA DOS SETE ABUTRES.
Filme de Billy Wilder com Kirk Douglas. Este era o filme favorito de Wilder. Talvez por ter sido seu mais odiado filme e imenso fracasso. A partir dos anos 80 começou a ser reavaliado, se tornando um de seus mais importantes filmes. Mas porque foi tão incompreendido e hoje é tão atual ? Vamos a sua história : Douglas é um repórter fracassado que trabalhando num jornaleco de uma cidadezinha do Novo Mexico vê a chance de dar a volta por cima. Um homem está soterrado numa mina indígena. Prolongando a agonia do resgate ele poderá monopolizar jornais, rádio e tv, pois o que vende é desgraça, e se ele fizer dessa desgraça uma novela a audiência será gigantesca. Douglas passa a atrapalhar o resgate, iludir a vitima, corromper os politicos. No final, tudo dá errado, mas não há catarse no filme. Todos e tudo continuam tão podres como sempre. Wilder prova que todo comediante é um grande pessimista. Este filme, que nada tem de engraçado, desnuda o verdadeiro Billy, o artista que viu o nazismo de perto, o fim do império aus´tríaco, a degeneração da civilização européia. Nada dá alivio na tensão deste filme : o repórter é um verdadeiro filho-da-puta ( não há melhor definição ). Sua alegria com a súbita fama é revoltante. O xerife da cidade é um ladrão e o empreiteiro, um pau-mandado. A esposa do acidentado é uma vagabunda e a população da cidade aproveita a´notoriedade do lugar para faturar. Um circo grotesco se forma ao redor da tragédia. O final, em que sempre esperamos algo de xaroposo ou consolador, é duro, amargo e forte. Nada alivia. Kirk Douglas faz a perfeição o reporter. Ele nasceu para esse tipo de egoista cinico. Um forte retrato do mundo do espetáculo, onde o maior espetáculo é aquele que conjuga dor/morte/absurdo. ( Vide acidente da Air France ).
JUVENTUDE TRANSVIADA
Filme de Nicholas Ray com James Dean, Natalie Wood, Sal Mineo e Dennis Hopper.
Cenas em delegacia. Três jovens são entrevistados pelo serviço social. Natalie é uma filha que ama demais o pai e não é aceita por ele. Mineo é um garoto rico porém sem contato com os pais, e Dean é um desajustado que vive mudando de cidade. Seu pai é um fraco maricas, dominado pela esposa. Dean estréia na escola, é amado pelo personagem de Mineo e cria inimizade com a gang da escola. Vem a muito famosa cena do racha e o final, belo e dramático, em mansão abandonada. O filme inaugura o tipo de drama adolescente que seria chavão por cinco décadas seguintes. E ainda vemos nele traços daquele filme independente americano dos anos 90 e 2000. Mas porque ele é ainda tão atual, tão válido ? Vamos a apreciação: primeiro o fantástico Sal Mineo. Na época ele era namorado do diretor Ray e a bandeira que ele dá é flagrante. Seu personagem se apaixona por Dean e passa todo o filme sofrendo por esse amor gay irrealizado. Como isso passou na ferrenha censura de 1955 é um mistério! Seu rosto de baby, seus modos de efebo, tudo nos deixa surpresos e faz parte da imensa riqueza do filme. Filme, longe de ser perfeito, que afunda nas cenas dos "adultos" e que tem a minha muito querida Natalie Wood canastrona e mal definida. Ela compromete, e compromete muito. E tem, acima de tudo, James Dean.
Existe uma teoria que diz que Marlon Brando só foi Marlon Brando duas vezes : no Chefão e Último Tango, feitos no mesmo ano, para provar que ainda era o maior; e entre 50/56 com o objetivo de suplantar primeiro o gênio Montgomery Clift, e depois para esmagar o absurdamente carismático James Dean. E o que faz aqui James Dean ? Ele faz miséria! Cada cena com ele, cada pequeno gesto de mãos, toda expressão facial, a maneira de pular palavras, engolir as sílabas, balbuciar pensamentos, tudo nele nos deixa abismados, aturdidos, estupefatos. Ele sobra no filme, sobra naquela época. Todos lá parecem ser gente de 1955, mas Dean, como Brando na época, parece ser atemporal. Ele é de 55, mas é também um jovem louco de 67, um rebelde de 77, um bacana de 87, um esportista irriquieto de 97, um astro teen de 2007. Creia, sua influência é tamanha que não há ator desde então que não o tenha estudado, imitado, encorpado. Nicholson, Pacino, Cage, Depp, e todos os outros. Eles falam como Dean ( aquela voz grave e baixa, frases ditas devagar, pensamentos emitidos pelo meio, não sorrir, mas não ser sério, um ar de sofrimento superado, um charme de bad boy sensível ). Mas o mais fantástico é que eles não imitam James Dean apenas na técnica de atuar. Johnny Depp fazendo o pirata não é Dean, mas Johnny Depp numa entrevista é James Dean! A voz é a mesma, o olhar é o mesmo, o tédio identico, as roupas são as que JD usaria. ( JD e JD...). É como se todo ator americano desde então sonhasse em ser genial como Brando, mas fosse na vida pessoal um clone de James Dean. Assista este filme e deixe seu queixo cair. No mais, um comentário sobre Nick Ray : ele se tornou ídolo de Goddard e depois de Wim Wenders. Dá pra entender o porque. Este filme tem movimentos de câmera e angulações que antecipam o cinema dos dois e até mesmo o video-clip. Ray, bissexual, rebelde, esquisitão, fez aqui seu filme mais niilista. Por fim, uma tragédia: Dean morreria no ano seguinte numa Porsche Spyder. Aos 24, com apenas 3 filmes. Natalie morreria afogada aos 40, após uma vida de álcool e droga. E Sal Mineo se mataria aos 30. O que foi este filme ? Uma radiografia do que viria a seguir, para eles mesmos e para a América.
CONTOS DA LUA VAGA
Filme de Kenji Mizoguchi. Se o filme de Wilder mostra o espetáculo desagradável do mundo atual e se o filme do mito James Dean mostra o espirito desconfortado em que existimos, esta obra de Mizoguchi mostra o conflito entre dinheiro e alma e a guerra entre mulher e homem. No Japão do século XVI, assolado por cruel guerra civil, acompanhamos dois homens; um artesão ambicioso e um outro que sonha ser um samurai. Vemos então o que acontece. Massacres, ingratidões, muita crueldade ( a morte da esposa chega a ser insuportável ), estupros e assombrações. O filme começa como um libelo socialista contra o dinheiro e termina como poesia metafisica à favor das mulheres. Mizoguchi, o mais japonês dos cineastas, filma cenas de rara beleza. A travessia do lago, a princesa-fantasma seduzindo o artesão, e o final: a sequencia do retorno ao lar, momento de triste e absurda beleza poucas vezes vista igual. Um maravilhoso e inesquecível filme-poema, comentário sobre tudo aquilo que importa na vida. O diretor, ele mesmo dono de biografia dramática ( a irmã foi vendida como gueixa para salvar a familia da fome ), filma tudo com deliberada precisão. Poucos cortes, poucas fusões e uma câmera sempre leve, flutuando, observando. Este amado filme ( dos mais amados da história do cinema ) fica como documento de uma sensibilidade muito refinada, inteligente e de profundo amor às mulheres. São elas as guardiãs da sabedoria. Os homens, tolos, precipitados, erram todo o tempo, elas remendam nossos farrapos. Mizoguchi crê nessa idéia, demonstra-a com perfeita beleza e faz uma obra inesquecível.