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You're The Top - Anything Goes 1956



leia e escreva já!

COLE PORTER, UMA BIOGRAFIA- CHARLES SCHWARTZ ( EXEMPLO DE REFINAMENTO )

   Faça um teste,  quando foi a última vez em que voce ouviu ou leu um crítico, seja de música, cinema ou TV,  dizer que tal obra é "elegante" ?  As pessoas não esqueceram o que a palavra significa, o que acontece é que elegância deixou de ser relevante por ter se tornado miragem inalcansável. Existem palavras que deixam de ser usadas, elegância, assim como nobreza, são vocábulos congelados. Não fazem parte da lingua de nossa época.
   Mas existem nomes que ressoam dentro de nós como ecos desse tempo "elegante". São como cápsulas de tempo, recordações do que foi e pode, sejamos otimistas, um dia voltar a ser. Cole Porter é um dos nomes mais fortes.
   Houve um tempo em que as pessoas iam à Broadway para receberem lições de bom viver. Joie de Vivre, Savoir Faire. Viam musicais que eram compêndios de finesse, desde as letras ferinas e leves, até as roupas e cenários de bom gosto. Grosserias ou melô eram repudiados. E nesse mundo refinado, o principal eram as músicas. A canção popular americana vivia seu auge. Irving Berlin, Richard Rodgers, George Gershwin, Kurt Weill, Jerome Kern e Cole Porter. O que? Voce não os conhece? Que pena... Mas com certeza já ouviu suas melodias sem saber de quem era aquilo que te embalava. É moda, hoje, quendo um cantor ou cantora quer demonstrar classe superior, grava música de um deles. O desastre é sempre absoluto. ( Até mesmo Bryan Ferry se saiu mal ao gravar em 2002 um disco só com músicas desses autores ). Para cantar bem Cole Porter e etc é preciso ter vivido uma vida de jazz, de cabaret e de hotéis mais trens. Saber beber, saber comer, saber apreciar. Para se aproximar dessa turma é preciso ter vivido uma ou duas "histórias". Saber ler a vida. Não berrar, sussurrar.
   É surpreendente o fato de que as músicas de Cole, e ele tem mais de quarenta sucessos populares, nasciam sempre de cima para baixo. Explico. Suas canções estouravam primeiro entre as classes mais altas, tanto financeiras como intelectuais, e depois caíam no gosto da massa. Exatamente o contrário do que ocorre hoje, em que a música estoura entre o povão e depois é aceita pela elite ( ainda veremos funk nas universidades, pode esperar ). Voce pode dizer que isso significava um tipo de colonização da elite sobre a "plebe". Mas pode ser o contrário: um tipo de fé nas classes menos favorecidas. Elas ainda poderiam ascender culturalmente. Cole Porter lhes dava jóias, tesouros, sonhos de luxo e de classe. Elas não eram relegadas ao lixo dos lixos.
   Cole Porter nasceu muito, muito rico. Ao contrário dos outros grandes da canção clássica, ele não era filho de imigrante pobre. Sua vida foi aquela dos privilegiados. Cavalos, iates, viagens longas de navio, dezenas de empregados. Cole foi o tipo do cara que nunca soube o que é não ter um empregado ao lado, seja para lhe preparar o banho, seja para lhe chamar um táxi. Aliás, ele tinha sempre três, que levava com ele em viagens, hotéis e festas.
   Foi aluno em Yale e Harvard, mal aluno nas duas. Nelas, seu interesse era o futebol, ele fazia hinos para os times e também músicas para as peças das escolas. Desde sempre, seu interesse era viajar, se divertir. Cole ia a festas todos os dias, festas imensas, longas, inacabáveis. Ele logo começa a escrever musicas para peças profissionais, mas levará dez anos para ser aceito e ter seu primeiro sucesso. Enquanto isso, ele se divertia doidamente, todo o tempo. Era um dínamo, sempre fazendo piadas, truques, pregando peças, rindo sem parar. E gastando aos rodos, em jóias para amigos, em bailes e jantares, em roupas, em casas imponentes, em criadagem.
   Cole se casa com Linda, uma multi-milionária e fica mais rico ainda. Detalhe, é um casamento sem sexo. Cole Porter era gay, um tipo dito "insaciável", e Linda o aceitou assim. Eram grandes amigos. Esse tipo de relação era comum naqueles tempos e vários amigos de Cole se casaram desse modo. O que não era o caso de Gerald e Sara Murphy, o casal americano que vivia na França e logo fez amizade com Cole. Picasso, Cocteau, Stravinsky, Heminguay ( se voce viu o filme de Woody Allen, os Murphy aparecem e Cole Porter é aquele cara ao piano ). Eles inventam a Riviera, lugar fora de moda na época, Cole compra uma imensa Villa em Antibes. A vida se torna um carnaval, bailes a fantasia, festas de circo. Depois Cole vai morar em Veneza. Drogas, orgias, mora num palazzo que tem um salão onde cabem 1000 pessoas. Pinturas de Tiepolo e de Ticiano, ouro nas paredes, cristal. Ele cria mitos: de que lutou na primeira guerra. E viaja: oriente, mares do sul, Caribe, África. E sempre levando um séquito de amigos, de amigas, de empregados. A VIDA COMO UMA DIVERSÃO AMALUCADA. A arte, a música de Cole Porter é reflexo dessa vida, desse universo, desse mundo. Essas músicas, tão refinadas, terem se tornado sucessos pop é um maravilhoso milagre. Ouví-las é adentrar essa diversão esnobe, maluca, genial.
   Cole é considerado até hoje ( e cada vez mais ), o melhor letrista popular da história. E na verdade comparar as letras de Cole com músicos pop de 1960 ou 2010 chega a ser grotesco. É como comparar uma peça de Wilde com um roteiro de chanchada. Mas não vou cuspir no que adoro. Letras em rock são completamente secundárias. Elas existem para serem facilmente decoradas, feitas em função do refrão. Elas são apenas mais um instrumento. Na música popular clássica, aquela de Cole e de Gershwin, as letras são tão importantes como a melodia e as palavras devem se casar com a linha harmônica. Mais que isso, elas precisam ter originalidade, têm de ser "elegantes" e cultas. E em termos de rimas originais, informação e fluidez, ninguém chegou perto de Cole Porter. O rei da letra cínica, jovial, humorística, de duplo sentido.
      The dragon flies, in the reeds, do it
      Sentimental centipedes, do it
      Let's do it, let's fall in love.
      Mosquitos, heaven forbid, do it
      So does every katydid, do it
      Let's do it, let's fall in love.
      The most refined ladybugs do it,
      When a gentleman calls,
      Moths in your rugs, do it,
      What's the use of moth balls?
      Locusts in trees do it, bees do it,
      Even highly educated fleas do it,
      Let's fall in love....
   Na pieguice do rockn roll ( com raras excessões ), onde tudo se resume a "I love you so " e "Don't let me down", nada se parece com isso.
    O livro descreve então a escalada de sucesso de Cole Porter. As estréias na Broadway, as críticas, o tempo em cartaz, as festas e festas. E os filmes feitos a partir de canções de Porter. Mas há tristezas também, ou ele não seria humano. Um acidente de cavalo marca os últimos trinta anos de Cole. Ele cai de um cavalo e o animal desaba sobre suas pernas esmagando as duas. O resto da vida é uma série de operações, dores e bengalas, até a amputação. Cole Porter, que sempre foi extremamente vaidoso, vê isso como humilhação. Mas mantém a classe, continua a produzir e seus maiores sucessos nascem após o acidente. Hollywood, fato raro, chega a produzir uma biografia sua em vida, totalmente fantasiosa. E quem Cole escolheu para ser Cole Porter? Cary Grant ( dizem que Kennedy queria que Grant fosse o ator a fazê-lo se um dia fizessem sua vida. Assim como o gangster Lucky Luciano. Ian Fleming pensou em Grant quando criou James Bond. O mundo queria ser interpretado por Cary Grant, inclusive o próprio Grant queria ser Cary Grant ). O que o filme não poderia contar era o prazer que Cole tinha em procurar seus amantes no baixo mundo. Caminhoneiros e marinheiros, Cole Porter tinha paixão apenas por homens rudes, durões e de baixa classe social. Teve sorte de não ser morto.
   KISS ME. KATE foi o último e o maior sucesso de Cole Porter. Cansado, ele faleceria no começo dos anos 60. Vaidoso, como sempre.
   Se voce quer começar a penetrar no mundo de Porter, aconselho o songbook de Ella Fitzgerald. Há quem considere este o melhor disco já gravado. Eu adoro, mas prefiro Cole Porter na voz de Frank Sinatra e principalmente na de Fred Astaire. Quem desejar saber TUDO sobre o que seja "prazer elegante" ou "refinamento feliz", basta ouvir Astaire cantar You're The Top ou Sinatra mandando I'Ve Got You Under My Skin ( que na verdade fala de heroína ). Não há modo mais classudo de se começar um novo ano.

The Band Wagon - Fred Astaire and Cyd Charisse



leia e escreva já!

E O PARAÍSO EXISTE! - A RODA DA FORTUNA, FILME DE VINCENTE MINELLI, DIVERSÃO DE LUXO.

   Betty Comden e Adolph Green escreviam filmes. Escreviam bem. Para demonstrar que Fred Astaire faz aqui um ator em decadência, nada de se mostrar uma notícia, nada de voz em off, nada de Fred andando sózinho pela rua; a primeira cena do filme é de um leilão de objetos hollywoodianos em que a cartola e a bengala de Fred Astaire não recebem um só lance. Em seguida dois executivos em viagem de trem comentam por onde andará Fred. Ele está na cabine, lendo jornal e os escutando. Tudo é demonstrado de forma simples, leve e sem forçar. Habilidade e elegância dos escritores.
  As três primeiras cenas do filme já são do mais alto requinte, sofisticadas  em sua pureza, em sua concisão, na habilidade de dizer muito com um mínimo de meios. Fred desce do trem e encontra seus amigos. Mas antes cantarola By Myself, e então, após o encontro, anda pela avenida cheia de gente, cores e brinquedos. Vem um número de dança com um engraxate negro. O público está ganho, The Band Wagon ( A Roda da Fortuna ) é uma festa.
  O roteiro trata desse ator velho e esquecido, que é convidado por seus amigos, um casal de roteiristas de teatro, a estrelar sua nova produção. Para esse show eles convidam o melhor diretor da Broadway e uma bailarina clássica. O filme irá satirizar diretores que se acham gênios e defender a arte para as massas, o musical.
  Cada cena é uma explosão de cor e de bons diálogos. Vemos os ensaios desastrosos ( o diretor teima em transformar tudo em Fausto de Goethe ), as reuniões com os patrocinadores, a estréia trágica e a aproximação de Fred e da bailarina. Todas essas cenas são sem música, e aqui explico pela enésima vez como se aprecia uma cena de musical ( quando ela é bem feita ).
  Fred leva Cyd Charisse para um passeio no Central Park. É noite e casais dançam. Os dois caminham sem falar e sem se tocar. A música entra e Fred arrisca dois passos, Cyd tenta mais dois... e então eles começam a dançar. Por que? Pra que?
  Cenas como essa demonstram o tipo de sensibilidade que se perdeu no cinema popular. As pessoas entendiam imediatamente que todo movimento de dança era a simbolização daquilo que acontecia no interior da pessoa, era o desejo explícitando-se e se fazendo exterior. Quando a música tem letra e se faz canção, tudo o que é dito demonstra o diálogo poético e direto de duas almas que se tocam. A música é desse modo a verdade mais verdadeira da vida. Nunca é mera fantasia, é a realidade interna da história narrada. Isso em bons musicais, nos ruins a música é arbitrária e nada conta.
   Toda a parte final do filme é em música. A cena dos Triplets é das coisas mais perfeitas e divertidas já feitas em filme. A letra se encadeando no humor da situação, e os três atores atuando com o máximo de prazer. ( Outro segredo de musicais: os atores têm de estar no limite todo o tempo. ) Mas é a cena que brinca com os contos "pulp" policiais que se tornou uma das mais famosas do cinema.
   Fred faz um detetive e tenta desvendar um crime. Tudo isso faz parte do novo show montado dentro do filme. Cyd Charisse, famosa por ter as pernas mais bonitas do cinema, é a mulher fatal. Ela abre a capa e exibe seu vestido vermelho. Para mim, uma das mais belas cenas da história. Se algum ser-humano quiser saber em profundidade o que é "jazz", basta assistir esta cena. Se um marciano quiser saber o que os seres-humanos fazem de melhor, que veja este filme.
  Não falarei sobre Astaire. Nem sobre Minelli, o diretor. Direi que no elenco há Jack Buchanan, como o diretor egocentrico, e que Buchanan foi um grande entertainer do West End londrino em seu auge. As músicas, nenhuma menos que ótima, algumas de gênio, são de Howard Dietz e Arthur Schwartz. Dancin in the Dark e That's Entertainment bastam para demonstrar seu alcance.
  Assistir um filme como este é um prazer. Um presente dado a si-mesmo. Assiti-o a primeira vez na TV Manchete, em 1990, numa madrugada de sábado muito deprimente. Quando o filme terminou eu estava completamente de bem com a vida. Isso é magia, isso é um musical.

OH! DIVINA DECADÊNCIA!- CABARET, UMA OBRA DEFINITIVA DE BOB FOSSE

Às vezes penso que se Deus existisse e Ele me desse a graça de um novo papel nesta vida, eu iria querer ser Gauguin ou Heminguay. Penso que diria isso a ele. Mas não, mais que Clint ou John Wayne, eu queria ser Bob Fosse!
Na entrega dos Oscars de 1972 ele concorria com O Poderoso Chefão. E Cabaret levou melhor direção, atriz, ator coadjuvante, fotografia e edição. Nesse ano Fosse bateu um recorde que jamais será batido: levou no mesmo ano o Tony, por Pippin, o Emmy por Liza com Z, e o Oscar por este soberbo Cabaret. Quem se habilita?
All That Jazz mostra bem quem foi Fosse. Mas é Cabaret o filme feito para se descobrir esse gênio do visual e da dança. Para quem não gosta de musicais, eis o filme que mudará seu conceito.
Baseado em textos de Christopher Isherwood, o filme, de produção independente, se passa na Berlin de 1931. Tempo de sexo, de medo, de glamour decadente, de ilusões. Vemos um inglês que chega a essa cidade-mito. Lá, ele conhece americana que tenta ser atriz e que na verdade é uma dançarina de cabaret. Os dois se envolvem com gigolô, com judia rica e com milionário gastador. A história parece banal, jamais é. Fosse insere nesse enredo toda a maldade latente do período, toda a histeria da diversão a qualquer preço, a cegueira de uma elite devassa. Gays, lésbicas, travestis, muita bebida, música, sexo sujo, e os jovens nazistas pairando como abutres.
O filme visto hoje ( havia o visto anos atrás, em especial de Natal da Globo ), impressiona. É um retrato perfeito do período. Há uma cena em que jovens alemães cantam uma patriótica ode à nação alemã que explica em dois minutos o porquê do nazismo. É aterrador, e pior que isso; voce entende os jovens arianos. Só essa cena justifica o filme. Mas há mais.
Em 1972 Cabaret era obrigatório para os modernos de então. E fica lógico de onde o movimento glitter ( incluindo Ney Matogrosso ) tirou seu visual e seu espírito de "decadência diáfana". O que hoje voce vê em clubes gays, os cabelos, as poses, o modo de falar, está todo na Sally Bowles de Liza Minelli. Ela é a mãe da parada gay da Paulista.
A atuação de Liza ( atriz de que nunca gostei ) é mágica. Seu personagem parece raso a princípio, mas vemos lentamente sua transformação, seu desabrochar, e ela acaba nos pegando. Sally é o glamour fracassado, o sexo sem amor, o desejo pelo falso. E então notamos coisa bela e maldita:
O mundo de Cabaret é o nosso mundo. A vida deste século de desejo vazio e histeria feliz é nosso mundo desde então. Este filme confirma mais uma vez que nosso tempo nasceu em Vienna e Berlin. Há o mesmo sexo livre e os mesmos entorpecimentos baratos, diversões podres, corpos aviltados e dessacralizados. Mas quais são os nazis de hoje? Qual a nuvem que paira sobre nós?
Os números musicais são antológicos. Money é de rever para sempre. Mas Willkommem, Cabaret e Two Ladies também. Repare no estilo Fosse: mãos que dançam, braços torcidos, cintura em cópula, jazz nos rostos ferinos. Mais sexy é impossível. Tudo mudou com Bob.
O filme diverte, enoja, emociona muito e é de uma beleza plástica inspiradora. Fosse coloca o mestre de cerimonias do cabaret como um tipo de Lucifer apresentador. Os pequenos flashs em que o vemos rindo ou piscando são maravilhosos. São toques de pimenta que fazem toda a diferença.
E temos ainda um dos melhores finais da história do cinema. Final que não comento, mas que é de uma simplicidade e de uma contundência infalível. O silêncio impera.
Cabaret é o tipo de filme que dignificava o Oscar e é um exemplo do tipo de cinema que se torna cada ano mais raro: artístico sem ser chato, divertido sem ser tolo, pop e ao mesmo tempo complexo, alternativo e ao mesmo tempo simples.
A vida é um Cabaret meu velho, e isso voce tem de saber.
PS saudades de tempo em que a Globo passava isto como especial de natal....

MY FAIR LADY - ELEGÂNCIA E PARAÍSO

Primeiro são as flores. Closes de flores em variadas formas e cores. Durante um minuto e meio é tudo o que vemos : flores. Estão jogadas as cartas : o filme trata de estética, a estética da visão e a estética da língua. Mas é também a estética do amor e do cinema em sí. Vêm os créditos do filme : Jack Warner produziu pessoalmente, o que significa muito. Audrey Hepburn significa perfeição. Audrey fez algum filme ruim ? Rex Harrison, que Paulo Francis tanto amava, significa civilidade em grau absoluto. A Warner queria Cary Grant, mas foi o próprio Cary, com sua elegância de sempre, quem disse ser um crime tirar Rex do filme. Rex Harrison era o professor Higgins da Broadway, e ele é Higgins. Temos ainda Stanley Holloway, que significa humor em alto grau e Wilfrid Hyde-White, que é simpatia suprema. Mas há mais. Hermes Pan cuidou da coreografia, e apesar de não haver dança propriamente, todos se movem com graça e leveza. Harry Stradling fotografou, esse mestre dos diretores de fotografia, e há no filme um brilho colorido que remete a conforto e solidez. Mas vem mais : Alan Jay Lerner escreveu o roteiro e fez as letras, adaptando Bernard Shaw. Foi este filme que me ensinou que em musicais as músicas não são "pausas", elas são o centro da obra, são elas que revelam a alma do personagem. Este filme tem as melhores letras, diálogos deliciosos e uma leveza de sonho. As melodias são de Frederick Lowe e os arranjos de André Previn. Todas as músicas desta obra são perfeitas. Todas são inesquecíveis, ele é o musical para quem não gosta de musical. Se após My Fair Lady voce continuar a detestar musiciais, bem... seu caso é perdido. Cecil Beaton cuidou do visual geral. Beaton foi o Oscar Wilde dos fotógrafos, o luxo dos luxos, o nome chave do esteticismo, o dandy supremo. O que mais este filme pode ter ? George Cukor na direção, o que quer dizer gosto e tato. Após tantos diamantes, eis que ele começa.
Um cenário que é Londres, talvez em 1910. Cenário que foi feito de verdade, com suas colunas, pedras e ruas. Vemos roupas elegantes, cartolas, calhambeques, carruagens, jóias, rostos asseados. É a tal era vitoriana. Estamos no mundo da elegancia e dos bons modos. Chove então, e se abrem guarda-chuvas. Observe, nada de importante aconteceu, mas seu senso estético já está desperto. Surge Audrey, suja e com voz deplorável. Ela é uma florista de rua. Com a fala das ruas de Londres. Surgem Higgins e Pickering ( nomes adoráveis ). Um é linguista, o outro é um coronel culto. Higgins diz que a língua é tudo, e o filme é ode de amor à língua inglesa. E vem a primeira canção.
Paulo Francis em belo artigo dizia que Rex Harrison, em Londres, colocou a audiência abaixo na estréia teatral de MY FAIR LADY quando abriu a boca para cantar. Rex era péssimo cantor, então criou um tipo de "fala cantante" que é simplesmente genial. E dificílima de ser imitada. Nesta primeira canção ele fala da língua inglesa. A letra de Lerner é coisa de gênio. Rimas e ritmo, tudo flui, apesar da complexidade das palavras. Estamos capturados : o filme triunfa.
Eliza Doolittle é Audrey. O mundo queria que fosse Julie Andrews, a estrela da versão teatral. A Warner, sem Cary Grant, dessa vez bateu pé : precisamos de uma estrela das telas : Audrey. Pois Audrey está como sempre : adorávelmente adorável. Na rua ela canta sobre a alegria que seria ter uma poltrona macia e um chocolate quente. Nos ajoelhamos. Que música linda ! Ela nos transmite uma beleza que chega a doer, a beleza da esperança. O filme cresce muito. O que já era excelente fica ainda melhor.
Uma cena de poesia suprema é aquela em que amanhece nas ruas de Londres. A cidade de Dickens e de Thackeray nunca foi tão bela. Eis o pai de Eliza, um malandro bêbado chamado Alfred Doolittle. Criação genial de Holloway. Ele canta na rua, unido aos pobres maltrapilhos. Fala de sorte, de futuro. Sorrimos. O filme é de uma alegria encantadora. O mundo de MY FAIR LADY é um tipo de paraíso estético. Entramos então no santuário de Higgins, sua casa.
Um esbanjamento. Observe as janelas. Vidros azuis e amarelos, desenhos em cristal fino. Veja o imenso tapete persa no chão. As maçanetas de cobre polido, as luminárias belgas. Madeiras que cheiram a verniz em todo canto e imensos sofás de couro. O banheiro com seus azulejos pintados um por um, à mão. O padrão do papel de parede. É o ambiente de luxo masculino vitoriano. Ambiente que pede charutos, um Porto, um volume de Conrad. Não queremos sair de lá. Rex e Wilfrid moram alí. São dignos daquilo tudo. Mas a "mulher" surge e a paz se vai.
Antes de Eliza irromper na casa como sujo furacão, Higgins canta. O hino supremo dos solteiros. Jamais ouvi tantos bons argumentos sobre a vida de solteiro. Obra-prima masculina. O filme sobe ainda mais : ele é também sobre a guerra dos sexos. Me surpreendo : letras de canções podem ser tão ricas ? Alan Jay Lerner é um gênio !
Pois bem. Os dois amigos apostam. Higgins fará de Eliza uma Lady. Em seis meses. A levará a festa da embaixada, onde todos serão enganados. Estará provado que voce é o modo como fala. Higgins passa a ensinar Eliza a falar corretamente. Eliza sofre, se submete, e de súbito, no momento mais feliz de um filme cheio de momentos felizes, ela acerta : the rain in Spain... Os três dançam. A música é sublime. Um dos maiores momentos da história da sétima arte : Rex, Audrey e Wilfrid cantando e pulando. A vida pode ser perfeita. Mas o amor complica tudo....
Ela se apaixona. E canta a canção mais conhecida do filme. Impossível saber qual a melhor. Não há uma que não seja perfeita. As letras sempre são fascinantes e a melodia inesquecível. A peça/filme é momento único. Vem então a primeira prova de Eliza : as corridas em Ascott.
Essa cena em Ascott é das coisas mais belas já filmadas. E artificiais. Um desfile afetado de roupas elegantes, mulheres em fantasias divinas onde Audrey/Eliza entra como fada. O diálogo que ela trava com os lords e ladys é comédia perfeita. E o final da cena é soberbo. O filme, que se iniciara lindo continua em seu crescendo. Ele sobe todo o tempo.
Vem então o baile. Nessa cena o filme se arrisca. Não ouvimos nada do que se diz. Ficamos como distantes espectadores. Danças, poses, silêncios, exibicionismos. Eliza triunfa ! O filme se aquieta em planície alta. Cessa seu crescimento. Em duas horas de incessante êxtase ele interrompe-se. MY FAIR LADY. agora, é drama.
O filme fala então de tragédia séria : Eliza adquiriu cultura, mas o que fazer com ela ? Seu passeio pela praça onde trabalhava antes é dramático. Não faz mais parte daquilo, mas faz parte do quê ? Ela é uma Lady, mas não nasceu Lady e não tem dinheiro. Reencontra o pai, que em frenética cena de pub celebra sua despedida de solteiro. O filme continua maravilhoso, mas agora ele é doído. Higgins é incapaz de entender Eliza. Ele é masculinidade pura. Ela é só feminilidade. Não se tocam.
Mas um precisa do outro. Rex Harrison se supera em cena onde ele confessa ter se acostumado com sua presença. Sem ela a casa é vazia. Mas Eliza o repele. Ela foi pisada demais. Rex volta para casa só. E vem o final, que é de uma falta de romantismo chocante, mas que é puro Bernard Shaw. Após três horas de projeção o que queremos é mais. Pena ter acabado...
MY FAIR LADY ganhou oito Oscars em 1964. Cukor, Rex, Warner... todos levaram seus prêmios. Menos Audrey, que nem indicada foi ( injustiça. Ela está sublime. ) Foi imenso sucesso ( o que depõe a favor dos frequentadores de cinema da época. ) Foi o filme que me fez entender musicais. O assisto todo ano desde então, sempre próximo ao Natal. Ele é um presente que me dou. A alegria de rever MY FAIR LADY é a mesma de reencontrar uma festa querida. Brilhos e cores amadas, vozes amigas, canções de sonho. Nenhum filme me é mais "precioso". MY FAIR LADY é como jóia de família, foto de infância, coração de amigo : não tem preço. Ele dignifica o cinema popular, enobrece a profissão de ator, faz de uma sala um salão. É ouro puro.
MY FAIR LADY é soberbo !!!!!