C'EST CHIC ( QUANDO A MÚSICA SE TORNA FASCISMO )

   Em 1978 fãs do grupo The Who se reuniram num estádio em Cleaveland, e antes de um show de Roger, Pete, John e Keith, juntaram toneladas de discos de discoteque e os destruíram no gramado. Hoje Pete se arrepende e diz que o ato foi fascista, mas na época ele até compôs uma música chamada Goodbye Sister Disco. Eu odiava disco em 1978. Ou melhor, eu queria e DEVERIA odiar disco em 1978. Eu gostava de rock e portanto TINHA de achar disco um lixo. Mas o estranho é que eu assisti SATURDAY NIGHT FEVER oito vezes no cinema e vibrava quando os Trammps tocavam. Mas sentia vergonha. Muita vergonha.
  Lembro que um dia, em 1980, eu e meu irmão, ouvindo rádio, falamos a verdade: Tinha várias músicas disco que a gente adorava! Coisas de Rick James, Sylvester, Cerrone, Giorgio, Trammps, Rose Royce, Celli Bee. E claro, o melhor de todos, Chic.
  Na Enciclopédia do Rock da Rolling Stone, Robert Christgau diz que a disco deu tanto ódio aos rockers por dois motivos muito fortes:
  1- Foi o primeiro movimento pop assumidamente gay, latino e feliz.
  2- Enquanto no rock o amor era dor ou era um tipo de estupro machista, na disco ele era sedução suave e sexy. Essas duas características, não-musicais, eram naquele tempo insuportáveis para jovens acostumados às dores do amor frustrado ou ao machismo de carros velozes e "olhe garota como ele é grande". A disco era democrática, era para todos, era miscigenada, convidava nerds, bichas, velhos, crianças, ricos e pobres, mulheres e homens, travestis, todos para uma grande festa de purpurina, neon e roupas bonitas. Para os cabeludos sujos isso tudo queria dizer só uma coisa: Viadagem conformista.
  Estávamos todos errados.
  Pretos bem vestidos e felizes. Isso era novo. O rocker aceitava negros raivosos ou negros pobres e tristes, ou mesmo a Motown, negros chorando o amor; mas na disco os negros eram MUITO alegres, MUITO sexys, e mais estranho, MUITO chiques...Isso era muito estranho. Eles pareciam mais jovens, mais bem resolvidos, mais felizes que nós! Pior, eles se vestiam melhor! Que coisa esquisita!!!!
  ( Marvin Gaye e Stevie Wonder sempre foram tudo isso, mas gente fingia que não percebia ).
  Então agora, em 2016, pego este disco de 1978 do grupo CHIC. Na época um enorme sucesso. E um dos poucos do movimento que alguns críticos não malharam. Só alguns ( Ezequiel Neves foi um deles ). Rockers diziam que os músicos disco não sabiam tocar. Eles preferiam a habilidade do Kiss ou dos Pilot. Aff.... Se eu fosse músico eu queria ser baixista e se eu fosse baixista eu queria ser Bernard Edwards. Não há baixista melhor no pop ou no rock. Suas linhas melódicas dançam, fluem, pulam, são velozes, nos fazem dançar e ao mesmo tempo são lindas, femininas, sexys. Flea toca parecido, só que Flea é menos sexy e mais punk. Mas a banda, um trio, tinha ainda a bateria de Tony Thompson, um batera que mistura a discrição rítmica-esperta do jazz com a marcação pesada do funk. E completando temos um gênio: Nile Rodgers, o guitarrista mais sacudido e chique do pop, o maior produtor pop dos anos 80, o cara que mudou o rádio para sempre.
  Nile Rodgers nos anos 80 produziria Debbie Harry, David Bowie, Bryan Ferry, Duran Duran, Madonna, Robert Palmer, Peter Gabriel e mais um monte de gente que esqueci ou não quero citar. Porque ele, entupido de cocaína, aceitava tudo e todos e de certo modo ele se tornou um tipo de ditador da moda musical de então. Todo mundo queria ele como produtor-guitarrista-diretor musical. LET'S DANCE! de Bowie foi o disco que abriu o mercado branco para Nile e desde então ele esteve sempre em evidência. ( Bowie e Ferry estavam de olho nele desde 1978 ).
  Na capa deste disco já há algo que muito irritava os rockers de 78: 3 negros e 2 negras muito bem vestidas, tipo Ralph Lauren, numa sala chique e com expressões faciais à Roxy Music. Parecem ricos. Parecem contentes. Parecem de bem com a vida. Não sorridentes. Mais que isso, resolvidos. E o som reflete isso. Ele é suave, muito bem gravado, sacolejante, sem suor e sem lágrimas, os instrumentos soam como cristal, tudo é exato. Artificial, de bom gosto, e negro, muito negro. É um som que faz voce se sentir dentro de uma Mercedez. E ao mesmo tempo no bairro negro. Isso era a disco.
  Difícil escrever sobre o som dos caras. Eles são bons demais. Basta dizer que Bryan Ferry procura esse som até hoje ( e continua gravando com Nile ). Bowie tentou e errou por toda a década de 80. E Madonna deve a ele 50% de sua fama. Seus melhores discos foram feitos com ele. Miles Davis logo entendeu a coisa e percebeu que os caras levavam às massas aquilo que ele era desde sempre. O negro livre. Auto-suficiente. E muito, muito chique.
  Este disco, agora em um mundo menos preconceituoso, é delicioso!

MRS. DALLOWAY - VIRGINIA WOOLF

   Fosse hoje Virginia Woolf seria facilmente salva com um Prozac. Mas então seus nervos, expostos, seriam cobertos com uma capa de serotonina e sua escrita seria bem menos "sensitiva" e muito mais "normal". A gente percebe a tensão na escrita. Não, o livro não é irado, não é negro, não é deprê. Ele é caleidoscópico. Woolf vê ouve e percebe tudo, muito, demais. Não usei a palavra sentir, porque sua escrita nunca é sofrida, chorosa, melada. Ela descreve. Descreve almas, sentimentos, gente. Com uma estranha frieza. Alienada talvez.
  Clarissa Dalloway sai de casa para comprar flores. De noite haverá uma festa em sua casa. Ela é rica, tem cerca de 50 anos, e vive em Londres. É 1922. Fazemos parte de sua caminhada, seus pensamentos confusos, lembranças, vemos o que ela vê. Então o foco passa para Peter Walsh, um ex namorado que a visita. O corte é como do cinema, o ponto de vista muda sem aviso, o livro não se divide em capítulos, é um fluxo só. De Walsh vamos para Elisabeth, a filha, Septimus, um suicida, voltamos a Clarissa, vamos à Richard, o marido, e mais alguns personagens que divagam por Londres, em ônibus, casa de chá, lojas, salas e hotéis. Os pensamentos vão de dores banais, êxtases, lembranças, medos e distrações súbitas. A leitura é uma delicia, uma sopa literária, um quebra-cabeças, um jogo de vozes que se sobrepõe. Solidões interiores.
  Numa coincidência, eu vivo neste momento algo parecido com aquilo que vive um dos personagens do livro. Claro que não direi qual é, isso não importa. Digo isso porque Woolf escreve sobre isso, essa mistura de tempos, vozes, eventos, passos, desejos, temores, mediocridades, ilusões.
  A popularidade de Virginia Woolf hoje se deve à isso. Ela antecipa a sinfonia ríspida em que vivemos. Ainda é moderna ( moderno não é contemporâneo ).

BORN TO BE BLUE, A VIDA DE CHET BAKER, FILME COM ETHAN HAWKE.

   Se voce é fã de Chet Baker vai gostar do filme. E irá se emocionar com uma cena que resume todo o encanto de sua arte. É quando já ao fim do filme ele canta My Funny Valentine.
  Se voce é fã de jazz vai sentir um incômodo. Jazz é acima de tudo vida e todos esses filmes sobre jazz são incapazes de mostrar a festa, a extrema alegria do jazz. Eles se concentram na dor. Sempre na dor. Como se jazz fosse um tipo de angústia. Ou doença.
  Se voce é fã de cinema vai achar o filme ok. E vai pensar, de novo, que o cinema morreu. Os grandes temas são hoje filmes modestos e os grandes filmes falam de bobagens. Voce vai se indagar: Quem vai assistir este filme...Ninguém, ou quase ninguém.
  E dirá que Ethan Hawke não é um grande ator, mas é esforçado e aqui talvez esteja seu melhor desempenho.
  Juro que não falarei de novo do artigo de Matinas Suzuki escrito no dia em que Chet morreu. E nem do documentário de Bruce Weber. O que sei é que a arte de Chet nada tem a ver com o mundo de 2016. E nisso o filme está fora de sincronia.
  Pois se hoje todos são suaves e sussurrantes como Chet, eles são acima de tudo mimados e sem espinha, como Chet nunca foi.
  Vale ver.

UMA IRMÃ, UMA AMIGA, UMA PERDIDA; DESCUBRO VIRGINIA WOOLF E ADORO.

   Virginia Woolf escreve como uma mulher muito, muito sensível. Não do tipo chorosa, mas como um tipo de nervo exposto. Antena. Ela capta tudo a seu redor: cores, vozes, cheiros, vento, calores, movimentos; e une tudo isso a suas memórias, dores, risos, rostos, sons. Vomita esses fragmentos no papel. O leitor que os aprecie como aquilo que eles são: fragmento de vida.
  Ela escreve como Debussy fazia sons. Como pingos de tinta. Organizados. Há rigor na sua escrita. E música. Melodia. Harmonia.
  É uma irmã que descubro só agora. Ela escreve como eu escrevo quando muito inspirado. Os poucos textos meus dos quais me orgulho são como os dela. E só agora descubro isso. ( Talvez a tenha evitado por já saber disso ).
  Talvez se vivesse hoje os remédios salvassem Virginia. Talvez ela os evitasse. Eles iriam obscurecer seu radar. O nervo que tudo captava captaria pouco então.
   Ela completa a irmandade: Proust, Joyce e Kafka. O quarteto modernista. Dos quatro ela é a mais feminina, a mais sintética, objetivamente turva. Proust entra na mente e a vasculha. É uma lente de aumento voltada para dentro do olho. Ele encontra a alma e a admira. Ama. Joyce pega a vida e faz dela uma anedota. Ele ri para não chorar. Como uma mosca, ele voa pelas ruas da cidade e pega um pouco de todo lixo. Une esses restos e tenta criar um monumento. De dejetos. Kafka é a minhoca. Ele sai da lama e se debate ao sol. Seu mundo é escuro e úmido. Seus caminhos levam a mais lama.
  São os modernistas fundamentais. Os que descobriram a cidade, a mega cidade, a sociedade incivilizada, o fim do lar, da família, da igreja. Os grandes negadores.
  Entre eles Virginia é a borboleta. ( Observe que Proust é o único que não é um animal. É uma lente. ) Ela quer voar mais alto e mais forte. Mas voa hesitante. E entre flores lembra da lagarta. E breve, cai.
  Bem vinda Virginia.

NUNCA TREZA À MESA - ORIETTA DEL SOLE

   Adultos ainda pegam um livro para ter prazer...Pergunto: Você lê um livro sem nenhum outro interesse a não ser sentir satisfação no ato da leitura...
  Vejo gente lendo livros "leves" que na verdade são livros "de aprender". Aprender a ser feliz, a ser otimista, a encontrar o amor, a ganhar dinheiro. Os best-sellers atuais trazem quase sempre algo de " útil " encartado. É como se um livro fosse obrigado a ensinar ou a provar algo.
  A literatura policial era a última a ser entretenimento sem culpa, mas agora até eles trazem na rabeira o dever de "denunciar" ou de "esclarecer". E a literatura infantil, que já foi terra da repressão educativa, e que depois, graças a gente como Lewis Carroll e James Barrie, se tornou o mundo do prazer sem razão; volta a ser lugar de educar e de ensinar. Um livro para crianças tem de ser um livro que agregue valor a vida da tal criança.
  Então eu digo vivas à Harry e à Frodo!
  Este livro, de Orietta, é apenas um belo livro de uma italiana rica que morou no Uruguai, na Argentina e em SP. Ela fazia arte e recebia gente para comer. Era fútil portanto. E o livro é fútil. E por isso eu gosto. Ele é bonito.
  Cairei em contradição ao dizer que ela nos dá dezenas de receitas de massa. Mas há um adendo: são receitas caseiras, chiques, mas démodé. O foco não é ensinar a cozinhar. É agradar o leitor.
  Livros são caros. Eu exijo que me tragam prazer. O prazer pode ser filosófico, o prazer de saber, de entender e de descobrir. Mas há também o mais nobre prazer " prazeroso", o gosto em ser agradado.
  Que mais livros bobos sejam editados então.

A ARTE DE FAZER UM GRANDE VINHO- EDWARD STEINBERG

   Este livro é uma droga! Muito mal escrito. O autor leva todo o texto em um estilo de jornal que nos deixa enjoados em 30 páginas. É como se o livro começasse a cada capítulo, o texto não flui, ele tranca e se enrola.
  Algumas coisas são interessantes: saber que foram os ingleses, lá no século XVII que criaram a mística do vinho. Saber que então, e até os anos 70 do século XX, vinho fino era só o vinho francês. Principalmente os de Bordeaux e da Borgonha. Ingleses ricos idolatravam esses vinhos e o vinho do Porto. Só eles eram levados a sério em todos esses séculos. Todos os outros, e nisso se incluem todos os italianos, eram vinhos baratos.
  Angelo Gaja começou a mudar isso nos anos de 1960. Aprendeu com os franceses os segredos do grande vinho e começou a aperfeiçoar o Barbaresco. A partir dos anos 80 acontece a revolução. Vinhos da Itália passam a ser objetos de culto.
  Interessante notar que o primeiro vinho a ser considerado fino, fora da França e do Porto, foi o vinho do Reno, os alemães brancos, vinhos deliciosos que foram destruídos nos anos de 1990. Nessa década o mundo se abriu à Califórnia, Espanha, Chile, Austrália...e neste século à Africa, Nova Zelândia...
  O autor descreve o plantio, o trabalho das bactérias, o tempo de vida do vinho, o mercado. E com um tema tão rico ele consegue nos dar um livro chato.
  Uma pena...