O PIOR DOS ANOS 70 É O MELHOR DO SÉCULO XXI ?

   Fico babando ovo dos anos 70 ( que foi a última década origonal, como atesta o livro recém lançado do Forastieri ), mas me esqueço que havia algo de enervante na época: a intolerância. Talvez as coisas tenham sido tão fascinantes exatamente por causa desse mal. Cada grupo ia ao limite em sua linguagem, sem desvios de caminho ( as exceções voce conhece ). Mas caramba, como isso me irritava!
   Se voce gostava de Led Zeppelin era inadmissível que voce ouvisse Elton John ou Rod Stewart, e pior ainda, já que voce gostava do Led voce TINHA de gostar de Foghat ou dos Allman Brothers. Brancos não ouviam música de negro e negro não podia tocar música de branco. Um saco!
   Quando um artista quebrava essa lei era uma "decepção", o cara era crucifixado. Saía das fileiras sagradas e puras do rock e passava a fazer companhia às prostitutas do pop. Era assim com David Bowie. Os roqueiros ( ô raça! ), jamais o perdoaram por Young Americans em 1975.  Os Stones se enrolaram de vez em 1973 com a baladona Angie e Rod, bem, Rod dançou feio desde 1974 com suas canções à Elton John. A coisa era tão idiota que quando Jeff Beck gravou Stevie Wonder em 1973 perdeu todo seu público. Virou um tipo de guitarrista pária, um vendido ao soul.
   Eu odiava tudo isso. Meus amigos não me entendiam. Como voce, Paulo, um cara que ama o Led, Jimi, Clapton, pode ouvir Bee Gees!!!! Como voce pode não gostar de Yes???? Eles são muito melhores que esses medíocres do Roxy Music!!!!
   O Punk radicalizou mais ainda. Para eles TUDO gravado por alguém com mais de 23 anos não tinha valor. Talvez apenas com as exceções de Iggy Pop e de Lou Reed. Talvez... Jogaram no lixo os discos de Neil Young, MC5 e Van Morrison, e depois passaram os anos 80 comprando todos de novo. 
  A década de 80 recuperou os velhos charmosos e os anos 90 os hippies raivosos. Os anos 80, com Prince, Red Hot e Beastie Boys aboliu a barrreira da cor da pele, e os anos 90 desfez o preconceito contra os cafonas dos anos 70. Kiss, Thin Lizzy e Black Sabbath começaram a ser levados a sério. Daí pra frente só faltava reabilitarem a disco music. 
  Eis onde quero chegar. Sempre odiei Balck Sabbath e agora, em 2014, ouço sua discografia com prazer. Sabbath Bloody Sabbath é genial e Sabotage é uma obra-prima. Os riffs são muito bons e o baterista toca com ritmo e vontade. Legal ! Mas....porque essa mudança? Penso que é porque apesar de achar que não, eu também era preconceituoso. Eu me pautava pela crítica ( Zeca Neves, Ana Maria Bahiana, Big Boy, Nelson Motta ) e eles NÃO gostavam do Sabbath. Como detestavam também Genesis, Rush e ELP. Em 1977, sendo eclético me fiz preconceituoso contra o não-sofisticado, o não eclético. Pode?
  Recentemente vi na TV a entrega do rock`nroll hall of fame ao Rush. Quem entregou foi Dave Grohl. Ele pulava excitado por poder homenagear seus heróis. Sim, heróis. E vi que os canadenses são encantadoramente humildes. E very funny. O Foo Fighters tocou com eles nessa noite e todo o preconceito de 1977 caiu por terra. 
  Ainda não gosto do Rush. É chato. Mas fico lembrando de Johnny Rotten, que vomitava contra os WHO, ouvindo hoje os FACES. É justo. É certo.
  Posso enfim ouvir Alice Cooper como ele merece: com amor.

DER SANDMANN-E.T.A.HOFFMANN, O NARIZ-NIKOLAI GÓGOL, O SONHO-IVAN TURGUENIEV

   Desde a infância um homem surge para um rapaz. Aterrorizante na infância, ele tem a certeza de que se trata do famoso Sandmann. Será? Talvez seja alguém pior ainda. Hoffmann desenvolve essa alucinação com febre. Ele, romântico por completo, acredita em alucinações ( porque não? ), a vida é inteira, tudo nela é verdade. Sandmann é real.
  O Nariz é um dos melhores contos da história do mundo. Gógol é tão grande quanto Tolstoi ou Tchekov. Talvez hoje seja menos famoso que os outros dois, mas isso é contingência, seu lugar é para sempre. Triste ter morrido tão cedo, de tuberculose. Seu romance Almas Mortas é surpreendentemente engraçado e muito atual, e este O Nariz é hilário e ao mesmo tempo terrível. Gógol não poupa a Rússia. Seus soldados, burgueses, artistas e nobres são esculhambados. Nesta história um homem perde seu nariz. Tenta o reencontrar. Não estrague o conto tentando ver um sentido nisso. Ele não tem sentido. É delirio de imaginação e um prazer estupendo em poder ler. Cada frase de Gógol é um orgasmo.
  Por fim falo de Turgueniev, de quem li Pais e Filhos, o lindo primeiro romance a tratar em termos modernos do conflito de gerações. Aqui ele fala de um filho mimado que descobre em sonho ser filho bastardo. Essa revelação lhe vem esfarrapada, será fato ou invenção da febre e do sono? Adentramos esse mundo onirico de forma violenta.
  Cabe dizer que nos três contos a linguagem nos joga abruptamente para o centro de um mundo que pode ser feio e grotesco ( em Hoffmann ), exagerado e sem sentido ( em Gógol ) ou violento e sombrio ( em Turgueniev ). Sempre pessimista, principalmente quando nos faz rir e quando nos faz sonhar.
  Fazem parte da coletânea de contos fantásticos selecionados por Italo Calvino, ele mesmo um belo autor fantástico. Comecem por esses três. Vão adorar.

Vladimir Nabokov: Life and Lolita - BBC Documentary



leia e escreva já!

A PESSOA EM QUESTÃO- VLADIMIR NABOKOV, BORBOLETAS, XADREZ E OLHOS ABERTOS

   Na Europa do começo do século XX era a aristocracia russa a mais refinada e privilegiada das castas. Nabokov nasceu em casa de campo que tinha 50 criados. A casa da cidade tinha apenas 35. Fascínio? Muito. É maravilhoso ler sobre as raízes das duas familias que formaram os Nabokov. A raiz alemã da Mãe e o pai, totalmente russo. Pai que foi politico e lutou a favor da Rússia democrática em 1905, 1915, mas que foi derrotado e varrido da história pela violência bolchevique. Nabokov escreve aqui ( o livro é dos anos 50 ), aquilo que hoje é ponto comum: a revolução russa foi apenas a troca de uma casta por outra. Saíram os ricos e entraram os burocratas rancorosos. Com uma diferença, a Rússia dos privilegiados produziu Tolstoi, Dostoievski e Gogol, a Rússia policial produziu alguns bons artistas, que foram logo caçados. Ele tira de Lenine também sua fama de "Puro", em sua época a violência foi imensa e desnecessária. Mas atenção! Não pense que Nabokov chora o dinheiro perdido. O que ele lamenta é não poder entrar em seu próprio país. Ele sente saudade, muita, de suas árvores, das paisagens, de estar no cenário que assistiu a parte mais bela de sua vida, a infância.
   E é na infância que ele mergulha. Nabokov aos 50 anos penetra e disseca a memória, tenta entender como ela se dá e nos presenteia com um livro belíssimo. Memoralista a altura de Proust, vivenciamos sua vida, os odores e as sensações da criança. Pelas fotos vemos que era uma bela familia e é prazeroso estar ao lado deles. Sua grande paixão são as borboletas, e ele logo caça os bichos e tem seu nome entre os conhecedores. A vida escolar, com tutores excêntricos, viagens ao campo no verão, o frio da São Petersburgo invernal. 
   Depois, a descoberta das meninas, meninas que ele conquista com facilidade. Uma adolescência ativa, no mato, nas ruas, em namoros febris. E a revolução que vem lenta, se anuncia. Fogem para a Criméia, para a Alemanha, Paris e Londres afinal. Seus dias em Cambridge, passados em tédio e decepção. É incrivel, eles necessitam trabalhar e trabalham. De 50 criados passam a ter uma empregada, e nunca se lamentam. Joga xadrez como mestre e escreve. Este livro é sobre memória, tempo que vai dos 2 aos 20 anos. Nada se diz sobre seus romances, apenas as tentativas fracas de se fazer poesia. É livro sobre os irmãos, os pais e as pessoas. Ele olha com olhos abertos, vê e pensa, sabe descrever e sabe analisar.
   Não tem religião, não fala em Deus, mas sabe que tudo foge a nossa compreensão. Descrê da civilização, mas nunca se mostra pessimista. Porque aprecia a beleza, seja a borboleta ou seja a mulher. Depois viria Lolita, viria Ada, viria Knight. Talvez o escritor depois do tempo de Proust e James que escreva melhor, mais refinado, mais profundo e sinceramente belo. Nabokov é grande e este livro atinge sua altura. Para reler. 
   Brilho entre folhas, sol nas asas de borboleta, vitória matemática em xadrez, este livro, este brilhante e inebriante e alubriante livro exerce fascinio de voz musical ( e Nabokov odeia música ). Ah doce vicio que é a leitura...

HITCHCOCK/ POWELL/ CAROL REED/ JACK CARDIFF/

   GESTAPO de Carol Reed com Margaret Lockwood, Rex Harrison e Paul Henreid
Ando revendo filmes ingleses. Carol Reed forma, ao lado de Powell, Lean e Hitchcock, o quarteto soberbo do cinema clássico da ilha. Cada um com seu estilo definido, eles são mestres consumados e sábios em sua forma de narrar e de seduzir. Reed é o mais realista. Aqui ele narra um jogo de gato e rato entre dois inimigos, um nazista e um inglês, ambos em busca de um cientista. Rex já tem aqui desenvolvida sua forma de atuação, leve, sorridente e elegante. O filme é pura diversão e demonstra magnificamente o modo como os ingleses se percebiam a si-mesmos. Nota 7.
   E UM DE NOSSOS AVIÕES NÃO REGRESSOU de Michael Powell
Revejo os filmes menos famosos de Powell. O modo como ele e Pressburger viam a guerra tem muito a nos ensinar. Ele nunca deixa de ser patriota, afinal, este filme foi feito durante a guerra, mas o modo como ele vê os alemães é não só humano como também corajoso. Eles são gente também, diferentes dos ingleses, lutam pelo lado errado, mas não são monstros, têm alma. Aqui é narrada a missão de um grupo de aviadores que ao voltar de um bombardeio em Stuttgart são alvejados e caem na Holanda. A população holandesa os ajudará a voltar a sua terra. É um belo filme e tem retrato carinhoso do homem comum, não dos heróis. Nota 7.
   PARALELO 49 de Michael Powell com Laurence Olivier, Leslie Howard e Eric Portman
Um grupo de marujos alemães é atacado nas costas do Canadá. Seu submarino afunda e eles devem em terra conseguir voltar a Alemanha. Este é o filme que deu fama a Powell. Sucesso nos EUA, é uma linda aventura filmada no Canadá. Os alemães são individualizados, sim, há um vilão, mas também há um alemão bom. Ver este filme durante a guerra deve ter sido muito estimulante. Nota 7.
   A BATALHA DO RIO DA PRATA de Michael Powell com Peter Finch e Anthony Quayle
Aqui já estamos na fase dificil da carreira de Powell. Feito nos anos 50, o filme fala de um navio alemão famoso por afundar navios mercantes aliados nas águas do Atlântico Sul. O que se narra é sua caçada e sua agonia. Powell mostra o capitão do navio alemão como um homem honrado, quase um herói trágico. O estilo de Powell está todo aqui, ele exibe com calma e cuidado a civilidade dos homens, a camaradagem e o respeito entre os iguais. O filme emociona, mas em seu inicio pode irritar, não estamos acostumados a tanta educação! Revisto, este filme cresceu muito em meu conceito e hoje é dos meus filmes de Powell mais queridos. Estranha a sina desse diretor, a de ser querido só em revisões...todos os seus filmes me decepcionaram na primeira vista ( inclusive Red Shoes ) e se tornaram gigantes na segunda olhada. Nota 9.
   FESTIM DIABÓLICO de Alfred Hitchcock com James Stewart, John Dall e Farley Granger
Que delicia!!! É o famoso filme de Hitch sem cortes. Eu o adoro, mas Hitch não gostava dele. Um casal gay mata um amigo só pelo prazer de cometer uma obra de arte. Convidam os pais da vitima para jantar, e o corpo está dentro de um baú que é usado como mesa de jantar. Dá pra ser mais macabro? O pai come carne sobre o corpo do filho. O humor de Hitch raras vezes foi tão afiado. James Stewart entra em cena como o professor dos assassinos. E nós nos alegramos ao rever esses ator-amigo. O filme é absolutamente perfeito. Nota DEZ.
   CORRESPONDENTE ESTRANGEIRO de Alfred Hitchcock com Joel McCrea, Larraine Day e George Sanders
O excesso de ação atrapalha a narrativa desta aventura de Hitch. Joel é um repórter americano que vai a Holanda cobrir a guerra. Se envolve em jogo de espionagem. Sanders é excelente, mas Joel e Day são muito peso leve, estão no filme errado. Nota 6.
   OS PÁSSAROS de Alfred Hitchcock com Rod Taylor, Tippi Hedren e Jessica Tandy
Uma mulher destrói a harmonia masculina de uma comunidade. Sim, esse é o sentido do filme. Desde a cena na loja de pássaros, até o final inesquecível, todo lugar em que ela pisa surge uma ameaça. Pássaros se juntam e passam a atacar. É um dos filmes aparentemente mais simples de Hitch e o mais absurdo ( em superficie ). Mas seus medos estão todos aqui.  O maior de todos seu pavor das mulheres. Falar de suas cenas é chover no molhado, o filme é muito conhecido. As melhores são aquela que mostra os pássaro se reunindo atrás de Tippi, e o final, eles andando em meio as pássaros que se aquietam, talvez porque ela foi vencida... Vi esta obra-prima pela primeira vez em 1973, na velha TV Tupi. Eu era criança e confesso que tremi todo o tempo. Era uma época bacana pra se assistir filmes de suspense, basta dizer que o silêncio na rua ainda existia e a iluminação lá fora era precária. Nota DEZ.
   FILHOS E AMANTES de Jack Cardiff com Dean Stockwell, Wendy Hiller e Trevor Howard
O mundo de D.H.Lawrence levado ao cinema. Numa comunidade pobre da Inglaterra, vemos uma familia de mineiros. Uma familia infeliz, onde o pai violento tem rancor pelo filho que o renega e a mãe, hiper protetora, mima esse filho que quer ser pintor. A vida desse filho é destruída pelo meio em que vive. Parece bom, mas não é. O primeiro erro é Stockwell. O outro é a falta de criatividade de Cardiff. Ele foi o grande diretor de fotografia de Red Shoes, mas como diretor nunca funcionou.  O filme é chato. Nota 3.

LISTAS DA CRITERION COLECTION

   Criterion Colection top 10`s.
   Encontro essa lista na net, e como sou fã de listas...
   Tem mais de 50 caras dando listas. A maioria nunca ouvi falar. Críticos novatos dos EUA. A lista é legal. A pior é de Diablo Cody. Aff... Destaco a lista de Wes Anderson, boa pacas! Lá vai:
1...MADAME DE...de Max Ophuls.
2...AU HASARD DE BALTHAZAR de Robert Bresson
3...PIGS de Imamura
4...A MULHER INSETO de Imamura
5...LOUIS XIV de Rosselini
6...O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO de Martin Ritt
7....EDDIE COYLE de Peter Yates
8....CLASSES TOUS RISQUES de Maurice Pialat
9....A INFÂNCIA NUA de Maurice Pialat
10..MISHIMA de Paul Schrader
          Digo que os dois primeiros poderiam estar em meus top 10. Dos outros, não conheço os filmes de Pialat. O filme de Ritt é espetacular.

Não dou muita bola para Christopher Nolan, mas sua lista é muito boa.
1....THE HIT de Stephen Frears
2....12 ANGRY MEN de Sidney Lumet
3....THE THIN RED LINE de Malick
4....DR MABUSE de Fritz Lang
5....BAD TIMING de Nicholas Roeg
6....MERRY XMAS de Nagisa Oshima
7....FOR ALL de Al Reinart
8....KOYANAQSTIKY de Reggio
9....MR. ARKADIN de Orson Welles
10...GREED de Stroheim
          Acho que ele não conhece cinema da Europa.

Guillermo del Toro tem uma lista de conhecedor. Ele ama Kurosawa e Bergman e coloca entre os dez, 3 filmes de Akira e dois do gênio suéco.  Seu favorito é TRONO MANCHADO DE SANGUE.

Adam Yauch bota cinco filmes de Kurosawa!!!! Um fã maior que eu !

E há Martin Scorsese:
1....PAISÁ de Rosselini
2....THE RED SHOES de Michael Powell
3....THE RIVER de Jean Renoir
4....UGETSU de Mizoguchi
5....CINZAS E DIAMANTES de Wajda
6....A AVENTURA de Antonioni
7....SALVATORE GIULIANO de Francesco Rosi
8....8 E 1/2 de Fellini
9....A VERDADE de Godard
10..O LEOPARDO de Luchino Visconti
           Lista de mestre. Falar o que?

Olhando toda a lista noto que o DVD fez com que certos nomes fossem reavaliados.
Dos diretores atuais, Wes Anderson e David Lynch são muito citados. E do passado há uma redescoberta de Schlesinger, Mizoguchi e Jules Dassin. E, que surpresa!, o documentário GIMME SHELTER é muito citado como grande filme de rock da história!
Legal né?

TUPELO HONEY- VAN MORRISON, UMA VOLTA À VIDA

   Penso em quantas pessoas que vivem por aí foram concebidas ao som de Van Morrison. O cantor irlandês ( de Belfast ) canta a trilha do amor, sempre, e este é seu disco mais feliz. Ouvir Tupelo Honey é escutar a mudança de vida, o encontro com um novo amor, a volta da crença que em realidade nunca se fora. Morrison está feliz e é um prazer ouvir isso.
  O disco abre com um de seus hits, Wild Night vendeu bem em 1972 e em 1994 até mesmo John Mellencamp o regravou. Som veloz, dançável, saltitante. E é por aí que ele corre. Cada faixa conta um aspecto desse reencontro. Morrison encontra uma mulher, com ela vem a vida nova e ele se sente abençoado. Para contar isso ele se cerca de um time afiado de vinte músicos, dentre eles o venerável Connie Kay, que dá a obra um leve sabor jazzy.
  Mas não pense que ele é jazz, o disco é filho do encontro de Morrison com The Band. Tupelo Honey soa como The Band em versão irlandesa, é folk com soul, mas um pouco mais melódico e bastante menos rock`n`roll. Onde o grupo do Canadá celebra a amizade, o irlandês festeja um casal. Robbie Robertson e seus amigos parecem sempre estar numa estrada, Morrison vive num quarto. Mesmo que aqui ele esteja acompanhado e de janelas abertas para o sol.
  É um disco feito para se ouvir à lareira. Com calma, com sobriedade e com amor.
  O que será concebido então depende de voces dois. Um filho, um poema ou uma bela recordação. Aproveitem.

OS CONTOS DE CANTERBURY- GEOFFREY CHAUCER

   Um grupo de homens e mulheres fogem da peste. No caminho, para se distrair, fazem uma aposta: cada um deles irá contar um conto. O que for eleito melhor ganhará um jantar. E lá se vão eles.
  Se voce pensou no Decameron de Boccaccio pensou errado. Apesar de Chaucer conhecer a obra do italiano, seu livro é muito diferente. Escrito em verso, Chaucer, influência enorme sobre Shakespeare, faz algo que o bardo sabia construir como poucos: escreve com a voz do personagem. Desse modo um monge narra seu conto ao estilo de um monge, um cavaleiro conta como um cavaleiro e por aí vai. 
  O elenco de personagens abrange toda a fauna medieval. E ao lermos a obra nos sentimos lá, naquela estrada rumo a Canterbury. Mais ainda, vivemos em plena idade média. E o que vemos? Que a época é bastante diversa do que nos foi dito. É um mundo de malandros. E de idealistas também. Sexo e religião se misturam. Deus é Ser inatacável, Sua existência não pode ser discutida, mas, por isso mesmo, o diabo também existe e portanto o mal é não só cotidiano como aceito. Ele, o mal, faz parte. 
  As mulheres devem ser virgens, mas os homens tentam apaixonadamente as corromper. Elas devem ser virgens, mas raramente são. Em alguns contos a linguagem é "suja". E deliciosa. Fala-se muito de pau, buceta, cu, bagos. E tudo feito em malandragem ( o que me faz pensar na realidade de meu país hoje ). Usa-se de toda artimanha possível para se ir à cama de uma mulher, seja virgem, seja puta. 
  O dinheiro existe, mas mal se encontra. O que se faz é o roubo. Monges e cônegos são mentirosos, ambiciosos, glutões e tarados. Comerciantes roubam e camponeses são idiotas. E ao mesmo tempo existem contos de fé e de pureza. Fala-se da Virgem com plena fé e em total compreensão. Chesterton desvenda bem isso: no catolicismo tudo é extremo. É uma fé que pede pelo abismo, pelo tudo ou nada. A dor ao limite e a alegria desenfreada. O grande pecado e o grande arrependimento. Nada pode ser sóbrio, a sobriedade é falsa. Desse modo, o sexo e a castidade existem juntas e são hiper-valorizadas. Chaucer exibe esse universo sem retoques. As coisas são o que São. Sem máscaras. 
  Na introdução se conta que aqueles são os ingleses originais, os saxões, o povo britânico antes de 1750, da revolução industrial que domesticou a raça. Eles são aquilo que hoje entendemos como "Povo de Asterix". Nada em comum com Thackeray ou com Jane Austen. São exaltados, apaixonados, brigões e muito diretos. Sua transformação demonstra o poder da educação. Se mudaram para melhor ou pior, fica a discussão. 
  Devo dizer que esta obra foi um dos maiores prazeres em leitura que tive em anos. Coloco-o entre meus vinte mais queridos livros. Suas 600 páginas, em verso, voaram diante de meus olhos. Seu realismo sujo e fétido e sua vitalidade objetiva e prática me encantaram. É um retrato de um tempo, mas é acima de tudo uma lembrança daquilo que somos, seremos, seres que erram, seres sujos e brutos, tolos e espertos, burlescos. Gente. 
  Chaucer foi um dos grandes humanistas de seu tempo ( por volta da metade do século XIV ), erudito, sabia a lingua de todas as classes. Tinha o principal dom do escritor: sabia escutar. Os tipos que ele criou nos seduzem. São maldosos adoráveis. E fiéis sinceros. Não por acaso sua obra vive a mais de 650 anos. 
  Fundador da literatura moderna inglesa, Chaucer é rei. Seu livro é inesquecível.

JULIE CHRISTIE NÃO NASCEU NA INGLATERRA ( MAS SIM )

   Sol de maio em Londres e times jogam sobre a grama verde escura. Recordo então de um Escócia e Inglaterra em Wembley. Era 1977 e eu amava Julie Christie. É isso mesmo. Há uma fase em nossa vida, cheia de frescor e de fé nos sentimentos, em que não os dissecamos, simplesmente os aceitamos, em que sentir amor por uma ideia de mulher, por uma imagem, se faz ato de completa dedicação. Eu amava Julie porque imaginava quem ela era. Criava a saga de sua vida e sentia que ela era feita pra mim. Idolatria. Beleza.
  Hoje vejo que uma alma abençoada fez a mistura perfeita. Colocou no Tube imagens de Julie ao som do Roxy Music. Os dois nasceram um para o outro, Gim e vermute. Julie sendo Gim, ácida e forte, linda, e o Roxy é vermute, enganosamente doce, colorido e inebriante. 
  Sol de maio em 1977. Wimbledon com Connors e Borg. A rainha era a mesma. Penso que a Inglaterra seja o país que deu certo. Desde Charles I não sabe o que seja ditadura. Conseguiu fazer do mais indisciplinado dos povos um modelo de educação. Discrição. A França cometeu o erro de criar a coisa chamada intelectual ativo, aquela falsidade que nos deu Sartre e Lacan, a Alemanha sempre sofreu de um excesso de idealismo fanático, e a Itália é um país que não se acha. A Inglaterra é uma nação que chegou lá. E um passeio pelo Hyde Park irá te mostrar isso. Conseguiram unir o conservadorismo da rainha e do costume com o deslumbre pelo novo e pelo hype. 
  Juntaram Roxy com Julie. 
  E após as brumas de invernos que nunca terminam, sabem fazer piqueniques ao sol de maio.

Julie Christie Tribute



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PÔR DO SOL DE WATERLOO NO CAXINGUI EM 2014

   Ora velho amigo, que música pode ser mais bonita que Waterloo Sunset ? I AM IN PARADISE...
 Vejo o mundo pela minha janela enquanto olho o pôr do sol em Waterloo... 
 Sabe, em um dos comentários no Tube um cara comenta que não amar os Kinks é detestar Londres. Matou a coisa cara. Nada é mais londrino que eles. E Waterloo é uma de suas jóias.
 A canção é um tipo de hino extra-oficial de Londres, é como Aquarela do Brasil pra gente. E não a toa abriu o final dos jogos de Londres em 2012. 
 Um outro comenta: O que se passava na cabeça de Ray quando compôs algo tão simples e tão tocante?
 Ora meu velho amigo, se passava aquilo que se passa em quem a escuta, Gratidão. 
 Waterloo Sunset ficou. Como ficou o LP Something Else by The Kinks. E ficou The Village Green. E também ficou Arthur. E mais alguns muitos.
 Em setembro haverá mais um show de talentos na escola. Um menino e uma menina de 13 anos me chamaram para ajudar eles em sua banda. Querem que eu faça backing vocals e toque pandeiro. Daí me disseram o que vão tocar: Vamos tocar Waterloo Sunset...voce conhece tio? 
 Juro que eu quase cai. 
 Sem mais my old champ, cha la la...

Ray Davies(Kinks) Waterloo Sunset Glastonbury 2010



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