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O RIDICULO NA BENEDITO CALIXTO

   Podem me chamar de chato, mas eu acho deprimente um certo aspecto dessas feirinhas de coisinhas, tipo a da Benedito Calixto. As antiguidades me incomodam. Acho aquilo tudo bastante ridiculo. Tá bom, vou explicar essa minha sensação...
   Comprar a bolacha do Dr Feelgood que te falta, tudo bem. Delirar com um casaco de aviador da Segunda-Guerra, lindo. Assim como é sinal de bom gosto ( e gosto existe e se discute ) um vaso de Murano ou uma porcelana de Sévres. Isso porque depois de comprar voce vai ouvir Dr Feelgood, vestir o casaco e apreciar o cristal e a porcelana. Então onde o ridiculo? Nesses casos, nenhum.
   Anéis de ouro e pedras "de familia", brinquedos quebrados vintage, cartões postáis antigos e com mensagens escritas, discos semi-destruídos, livros infantis ilegíveis, tudo isso é patético. E então chegamos ao absurdo: Velhas fotos de familia. Veja, fotos de familia dos anos 30, 40, familia que não é aquela do comprador. O que há de ridiculo? O desejo, tolo e vulgar, de se construir uma tradição histórica que não existe.
   A pessoa que compra essas fotos não possui fotos de sua familia, assim como não guardou seus brinquedos ou seus velhos gibis. Jogou no lixo os vinis do Kiss e agora compra todos outra vez. Ansiosamente ela compra o velho triciclo de lata "parecido com o do meu pai", e coleciona isqueiros de ouro "que lembram aqueles das velhas familias de Higienópolis". É tudo virtual !!! A familia do cara nunca fumou e o triciclo não é o dele. É uma simulação, um teatrinho que ele faz pra si-mesmo.
   Quem leu o deslumbre que tive ao reencontrar meu primeiro livro, uma velha edição do Renard, que encontrei afinal, deve ter percebido que mais que o ato de reavivar lembranças, o que me emocionou foi poder LER Renard outra vez. Objetos devem ser usados, mesmo os de coleção, e esse uso deve dar prazer. Não a compra, o uso. O prazer maior é usar.
   Duvido que o cara ande no triciclo ou o dê de presente a algum filho. Duvido que use o isqueiro de ouro.
   Patético ver aquelas pessoas comprando coisas que "contam história". Uma pinóia! Os velhos objetos contavam narrativas para aqueles que viveram ao lado deles. Para quem os compra agora eles nada podem contar. São tão mortos como uma embalagem de Big Mac.
   Objetos são sagrados. Ou não. Se voce jogou os seus fora, não venha agora comprar os ossos do vizinho e achar que eles trarão de volta o sentido de história e de permanência à sua vida vulgar. Narre a história da ausência de seus objetos perdidos. Mas não venha alucinar com as lembranças de quem voce não conhece.

REENCONTRO ( RENARD, VELHA RAPOSA )

   Eu ficava olhando aquela capa de papelão grosso. Admirava o azul celeste que emoldurava o desenho. Um leão, pássaros, um galo, carneiro, esquilo e um urso com uma lança à mão. E a raposa que se apresentava nessa cena diante do rei, o Leão. Eu não sabia ler, e então deveria ter menos de seis anos. Minha barriga sobre o tapete, frio, ficava vendo os desenhos nas páginas. Uma casa medieval em meio a neve e a Lua. Um cachorro vestido de camponês. E a raposa, sempre presente, dando golpes, fugindo com seu roubo.
   Depois esse livro desapareceu de casa. Foi um presente de minha madrinha, que se chamava Lourdes. Uma amada madrinha que me mimava com doces e brinquedos. Mas que um dia me dera esse que foi meu primeiro livro.
   Os anos passaram e acabei por descobrir que aquele livro desaparecido deveria ser o famoso "Renard, velha raposa", um livro francês medieval, de autor ignorado e que é considerado um dos textos fundadores da literatura do país. Nunca mais o vi. E, frequentando sebos desde 1992, sempre ia à sessão de livros raros para ver se o reencontrava. Quando arriscava perguntar, a resposta era sempre a mesma: "Jamais o vi". Será que eu sonhara com aquele livro?
   Fosse eu um milionário seria esse o livro que eu iria à caça. Nada de gravuras de Rembrandt ou textos sacros medievais. Seria o meu Renard.
   Minha madrinha morreu velhinha, eu entrei na maturidade e nunca esqueci desse livro número um.
   Um dia...
   Numa manhã chata e sem nada pra fazer, comecei a andar pela Paulista. Desci a Augusta e pensei em ir a uma feira. Mas em vez disso entrei em ruas que não costumo andar. Comprei então um porta-retratos e um livro de poesias de Keats. Já tarde, resolvi, cansado, voltar pra casa. Parei para amarrar o tênis e então olhei uma vitrine. Livros bobos e banais. Me voltei para partir mas meus olhos ainda tiveram tempo de ver uma capa azul... RENARD...era ele! Deus, era ele!!!! O mais procurado dos livros, o primeiro de todos, o impossível, o milagre....RENARD!!!!!
   Entrei na loja, o coração aos pulos. Pedi o livro e disse, "Vou levar!!!" Que importa o preço? Ele vale tudo o que tenho em minhas estantes. Mas estou ansioso. Antes da moça o colocar numa sacola eu o pego nas mãos. Olho, quarenta anos depois, sua capa, a raposa e o leão. Entrego o livro para a moça e finjo olhar outros livros. Escondo meus olhos, com lágrimas.
   Editora Vecchi, Rio, Capital, MCMXLVII....1947....quando o ganhei ele já era antigo....1947, por isso era impossível de o achar, 1947.....
   Volto pra casa e olho cada página. Estranho, lembro de tudo, de cada desenho, de cada forma.
   Obrigado pelo presente outra vez, minha madrinha....