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DO SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA- MIGUEL DE UNAMUNO

   O sentimento de tragédia nasce pelo fato de que a cabeça diz razão e a alma fala sentimento. Se a razão é cega para tudo o que não se mede, o sentimento precisa da razão para se expressar. Em termos, as maiores verdades não podem ser ditas, palavras não expressam sua força. O que sabemos mas não conseguimos sequer pensar, eis a maior das verdades.
  Este livro é árduo. Dificil. Unamuno assume o que todos sabem: a vida de mais sério tem a morte. Dois modos de viver: evitando pensar no fim. Ou crendo na vida eterna. No primeiro modo tudo perde relevância. Cada ato se faz futilidade pois não repercute, será imediatamente esquecido. Nada permanece, tudo é esquecimento. Unamuno diz que viver assim é impossível e que mesmo os que não acreditam na alma vivem como se tudo fosse continuar. Eis o consolo da história, dos filhos, da arte ou do conceito de clã. Houve uma sociedade assim: Roma dos césares, a mais materialista das sociedades. 
  No segundo modo tudo tem peso. Cada dia e cada ato irá ecoar por todo o sempre. Nada se perde, as coisas ficam, permanecem. A vida se torna grave, séria e trágica. Sentimentos, crises e nascimentos são eternos. 
  A razão reconhece o primeiro por ser ele calculável. O segundo a assusta por ser infinito.
  Talvez as mais belas páginas estejam no capítulo final. Unamuno defende a Espanha perante a Europa. A Europa, científica, apressada, fria e técnica contra a Espanha, que não é nem quer ser Europa, Espanha que é fascinada pela morte, que não reconhece o tempo, a pressa, o pragmatismo ou o trabalho. Espanha que salvou o catolicismo com a reforma, que descobriu continentes, que criou a figura do homem que crê e que faz da crença um mundo: o Quixote.
  Para Unamuno não importa se Deus existe. Importa querer que Ele exista. Viver na absoluta certeza é impossível. Todo crente duvida ou será apenas um fanático. Mas é preciso desejar Deus. Desejar que Ele seja possível.
  E com isso poder preservar aquilo que faz de nós seres à parte: a certeza da morte, a crença na alma e a ansia por eternidade. Pois o homem não se conforma com finais, com finitudes, com o ato em vão. Eis sua nobreza.
  Agir conforme essa crença, pesando consequências, eis sua moral.
É assim.

A RAZÃO VIVE ONDE A MORTE IMPERA, MIGUEL DE UNAMUNO

   Tenha em mente que bichos não cometem suicídio.
  É sempre um prazer encontrar um autor que escreveu, noventa anos atrás, coisas que voce pensa desde muito mas que não conseguia as ordenar. Uma das ideias mais radicais de Unamuno é aquela que diz que a razão tende sempre à morte. Mais que isso, a razão só compreende aquilo que está morto. 
  Ela gosta e lida com partes de um todo, com objetos estáticos, com momentos congelados dentro do movimento. A razão é incapaz de estudar aquilo que não comporta tamanho, peso e limite temporal. Emoções só lhe são compreensíveis depois de vividas, quando já mortas. Tudo que a razão toca tem de ser morto. Único modo de ser dissecado e ela ama dissecar, desfazer, reduzir, diminuir, para assim fazer com que a coisa fique a dispor de seu entendimento, entendimento esse naturalmente pequeno. 
  Mais que isso, para a razão pura, viver é um ato irracional. Porque ela é incapaz de aceitar a irrazão primordial da vida, ato que não se justifica racionalmente. A razão pura, sem nada de irracional, ama a morte, estado em que tudo se define, se arruma, em que tudo tem começo e fim. A morte é arrumação. Estado que jamais fugirá a uma definição. 
  Na vida tudo foge à razão e tudo é assassinado por ela. Racionalize o amor e voce o terá morto e impotente. Racionalize a raiva e voce a terá corrompido. Racionalize a paixão politica, a arte, a própria vida e voce a destruirá. E nada pode ser mais insuportável `a razão que a ideia de vida após a morte. 
  Porque? Porque mais que o amor ou a ideia de Deus, a vida eterna seria a vitória final daquilo que não se explica sobre a razão, seria a vitória do infinito, do indestrutível, do irredutível, do irracional. Da vida.
  Falemos da vida então. Se a razão tende a, e defende a morte, o não-movimento estático, então o que é a vida? Viver seria ter fé. E ter fé significa acreditar irracionalmente. Não necessariamente religião, mas não se vive sem se ter fé irracional em algo. 
  Não entenda irracional como fantasia. Irracional tem a ver com real que foge a razão. Inexplicável. A vida. Essa fé pode se chamar amor, arte, algum tipo de ïsmo", ideologia. Todas sob a dissecação racional são "sem sentido". Todas fazem parte da vida.
  A razão chamará o amor de instinto de perpetuação, dará a arte o nome de consolo, chamará a religião de ópio, dirá que ideologias são modas e assim destruirá toda a substância da vida, vida que não se define, que é viva e portanto foge quando tentamos a capturar em uma fórmula. Só se presta a análise quando morta, estática, passada.
  Mais que texto antiracional, os escritos de Unamuno são um alerta contra a maldade que vive ao lado da razão pura.
  E não nos esqueçamos, tudo foi escrito antes da solução racional:: o nazismo.
 
 

MIGUEL DE UNAMUNO. RAZÃO CONTRA CORAÇÃO. EIS A TRAGÉDIA DA VIDA.

   Reitor da Universidade de Salamanca, Unamuno é o intelectual central da Espanha entre 1900/1930. Com cultura enciclopédica, ele tinha como filosofia a dúvida. Escreveu poesia, teatro, romances e livros sobre filosofia. Seu ponto de partida é: O que é o homem? E nessa busca da realidade básica, ele mira o homem comum, o homem que é carne, instinto, desejo, vontade de ser, sonho. Aponta como erro da filosofia o fato de que ela parte do estudo da própria filosofia e não mais da vida. Miríades de elocubrações racionais que dispensam a experiência vivida, que negam o sentimento e a intuição. Unamuno aponta que existem duas vidas, aquela que é experimentada como ela de fato é, e a vida que tenta ser racional, que se afasta do coração e do instinto e pensa que a razão engloba tudo o que há. 
  Ora, quem me conhece sabe que essa é a minha maior fé. A razão conhece aquilo que lhe compete, criações racionais, ciência reducionista, tudo o que cabe dentro de seu raio de visão. Mas, eu, como Unamuno ( e tantos outros ), sabemos que a maior parte da realidade escapa a razão. Racionalistas fecham os olhos e querem não perceber esse limite da razão. Unamuno quer ver o que a razão deixa escapar.
  Somos trágicos porque vivemos o embate entre razão e coração. Não há a menor possibilidade de paz e nisso Unamuno é um pessimista radical. Crer na razão é desprezar o coração, crer no coração é desprezar a razão. Somos os dois. As vezes coração, muitas vezes razão. Em posts futuros falarei mais sobre este admirável pensador. Quero destacar aqui que ele tem logo no inicio da obra duas sacadas excelentes.
  Primeiro. Todo homem vive com a certeza de eternidade. Mesmo os ateus. Não fosse assim viver seria impossível. Não há como construir algo ( familia, amor, trabalho, arte ) sem a ideia de tempo que se estende. Quando alguém diz que a morte é o fim de tudo, em seu íntimo ele sente que essa morte está sempre distante. Assinar uma obra de arte, criar uma familia, tentar preservar a memória são formas sem religião de se imaginar um modo de se permanecer eterno. 
  Porque o assunto central da vida é a preservação da vida. É inimaginável ao homem algo como o nada, o absoluto vazio. E mesmo a ideia cristã de inferno nos é preferível ao simplesmente deixar de ser. Melhor viver queimando em dor que simplesmente deixar de existir. Passar pela vida sem deixar rastro, sem jamais ser relembrado, sem pensar em algo que justifique essa passagem, isso é o verdadeiro inferno. Todas as criações da razão, ideologias, ciência, arte, arquitetura, poder, diários, memórias, são tentativas de esquecer o vazio e o nada. 
  Pois dentro de nós há o imperial desejo de acreditar no sentido das coisas. A vida tem de ter um sentido e tem de se justificar na eternidade, na história. Sem isso ela não existe. Não será mais vida, será um tipo de doença febril sem porque. 
  Crer em Deus ou na alma é crer na vida então. Pois ao crer na eternidade nasce no homem a responsabilidade perante o eterno. Cada ato passa a ter o peso da memória sem fim. Observe, Unamuno não se preocupa se Deus e a alma existem ou não, o coração sempre dirá que sim, a razão sempre afirmará que não, o que importa é que ao pensar na eternidade, ao crer na consequencia de cada ato, o homem se torna dono e servo de uma ética e de uma moral. Sem essa fé, a humanidade perde seu prumo. Nada justificará o bem e tudo será relativo.
   Outro fato interessante nessas primeiras páginas é a constatação de que todo católico pensa apenas em si. A iluminação se dá na solidão da cela ou do horto. A salvação se dá a sós. Não chega a ser um egoísmo, pois não se dá a felicidade em detrimento do outro, mas é um egotismo, a salvação de cada um para o bem de todos.
  No protestantismo a salvação só é possível em grupo. A congregação, unida, se salva ou se perde. Um depende do outro. Pois bem, é esse tipo de visão histórica que falta aos ateus. Países protestantes têm sociedades ordenadas, limpas e de certo modo limitadas em impessoalidade. Católicos são mais anárquicos, desordeiros, individualistas, mas produzem personalidades mais brilhantes, geniais, sem regras. 
  Shakespeare só foi possível numa Inglaterra ainda papista. Como em seus países, Dante, Cervantes, Leonardo e Michelangelo. Gênios contidos, como Rembrandt, Ibsen ou Dickens são tipicamente protestantes. Não vamos esquecer que a Rússia assombrou o século XIX com Dostoievski e Tolstoi por ser ortodoxa. Hiper-católica de certo modo. 
  Unamuno pensa assim. Ele constata e não responde. Deus existe? Quem sabe? A vida é eterna? Aposte. Voce tem duas apostas: sim ou não. Qual a melhor aposta?