O cinema é dividido em gêneros : drama, comédia e aventura.  Esses gêneros se misturam, comédia de aventuras, drama aventureiro, tragi-comédia. 
   Dentro do cinema existem as sub-divisões :  no drama temos o drama de tribunal, o drama político, o drama familiar, o histórico, o existencial.  A comédia maluca, a comédia de situações, a de boudoir, a italiana, a chanchada, o pastelão.  E a aventura-western, o filme de piratas, a aventura de sci-fi, a aventura de horror e o suspense.
   Existem filmes, bons ou não, que embaralham gêneros.  Oito e Meio seria drama, comédia e filme existencial. 
   E existe o filme noir, que é drama, mas também é aventura policial.  CROSSFIRE ( RANCOR ) de Edward Dmytryck é um dos cinco melhores e é porta de acesso para os infelizes que jamais conheceram as delícias desse cinema.
   O filme.  A primeira cena já nos prende.  Sombras numa parede :  um homem é espancado até a morte.  Toda a fotografia do filme é estilizada, sombras e cenários ordinários.  Estamos no mundo dos filmes mais viris já feitos. 
   Sim, mais que filmes de guerra, que têm sempre algo de adolescente ( por mais cruéis que sejam, há sempre a camaradagem e o aspecto de jogo de jovens provando virilidade ) e mais que westerns, que estão sempre imersos na poesia da solidão e do sacrifício, é o noir o tipo de filme que melhor exibe a alma do que seja " ser homem ".  Ou do que era isso.
   Não comentarei o medo da mulher que existe em todo noir.  Falarei do modo como eles mostram, sem alarde ou pretensão, de um modo econômico, a condição existencial do homem.  Um ser solto nas ruas, sem grandes ilusões, livre, porém estranhamente preso, atado a solidão, atado a um passado sem brilho, comprometido com a sobrevivencia.
   RANCOR trata de um crime.  Da investigação de um policial tranquilo e boa gente, de soldados que acabaram de voltar da guerra, e principalmente de racismo.  O filme é um dos primeiros a ter a coragem de tocar nesse tema.  Mas o que vemos são prostitutas, bares de jazz, delegacias, apartamentos vazios, ruas, táxis e lanchonetes.  Não existem famílias, não há natureza ou jardins, nada de amores risonhos.  É mundo urbano, seco, noturno, feroz.  Ninguém é sorridente.  Há humor, mas é riso de bilis.
   Seneca assombra cada cena de um bom noir.  E também algo de Nietzsche.  Mas é um Nietzsche americano, menos prolixo, menos " culto".  O que num filme europeu seria discurso, aqui é vazio.
   Os três Roberts do elenco estão soberbos.  Robert Young é o policial.  Calmo e metódico.  Robert Ryan é o assassino.  Grande ator que foi, Ryan é máscara de ódio cego, de burrice orgulhosa.  E temos mais uma vez Robert Mitchum.  O safo Mitchum, imagem de homem que viu tudo e sobreviveu.  E ainda temos Gloria Grahame, que faz uma puta que é ilha de raiva.
   Dmytryck, o diretor,  foi dedurado por Sam Wood.  Wood o acusou de comuna no MacCarthismo.  De vítima Dmytryck se fez algoz : passou a dedurar.  Sua carreira naufragou.  RANCOR é o último filme feito antes do maremoto dedurista.  Nada nele é exibicionista.  Dmytryck conta sua história ( de Robert Aldrich ), não faz nada em excesso.  O filme tem a duração exata, os atores certos, a montagem que funciona.  Esquecemos estar vendo um filme.
   O noir é hoje impossível ( e todo ano são feitas, de Spirit a Sin City, tentativas de o reviver ) porque a virilidade não se manifesta mais de forma noir.  Hoje ela é muito mais histérica, deselegante, explosiva. 
   Fica este filme.