LITTLE DEUCE COUPE - ALL SUMMER LONG - THE BEACH BOYS

   Muita gente gosta de dizer que ama Pet Sounds, mas esquece que Pet Sounds veio de algum lugar, e este lugar é aqui. CD único, com belo livreto, tem dois LPS da banda: Little deuce coupe é do fim de 1963 e All summer long de 1964. Em dois anos eles gravaram cinco LPS. E que maravilha eles são!
   O tema de Little deuce coupe é a estrada, não a estrada como fuga, mas sim como lugar onde se pode correr com um carro. O amor de um jovem por seu carro, esse o tema de todas as canções. Brian Wilson começava a falar de si mesmo, abandonava a praia, lugar que nunca gostou, e passava a contar coisas sobre carros, um dos seus amores. O amor maior ainda era a música.
  Brian Wilson foi o Mozart de sua geração, um gênio tolo, um gênio solar, um gênio feliz. Sim, feliz até o fim de 1964, hora em que ele encontra a marca de seu tempo, a droga e a paranoia. Brian bebeu na fonte de Chuck Berry, dos grupos vocais dos anos 50, em Burt Bacharach, e, incrível!, jamais se deixou pegar por Dylan. A música dos Beach Boys é música de anjos. Há uma delicadeza em cada nota, um encontro harmônico em cada arpejo, uma sinceridade barroca em toda canção de um minuto e meio.
  Veja uma simplicidade como 409. As vozes soam como alegria otimista, são vozes de jovens confiantes, e a instrumentação, elétrica, tem uma leveza que combina com suas asas. As melodias nunca são o "yeah yeah yeah" direto e repetido dos Beatles, são voltas e aperfeiçoamentos que sobem até a beleza sublime. Não é rock. Os Beach Boys se deram mal a partir de 1966, também porque os hippies notaram que eles estavam muito mais para música popular americana que para rock'n'roll. Burt Bacharach, mas também Johnny Mandel, Gil Evans e Cole Porter.
  Quando George Lucas lançou o sublime American Graffitti, encerrou o filme com All summer long. Ele sabia que ali estava o sonho. Tudo aquilo que um jovem queria ser em dois minutos de música e letra. All summer long é ainda melhor que Little deuce coupe, e seu tema é "o cotidiano de um beach boy".  Como diz Scruton, escrever sobre música...como? Escrever sobre os Beach Boys, como?
  Se os Beatles são potencialmente e de fato, a maior banda de rock do mundo, os Beach Boys são potencialmente e de fato, a maior banda de música do mundo. Melhor ouvir Little Honda. Um mundo de pequenos toques musicais na mais simples das formas.
  Menos é mais. Brian sempre soube disso.

QUADRIVIUM, AS QUATRO ARTES LIBERAIS CLÁSSICAS DA ARITMÉTICA, DA GEOMETRIA, DA MÚSICA E DA COSMOLOGIA.

   Não meus queridos, não é um livro onde se diz que a Terra é plana. Nem se fala de magia. Nem mesmo de Deus se fala. Ele nada tem de místico, de estranho ou de perturbador. Mas então, que livro é este?
   Bem, é uma decepção com certeza. Deixa explicar para você:
   São dois volumes, este é o segundo, sendo que o outro fala de gramática e de retórica. Se voce ler os dois, diz a editora, voce terá uma ideia daquilo que um bom aluno da renascença deveria saber. Até aí a ideia é interessante. Um jovem estudante de Bologna ou de Oxford, em 1500, deveria ler Pitágoras, Platão, Ptolomeu, Santo Tomás, Roger Bacon etc...claro que em latim e em grego, e claro que ele teria de ler suas obras completas. Mas...o que temos aqui é uma muito pequena explicação, escrita HOJE, sobre aquilo que eles sabiam ENTÃO. A sensação é de um resuminho para o ENEM.
   O tema é vasto e é fascinante, as ilustrações são ótimas, mas fica tudo com a profundidade de apostilas.
   Em geometria ficamos tomando conhecimento das proporções que formam o universo. O modo como elas se repetem sem parar. Das medidas do ínfimo e do imenso, do modo como esses totais podem ser reduzidos sempre à mesma proporção. Da música temos o mais difícil dos postulados. Difícil ser entendido por quem não lê partitura. Mas há o fato de que toda harmonia se resume a combinações matemáticas. Uma equação errada traz a desarmonia. É fato conhecido por todo músico sério.
  Temos so triângulos como base para toda a construção da natureza, a sequência de Fibonaci como paradigma de plantas, animais e estrelas ( 1,1,2,3,5,8,13,21....). É sim, um conhecimento não mais discutido, mas isso tudo merecia uma obra muito maior.
   Pensamento: Em 2518, qual será a lembrança daquilo que um jovem médio aprende na escola?

Old Surf Movies: A Hatteras Odyssey, 1975



leia e escreva já!

Une journée avec William Finnegan



leia e escreva já!

DIAS BÁRBAROS - WILLIAM FINNEGAN

  Acabo de ler este livro que venceu o Pulitzer de melhor autobiografia em 2016. Em termos de estilo de escrita é delicioso. O autor, jornalista conhecido, escreve no estilo "americano". O modo direto e nunca afetado de Mailer, Bellow e Heminguay. Coloquial mas nunca pobre. Denso, cheio de metáforas, limpo.
  Finnegan é conhecido no meio. Escreve inclusive na New Yorker. Tem livros sobre guerras na Africa, situação humanitária na América Central, vida no Oriente. Sim, ele é um típico liberal de esquerda, daquele tipo que os anos 60 formaram. Um pensamento que só existe nos EUA, pois são liberais que odeiam o capitalismo e ao mesmo tempo amam a liberdade. Uma contradição com que eles convivem com ansiedade e desacertos. Por isso produzem tanto.
  Finnegan nasce numa família de classe média na costa leste. Mas por razões de trabalho, o pai faz parte do meio da TV e do cinema, eles se mudam para a California. Essa a parte mais brilhante do belo livro. A infância e a adolescência de William em um mundo mutante. Brigas na escola, gangs de recreio, insegurança física, a descoberta do poder do surf. A grande sacada de Finnegan, e que ele irá confirmar ao fim do livro:  a grande mudança do surf é que até os anos 80 ele era um esporte dos isolados, dos solitários, dos calados. E desde então, com a popularização, ele se torna esporte de grupo, de bandos, de galera. O surfista deixa de ser um individualista radical, e passa a ser apenas um consumidor de fim de semana. Mas me adianto...
  O pai de William começa a trabalhar na produção de uma série havaiana, e a família se muda outra vez. Na ilha ele se faz surfista. Começo dos anos 60. Mudança da prancha grande e pesada para as leves e pontudas. Sai de cena a surf music e entra a psicodelia. Qualidade do livro, Finnegan é modesto. O livro não é sobre uma busca pessoal. Não é sobre filosofia new age. Ele surfa. Ele consegue trabalhos modestos. E viaja.
  Bali, Java, Samoa, Australia. Tudo antes da popularização. Doenças, misérias, roubadas. E ondas em praias ainda não popularizadas pelas revistas. Ele passa anos nessas viagens. Longe da família, com a qual ele se dá bem, ao lado de um amigo: pode ser Dominic, pode ser Bryan...cruzam o deserto australiano ( William descobre que não há país onde o trabalhador seja mais bem pago que em OZ ), vão à Africa do Sul.
   Finnegan vira professor. É o fim do apartheid, tempo quente, tempo de crise. Ainda sobe a Africa com uma namorada. E volta aos EUA. Adulto.
   Mas não é o fim. Já quarentão, descobre seu pico favorito: a Ilha da Madeira, Portugal. Aldeias, plantações, camponeses pobres. Ele fica anos por lá, uma década. Acha a melhor onda. Mas as coisas mudam: a comunidade europeia e Portugal faz estradas, tuneis, hotéis, tudo se enche de turistas e a onda morre numa rodovia beira mar mal feita. Aos 50 anos ele desiste. O corpo dói. Escreve full time. Tem filha. Ela surfa.
   Um surfista, essa raça tão mal entendida, quer apenas uma coisa da vida: surfar. Só saberá o porque disso aquele que provou da droga. O livro explica mesmo para não-surfistas. Na união de homem e mar vive a parte mais pura de nossas aventuras. De Odisseu à Camões, dos pescadores aos surfistas. De Conrad à Finnegan.

MOMENTO MAIS FELIZ DA VIDA

   Este texto fala sobre alguns dos momentos mais felizes de uma vida. Momentos que eram aparentemente sempre os mesmos, mas que na verdade eram completamente irrepetíveis.
   Falarei no plural, porque todo esse prazer era vivido a dois, eu e meu irmão, 3 anos mais novo que eu. Eu comecei a fazer esse "ritual" aos 11 anos. E durou, com essa intensidade, até meus 15.
   Nessa época minha família tinha uma casa na praia, e a gente descia a Serra todo fim de semana. Contando os feriados e as férias, eu passava mais ou menos 150 dias por ano na praia. Não a toa, minha pele se acha destruída pelo sol hoje, aos 50 anos de idade. Mas quer saber? Não ligo. Valeu a pena. Cada minuto passado foi mágico.
   Tudo começava na véspera, na preparação. Eu e ele ouvíamos os discos que nos remetiam à praia. Houses of The Holy, Let It Bleed, Atlantic Crossing, In Rock. A descida era ansiedade feliz, um misto de renovação  e de pressa. O carro voava. E assim que era estacionado na garagem eu e meu irmão voávamos pro mar. Mais uma vez parecia ser a primeira vez.
  A paixão é aquilo que pode matar uma pessoa. Mas é, por isso mesmo, aquilo que dá sentido à vida de uma pessoa. É uma monomania, e isso faz com que fechemos os olhos para o mundo fora da paixão. Mas dentro desse mundo, desse alvo específico, cresce um outro universo. É apenas um único desejo, mas é um desejo vasto, vasculhado, conhecido e sempre novo. O corpo brilha em vontade de ir além da paixão. E nessa emoção sem fim, eu e meu irmão nos atirávamos.
  Hoje me impressiona a profundidade em que a gente chegava. Muito além do ponto onde dava pé, a gente chegava onde apenas os surfistas de 16, 18 anos iam. E com uma alegria que beirava o absurdo, rindo e sem falar nada, nos deixávamos ir em qualquer onda que viesse. A gente não escolhia, a gente não sabia esperar, éramos pregos na verdade, mas a gente deixava se ir.
  Uma das muitas diferenças do mundo de 1977 e do mundo de 2018 é o surf. Hoje se ataca a onda, se obriga a prancha a ir contra a onda e o objetivo é quebrar a onda. Antes se fluía com a onda. A meta era se integrar à onda e se deixar harmonizar por ela. A sensação beirava a epifania, e por isso excluía todo o resto da vida. Eu poderia destacar a velocidade, a água entrando em comunhão com o corpo, a adrenalina do medo, a sensação de vitória sobre si mesmo, mas o que mais me dava loucura era o som. As vozes vindo da praia, distantes, quase inaudíveis, que eram apagadas quando a onda surgia. E então a música eterna, vinda da pré- história, do mar quebrando sobre voce.
  A gente tomava vários caldos, vacas. Engolia a imunda água salgada com detritos. Tossia. A garganta ardia. Tive vários momentos de pânico e de quase afogamento. De estar debaixo da água e não saber onde ficava o céu e onde ficava o fundo de areia. Mas a gente, com nosso um metro e meio de altura, conseguia respirar por fim. E ia, rindo, buscar a prancha onde ela estivesse. Era isso de oito da manhã até as seis da tarde. Todo dia. Com uma parada breve ao meio dia. Para suco e água, muita água.
  De noite na cama a gente comentava o dia. E sentia que a cama parecia flutuar. Parecia que a gente boiava sobre o colchão. O rosto queimado de sol, o cabelo estragado, nosso sono vinha com um sorriso. Por saber que amanhã tudo seria repetido. Igual. Mas jamais o mesmo.
  Não consigo lembrar de nada melhor que isso.

A challenge rare book restoration project



leia e escreva já!

Inside the mystery of medieval manuscripts - BBC Newsnight



leia e escreva já!

MANUSCRITOS NOTÁVEIS - CHRISTOPHER DE HAMEL...UMA VIAGEM MARAVILHOSA...

   A mais brilhante sacada de Jung foi aquela que diz que após mil anos de era medieval, a Europa ainda carrega em seu inconsciente toda delicia e dor da idade dos santos, das guerras e do código de cavalaria. Demorei um tempo imenso em minha vida para aceitar esse fato. Leitor de Voltaire e depois ateu orgulhoso, reprimi uma herança que em mim é muito viva. Sou da primeira geração não europeia, não camponesa, não plebeia, não serva. Muitos dos hábitos e costumes que vi em minha casa seriam considerados medievais por pessoas de centros mais modernos e mais burgueses. Conheço esse mundo "das trevas". E sei que de treva nada teve. Foi uma época de busca incessante por explicações, por razão, por vitórias e por vida. Mais vida.
  O autor deste livro é paleontólogo. Ou seja, ele estuda livros antigos, letramento, rastros escritos. Feliz, bem humorado, ele nos leva numa viagem por vários países. Em cada parada ele visita uma biblioteca onde nos mostra um antigo livro medieval. Livros raros, livros delicados, livros com mais de mil anos de história. Livros que quase ninguém pode ver. Muito menos tocar.
  De Hamel começa pelo mais antigo, Os Evangelhos de Santo Agostinho, que se encontra na Inglaterra, em Canterbury. Escrito por volta de 400 DC, ele inaugura a idade média. O autor descreve sua viagem, como o livro está guardado, e a aparência da biblioteca. Depois fala da capa, tipo de escrita, iluminuras, quem foram seus donos, onde esteve. E esta edição, linda, traz ilustrações soberbas. Podemos ver a fragilidade das páginas, das capas, a beleza da escrita, dos desenhos, das iluminuras. Para quem ama livros, o objeto que define nossa civilização, é um passeio de sonho. Livros e leilões da Sothebys, livros que foram roubadas pelos nazistas, livros que sumiram e surgiram como por milagre.
  Entramos no cotidiano dos donos desses livros, nobres, reis e rainhas. Entendemos o uso desses volumes, como eram feitos, como eram comprados, o status que eles davam a seu possuidor. Por mais de 600 páginas, e numa viagem por 12 livros que abrangem mais de mil anos, nos acostumamos com esse mundo encantado, assustado e brincalhão. Um mundo distante de nós, mas sempre presente em nossos sonhos e em nossa arte.
  Senti luto quando o terminei. Foi como voltar das férias. Foi como voltar ao cotidiano banal. Um livro que vou sempre amar.

LOGAN LUCKY, ROUBO EM FAMÍLIA, UM FILME DE STEVEN SODERBERGH

   Steven Soderbergh é a prova, assim como tantos outros, de que o nome de um diretor nada significa hoje para o povão. E quando falo povão estou elogiando esse tal povo. Sempre foi o anônimo frequentador de cinema quem garantiu a nobreza do empreendimento. Era o sucesso de Louis de Funes e de Lino Ventura que garantia a existência de Godard e de Rhomer. Era Alberto Sordi e Gina Lollobrigida que financiavam, indiretamente, Pasolini e Rosselini. Mas, diferente de hoje, onde o dinheiro de Homem de Ferro vai para acionistas e não para outros filmes; havia diretores que com seu nome produziam filas. Nem preciso falar de Hitchcock. Fellini, Kurosawa ou Truffaut eram anunciados na TV como estrelas. Sim, em 1975, no meio da novela das 9, se anunciava a estreia do novo Truffaut. Os últimos diretores com esse status foram Spielberg e Woody Allen. O único que ainda se mantém é Tarantino. ( Não vem me falar de Nolan ou Fincher. Seus sucessos são sucessos em que seus nomes mal constam na propaganda ).
  Soderbergh começou com um sucesso de jovens metidos: sex lies e videotapes ( em minúsculas, coisa de universitário metido ). Depois ele teve uma ridícula sequência de fracassos. Veio então um espertíssimo filme policial com Clooney e Lopez, ainda seu melhor filme. Foi então, 1997, que Steven entrou em sua big fase. Mas, desde 2010, ele vinha fazendo filmes sub. Sub cinema e sub arte. Este Logan Lucky é uma clara tentativa de voltar ao gosto do público. Um estilo anos 70 que ele domina como cinéfilo que é. Mas tudo dá errado. O fracasso é absoluto.
  Ele não faz um esperto filme de assalto à Don Siegel ou Lumet. Ele escolhe o "retrato da américa dos fracassados freaks", e quebra a cara. O filme, com um manco e um maneta, mulheres histéricas e estradas vazias, é chato de doer. Lembra muito os piores filmes de Friedkin ou Bogdanovich.
  O elenco tem bons nomes. Um diretor com fama ainda atrai atores que não encontram papel que preste nessa Hollywood sem boas falas e bons personagens. Daniel Craig só tem de fazer cara de mau. Tem ainda Channing Tatum, Hillary Swank, Katie Holmes e Adam Driver. Katie está assustadora de tão magra. O filme é magro como ela.

STOOOOOOPID !

   São 10 LPs vindos diretos de Kookaburra, Australia! Edições de 1980, eles seguem adiante do lugar onde Lenny Kaye havia parado. Sim, voce sabe né, Lenny Kaye era crítico de rock e guitarrista da banda de Patti Smith e em 1972 ele conseguiu lançar um disco chamado Peebles. Era uma coletânea de bandas americanas que tinham desaparecido sem deixar rastro. Mais importante, eram bandas de garagem e em 1972 NINGUÉM MAIS lembrava do que era uma banda de garagem!
   Garagem era o tipo de som mal tocado, mal gravado e mal divulgado. Todas as bandas bebiam na fonte de Yardbirds e Them. E por causa da sinceridade, da energia, do desejo a flor da pele, era rock na mais pura alma. A molecada, alguns com 14 anos de idade, botava o fígado pra fora. Pois bem, esse som ameaçou estourar nas paradas entre 1966 e começo de 1967, mas a história foi cruel com eles. Veio em junho de 67 o sargento Pimenta e o rock mudou. Agora a moda era som pretensioso, bem arranjado ou solos longos inacabáveis. Faixas de dois minutos eram velharia agora...
  Em 1972, no auge do rock sinfônico e do hard rock hedonista, Lenny lança então esse Peebles. Fazia apenas 6 anos que aquilo tudo fora gravado, mas parecia um século. O mundo das garagens ficava a anos luz de Steely Dan e Roxy Music ( as grandes novidades de 72, e eu amo as duas ). Era tosco. Era juvenil. Era sublime.
  Peebles não vendeu nada, mas certos críticos amaram. E muito moleque de Akron, Detroit, Los Angeles e Londres pirou ao ouvir aquilo. Era exatamente o que eles queriam ouvir. Era um som que eles podiam fazer.
  Em 1979 um maluco Aussie, um tal de Seltzer, sai pelos USA a procura de discos perdidos em coleções, lojas antigas, porões cheios de tralhas. E nessa procura ele encontra material para 10 LPs!!! Todas as bandas que ele encontra têm em comum, além da sonoridade pré-punk, o fato de não terem vendido quase nada e nunca terem gravado um LP. Fizeram apenas um ou três singles, venderam de mão em mão, sonharam com o sucesso e sumiram sem deixar pistas.
  Algumas faixas têm péssimo som. Discos que foram achados semi destruídos, riscados, jogados em meio a vitrolas e bikes abandonadas. Um tipo de aventura de garimpo impossível de ser feita hoje. Uma aventura atrás de pérolas, de pepitas.
  A edição, os 10 discos com lindas capas acondicionados em uma pasta de vinil, com poster e uma carta de Lenny Kaye, é linda.
  Andei pensando se na história do rock existe um só nome que seja amado por todas as tribos. Um nome que possa ser escutado com gosto por góticos, hippies, punks, metaleiros, folks, indies, eletrônicos, blueseiros, rockabillies, countries, e etc sem fim...pensei que Hendrix chega perto dessa unaminidade...mas acho que uma banda como essa The 12 a.m. tem esse poder. O som vai de Sonic Youth e Mudhoney à Buddy Holly e Monkees. Ninguém sabe quem são, para onde foram, nada. Ficou o disco. Um milagre.

The Beaver Patrol - E.S.P. (FUZZ 60'S GARAGE)



leia e escreva já!

THE 12 A M - THE WAY I FEEL



leia e escreva já!

QUINQUILHARIAS NAKANO - HIROMI KAWAKANI. A discreta beleza da banalidade.

   Li no ano passado, em janeiro, A Valise do Professor, livro desta mesma autora. Achei que havia ali alguma coisa. Então, agora neste janeiro, termino de ler este Quinquilharias Nakano. E posso dizer: eis uma escritora que permanecerá.
  Hiromi Kawakami é da minha geração. Ganhou prêmios no Japão. E possui um segredo: sua escrita é mágica. Temos uma história simples, quase simplória. Há um local que vende quinquilharias. Coisas que não chegam a ser de antiquário. O dono namora algumas mulheres. Sua irmã é uma artista que faz bonecas. Na loja temos dois funcionários, um rapaz tímido e a narradora da história, uma jovem de 25 anos. Nada acontece de extraordinário. Clientes entram e saem, casos amorosos começam e terminam, gente morre, leilões ocorrem, faz frio e faz calor. Mas a autora faz com que nada disso pareça chato. O livro é de uma leveza e de um humor delicado que conquistam. É uma escrita erótica. Não por falar de sexo, mas porque a autora nos seduz com suas frases objetivas, refinadas, exatas.
  Quando um livro é bem traduzido, este é por Jefferson José Teixeira, temos contato com ritmo da língua original. Desse modo, um livro bem traduzido do francês, traz aquele caráter divagante e ao mesmo tempo racional da língua. Do russo se mantém a cadência dura, e do alemão a perspectiva sempre analítica. Pois aqui, do japonês, percebemos a delicadeza da linguagem. Há nas frases um pudor que não vejo em nenhuma outra. O que se fala é 90% referente a imagens e objetos. Pouco se fala sobre estados mentais. Mal se analisa o que se sente. Isso cria encanto. Respiramos as imagens. Nos sentimos livres do excesso de psicologismo da literatura do ocidente moderno.
  Nos apaixonamos pela loja e pelos quatro personagens centrais. Sentimos pena quando o livro termina. São apenas 220 páginas que poderiam ser 500. Poderia ser uma série. Poderia ser cartoon. Poderia ficar décadas no ar.
  Preciso de mais traduções dessa autora encantadora. É um livro-tesouro.

O PARAÍSO À PORTA ( ENSAIO SOBRE UMA ALEGRIA QUE DESCONCERTA ) - FABRICE HADJADJ

   Fechado dentro de si mesmo, o homem procura em seu interior uma luz. Nesse processo de busca, ele vence o ego.
 Adorando à Deus, o crente se ajoelha e em reza se isola do mundo.
 Dizendo que caminhamos para o nada absoluto, o ateu se livra da responsabilidade perante o além. Sua personalidade, mutável, encara o nada como férias eternas. Esse seu desejo.
 Frequentador de ONGS do bem, ele dá grandes contribuições para as crianças da Etiópia. Mas finge não perceber que sua mãe chora no quarto.
 Temente à Deus, ela troca sua obediência por um bom lugar no Céu.
 Hadjadj não poupa os crentes e os ateus, os agnósticos e os gnósticos, os new age e os budistas. Ele segue uma linha clara, nítida, mas não simples, ele fala do judaísmo e do cristianismo. Mas não do que sabemos, dessa simplificação abjeta, supermercado que vende a dor como se fosse o prazer. Ele mostra que na crença judaico-cristã, nasce, pela primeira vez, a aceitação do mundo real, do mundo como ele é. E mais ainda, nasce a aceitação do tempo linear, do começo, do meio e do fim.
 Para os orientais, para os deuses do Olimpo, para os egípcios, zoroastristas e new ages de hoje, o tempo é cíclico. Tudo se repete, as coisas voltam em estações e o tempo linear é uma ilusão. ( New ages adoram pensar assim porque esse modo de ver a vida promete uma segunda chance em tudo ). Com os judeus o tempo começa a correr como o conhecemos. Há um começo do mundo e haverá um fim. As coisas nascem e morrem. E com Jesus Cristo se parte a linha em uma semi-reta, o tempo recomeça, não como ciclo, como nova vida.
 Hadjadj diz que encontrar Deus é encontrar o outro. A iluminação se dá no amor ao vizinho, ao filho, ao desconhecido, à amada. Deus não está neles, mas eles são obras de Deus. Nossa religião, a do ocidente, nunca nega a materialidade e a verdade das coisas. Elas são reais. Uma montanha é uma montanha e um minuto é irrecuperável. Cada pessoa é única. Nunca houve e nem haverá um outro eu. E o paraíso está no presente, neste agora e neste aqui.
 Não descreverei as longas histórias sobre a Bíblia e sobre a história. Leia o livro. Ele é maravilhoso. Hadjadj nunca se exibe. Ele escreve fácil e tem humor. Mas não vulgariza. O pensamento é exigente.
 Belíssimo o retrato de Mozart que ele faz. A dificuldade que temos em aceitar arte feliz feita por um gênio que foi pessoa feliz. Hadjadj defende sua ideia: o mundo tem dor e tem feiúra, mas o fundo da vida é sempre belo e alegre. Não somos infelizes com momentos de alegria. Somos alegres que se deixam levar pelo orgulho, pela vaidade e pelo medo. A vida é inesgotável, é farta, borbulhante, infinita.
 A ideia de vida eterna é amplamente discutida. Ele é radical: a vida é eterna e somos nós mesmos no além. Nada da perda de memória do oriente. Nada de reencarnar. Ele vê nessas crenças um modo comodista de adiar tudo e não fazer nada. E responde aos ateus: acreditar no nada nos livra de toda responsabilidade. Mais, sem Deus nos tornamos donos de nosso corpo e de nossa vida. Nada mais mimado que pensar assim. Para muitos, nada mais assustador que pensar que após a morte há uma continuação. Voce continua tendo de aturar voce-mesmo, sua esposa, seu pai, seus inimigos. No mundo que ama a extrema liberdade de escolha, o nada absoluto se afigura muito mais tranquilo que o Céu infinito.
 Pois o Céu é uma atividade. Uma entrega ao movimento. Um descobrir sem fim. Um agora que se eterniza em usufruto e um aqui que se estende numa observação sem final. Podemos provar um pouco desse mel em nossos raros momentos de êxtase, em que sentimos nossa infinita alegria. A vida e o mundo como possibilidades que não param de se renovar.
 Para Fabrice Hadjadj, todos somos filhos de Deus e portanto todos temos nosso começo Nele. Olhar para uma pessoa é olhar para esse começo. Amar uma pessoa é amar esse começo. Esse é o mistério.
 ( PS: Faz séculos que a Bíblia é lida, relida, interpretada e reinterpretada...lendo este livro começo a entender o porque...o assunto é eterno... )

A VIDA É MARAVILHOSA

   Conheço um intelectual que passou os últimos vinte anos amaldiçoando a vida. Entre goles de bom conhaque e nacos de boeuf bourguignon, ele diz em altos brados que a vida é um buraco sem sentido. Conheço também um professor de filosofia que diz desde seus 15 anos que o homem é mofo sobre laranja podre. Hoje ele tem 60 anos e se aposentou. Mora com seus netos em Bertioga. Pesca todo dia.
  A questão que me sempre deixou pasmo é: Por que eles não se mataram? Se a vida é tão maldita, por que eles não viraram bêbados e ainda mais insistiram em ter filhos?
  Há algo de profundamente estranho em Beckett, Bergman ou Sartre, entre vários outros. Eles exibem para nós um mundo tenebroso. Sartre chega a dizer que o inferno são os outros... Mas eles viveram nessa escuridão? Como conseguiram criar em meio a tanta dor?
  Guarde esses exemplos e vamos em frente...
  Numa barraca na Siria, um pai que teve dois filhos mortos na guerra sorri de uma anedota contada por um primo. Antes, numa favela brasileira, uma mãe que tem dois filhos desaparecidos, gargalha enquanto vê uma novela na tv. Mais antes, num campo de concentração polonês, um judeu sorri ao ver um companheiro esconder uma foto erótica num buraco entre pedras. O mundo é um inferno. Será?
  Falo de mim agora... Ferido em minha vaidade por um amor que não deu certo, eu afirmo em bom som "Que ninguém merece sofrer tanto como eu". Então, colando os fragmentos de minha auto estima covarde, digo para todos que "sou auto suficiente". O inferno são os outros, não é? Para não sofrer, me fecho como ostra. Tudo que preciso para ser feliz eu posso comprar, posso criar ou posso imaginar. Estou, finalmente, CONTENTE.
  Fabrice Hadjadj diz que contentamento é a porta do inferno. Vamos ver por que?
  Crianças conhecem a alegria, mas não o contentamento. Toda criança, solta em suas descobertas, conhece a alegria de estar conhecendo sons, cheiros e cores, e a felicidade de ter alguém que cuide dela. Esse estado de alegria pode durar anos ou apenas dias, mas ele é marca que fica. Modo simples de provar essa verdade: se nunca tivéssemos conhecido o céu não daríamos nome ao inferno. A dor existe em contraste com sua ausência, a escuridão na falta de luz. A tristeza é ausência de alegria. Alegria que é a condição da vida.
  Mas então por que tanta gente triste no mundo?
  Sacada genial de Hadjadj: Para ser triste basta estar só. Na tristeza não dependemos de ninguém. Nem mesmo da sorte. Se a tristeza é uma ausência, ser triste é um conforto. Dispensamos a sorte. Dispensamos os outros. Nos tornamos blasé. Cool. Frios e distantes. É o charme da modernidade. A solidão tristonha e o auto contentamento distante. Sexo, coisas e viagens. Ficamos contentes. Mas nunca alegres.
  A alegria independe de nossa vontade. Ela acontece. E para acontecer há um mandamento único: estar aberto e disposto. O alegre é ridículo. Ele ri. Ele tropeça. Ele fala bobagens. E principalmente, ele se expõe diante dos outros. Para a alegria, o inferno é ter vergonha. O céu são os outros. Aberto, o alegre chora quando triste, e ri quando tem vontade. Vive a angústia da perda da alegria. Mas não se fecha. Espera. Ele possui ESPERANÇA.
  Pessoas frágeis temem se expor. Não riem. Se garantem. E controlam sua vida. Independem do acaso. E se sentem que a alegria é obra do acaso, desistem. Zombam da esperança que perderam. Se contentam em não sofrer. Se distraem.
  O alegre descobre. Vê a beleza numa folha de mangueira. E se deixa seduzir pelas pessoas. Se não sentíssemos a proximidade dessa alegria, a beleza inerente em tudo aquilo que existe, não insistiríamos na vida. Essa a crença de Hadajdj.
 
 

FABRICE HADJADJ.

   Não há palavra mais usada nos últimos 200 anos que a palavra ILUSÃO. Voce chama uma coisa de ilusão, de ilusória e pronto!, magicamente a questão está resolvida. Ora, não está não! Se a coisa é realmente uma ilusão, como a roupa do rei nú, ao ser apontada ela deixa de existir. Mais importante ainda, uma verdadeira ilusão não se presta a ser descoberta. Ninguém, nem um só homem consegue apontar uma ilusão verdadeira. Exatamente por ser ilusória.
  Temos aqui dois pontos de vista antagônicos. Um diz que a ilusão se desfaz como miragem descoberta. Outro que uma ilusão não pode ser descoberta pois sendo descoberta não é mais ilusão. Nunca foi. Mas continuamos a usar essa palavra levianamente...
  Exponho este ponto, apenas um grão, para mostrar à voce como se dá o pensamento de Fabrice Hadjadj. Ele pega uma imagem e mostra seus lados, seus ângulos possíveis, para só então arriscar uma terceira via. Imenso, ainda estou o lendo, o livro é uma das coisas mais brilhantes que já li. Ele vai fundo. A tese mais ousada, mas não inédita, é a que diz que vivemos num LIMIAR. Nem aqui e ainda não lá. Nem agora e nem depois. Na tensão desse momento que se prolonga por toda a vida, tentamos quando fracos, parecer fortes. Para isso dizemos que o limiar é o destino possível. Que o limiar é um agora eterno. E que o depois não existe. Quando fortes, parecemos fracos, e trêmulos, temos consciência de que o limiar é um momento e lugar precário, que há um depois desconhecido e que a insegurança é necessária para que haja um depois.
  Sim, o livro fala da morte, do paraíso e das ilusões. E dá um golpe mortal ao me convencer de que o paraíso existe no aqui e agora, mas que esse aqui e agora só se revela quando quer, sem que possamos o invocar. Quanto mais queremos esse paraíso, mais longe ficamos dele. Quanto mais queremos a alegria, mais ilusória ela se faz. Nossa reação é então o ressentimento: já que não o tenho, ele não pode existir.
  Hadjadj apresenta um fato: todo animal funciona perfeitamente bem sem as "ilusões" de paraíso, amor ou caridade. Somente nós, não se sabe porque, precisamos dessas "ilusões" para poder funcionar. Se torna fácil crer na química do amor, no design da natureza, ou até num erro do acaso que nos fez "esquisitos". Mas a própria evolução nega o acaso, o erro, a falha. Um animal mal feito desaparece sem vestígios. Se somos a elite dos animais, bem, porque precisamos de muletas como amor, Deus ou pós-vida? Bastaria nossa força e nossa engenhosidade. A consciência da morte seria totalmente inútil.
  Um cético dirá agora: ilusão. E assim, orgulhoso e "forte", realista e moderno, coloca um fim à questão. Mas a tal ilusão persiste, não se desvanece. Persiste até nele mesmo, que por mais niilista que seja, cria paraísos novos, em forma de drogas, sexo ou utopias politicas, para assim suportar viver. E eu então lhe pergunto: Se somos tão superiores, porque criamos essa ideia estranha e sem sentido, de que pode haver algo melhor e maior que este mundo? De onde veio essa imagem?
  Hadjadj diz que não a criamos, que no limiar convivemos com esse paraíso como suspeita ou sombra. E o vemos por segundos, uma ou duas vezes na vida. E que nesse momento em que o vemos, em que o vivemos, sentimos a certeza do paraíso. Céu que não é lá ou mais tarde, é aqui e é já.
  Não há prece, remédio ou ritual que o traga. Que nos faça senti-lo. Há muitos, os mais ocupados em ser felizes e alegres, ele jamais irá se apresentar. Porque ele está, a fenda, a passagem está, no lugar mais banal, mais simples, menor possível. Naquela hora em que percebemos que tudo é sem explicação. Que nada tem uma razão ou um motivo quando procuramos.
  Mas não pense que esse caminho é ficar parado em concentração ou se afastar da ação e viver em zen. Para Hadjadj, esse limiar pode ser visto no convívio com os outros, no amor, na ação dentro da vida. Ou não.
  Olhar para as coisas, para as chaves do seu carro, para o controle remoto, e perceber o mistério que há neles e a alegria que existe no fato deles existirem ao seu lado.
  Esse pode ser um começo.
 

HOLLYWOOD E O GLOBO DE OURO

   Para quem, como eu, é um joe doe ou um zé mané, assistir a entrega dos Golden Globe é como estar de penetra numa festa. Hollywood cava sua sepultura ao dirigir todas as suas reuniões à agenda liberal. O que vemos são prêmios dados a filmes que ninguém vai ver, atores com discursos politico partidários e atrizes que a cada suspiro afirmam a força das mulheres. Nada tenho contra a agenda liberal, nada tenho contra gays e etc, mas o cinema fica em segundo plano. Prega-se a liberdade, ok, mas nunca se fala do amor ao cinema.
   E no meio de tudo, vemos a rainha Meryl Streep, sorridente, posando como um tipo de totem da dignidade balofa. É medíocre. Pior, é pornograficamente auto adulatório.
   2017 teve as piores bilheterias desde 1992. É só o começo.