O DEFENSOR + TIPOS VARIADOS - CHESTERTON

   Voce começa a ler, se tiver jeito pra coisa, lá pelos seus 9 anos de idade. As lendas de Carlos Magno e mais Stevenson e Twain foram meus primeiros livros amados. Desses a gente nunca esquece. Depois a gente se apaixona por autores que duram um verão ou um inverno. Lembro que um dia pensei que iria amar Lorca, Milan Kundera, Camus, Pessoa, pra sempre. Ficaram na memória. Como ficaram tantos outros. Alguns a gente descobre que era só aquilo mesmo, amor de verdade, mas passageiro. Já outros foram amor fake, um engano. Penso em Sartre como fake, Nietzsche, autores com sedução fácil, juvenil, enganosa.
  Digo tudo isso porque sei ser impossível a um iniciante gostar ou sequer ler Chesterton. Ele é bem humorado mas não é simpático. Isso acontece porque ele exige muito de quem o lê. O estilo de Chesterton, todo calcado em paradoxos, pede atenção a cada palavra. Se voce se distrai, pronto, todo o sentido da frase se vai. Ele também exige paciência. Escreve como um glutão, devagar e com gosto. Os textos nunca são longos, mas todos parecem pesados. Isso porque são densos, gordurosos, cheios de temperos. Dos temperos, o mais usado é o humor, um humor irônico, sutil, agudo, mas nunca maldoso.
  Aqui temos um livro que une seus dois primeiros livros. O Defensor, como deveria ser, defende coisas que em 1905 seriam pouco defensáveis ( acho que mudou pouco desde então ). Chesterton defende o romance barato, pastoras de porcelana, a publicidade, a gíria, os bebês, as coisas feias, o romance policial e muitas outras belas invenções. Lê-se com prazer, as frases inesquecíveis e certeiras surgem em meio ao texto. E sempre usando o paradoxo, condição na qual ele foi mestre.
  Por exemplo, ele diz que bebês são adoráveis por serem sérios. Bebês olham a vida, as coisas, com seriedade. Miram tudo com o olhar do verdadeiro interesse e por isso são felizes. Cada objeto é para eles um caso de estudo apurado. E por isso os amamos. Sabemos que nosso interesse pelas coisas se foi a muito. Mal as notamos.
  Em um outro texto, ele defende a supremacia da superficialidade sobre a profundidade. Pois o conhecimento superficial é o mais próximo da verdade, daquilo que o outro é. Quando nos aprofundamos começamos a elaborar teses e explicações, e assim perdemos a bela superficialidade honesta das coisas e das pessoas.
  Chesterton defende o bom senso. Sempre o bom senso. E para ele, o bom senso mora sempre com a maioria do povo. O povo sabe a verdade pelo costume e pela tradição. O intelectual é apenas um adolescente desajustado que luta para impor ao mundo real a visão de sua alma individual. O artista, veja bem, tem o poder de traduzir em imagens ou em palavras aquilo que o povo tem dentro de si. Ou ao redor de si. O intelectual, ou o artista intelectualizado, nada sabe sobre o povo. Muito menos sobre o mundo. E por isso não aceita aquilo que desconhece e teme conhecer. Cria um mundo falso. O mundo onde tudo é cinza e a noite jamais chega.
  Em Tipos Variados, Chesterton analisa rapidamente alguns escritores, politicos e pensadores de seu interesse. Parte de Charlotte Bronte e passa por Stevenson, Tennyson... Mostra os defeitos do fim da vida de Tolstoi, escreve uma homenagem belíssima a rainha Vitória, comenta e ridiculariza o Kaiser Guilherme. Em todos os textos ele escancara o não óbvio, ilumina aquilo que não esperávamos ver ou topar. Como o fato de Bronte ter criado a primeira heroína feia da história ( Jane Eyre ), Stevenson ser tão bom em tudo que escrevia que fazia os críticos se perderem sem conseguir o definir, ou demonstrar que a rainha Vitória foi grande por saber sair do caminho. ( É seu melhor texto. Ele ama Vitória e não disfarça isso. Mas analisa com frieza ).
  Para nós, brasileiros, talvez o texto mais útil seja aquele sobre Alfred, o Grande; o primeiro rei inglês. Quando ele fala do mito que cria um povo entendemos todos os erros de nossa país. Para Chesterton, não há grande nação sem um grande mito. E não importa se esse mito aconteceu de fato ou não; o que importa é o fato do povo o ter abraçado como uma verdade maior que a história dos documentos.
  Fato a se jamais esquecer: ele diz que toda escritura que funda ou dá força à um povo é sempre um livro pela metade, ou fragmentado. Platão, Buda, Cristo, Homero, Sócrates, são todos livros, vidas, histórias contadas pela metade, com lacunas, com páginas perdidas. E por isso são obras maiores que livros fechados, completos, acabados.
  Nada se funda sobre papel impresso.
  A voz do povo é a voz de quem narra na rua.

ROGUE ONE...CAPRA...CHARLES BRONSON...WOODY...WARNER EM GRANDE ESTILO

   ROGUE ONE, UMA HISTÓRIA STAR WARS de Gareth Edwards com Felicity Jones
Nada a ver com a saga de Lucas. É um chatérrimo filme escuro e bem nojentinho endereçado para aqueles teens que acham Star Wars "muito infantil". Para lhes agradar, deram um banho de sujeira no visual da saga, filmaram tudo à noite e aumentaram o niilismo. Isso, faz de conta, é ser mais adulto. Bullshit. Star Wars, e o último episódio mostrava isso, é solar, alegre, leve, e bem anos 30. Este é apenas mais um produto dos anos 2000. Pior, a história, boba, não interessa. Os personagens são esquecíveis e o humor partiu para bem, bem longe. Um lixo.
   ANTHONY ADVERSE de Mervyn LeRoy com Frederic March, Olivia de Havilland, Claude Rains, Edmund Gwenn, Anita Louise.
Warner anos 30. Era assim que se fazia um filme de Oscar: um best seller é comprado. Se faz um roteiro. Se escolhe um elenco e se constroem os cenários. Só então se escolhe um diretor. A história tem de ser longa e rocambolesca. O filme deve agradar o universitário de NY, mas também o caipira de Nebraska. Era um trabalho árduo. O produtor era o cara que unia tudo isso. O filme seguia seu instinto. ( Nada de pesquisas baby ). Aqui temos um ótimo exemplo. O livro, a saga, vai da Itália à Africa, passa por Cuba e Paris e acaba no mar. Se passa entre 1780-1795, época romântica. Os atores são excelentes e todos têm o tipo físico perfeito. O time de coadjuvantes têm carisma e são velhas caras conhecidas. A trilha sonora, de Korngold, é fantástica. Temos romance, tragédia, muita ação, vingança, fugas, golpes, crueldade, dor. As cenas na África são geniais, o filme cresce em seu miolo. Cresce muito. March, um dos grandes atores da época cheia de grandes atores, leva o personagem à perfeição. Consegue fazer crível. Dura quase 3 horas e é um prazer. Seu único defeito é seu final, um pouco corrido demais.
  O SÉTIMO CÉU de Frank Borzage e Henry King com Janet Gaynor e Charles Farrell ou James Stewart e Simone Simon.
Saiu em um DVD a versão original, de 1927, muda, e a refilmagem, de 1936. Fazia tempo que eu não via um filme mudo. Havia esquecido da riqueza das imagens. Os sets neste filme são deslumbrantes. A pobreza de um bairro parisiense made in Fox. Muito clima, muito gótico, muito belo. A versão de 36 ainda conserva a beleza do set, mas a ênfase vai para a ação e não ao clima. O plot fala de um limpador de esgotos que se envolve com uma menina suicida. Há diferenças imensas entre os dois. É uma refilmagem como deve ser, totalmente original. Vale ver. Mas o de 27 é bem melhor. Ambos foram grandes cineastas do começo do cinema.
   PERSEGUIÇÃO MORTAL de Peter Hunt com Charles Bronson e Lee Marvin.
Caramba, ele é bom! Bronson, no Alasca de 1930, salva um cão de uma briga de cachorros. Mas com isso, passa a ser perseguido pelos amigos do dono do cão. Não é um filme de cachorro, o bicho logo morre. É sobre matar para poder viver. Sobre neve. Sobre virilidade. O filme parece ser ruim, mas engrena, e após 20 minutos vemos que é um bom filme para homens. Simples. Bem simples.
  CAFÉ SOCIETY de Woody Allen com Jesse Einsenberg e Kristen Stewart.
Um cara tem de ser muito narcisista para passar toda a velhice refazendo o mesmo filme. Voce já viu cenas de casais andando no parque, voce já viu declarações de amor junto a uma ponte. Voce já escutou as falas pseudo chiques. Voce já viu esses personagens em filmes menos ruins. Mal acredito na cara de pau do sr. Allen. Ele muda o elenco, mistura cenas e refaz um filme de Woody Allen. É óbvio, é bobo, é brega, é chato.
   MIL SÉCULOS ANTES DE CRISTO de Don Chaffey com Raquel Welch
É isso. Humanos e dinossauros vivem na mesma terra e lutam entre si. Sim, em 1966 todo mundo sabia a mais de século que eles não conviveram...mas e daí!!! Em 2017 a gente assiste gente que lança teias e voa em armaduras e não liga! O filme é um desfile de Welch, a sex symbol da época, em bikini de peles. Lindona.
   FARSA TRÁGICA de Jacques Tourneur com Vincent Price e Peter Lorre.
Horror barato em chave de humor. Price mata pessoas para fazer sua funerária crescer. Sua atuação é o máximo do camp. Falsa, cínica, vaidosa, afetada, deliciosa. Voce vê o filme para o amar. E é só.

UMA DAS JÓIAS DE FRANK CAPRA: DO MUNDO NADA SE LEVA.

   Um grande empresário precisa derrubar um quarteirão de casas a fim de construir uma nova fábrica. Mas, um dos proprietários não quer sair de lá. Enquanto isso, o filho do tal magnata, se enamora de sua secretária. Mais tarde iremos saber que ela é filha do dono do tal imóvel, e que a família snob do rapaz irá pensar que tudo é um golpe do baú.
   Mas todo esse plot é secundário, o tema central é a família que vive na casa. Lá, cada um faz aquilo que deseja fazer. Desse modo, uma filha dança porque ama dançar, a esposa escreve porque gosta de usar a máquina de escrever. O marido da dançarina toca xilofone, há dois agregados que fabricam fogos de artifício. Todos são péssimos no que fabricam ou fazem, e nenhum busca reconhecimento algum. O que eles desejam é poder fazer, não ser alguma coisa. Para todos eles, ser é fazer.
  Capra faz um filme, vencedor do Oscar de 1938, que hoje seria considerado esquerdista. Ele ataca os industriais gananciosos, os politicos ladrões, a ambição e a fama. E defende, ardorosamente, a constituição, a justiça e os pequenos trabalhadores. Mas não se iluda, os valores de Capra sãos os dos bons imigrantes americanos: trabalho honesto, propriedade como um tipo de reino particular e o respeito à tradição. Chestertoniano até o osso.
  O elenco faz magia. Lionel Barrymore é o pai. Coleciona selos, foi rico, largou tudo para viver nessa casa maluca. James Stewart é o filho do magnata. Não poderia ser mais cativante, sua inocência é crível. Jean Arthur é a filha-secretária-namorada. O tipo do personagem que emancipou as mulheres nos anos 30. E temos ainda uma troupe de grandes atores, todos, de Ann Miller à Mischa Auer brilhantes! O filme nos faz felizes.
  Frank Capra foi o grande diretor popular dos anos 30. Seus filmes, feitos entre 1932-1939, afirmaram a politica de Roosevelt. Eram lições de civismo e de otimismo. Com William Wyler e John Ford, eles formavam a trinca mais poderosa do cinema de então. Após a guerra, onde serviu, Capra mudou, e seus filmes adquiram um amargor que antes era muito bem disfarçado. É dele o mais amado filme de natal de todos os tempos, IT'S A WONDERFUL LIFE, feito já com a acidez de 1946.
  Este filme é uma de suas jóias.

Evelyn Waugh Face To Face BBC Interview



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Brideshead Revisited Episode 4 PART 6 Segment 1



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Brideshead - Charles reminisces



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MEMÓRIAS DE BRIDESHEAD - EVELYN WAUGH, UMA SEGUNDA LEITURA.

   Meu primeiro contato com Waugh foi através da série inglesa, em 24 capítulos, que passou na TV Cultura, legendada, em maio de 1988. O elenco era absurdo de tão sublime: Jeremy Irons, Laurence Olivier, John Gielgud, Claire Bloom. A série passara em Londres em 1981, e na época mudara toda uma geração de jovens ingleses conservadores. O Bowie de Let´s Dance é cópia visual do Sebastian Flyte da série. Bandas pipocaram imitando o visual anos 20 da série, de Style Council à Spandau Ballet. A fotografia da série e a trilha sonora eram sublimes. Natural que eu me apaixonasse. Nos Jardins, em SP, as pessoas se reuniam às quintas, com whisky e chá, para assistir um novo capítulo. Era ultra chique.
  Depois, via Paulo Francis, Sérgio Augusto, Matinas Suzuki, passei a entender quem fora Evelyn Waugh. Um famoso autor inglês, ativo dos anos 20 até os anos 60. Escrevera vários livros de sucesso. Famoso pela sátira, pela verve, pelo humor agudo. Brideshead é seu único livro "sério". Mas mesmo assim há algo de patético em certas descrições e diálogos. Waugh se converteu ao catolicismo ao fim da vida. Era gay. Bebia bastante. Ficou rico.
 Charles Ryder conhece Sebastian Flyte em Oxford. E essa primeira parte do livro é a melhor. Waugh nos faz amar Oxford, descreve a universidade com brilho. O amor gay entre Ryder e Flyte nos enleva. Ryder é ateu e plebeu, apesar de rico; Sebastian Flyte é hiper nobre e católico, uma estranha minoria na Inglaterra. Além dos dois temos vários personagens vivos e sempre interessantes, Anthony Blanche, uma bicha afetadíssima, o pai de Ryder, um velho engraçadíssimo, desligado e sovina; a mãe de Sebastian, carola e sofrida; o pai, um homem que fugiu da Inglaterra e virou um tipo de pecador boa vida. E muito mais...
  Com o tempo, Ryder se torna amigo da mãe de Sebastian, e isso os afasta. Sebastian se torna um bêbado e decai até as ruas do Cairo. Ryder se apaixona pela irmã de seu ex-namorado, a bela Julia. E o resto não conto.
  Não estranhem, o livro diz claramente que todo jovem inglês ou alemão aprende a amar com um amigo do mesmo sexo, e depois se torna hetero aos 20, 21 anos. Em países latinos isso é incompreensível. Nos EUA também não há esse "segredo". Não sou inglês então não tenho como saber. Mas não se engane, o tema do livro não é o sexo, é na verdade a decadência. O fim da era das casas de campo, dos criados, de um estilo de vida que morre na Segunda Guerra. A falência dos aristocratas e da vida aristocrática. O segundo tema, ligado ao primeiro, é a sobrevivência do sagrado no mundo moderno. A " Luzinha vermelha" que ainda está acesa, embora discreta.
 O livro é um dos 10 favoritos de minha vida. A série, idem.
 Reler foi um imenso bem.

The Night of the Hunter -- the river and children's music -- Higher Qua...



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O MENSAGEIRO DO DIABO....SEMENTE DO MAL....SHAKESPEARE NA WARNER...

   O MORRO DOS VENTOS UIVANTES de William Wyler com Laurence Olivier, Merle Oberon, David Niven, Flora Robson.
A fotografia de Gregg Toland é maravilhosa, um treino para Kane. Olivier não tem medo da fúria de Heathcliff e se deixa conduzir por Wyler, talvez o maior dos diretores de atores de Hollywood. Já Merle não está a altura de Cathy. Faz uma versão bem comportada de uma força feminina da natureza. O filme é muito bom, forte e com tinturas de horror. Para quem ainda não sabe, Whutering Heights é o grande monumento do romantismo e foi filmado centenas de vezes, inclusive por Bunuel ( que fracassou ). Só neste século conheço mais 4 refilmagens do livro. Todas equivocadas. Este é o que chega mais perto ( apesar de ignorar todo o miolo do livro, ou seja, 50% ). Heathcliff é um mestiço que cresce com Cathy, a filha legítima. Quando adulto é humilhado e foge. Faz fortuna na América e retorna. O livro fala de novos tempos, de destino, de racismo, de maldição, de sexo. E da morte, todo o tempo fala da morte. Um belo filme!
  SEMENTE DO MAL de Billy Wilder
O raro primeiro filme de Wilder, feito na França em 1932. De Wilder ainda não se percebe o cinismo, mas o filme tem frescor e é todo filmado nas ruas de Paris. É um filme sobre carros. O filho mimado de um ricaço que perde seu carro e se une a ladrões de automóveis. Um filme de ação. Deve ser conhecido. A imagem está restaurada.
  SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO de Max Rheinhardt e William Dieterle com James Cagney, Olivia de Havillande, Mickey Rooney, Joe E. Brown, Dick Powell, Anita Page.
O primeiro filme que vi na vida ( aos 6 anos ), na TV em um dia de Natal. A peça de Shakespeare é tratada em termos de comédia da Warner, mas tem ainda muita magia e uma beleza etérea esfuziante. Os cenários cintilam em prata, as roupas flutuam, o filme voa. Rooney rouba o filme. Seu Puck é um Iggy Pop antes do tempo. Um moleque selvagem que grita e relincha. Max Rheinhardt era o grande diretor de teatro da Alemanha. Fugiu para os EUA e dirigiu esta peça ao ar livre em Los Angeles. Aqui ele faz seu único filme com a ajuda de outro refugiado, o grande Dieterle, que na Alemanha fora ator e nos EUA se tornaria um grande diretor de filmes "encantados". O filme tem momento de grande "tolice", mas a magia das cenas compensa suas 3 horas. Bonito.
  O MENSAGEIRO DO DIABO de Charles Laughton com Robert Mitchum e Shelley Winters
Laughton só fez este filme como diretor. Mas, como ator, foi um gigante na Inglaterra e em Hollywood. Sempre é um prazer ver esse monstro na tela. Sua direção aqui se tornou lenda. O filme foi um fracasso absoluto em 1955, hoje é um clássico. O "problema" do filme era sua inteligência. É um filme dos anos 80 feito nos anos 50. Um pastor mata as mulheres com quem se casa. Um menino esconde o dinheiro do pai ladrão, morto pelos policiais. O pastor se casa com a mãe do menino. E o tortura para ter o esconderijo do dinheiro revelado. O menino foge. O horror campeia o filme. É um retrato do inferno, dos piores medos infantis. E ao mesmo tempo o filme tem um clima de fábula arcaica, de fantasia mítica. É assustador e é bonito. A fuga no rio é uma das coisas mais fortes já filmadas. Obra-prima.

LUCIEN LEUWEN - STENDHAL

   Lucien é o filho mimado de um milionário de Paris. É então, enviado pelo alegre pai, para o exército. Não é tempo de guerra, e ele fica entediado na cidade de Nancy. Lucien na verdade odeia o exército, não a guerra. Sente falta da cidade grande. Para ele, tudo lá parece brega, interiorano, ridículo.
   Ele é acossado por seus superiores. Eles lhe invejam o dinheiro. E Lucien tenta travar relações com a aristocracia da cidade. Os aristocratas de Nancy, afetados, esnobes e cheios de medo de uma nova revolução, são decepções sem fim. Lucien odeia seus modos, seus exageros, suas cerimônias e frieza espectral. E eles suspeitam daquele homem sem nome, um sobrenome vulgar, um rico sem passado, um burguês.
   O livro fala muito de politica. Logo Stendhal, que dizia ser contra a politica em romances. Há por toda parte o confronto entre republicanos e aristocratas, entre realistas e jacobinos, papistas e ateus. Lucien mal se coloca, ele é colocado.
   Romance que Stendhal não terminou, não revisou, o volume tem momentos em que sentimos a falta de um corte, o excesso de uma frase, logo em Stendhal, um autor que nunca comete erros, que é sempre exato em tamanho e preciso em ritmo. Portanto, que não se espere aqui a altura sublime de O VERMELHO E O NEGRO, e nem o milagre em clima e estilo de A CARTUXA DE PARMA. Esses dois são monumentos da humanidade, Lucien é apenas um ensaio para um monumento. Um croqui.
  Mesmo assim, há em suas páginas aquela movimentação colorida, viva, de Stendhal. A habilidade em criar personagens profundos em apenas duas linhas. Frases que ficam e duram, cenas que desenvolvem almas e dão ensejo a ações inesperadas. Stendhal nos conduz, como todo grande romancista, pega nossa mão e nos leva.
  Depois Lucien se apaixona. E sofre o mal entendido de frases ditas pela metade. É quando o livro brilha menos. Falta a revisão, o rumo do autor. É belo o modo como a mente dos dois amantes se embaralha e se perde. A psicologia de Stendhal é infalível. Mas sentimos que ele derrapa às vezes.
   É um livro, longo, que poderia ser perfeito. Como ficou, é tão somente, memorável.
   E, claro, um prazer.

SOLIPSISMO

   Lembro de assistir nos anos 80 um filme de Woody Allen. Em certo momento, ele entrava em pânico ao imaginar que no mundo inteiro apenas ele existia. Que tudo a seu redor era imaginação. Que o mundo que ele conhecia, todas as ideias, toda a arte e todas as pessoas, eram frutos de sua imaginação. Que tudo que existia era ele.
   Sim, essa indagação filosófica é séria e é bastante intrincada. Se na indagação de Woody Allen percebemos apenas um tipo de narcisismo gigante, em MATRIX, de 1998, começamos a notar que a coisa pode ser mais profunda. O solipsismo  se transforma em sonho dirigido, o mundo todo seria apenas uma ilusão, mas não uma ilusão nossa, e sim uma ilusão deles.
   Eu acho que tinha 12 anos de idade quando, voltando da escola, tive uma ideia: que meus olhos viam apenas aquilo que eles já estavam prontos para ver. Que a vida era como um filme, e que tudo aquilo que não fizesse parte do filme: os técnicos de estúdio, os camarins, a rua lá fora...Não podia ser visto por meus olhos. Eu criava o filme, mas esse filme tinha um limite físico: a capacidade física de meus órgãos sensoriais.
  Não confunda esse sentimento, esse pensamento, com a caverna de Platão. Na caverna vemos as sombras do mundo ideal. O mundo da verdade. No mundo do solipsismo, NADA PODE PROVAR QUE A CAVERNA NÃO SEJA UMA CRIAÇÃO MINHA E QUE AS SOMBRAS SEJAM SONHOS MEUS. Nessa corrente de pensamento, voce não existe. Eu criei sua existência. E se voce me lê agora, não tem como saber que eu exista. Eu posso ser um sonho seu. O mundo digital dá uma enorme margem a essa filosofia. Voce não tem como saber se eu sou real. Se sou homem ou mulher. Posso mentir à vontade. Mas, no solipsismo, o próprio texto que voce lê é de voce mesmo.
  O mundo assim seria um espelho. Voce e voce.
  Digo sinceramente que esse modo de pensar me assustou um dia. Mas hoje não mais. Porque sei que o mundo existe fora de mim. Não posso, talvez, prova-lo pela lógica, mas o intuo. E apesar de ainda às vezes duvidar de que a Guerra dos Cem Anos ou Ésquilo não sejam reais, de que o passado seja uma ficção, de que o mundo tenha começado comigo, sei que não criei Prometeu Acorrentado. E nunca teria a criatividade para inventar alguém como voce.
  Mas a gente pode ir adiante. E então entramos na parte mais profunda do solipsismo...
  Nossa mente é como um filtro, e isso tem sido cada vez mais provado pela ciência. Só penetra dentro de nossa mente aquilo que ela já fora programada para aceitar. É como se houvessem buracos na mente, todos quadrados, e só os quadrados fossem aceitos por ela. Tudo que fosse redondo, triangular...seria ignorado. Passaria ao largo da mente.
   Esse é um tipo de solipsismo bastante aceitável por ser bastante lógico. A lógica de não se poder aceitar e participar do universo ilógico.
  Pressentimos a presença desse outro mundo, o universo que nossa mente não capta, e nesse momento nos assustamos. Essa estranha percepção pode se chamar intuição ou inspiração, ou ainda êxtase. Essa sensação dá raiz a coisas como religião, poesia, arte. Todas são linguagens que lutam para expressar aquilo que fica fora da lingua, da mente, do mundo como o podemos perceber de forma sólida e temporal.
  Há que se dizer que nada que não seja extenso e temporal pode ser imaginado ou visto por nossa mente. Se o universo é infinito, ele não é infinito apenas em tempo e em extensão; ele é infinito em forma e em possibilidades. É isso que a física começa a entender. O ilógico deve existir dentro do infinito. Ou que se aceite a finitude do tempo e do espaço.
  Voltemos ao solipsismo mais chão.
  Quando senti essa possibilidade, a da solidão absoluta, eu estava na verdade sentindo a solidão de existir no mundo. 12 anos é uma boa idade para esse primeiro choque. O cordão umbilical se partindo em sua forma espiritual. Mas nunca nada é apenas uma coisa, e então há nesse sentimento infantil, infantil no sentido de simples, direto, honesto; a raiz de um problema eterno: como vivenciar a vida do outro e do universo. Como se ligar a outra vida.
  Se Descartes quer entender e provar sua existência; ao solipsismo a inquietação é a de provar a existência de vida fora do eu. Descartes nunca me disse nada porque minha questão sempre foi o outro. Estou saturado de eu e pobre de voce. E penso que essa será cada vez mais a questão de todos: Voce existe...Onde está voce....como sentir o que voce sente e pensa...Prove-me que voce é real... ( Não é engraçado que essas são as questões que jogamos para Deus!!! ).
  Uma amiga se inquieta com esses pensamentos. Fica perturbada. Não há por que, amiga. A busca da verdade do outro é uma busca muito mais fértil que a busca masturbatória do eu. Procurar na vida e no mundo a prova de que voce não está só.
   Não conheço mais bela jornada.

HG WELLS.....CAGE THE ELEPHANT....CARROS

   Todos os carros no estacionamento são pretos, brancos ou cinzas. Não sei para onde foram as cores. Parece haver uma certa timidez colorida. É como se tivesse sido imposto a todos que um carro colorido é um alvo. Os carros devem ser anônimos nas ruas. Não atrair ladrão. Não se destacar para a foto da multa. Sei lá....
 Cage The Elephant é um monte de riffs do CHIC com swing branco. O cantor se joga como Iggy Pop sem raiva e Mick Jagger sem sexo. Divertidinho. O povo que assiste é todo sorrisinhos. Rock virou coisa de gente contente. Ou deprimida. Nunca perigosa.
 HG Wells escreveu A MÁQUINA DO TEMPO que eu reli agora. Sua previsão era a de que todos nós íamos virar Eloys ou Morlocks. A classe média, protegida e preguiçosa, acabaria amolecendo e virando o gado dos operários, que por viverem em condições animalescas, se tornariam monstros comedores de carne humana.
 Ele não tinha como adivinhar que os operários se tornariam classe média. Todos viraram gado. Os Morlocks do futuro podem vir do Oriente. Seremos docilmente dominados.
 Cage The Elephant é trilha sonora de Eloys.
 

trombone com vara: A SERPENTE DE ESTRELAS de JEAN GIONO. ZORBA, VENTO...

trombone com vara: A SERPENTE DE ESTRELAS de JEAN GIONO. ZORBA, VENTO...:    Era fim de tarde. Era março, 1993. Mesa a calçada, cervejas sobre a mesa, todos os amigos já haviam partido. Ficamos eu e Fabio. Ele bêb...

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PRA ONDE FORAM TODOS ESSES CARAS...

   Uma das coisas mais bobas que a gente pode ver hoje é o povo em um show de rock. Falo dos grandes shows, tipo festival ou arena. É uma multidão de pessoas limpinhas, bonitinhas, tirando fotos e gravando o seu prazer e a sua sorte por estar lá. Tudo fica parecendo tão posado como o show em si. Até a viagem de droga parece posada.
   No futebol a coisa ficou ainda pior.
   A gente ia ao campo pra ver o jogo, claro. Mas principalmente pra ver a torcida. Quem entrou no Morumbi com 120000 pessoas e uma floresta de bandeiras, faixas, confete e tambores sabe do que falo. Mesmo o jogo mais ridículo, e eram muitos, virava festa. O ingresso custava o preço de uma Coca e um hot dog. A loucura era free.
  Escrevo isso após dar mais uma lida no Febre de Bola, do Nick Hornby. E posto um dos jogos ícone dele: Leeds e Arsenal em Wembley. Mesmo no frio Wembley a gente sente a energia. E os jogadores, todos com rostos de loucos ou de caminhoneiros, dão o sangue para estar ali. A violência corre solta e eu não a defendo. Mas há algo de visceral nesse jogo selvagem e bretão, jogo que hoje só podemos ver na várzea. E pra onde foram esses garotos desdentados na arquibancada, os mesmos que formavam bandas de rock sujas, jogavam bilhar nos pubs e trabalhavam nas minas de carvão...
  O futebol hoje é melhor jogado. Mas ao mesmo tempo ele tem uma limpeza, pretensão à classe alta, terminologia classe média, que fez dele um tipo de show da Broadway, exatamente o que aconteceu ao mesmo tempo com o show de rock. 
  Nick Hornby fala muito dos Buzzcocks, e eles, a banda, tinha dentes horrorosos e caras feias. Vejo num video que o ponta esquerda é banguela ( do Derby County, campeão êm 1972 ).  Hornby fala que fãs de rugby ouviam Mozart. Os de futebol ouviam soul music e pegavam em seios de meninas.
  Bem...hoje nem todos ouvimos Mozart. E não pegamos mais em seios de meninas. Mas todos nós somos torcedores de rugby. Isso sim é verdade.

Leeds United vs Arsenal FA-Cup final 1971-72



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FEDERICO FELLINI - FAZER UM FILME

   O melhor do livro é a homenagem que Fellini faz a Totó, o genial cômico italiano. Por mais que se elogie Totó, ela é ainda maior.
 Não é um bom livro. A longa introdução de Italo Calvino é muito melhor. Calvino fala de suas memórias com o cinema dos anos 30 e consegue explicar porque o cinema americano desse tempo é tão mítico. O modo como ele descreve as estrelas e seu poder sobre nós é sublime.
 Mas Fellini tem outro tipo de abordagem. Ele escreve sobre seu ego, seus sentimentos e nunca sobre seus filmes ou sua vida. E assim, acaba por nos cansar. Uma pena. E felizmente ele reconhece que não consegue falar sobre os filmes porque ele só se recorda do que sentia enquanto os fazia, e não da história das filmagens em si.
 Já esquecia que além de Totó, Fellini conta sua experiência com LSD, frustrante, e seu respeito por Jung, um psicólogo que libera a união e não prega a divisão entre alma e corpo, sonho e realidade, desejo e medo.
 Lemos todo o filme e nada ficamos sabendo sobre o homem Fellini.
 O cara que fez 4 dos melhores filmes da história se esconde.

MEL GIBSON...MARTIN SCORSESE...KIRK DOUGLAS...MILESTONE

   ATÉ O ÚLTIMO HOMEM de Mel Gibson com Andrew Garfield, Vince Vaughan
E aqui temos Andrew Garfield de volta ao Japão, de volta a questões cristãs, sofrendo pacas outra vez. Parece que ele fez um tipo de treino aqui para depois fazer o filme do Scorsese. Mas, falando a real, ele está excelente nos dois. São papéis difíceis, que poderiam cair facilmente no exagero ou então na frieza blasé. Ele acerta o ponto. Agora falando do filme. Ele é excelente. A violência, de que tanto se falou, nunca é abjeta. Antes, é bela. O fogo, o sangue, a terra seca, tudo é esteticamente tratado. E têm uma função, um porque: existem para mostrar a miséria da carne, o vazio que há em tudo que é matéria, apenas matéria. Felizmente há no fim no filme os depoimentos das pessoas reais, dos que lá estiveram. Pois o que Desmond Doss fez foi um milagre. Um desses milagres que só quem não quer perceber não vê. Sua ação foi mais incrível que aquelas de qualquer personagem Marvel ou DC. Porque ele não tinha superpoderes e nem era um mutante. Era alguém como eu e voce, e fez aquilo que eu ou voce não faríamos. Gibson não erra. O filme tem o ritmo exato e as cenas familiares são excelentes. De ruim, e é uma pena, a trilha sonora melosa, invasiva, forçada. Ela dá ao filme uma melosidade que ele não tem. Penso que se feito em tempos menos lobistas teria ganho seu Oscar.
  SILÊNCIO de Martin Scorsese com Andrew Garfield, Adam Driver e Liam Neeson.
É uma obra de arte feita por uma pessoa adulta. E como tal deve ser julgada. Não é um filme belo. Ele é árduo, duro, difícil e nos deixa muitas vezes sem saber o que pensar. Afinal, Scorsese defende os jesuítas ou não...Martin é adulto. As questões não são simples. São complexas. O filme, magistral, é inesquecível. ( Mais comentários abaixo ).
  MANCHESTER A BEIRA MAR de Kenneth Lonergan com Casey Affleck
Falo deste filme abaixo. E explico porque ele é tão fraco. Tanto que o vi faz uma semana e já não recordo do que trata.
  ENVOLTO NAS SOMBRAS de Henry Hathaway com Lucille Ball, Clifton Webb e William Bendix
Armações. Um filme noir sobre uma trama de um marido que deseja matar sua esposa. É uma rede de mentiras que nos envolve. O filme tem ritmo, quase todo noturno e soturno. Fascina o modo como as coisas vão se encadeando, o tipo de personalidade má dos personagens, as ruas suspeitas e os escritórios sujos. É quase uma obra prima de um diretor que filmou muito e acertava quase sempre.
  O TEMPO NÃO APAGA de Lewis Milestone com Barbara Stanwyck e Kirk Douglas.
É o primeiro filme de Kirk Douglas. Feito em 1947, ele faz um homem fraco, mimado, que se casa com uma mulher rica, ambiciosa, e depois procura domina-la e não consegue. É um bom filme. Drama novelesco sobre a maldade. Milestone fez uma obra prima, Nada de Novo no Front.

SILÊNCIO...O MAIS DURO FILME DE MARTIN SCORSESE.

   Cada vez menos gente sabe história, então conto aqui o contexto do filme: No século XVII, com medo do protestantismo, Roma dava força total aos jesuítas. Os jesuítas foram uma criação do século XVI que visava converter almas. Guerreiros de Deus, sua missão era levar a fé para o máximo de pessoas pagãs. Assim, eles se espalharam pelo mundo. Futuramente, o próprio catolicismo os tornaria proscritos. Portugal, país ocidental que primeiro tocou o Japão, tomou para sí a missão de catequizar os japoneses. No fundo dessa questão havia o desejo de provar aos protestantes que a igreja de Roma era a verdadeira. Para os marxistas, que tudo gostam de simplificar, tudo era mera questão de mercado. Mas não era só isso. Na verdade o cristianismo começava a duvidar de si-mesmo. Converter era um modo de reafirmar-se. Mas, e o filme mostra isso também, ao ter contato com outras culturas, o jesuíta entrava em questionamento. E, se forte, saía com uma nova certeza.
  Scorsese consegue mostrar tudo isso. E sem nunca parecer didático. O filme, feito sem orgulho, sem espetáculo, humilde, simples e extremamente triste, é difícil de assistir. As cenas de sofrimento são insuportáveis; as torturas absurdas e revoltantes, a dor se espalha por todo lado. Mas Scorsese é honesto. Ele mostra, exibe, fala, e nunca se exibe. O filme é isento de "arte". É uma obra de fé.
  Generoso, o filme pode ser visto como refutação de Deus. Passamos quase 3 horas com o desespero da dúvida. Deus não fala, tudo é dor e silêncio. Mas há o final...O belo e exato final. O fim do filme tudo clareia. Não o contarei. Que assista quem puder.
  O tema do filme é, percebemos então, a humildade. Todo mal vem do orgulho e da vaidade. E um homem só percebe isso quando é humilhado. Scorsese dá uma esperança a nós, seres vazios do século XXI. Na figura do japonês tolo, aquele que peca sem parar e se confessa após cada erro, vejo a nossa época. Somos todos aquele traidor. Todos tentamos manter o que podemos dos dois mundos: o mundo da alma e o mundo da carne. Não somos de todo maus. Apenas confusos e covardes. Ou, é isso que o filme diz, filhos favoritos.
  Para não revelar o final do filme falarei que Bergman tem um filme chamado O Silêncio. Nesse filme um padre se mata por não poder ouvir Deus. Bergman, que foi um homem de fé que acreditava não a possuir, fez um filme que o trai. Ele não tem final. Fica em suspenso. Já Scorsese repete esse desespero. Mas vai além e lhe dá uma nota final. O americano aceita sua crença ancestral. Bergman, sempre adolescente genial, não pode fazer isso. Bergman, que eu adoro, morreu ainda adolescente. Scorsese atinge a velhice. Reconcilia-se.
  Para mim, sangue luso que passou 40 anos brigado com meu passado, o filme mostra além de tudo, mais um dos brilhantes desastres portugueses. Por insistir em catequizar, os lusos perdem o Japão para a Holanda, que desejam apenas vender e comprar. Portugal, um dos mais complicados dos países, não pode e não quer apenas vender. Ele precisa batizar, salvar, mudar a alma do Japão. E, como o filme mostra, os lusos não percebem que um japonês não é um europeu. Ele vê o mundo de outra forma.
  Essa a grande chave do filme. E é a imagem que fica, que me ficou entre lágrimas. Um japonês não consegue ver o mundo sem o molde budista-taoísta. Para ele Deus é a natureza e as estações. Um tipo de nada anímico. Pois para nós, mesmo nós, materialistas herdeiros do ocidente, tudo sempre é tocado por um Deus único e humanizado, que se sacrifica e morre, e ressuscita e pode falar conosco. Essas imagens conduzem a cultura. Inclusive da ciência. Da história. Dos nossos sentimentos. O renascer é a condição de todo herói. E de cada homem vivo.
  Nós sabemos disso. Tudo nos é familiar. E talvez, Scorsese diz isso, sejamos parte da Verdade. O Silêncio da natureza é a voz de Deus.
  Perto deste filme, falho e chato, lindo e inesquecível, todos os filmes do Oscar são obras de crianças.
 

MANCHESTER A BEIRA MAR - KENNETH LONNERGAN.

   Italianos que emigraram para o Brasil eram mais italianos que os que ficavam na Itália. O mesmo acontecia com japas, alemães e poloneses. E seus descendentes, muitos deles, mantém ainda hoje tradições que na Europa e Asia se foram faz tempo. Este filme é profundamente irlandês. Todos são irlandeses, Boston é uma cidade irlandesa e irlandeses americanos têm orgulho de suas raízes. Por isso o filme me lembrou muito Ken Loach. Com uma diferença cruel: Loach tem uma fé. Este filme, filho típico do momento atual do cinema americano, não. Loach crê na amizade e na comunidade. Comunista antigo, ele não crê em nada de invisível, mas transferiu sua religião para Marx. Marx ao estilo anos 50, humanista, sonhador, assumidamente utópico. Por isso o respeito muito.
  Tire de um irlandês sua fé em Deus e na família e voce terá um boneco vazio. Ou um gênio construtor de arte. Casey Affleck é um boneco vazio. O filme é um roteiro vazio. Não há uma gota de verdade nele. Lonnergan afetadamente pensa estar nos mostrando "vida como ela é". Só parecerá vida real para aqueles que nunca viveram. O personagem central, deprimido, tem uma vida de roteiro. O filme caminha dentro de um óbvio frio dramático cool distanciado. E o ator, sem nada para fazer, anda pelos sets em sono eterno.
  O final do filme é emocionante. Mas é uma emoção barata, digna de programas que dão casas para os pobres. Eu sou humano, me emocionei, mas minha inteligência se revoltou. O filme é barato no pior sentido. O roteiro é barato. O ator é barato. As situações são baratas. As cenas, nunca indo até o fundo, são covardes. Não só Loach, Mike Leigh faria maravilhas em certas cenas. Eles não a cortariam. Deixariam o drama acontecer. Aqui cortam tudo. São vinhetas a procura de vida.
  O cinema hoje é isso: filmes de ação e filmes de desação. Não há meio termo. Quase não há. Quando há, o público, desacostumado a filmes sem rótulo, não os assiste. Filmes Marvel têm seu público. Filmes como este, têm seu público. Filmes que unem os dois mundos, ou que tentam fazer a tal "arte" sem parecer mortos e frios, não encontram público nenhum. Acabam por ser considerados muito POP pelo público da rua Augusta, e muito pobres pelos frequentadores de shopping. ( Penso no ótimo filme com Jeff Bridges como exemplo ).
  E é isso.