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DA MELANCOLIA

   A vida de um artista, digamos Rembrandt, digamos Dante, podia ser cheia de dramas, de tragédias até. Dor, desespero, lágrimas. Mas por volta de 1850 começa a surgir um novo sentimento entre artistas. Ele não tem a força tempestuosa da tragédia, e nem a teatralidade do drama derramado. É pequeno, quase mudo, discreto e por ser assim, persistente. Melancolia é seu nome.
  Pelo que sabemos, artistas não eram melancólicos. Mulheres podiam ser. Idosos provavelmente. Pensar num Goethe melancólico é quase impossível. Mas a partir do meio do século XIX, desse século vagabundo que insiste em nunca terminar, melancolia passou a quase ser sinonimo de artista. Porque? 
  Nesta excelente aula, com textos de Adorno, Benjamin, Oehler e Bergson, alguns dos quais discordo, e ainda com testemunhos de Baudelaire e Proust, analisamos o que seria essa tal melancolia, se ela ainda existe, e o que a fez nascer. 
  Vários motivos são listados. Um dos mais sedutores é o que a relaciona com a falência da revolução. É em 1848 que a ideia de revolução vai a falência ( será revivida em 1917, por pouco tempo ). Como consequência, temos gerações de revolucionários obrigados a conviver com ""o fim do sonho"", a salvação apenas no individualismo, e a auto-censura em relação ao sonho. Se misturarmos tudo damos com o melancólico, um ser que descrê do sonho, teme as ideias compartilhadas e vive preso em si mesmo. 
  Será?
  Me convence mais a ideia do "" novo mundo"", tão clara em Baudelaire, o primeiro homem moderno e não `a toa, o primeiro melancólico. Baudelaire em 1850 faz algo que para nós é infelizmente banal, mas para ele era novidade: anda pelas avenidas de Paris. Anda não como um turista, um trabalhador ou um cidadão, anda como um flanêur. Jogando fora suas defesas, desfilando vafarosamente, sem pressa e sem objetivo, Baudelaire percebe o que nos outros e em nós passa anestesiadamente. A anti-humanidade da vida em cidade. Ele anda em meio a gente que não conhece. Vê pessoas que são estranhas e que lhe serão estranhas para sempre. Vive na beira da possibilidade: aquela mulher que passa poderia ser um grande amor, ela olha seus olhos, ele olha os olhos dela, mas se vão...Obrigados pela cidade, nunca mais irão se ver. Baudelaire percebe que tudo na cidade NÃO remete ao novo, ao encontro, mas sim ao velho e à despedida. Tudo o que vemos, mesmo e principalmente o recém inaugurado, vive na beira da destruição. É um adeus sem fim: adeus voce que passa, adeus rua que muda, adeus casa demolida, adeus amigo que some no fluxo da avenida, adeus, adeus, adeus....Nada permanece, nada consegue se tornar familiar. O homem no bonde é um estranho. PELA PRIMEIRA VEZ convivemos intimamente com pessoas que nos são completamente desconhecidas. Pior, pessoas que desprezamos. Viver me metrópoles é ser obrigado a exercitar o desprezo. Daí a melancolia, se o DESPREZO não for aprendido, a MELANCOLIA torna-se constante. Viver dizendo adeus e lutar contra esse adeus, eis o artista. Eis o melancólico.
  Para mim essa formulação é inquestionável por espelhar o meu sentimento perante a vida. E outra conclusão baudelairiana é a de que a melancolia se torna uma resistência invencível. O melancólico é aquele que desafia, que desanda a marcha, que vê o não-natural naquilo que parece certo. É preciso falar do choque.
  A cidade nos dá constantes choques. Ruídos, cores, riscos, medos, possibilidades, surpresas. Nossa mente não aceita choques facilmente. Choques são sempre ameaças. Algumas boas ameaças, mas sempre um choque. Na multidão, na super excitação, somos obrigados a viver como anestesiados. Ignorar os choques, mal percebe-los. O melancólico, que estranho, que parece o mais ausente dentre todos, é exatamente aquele que mais os sente. E que, falho em suas defesas, não consegue ignorar. Ele sente o ruído. Vê as ameaças. E como reação, defende o antídoto. 
  Sentirei falta dessas aulas...

O MUNDO DE HOJE? É DE PROUST E EU NÃO SABIA! ou SOMOS TODOS UNS MARCEIS.

   Aula de Teoria Literária ministrada por uma leve professora alemã. Uma das melhores coisas em voltar a estudar é quando voce pode desenvolver, em classe, em grupo, aquilo que voce absorveu sozinho ao longo da vida. Nesta manhã falamos de Benjamin, de Bergson, de Adorno e de Proust. Primeiro fato que nunca eu havia percebido: A valorização da memória é um fato moderno. Na poesia e na prosa de antes inexiste fascinação pela memória. O romance do século XVIII caminha sempre adiante. É no fim do século XIX e principalmente por todo o século XX, e cada vez mais, que se instaura a adoração do passado, a valorização da memória, da lembrança individual, daquilo que só voce viveu, viu e sentiu. Freud é apenas um sintoma desse novo sentimento. O mergulhar dentro de si e fora do mundo para achar sua memória.
  Antes não era assim. A memória era coletiva e pouco importava a memória de cada um. Mesmo obras confessionais, como as de Montaigne ou de Rousseau, falam do tempo avante, a lembrança sendo apenas um rápido apoio para o passo à frente. A memória se instalava na igreja, nas festas profanas ou religiosas, nos contos populares e no culto aos heróis. A memória compartilhada, de todos, a memória, mesmo que familiar, sempre inserida no conjunto de outras histórias. Teia de fatos que dizem respeito a todos.
  Hoje todos somos Proust. E se todos somos Proust, então a memória hiper-particular de Marcel se tornou a memória compartilhada por todos. Afinal, o francês sensível e nervoso influenciou mesmo aqueles que nunca o leram. Sim? Mais ou menos. Vamos ressaltar que Proust parte de si-mesmo e tem por alvo o mais si-mesmo possível. Se somos proustianos é porque vivemos a mesma ansia que atingiu Marcel e não porque temos as mesmas lembranças que ele. Proust intuiu aquilo que o mundo se tornaria, o mundo da rua negando e violando a matéria e nossa alma correndo para casa a fim de sobreviver. 
  Somos pessoas que dividem fotos de nossa infância com estranhos. Homens que produzem memórias sem parar. Olhamos e fotografamos incessantemente nosso rosto, observando as mudanças do tempo, analisando o que ele é. Nossa arte produz citações de citações, olha e reflete sem parar sobre tudo o que foi feito e parte dessa memória na tentativa de anular a memória. Colecionamos cacos de lixo na esperança de recordar algo. Damos valor a brinquedos sujos, livros rasgados, casas úmidas, mobilia riscada, esperando que esses objetos nos dêem uma narrativa, que eles nos contem uma história que fomos incapazes de viver.
  Procuramos em sites, lojas, museus, nossas madeleines. Um objeto que nos desperte. Que nos tire da surdez, da cegueira. Viajamos não para encontrar algo de completamente novo, mas viajamos para recordar alguma coisa que nunca vivemos. Ansiamos por histórias, por memórias, por tempo. Olhamos o Partenon como se ele fosse parte de nós. Não é. O Partenon, assim como New York ou Londres ou Tokyo ou Vienna nos recorda coisas que vimos de terceira mão. Não são memórias nossas, são madeleines que jamais nos cantarão um segredo. Paris irá nos lembrar a Paris de um filme, de um livro, de um sonho de outro. 
  Nossa memória nos obceca, mas ao mesmo tempo a tememos. Sentimos que nela perderemos algo. Perderemos a vida. Estranha condição pós-Proust. O francês aceitou o mergulho sem medo, nós nos paralisamos em medo. Memórias pela metade, lembranças fingidas, recordações compradas.
  A menina bonita usa um cabelo Chanel com saudades dos anos 20. Ela nasceu em 1995. O carro é anos 70. Quem o dirige nasceu em 1990. No rádio uma balada tipo 1966. Tudo lembra algo que não foi vivido, tudo faz esquecer, lembrando, a verdadeira lembrança, individual. Porque mesmo que se lembre e se reviva maio de 68, esse aparente coletivo não é coletivo, pois cada um ali vive um sonho particular em meio a uma massa sem rumo. A estranheza é tanta que já há no Brasil ou no Niger quem tenha saudades e memórias dos tempos celtas dos druidas e bruxos. 
  Nunca a infância foi tão adorada. As lembranças se espalham por desenhos, roupas, e pelas salas de terapia. Mas ao mesmo tempo, nunca se lembrou tão pouco da verdadeira infância. A vontade é de reviver e recordar como Proust, mas o que recebemos são apenas lembranças vagamente coletivas, redutoras, pobres. Queremos adentrar outra vez as portas do quarto de brincar e poder sentir, mesmo que por um segundo, a pureza dos dias e das palavras livres. Mas o que compramos é apenas um brinquedo enferrujado que balbucia uma frase gasta e sem valor. 
  O tempo só vale quando tem durée, valor, quando não pode ser medido. É isso o que queremos. É isso o que respira no ciclo da natureza, na semente e na colheita. É isso que respira nas festas. No nascimento e no enterro. Isso é dramatizado na missa, no canto ao redor da fogueira, no mito. É isso o que tentamos resgatar, é isso que Proust resgatou. Para si. Só para si. E para mais ninguém.
  O tempo, domado, contado, estudado, comprado, planejado, morto, é nossa obsessão. Olhamos para nosso passado na esperança de o salvar. Esquecemos o que Proust diz logo no começo de sua obra: Esse reencontro é acidental. Casual. Ele é pura sorte. Ir atrás dele é matar sua chance.
  Toda foto tirada com a intenção de servir como memória de um momento, está fadada a nada significar no futuro. O momento será capturado no acaso. Ou melhor, na Arte. Capturar o tempo sem o assassinar. Eis a tensão da arte moderna.
  Cèst Tout.

SOBRE O MELHOR FILME ( E A CONDIÇÃO DA ARTE HOJE )

   A principal característica da arte moderna é seu caráter desmistificador. Em 1850 se desmistificava a familia e o dinheiro. Em 1900 a religião e o poder. Em 1930 o sexo e a razão. A arte moderna teve sua função: liberar a criatividade. Pagou um preço: desmistificou e vulgarizou a própria arte. Como bem disse Benjamin, perdeu a aura. Tornou-se uma atividade industrial, como fazer remédios ou carros.
   Pessoas ingênuas, ou que começam a conhecer arte moderna somente agora, pensam que tudo se iniciou em 1990 ou 1980 ( começou com Byron em 1800 ), acham que a imagem de um padre de lingerie comendo um menino, ou uma vagina em close com giletes ao redor, ou mãos sendo trucidadas por formigas, seja o máximo do moderno. Não sabem que são meros símbolos de sintomas espirituais. A arte se tornou campo favorável a todo tipo de cínico ou de desajustado radical. Saiba, todo artista é um desajustado, mas nem todo desajustado é artista.
   O cinema em cem anos viveu como num flash toda a história dos mais de 3000 anos de arte. Tivemos o privitivismo, o gótico, clássicos, romantismo, renascença, românticos e realistas. Tivemos expressionistas e cubistas, naturalismo e abstratos. Agora vivemos o niilismo absoluto. A ironia deixou de ser inteligência construtiva e passou a ser um fim em si-mesma.  Pensar no futuro deveria ser reconstruir e não continuar a destruir aquilo que já é ruína. Mais filmes sobre heróis desesperados, mais filmes sobre mocinhas suicidas, mais filmes sobre taras mentais....tudo isso é pisar sobre pegadas velhas, pintar de novo verniz o que já foi repintado milhares de vezes. A nova arte deve se ocupar de criar e revigorar, nunca de explodir. Tudo já explodiu a muito tempo atrás.
   Os filmes têm se ocupado, faz décadas, de destruir mitos. No começo isso foi ótimo. Era ótimo poder ver um western com um cowboy drogado, ou um romance em que a mocinha era lésbica. Nos dava um sopro de novidade e a liberdade de poder satirizar. O que vale isso agora?
   Mais um filme sobre freiras taradas, mais um filme sobre um vampiro impotente, mais contos de fada irônicos, mais sangue, explosões e amputações. Com Sam Peckimpah havia um sentido anarquista para a explicitação da violência. E agora? Apenas ato mecãnico. Mais do mesmo. Como é mais do mesmo mais um filme de arte com casais que se mordem, adolescentes que se drogam ou vovôs taradinhos. Imagens de crucifixos com sangue, masturbação explícita ou diálogos sobre o vazio...Onde a novidade? É chocante? Para quem? Traz novas ideias? Quais?
   Quando BRANCA DE NEVE derrama uma lágrima ao fim do filme a coisa pega. Um milhão de sentidos e sentimentos revivem. O que?
   Matamos a beleza. Ao vender beijos da bela mocinha e transformar sua maldição em freak-show o filme consegue explicitar o mal de toda arte moderna. Sim relativista, existe um mal na arte moderna. A dessacralização da beleza e do espírito trouxe de troco nossa incapacidade de apreciar e de perceber o sagrado e o belo. Branca jamais irá acordar e é isso que nos comove no fim do filme. Não é mais possível a existência de um príncipe que a desperte e pior que tudo, ela sabe disso. Em 2013 sua maldição será para sempre. O príncipe não virá porque esse príncipe iria rir de sua própria condição, ele não iria crer em Branca, seria um homem cool e homens cool não dão beijos para despertar alguém.
   Desconheço um filme feito de 2000 para cá com tão urgente mensagem. Nada nele é cool, nada nele é chocante. Não há espetáculo, inexiste a ironia. Ele é sério, forte e dolorido, e ao mesmo tempo tem uma simplicidade infantil.
   A Terra foi arrasada séculos atrás.
   Não seria a hora de despertar?

TV E TEMPO

   Escrevi ontem sobre os melhores da tv da Inglaterra e me perguntam sobre o programa de Tracey Ullman. Bem, ele ficou em décimo quarto. O Top of Pops também tá na lista.
   Apesar de Seinfeld, Frazier, Mary Tyler Moore e Columbo, a coisa mais legal que já vi na tv americana é o Saturday Night Live. Entre 1975 e 1980 foi a coisa mais influente de lá. Tinha John Belushi, Bill Murray, Dan Akroyd, Chevy Chase, Steve Martin; todos jovens e no auge da ousadia e ainda trouxe shows de Patti Smith, Talking Heads, Bryan Ferry, Bowie, Elvis Costello, Blondie, The Cars, Bruce, isso só nessa fase e só os que eu vi.
   Quando escrevi sobre o Brasil falei em novelas e Vila Sésamo. Esqueci que a novela mais importante foi Beto Rockfeller. E a Jovem Guarda. Mas penso que a vitória iria para o Festival da Record de 1967. Mesmo que voce deteste MPB, esse festival seria o mesmo que nos EUA, em 67, acontecer um programa de tv onde os desconhecidos Jimi Hendrix, Led Zeppelin, Neil Young e Lou Reed disputassem um prêmio. Nada teve mais ressonância na história da tv do Brasil que um show onde se revelou Caetano, Gil, Mutantes, Tom Zé e Vandré. Não gosto de todos eles, mas caramba, foi um desses momentos que nunca vão se repetir.
   Fato interessante: O que há hoje na tv ou na música pop "Que nunca vai se repetir"? Sopranos e Lost? Mas eles não são feitos já com a intenção da eterna repetição em dvd, blu-ray e o que vier? Walter Benjamim teria muito a dizer sobre um tipo de "arte" que é feita, pensada até, já tendo a ideia de reprodução infinita.
   Falta-nos o "Quem viu, viu, quem não viu, Nunca Mais".
   Sim, voce pode rever o Festival da Record ao infinito. Assim como Woodstock ou o doc de Ken Loach. Mas eles não foram pensados e produzidos com essa ideia. Foram feitos como um Evento Único. Uma coisa irrepetível. Alguém por acaso gravou e guardou as fitas, e mesmo em Woodstock voce não percebe nunca alguém dando show "para as câmeras". A coisa rola e fim. Acabou-se.
   O mesmo vale para o cinema antes do vhs.
   Pensar um show ou um programa como coisa que será revista eternamente, ou pior, coisa que virá cheia de bônus e bastidores, faz com que tudo de arriscado se perca. Voce não vai querer preservar um erro. Então, nada de riscos.
   Peter Falk jamais imaginou que Columbo fosse visto em 2012.

PONDÉ, YEATS, MARTELL, POLITICA E CINEMA COM ALMA

   Pondé citou Yeats na segunda-feira. O poema em que o irlandês fala da terrível certeza que todo canalha tem, e das hesitações que acometem os justos e bons. Dá até vontade de crer nos gnósticos e dizer que nosso mundo é obra do mal. Porque, como bem notou Yeats e como Pondé crê, quem segue o mal sente-se forte, duro, "em casa"; enquanto que o que segue o bem sempre sofre uma sensação de inadaptação, de fraqueza e de dúvida. Terroristas nunca hesitam.
  Ler Bernanos dá muito medo.
  O mal cobra um preço a quem ousa ser bom. Essa a raiz, terrível, do catolicismo puro. O bem só pode sobreviver a custa de nosso sacrificio. Nada pode ser mais antipático que dizer essa verdade.
  Falando de coisas mais amenas....
  Um amigo fala do voto. A questão é simples meu amigo. Assim como a arte e a religião perderam sua aura ( de acordo com Benjamin ), ou seja, não significam mais transformação e não mais repercutem, não têm identidade, a politica também se transformou em mera ciência. Voce vota e elege alguém. Pura mecânica. Um partido faz o papel de polo positivo e outro de negativo. Um precisa do outro para existir e um repele o outro. Entorpecido nesse campo magnético, cheio de eletricidade e de "verdade", voce aperta um botão. Veja bem, até aqui, você aperta um botão...
   É só isso, um ato banal.
   É claro que se voce tiver alguma cultura, todo o passado da politica vem a sua cabeça ( como vem o passado da arte ou das igrejas ), mas é mero flash-back. No eterno agora a politica nada mais significa. Não há a possibilidade de história, de reflexão ou de consequência. Politica-no-eterno-agora, como arte e igreja no eterno- agora, nada mais tem a dizer. Torna-se mera ferramenta.
  Pondé citou Yeats e um dia citou O MORRO DOS VENTOS UIVANTES, em seu melhor texto. Bom gosto ele possui.
  Um outro amigo me diz que anda cheio de vontade de rever A PALAVRA de Dreyer. Bem... Ebbert sempre fala que todo amante de cinema chega um dia a Dreyer, Ozu e Bresson, e descobre que os três são os "santos" do cinema. Austeros, profundos e capazes de milagres com quase nada. Dreyer transformava um filme em catedral de silêncio e de horror=Sublime ( para quem não sabe, o Sublime é a união do terrível com o belo ). Ozu fazia o milagre de conseguir de um nada de roteiro uma épica sobre gente comum. Ele transformava familias banais e sentimentos vulgares em atos de profunda nobreza. E Bresson dava aulas sobre o sentido da vida em imagens reais. Ele modificava o real sem que percebêssemos. Fazia documentários sobre a alma.
   Questão de aura. Mas ainda têm público?
   Leio comentários no youtube sobre A VIDA DE PI. Quase ninguém entendeu uma saga tão simples. Somos uma geração que sabe tudo sobre o efêmero e nada entendemos sobre o atemporal.
   Perdemos nossa aura.

O DESEJO DE PINTAR - CHARLES BAUDELAIRE

   Mario Vale, pintor e desenhista, executa belas imagens e ainda traduz o poeta francês, primeiro homem de nosso tempo, neste livreto bonito e puro. São textos em prosa com alma de poesia, ou poemas não acabados. Vale pega-os, verte-os e pinta-os. Nós os lemos. E se os lermos com vagar, entramos na coisa.
   Baudelaire foi o primeiro flanêur. Como costumo fazer em meus dias tontos, ele andava pelas ruas de Paris, aterrado, abismado e maravilhado. Em meio a podre febre moderna, recolhia fragmentos de beleza, e eternizava essa beleza secreta e morta em textos que propunham o spleen. Duende. Doente.
   Chineses usam gatos como relógios. Percebem as horas nas pupilas brancas dos felinos quietos. Porque o tempo é uma pupila de gato chinês: sempre o mesmo e só usa o relógio-nosso quem é escravo do tempo.
   E o amor faz de nós, enfim, livres do senhor das horas.
   Um anjo-poeta perde a sua aura. Rico poema prosado, em que há reflexos da atual teoria Benjaminiana da perda da aura da arte e ainda dos anjos de Asas do Desejo, o mais Baudelaire dos filmes, feito estranhamente pelo hiper-alemão Wenders. O anjo perde a aura e contente vive a sujeira do mundo real.
   Baudelaire tinha medo e asco do pó e da velocidade. Era um dandy. Cáspite!!! O homem era um dandy, um poeta sem asas e um flanêur!!!! Ele era o nobre possível em tempos que abominam tudo o que é especial.
   Vê paisagens em janelas fechadas e ama a morte. Foi Baudelaire a base de Freud para o impulso da morte. Para o poeta, a morte é amor, amor é desejo de morrer sob o olhar de quem amamos. Todo apaixonado é um suicida. Crer em psicanálise é acreditar em Baudelaire.
   Para ele, voce cria a verdade ao criar a fantasia. Fantasia que é muito mais real que aquilo que vive fora de nós. Porque na verdade o fora não vive. Quem pode provar a verdade de qualquer coisa que não seja nossa?
   Então ele anda pela vida recolhendo imaginações e vendo a si-mesmo em tudo. Sua poesia é desejo de provar a vida. Impossível. Quem nunca desejou pintar....viveu?

WOODY ALLEN, FLA X FLU E BENJAMIN

    A criatividade cala-se. Converso com um amigo, ontem. Este momento é um daqueles em que a criatividade está relegada a posição secundária. O que importa é o "mundo real", que na verdade ninguém sabe o que é. Um livro só será respeitado se falar da "triste condição humana" e quanto mais cinza melhor. O romantismo/simbolismo em baixa. O realismo/naturalismo em alta. Flaubert acima de Balzac.
   Engraçado o cinema. Aceitamos o "realismo" de Batman ou de Von Trier. Onde esse realismo? Na verdade nossa época é tão deprimida que todo filme down é aceito como real. Mesmo que tenha um tonto fantasiado de morcego ou viagens mentais de um umbigo narcisista. Toda obra cheia da alegre vitalidade da criatividade absoluta será vista com reservas.
   O fato é que as pessoas não estão ocupadas em nascer. Elas se ocupam em não morrer. Isso resume todo o mundo de agora.
   Leio um muito belo texto de João Pereira Coutinho sobre Woody Allen. Ele fala que as pessoas não levam Woody muito a sério porque ele não fez sua grande obra-prima. Ele não tem o filme perfeito. E isso é confirmado pelo próprio Woody Allen, que em entrevista recente, falou que nenhum de seus filmes podem ser comparados aos filmes de seu ídolo, Ingmar Bergman.
   Pois Coutinho diz que não é assim. Woody tem três filmes que podem ser comparados aos melhores Bergmans ( Crimes e Pecados, Manhattan e Hannah ), o problema é que Allen não teve, nunca, uma grande fase. Bergman lançou uma obra-prima atrás da outra durante 14 anos. Foram 17 filmes de alto nível e que mudaram o cinema. Woody, além de nada ter feito que mudasse o cinema, nunca conseguiu fazer mais de dois grandes filmes a cada seis ou sete anos. Mas Coutinho mata a charada ao dizer que na verdade Woody Allen, como um Proust do cinema, fez apenas um único filme, que deve ser dividido em capítulos. Cada filme é um volume de um grande filme, o filme-obra de Woody Allen, um filme único de um artista que começa como humorista satírico, se torna porta voz da inteligência de New York tipica dos anos 70 e depois envereda por traumas Bergmanianos e ironias literárias. Por fim, descobre tardiamente Fellini, e neste milênio faz sua "coda", um colorido panorama do mundo e das figuras mundanas Fellinianas. Uma carreira longa e talvez a mais interessante em seu todo, neste cinema sem direção de hoje.
   Leio também um texto de Jabor que chora o cinema sem alma.
   Ele deve ter lido Benjamin. Troque alma por aura e lá está a teoria de Benjamin. Assim como cinco Fla-Flu por ano destrói qualquer espirito Fla-Flu, filmes feitos para cinema, DVD, internet, PC, TV, acabam com toda chance de culto, de alma, de paixão secreta.
   O nome é Tame Impala. Boa banda de covers.

A AURA DE WALTER BENJAMIN

   Os homens andavam durante dias para ver uma pintura numa igrejinha em cidadezinha da Toscana. Olhavam, e sabiam que apenas lá, naquele lugar havia a chance de ter tal experiência. O ambiente da igreja, seu clima e seu lugar eram parte da experiência. Ao ir embora o homem sabia que não teria essa visão em nenhum outro lugar. Aquela visão era carregada viva na memória.
   Os homens iam ver Beethoven reger ou Schubert tocar. E sabiam que não escutariam a sexta ou a quinta em nenhum outro lugar. Eles escutavam e tiravam daquele momento o máximo possível. Era um momento único na história de uma vida.
   É disso que fala Benjamim, da aura. Por mais distante que um artista ou uma obra pareça do mundo da aura, toda manifestação artística traz em-si a herança de algo que foi criado como manifestação religiosa. Fazer arte é tentar sair do cotidiano, do aparente e óbvio e procurar criar uma visão original, única, transcendente. Por mais biológico ou corporal que um artista seja ele no fundo é herdeiro dessa tradição humana. Mas, e é essa a sacada de Benjamin, uma arte que pode ser levada pra casa perde completamente sua aura. Deixa de ser um tipo de experiência única e particular e passa a ser produto consumível e sem nada de sagrado ou secreto. Explico.
   Quando criança nunca esqueço de uma manhã em que perdido no Morumbi, encontrei em meio a um capinzal, restos de cerâmica no chão. Em meio ao mato eu achei desenhos geométricos no chão. Meus desenhos, vistos só por mim, escondidos lá para mim. A sensação que tive foi de desvendamento de um segredo.
   Na adolescência lembro dos primeiros clips que chegavam ao Brasil. Queen, Stones, Floyd...Todos me emocionava e eu achava que só eu os conhecia e só eu assistia. Mais que tudo, não existiam videos do Led Zeppelin. Espertamente, eles não se deixavam filmar. Formava-se um mistério, imaginávamos como seria o Led em movimento, eis a aura de Benjamin. Quem os assistia ao vivo sabia que aquilo era só para eles. Não seria gravado, transmitido ou vendido. O Led ali, sobre o palco era experiência só do público fã. Os Smiths no começo fizeram o mesmo.
   Um livro com aura é um livro que voce pensa que só voce o lê. Filmes censurados e proibidos tinham essa aura e vê-los finalmente liberados era uma sessão religiosa. Poder ver O Atalante de Jean Vigo, filme pouco conhecido e pouco visto,  foi uma experiência de aura. Eu sentia que só eu em todo o mundo o amava.
   A aura se cria quando há um sentimento de intimidade entre voce e a obra. Quando voce sente que ela é sua, completamente sua, e que então ela passa a fazer parte de voce. E principalmente quando há um sacrifício para vê-la, um momento decisivo, ou voce vê ali e agora ou nunca mais.
   Havia aura na dificuldade em se ver um Mizoguchi ou um Cocteau. No Dante que li numa cabana no mato. Naquele video em super 8 de Woodstock.
   O que pode haver de aura num filme com mil cópias e dez milhões de olhos? Em pilhas de Dickens recém reeditado? No cd de Schubert tocado no carro e escutado no dentista? Que arte sobrevive a Van Gogh em calendários e Mozart em filminho de arte? Que aura pode haver em coisas baixadas aos milhões? Fáceis e desvendadas, sem segredos e sem a experiência do intimo?
   O meu disco raro do Velvet Underground atingiu 12 milhões de visualizações. Não é mais o meu Velvet. Nunca mais será. É do mundo. É real e corriqueiro. Continua maravilhoso como sempre foi, mas sem aura, sem mistério e sem o amargo/doce gosto do único. São milhões de ouvintes, milhões de opiniões, milhões de audições.
   Aura? Nunca mais.

WALTER BENJAMIN, HISTÓRIAS PRA CONTAR

   Ao fim da primeira guerra mundial, Benjamim percebeu que os soldados que voltavam do front nada tinham a contar. Comparando suas cartas com as cartas de soldados de outras guerras, comparando suas memórias com as memórias de outras guerras, ele percebeu que tudo o que eles tinham na mente eram lamentações, dores, angústia e vazio absoluto.
   Walter Benjamim, membro da escola de Frankfurt, foi dentre todos os seus colegas o que escrevia melhor. Isso porque ele unia à frieza do materialismo seus estudos sobre a cabala. Ele procurava unir o limite racional da ciência da época, à espiritualidade da religião e do espirito. Seus textos tiveram um impacto imenso. Na época da pura razão, ele logo notou que o interesse por astrologia, cientologia, quiromancia e paranormalidade, era uma vulgar mecanização de um anseio verdadeiro do homem, o anseio por transcendencia, por sentido, por visão.
   O homem sempre contou histórias. Cada viagem era uma história, cada novo local dava motivo a um novo contar. Viajava-se não para chegar, mas sim para usufruir do caminho, para se ter histórias. Ao voltar, essas histórias eram contadas oralmente, para a comunidade. Jamais existiu sentido em se contar uma história para uma pessoa. Era um representante do grupo contando para o seu povo. Quando a escrita suplantou a oralidade, esses textos continuaram a ter o caráter de "contar uma história". O texto era uma experiência contada para todos. Não por acaso, as mais clássicas dessas histórias falam de mar, marujos, cavaleiros e soldados, são viajantes, pessoas que vão ver o que existe além, e que retornam para nos contar. E que por terem estado lá e vivido aquilo, são SÁBIAS. Toda história de então é uma procura inconsciente por sabedoria. E a sabedoria é saber por ter vivido, é conhecimento feito e realisado.
   A primeira guerra desmoralizou o soldado. Pela primeira vez não havia a menor possibilidade de que o soldado pudesse voltar como herói. Pior que isso, diante de um tanque ou de um avião, o soldado se sentia ridiculo. O centro da guerra passa a ser a máquina, o homem, morto aos milhares, se vê como um nada, um assessório que lá se encontra para cuidar da máquina. Ao retornar, aturdido e esvaziado de dignidade, o que tem ele para dizer aos seus? O que contar? Apenas a dor e o choro. Uma geração que ia de carroça a escola e caçava pássaros com estilingue, se viu jogada em meio a bombas, máquinas de matar e fumaça venenosa.
   Sem história para ser contada o homem não existe. O que nos dá dignidade e sentido é a história que temos a contar. Mas para que essa história se produza é preciso tempo, fruição. Numa viagem a pé ou a cavalo voce tem o tempo necessário para usufruir da paisagem, para experimentar o que o cerca, para provar e observar a vida. Histórias ocorrem a seu redor todo o tempo, e voce tem o vagar para as elaborar. No trem isso não ocorre. A história deixa de ser uma fruição e passa a ser uma partida e uma chegada. Voce sai de uma estação com a mente já alojada na chegada, e tudo o que acontecer no trajeto lhe será INDIFERENTE. A substância da experiência se desfaz, a sabedoria se torna impossível, pois passou-se por um trajeto sem que se pudesse usufruí-lo, portanto, vivê-lo.
   O romancista moderno ( estes pensamentos que aqui cito são da década de 30 ), se separa da comunidade. Escrever passa a ser ato solitário, distanciado da sociedade, em absoluto recolhimento. Pior que isso, se escreve para si-mesmo, não se procura comunicar nada. Romance passa a ser BUSCA DE SENTIDO. Todo romance, de Balzac a Thomas Mann é uma tentativa de se encontrar sentido, de se achar uma HISTÓRIA onde aparentemente só existe vazio. Não se usufrui a vida, não se experimenta o trajeto, não se adquire a sabedoria para ser contada e passada a nova geração. Tudo o que se escreve é a busca por sentido, ocasionalmente o seu encontro, mas sempre cifrado, individualizado, em segredo.
   Benjamim ainda fala sobre o perigo da informação. Toda a manhã recebemos um milhão de notícias, e no entanto, todas aparentemente iguais. Informações que são prontamente esquecidas. Nos tornando cada vez mais pobres de HISTÓRIAS. Pior: a informação deve ser sempre nova, deve nos afetar IMEDIATAMENTE.  Passamos a cobrar isso do romance, que seja sempre imediato/novo e próximo a nossa realidade. Paradoxo, sendo assim ele nada tem a nos ensinar, ele deixa de ser sábio, torna-se INFORMAÇÃO.
   Fim da aula.
   E penso no empobrecimento de conversas, na falta do que dizer sobre uma viagem, um amor, um luto. Em como nada mais é narrado, contado. Na sensação de que as pessoas passam pela vida sem história. Odiando a estrada e ansiando por chegar rápido. Pulando em noitadas sem narração. Nada historiando, indo logo pros finalmentes. Romances muito mal escritos. Sabedoria? Em gotas ela é vendida, portanto, torna-se informação.
   Talvez seja por isso que eu tanto escrevo aqui. Eu não sou um romancista. A vida tem sentido, sempre possuiu sentido pra mim. Eu sou um contador de experiências, um velho à fogueira, um avô, um professor. Sou guardião de sentidos, sentidos em filmes, em músicas, em filmes. Sou memória.
   Walter Benjamim está muito perto de mim.

REI LEAR- WILLIAM SHAKESPEARE, O MUNDO FAZ SENTIDO?

   O mundo como planicie onde o que impera é o ciúme, a incompreensão. O ruim se fortalece, o bom padece. Shakespeare ergue um monumento. Difícil lembrar de texto mais capital. De Dostoievski à Bernanos, todos beberam aqui.
   Lear é o rei-patriarca. Que se deixa levar por duas filhas invejosas, e renega a única que o ama, Cordelia. Pois Cordelia é incapaz de verbalizar ( e assim vulgarizar ) o amor que sente pelo pai. Lear é vaidoso, deseja adulação, homenagem.
   Ao mesmo tempo, em outra casa, vemos Edmundo, o mal, filho bastardo, enganar Edgard, seu irmão, e através de trama bem urdida, fazer seu pai, Gloucester, renegar o bom e ingênuo filho, Edgard. Edgard foge e se faz mendigo, louco em meio a lama-caos. Rei Lear é sobre o amor, e esse amor, amor entre pai e filhos, único verdadeiro, é também o caminho para a dor, a loucura e a morte. Terrível mensagem da peça: amamos apenas nossa origem ( o pai ), mas esse amor nos arruina.
   As filhas invejosas de Lear o expulsam de casa, e ele enlouquece. Outro tema, a dor da velhice, a dor da impotência. O rei vaga na chuva e na planicie, vaga e simboliza todos nós, sem lar, sem prole, sem honra, sem razão. O bobo o acompanha, Kent, nobre fiel o segue disfarçado e Cordelia se casou e vive longe, na França. As dores crescem: o pai de Edgard e Edmund, graças a tramóia de Edmund tem seus olhos arrancados e passa a andar sem rumo também. Imagem que não nos abandona: todos os bons vagam, cegos ou loucos, a esmo. Esse pai, Gloucester, acaba por ser guiado pelo filho mendigo, Edgard, sem o saber. É salvo do suicidio, é guiado por aquele que renegou injustamente.
  Edmund torna-se amante das duas filhas más de Lear. A violência cresce e atinge seu ápice no duelo dos irmãos, Edgard e Edmund. O mal é vencido, mas surge a terrível ironia da peça....
  O pai de Edgard morre e Lear entra em cena com Cordelia morta em seus braços. O velho rei, patético, lamentando a filha morta é daquelas cenas que jamais serão esquecidas por quem a viu. E brota a certeza, o mal é eliminado, mas a vitória não é do bem. Ficamos estupefatos. Não existe catarse em Lear, não há alivio. O mal deixa herança, deixa destruição, o bem persiste, mas não vence...
   Rei Lear, com sua linguagem chegando aos limites do cognoscível, demonstra o quanto nosso público teatral decaiu. No Globe Theatre, a ingressos que equivaliam a uma cerveja, o povão ia em massa ver Rei Lear ou Macbeth. Urrava de prazer, recitava as partes conhecidas, ria com o absurdo. Hoje, Shakespeare é entendido apenas pelos letrados, pelos atentos, pelos cultos... Porque? Estaremos mais burros?
   Walter Benjamim dizia que perdemos a humanidade. Nosso dom ( base do ser humano ) de compreender narrativas, de se deixar conduzir pela palavra, foi perdido em prol da mecanização. Hoje compreendemos somente o que é mecânico, o que tem um sistema claro e único, o que é plano e funcional. Será?
   Shakespeare nos recorda do quanto fomos grandes, de como nossas emoções podem ser vastas, da distância que nossa lingua pode percorrer, e de como perdemos a alma em favor do poder.
   A versão que assisti tem Olivier como Lear. Talvez um Lear bonito demais, mas como é bom ouvir sua voz em frases perfeitas e claras! Bravo!

CEES NOOTEBOOM E MAIS BENJAMIN E AINDA HEGEL

Estou lendo um autor bem interessante: Cees Nooteboom. É o principal autor da Holanda hoje. Escreve filosoficamente, é bastante materialista, mas é um materialismo em crise. Tenta abarcar tudo o que importa agora: a falência da sensibilidade, a vulgarização da história, a falta de rumo da existência, a memória persistente, o fim de tudo todo o tempo. Sobre o livro que leio hoje, falo depois. Quero antes citar algumas coisas de interesse.
O século XX é o século da ironia. Tudo é olhado com dúvida, com distanciamento. Ora, com ironia não se dá um passo. Se voce não se entregar sem reservas a nada, se voce não tiver fé em coisa alguma, nada será feito, produzido, tentado. A vida se torna um sempre "quase", um talvez, um relativo quem sabe ou outra vez. Mas, estranhamente, o século XX é feito e destruído na Alemanha, país desprovido de ironia.
Alemanha é nação da punição. O alemão está sempre se policiando, se vigiando e se punindo por seus erros. É um povo que ama seu sofrimento: Wagner, Beethoven, Nietzsche, Rilke, Freud e Strauss. A imagem de Nietzsche abraçado ao pescoço de um cavalo e pedindo perdão a todos os animais da terra é a imagem da Alemanha. Ela faz a guerra e sofre a derrota, sempre. Sua ânsia é a vontade de perder. Porque isso?
É um país de nevascas, de vales escuros, de florestas eternamente em névoa, de montanhas isoladas. Tudo na Alemanha era mistério: cavernas, bruxas, bosques, mitos, sangue em abundancia. De toda a Europa é o país que pior se adapta a modernidade, a razão fria, ao tempo sem segredos. Mas, como povo guerreiro, ele corre rumo a liderança, sacrificando sua "alma". Dá-se a irrupção sazonal do inconsciente, do espírito, do que foi negado. Já a Holanda é seu oposto: uma nação sem montanhas, sem cavernas, plana e simples, exposta, anti-segredos, reino da burguesia, dos bancos, do pensamento moderno, onde tudo é reto, claro e sem mácula.
Nooteboom fala ainda dos humanos extintos. Características humanas em vias de desaparecer. Humanos tímidos. Ninguém mais é timido. Todos sabem posar para fotos, criar nomes falsos, sair de casa sozinho. O rubor está sumindo, a mocinha de seio rosado e bochecha rosa, olhando para o chão; o mocinho timido, sonhador, romantico velado, gaguejante. A timidez foi morta pelo mundo do espetáculo, pelo show, pela vida em escritório, pelo cinema americano, pelo rocknroll. O respeito é outro valor extinto. Tudo o que importa é a minha verdade, e se a minha verdade é só minha a sua verdade me é irrelevante. Não respeitarei alguém que deseja ser mais verdadeiro que eu mesmo. Não respeitarei ninguém, pois respeito é negação de si mesmo. Esse pensamento torto, bobo, ridiculo se torna dominante com a tecnologia ( onde tudo é relativo e sem hierarquia ) com o fim da timidez ( timidez que traz a vida interior ). Para o futuro haverá a extinção da verdade, do subjetivismo e da solidão.
Tudo isso nas 130 primeiras páginas de Nooteboom.
Uma citação de Walter Benjamim:
"... é assim que o anjo deve ser representado perante a história. Com esse olhar crispado voltado ao passado ( ele fala de uma pintura de Paul Klee ). Onde nós vemos um encadeamento de fatos que significam nossa história, o anjo vê apenas um momento único de catástrofe absoluta. Esse anjo gostaria de ficar e ressuscitar os mortos, abrir a luz nos escombros. Mas do céu desce um vento irresistível que arrasta suas asas ao porvir. Os escombros, o entulho se agiganta a seus pés alcançando montanhas, mas o anjo precisa voar, rumo ao destino. É a essa tragédia que damos o nome de progresso".
Uma citação de Hegel:
" Voce está num trem bem iluminado. Voce observa por toda a viagem o ambiente e seus companheiros de viagem. Rostos, vozes, roupas, gestos. Voce crê então conhecer a realidade daquele vagão. Então voce pede a outra pessoa para descrever aquele vagão, descrevendo inclusive voce. E descobre que a realidade para ela seria uma aberração para voce. Pois ela não considerou nada do que lhe é mais real. Ela não percebeu seus sentimentos, seus desejos, seu passado, aquilo que voce ama em voce e renega em voce. Ela simplesmente não conheceu a realidade. É por isso que toda a história do mundo é impossível de ser apreendida."
Nooteboom, como todo grande artista, vai mais longe: É por isso que a Verdade não existe.