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WALLS AND BRIDGES, O MELHOR DISCO DE JOHN LENNON

Em 1974 John Lennon estava um caco. Sem Yoko, eles haviam brigado, ele vivia bêbado. Seus companheiros de copo eram Keith Moon, Ringo Starr, Elton John e principalmente Harry Nilsson. Todos conhecidos por seus excessos. ( Moon e Nilsson eram alcoolotras radicais, Elton estava na sua fase cocaína ). Lennon chamaria no futuro essa fase de seu "Lost Weekend " alusão ao filme de Billy Wilder. --------------- Nesse clima ele lançou o disco Walls and Bridges, disco que vendeu muito mas que foi meio esnobado pelos críticos. Eu conheço tudo que John gravou e para mim este é não só seu melhor trabalho solo, como um dos grandes discos da melhor década. Ele abre com Goin Down on Love e voce não imagina o que era ouvir isso no rádio pela primeira vez. Era rica, era complexa, era surpreendente. Mudava de tom, mudava de ritmo, se recompunha. Tinha percussão, metais, tinha rock e era esquisita. Lembrava os melhores trabalhos dos Beatles. A faixa seguinte fora fruto de uma aposta. Elton John gravou com John Whatever Gets you Thru the Night e apostou que ela seria número um na Billboard. John duvidou e disse que se ela fosse, ele apareceria de surpresa no palco em show de Elton. A faixa chegou a número um e Lennon aparece no Madison Square Garden, no meio de um show do Elton, sem avisar. Cantaram 3 faixas e essa foi, sem que ningém se desse conta, a última aparição de Lennon em um palco. Dezembro de 1974. Whatever Gets era outra surpresa quando surgiu no rádio. Era alegre e histérica, meio gay e tolinha. Deliciosa e eufórica. A cara dos anos 70. -------------- Para quem não sabe Harry Nilsson foi um gênio e Old Dirt Road é da dupla Lennon-Nilsson. É a alma do album. Linda de matar, triste de doer, tem uma guitarra slide sublime ( Jesse Ed Davis ) e aquele fundo de orquestra que Nilsson era mestre em usar. A voz de John está magnífica, é triste, é rock, tem um fundo de ironia, é voz de quem perdeu ( o que irrita em John é sua mania de exibir feridas ao público, mas aqui é tudo tão bonito que a gente perdoa ). A próxima, What You Got, tocava em anúncio de TV. É rocknroll. É agitada. Funciona à perfeição após o bode da faixa anterior. Dá até pra dançar. Bless You é uma faixa que poderia ser cantada por Al Green. Ou por Luther Vandross. Seria sexy. Seria soul de motel. Na voz de Lennon, voz incapaz de soar sexy, é bela porém incompleta. Scared é mais uma grande faixa. Um lobo uiva duas vezes e a orquestra entra como em sonho. Lennon repete várias e várias vezes que sente medo, muito medo. Dizem que seu afastamento do trabalho, entre 1975-1980, se deveu a crises de pânico. Se for verdade, eu penso que não, esta faixa entrega tudo. É pesada, soturna, mas é cheia de beleza. Quando inspirado, John Lennon era uma fábrica de produzir coisas bonitas em meio a frases simples. Scared é um exemplo de talento. Se Paul MacCartney é um mestre em produzir harmonia de cristal, John fazia beleza no lodo. E essa beleza é superlativa em Dreams, uma das músicas mais bonitas já gravadas. O som da bateria harmonizado com os violinos que "sonham" é das construções musicais que só um imenso dom, um talento sem limites, faria. Dreams me encantava quando tocava no rádio, em 1974, e me encanta agora, uma vida inteira mais tarde. É perfeita como música acabada e completa. Surprise é a faixa menos boa do disco inteiro. Apenas uma brincadeira rocker. Nada ruim, mas destoa. Steel and Glass é terrível. Terrível no sentido de ser assustadora. Os metais estão precisos, a música progride como destino. John sente medo outra vez. Sou apaixonado por essa faixa desde que a ouvi pela primeira vez, 1980, logo após sua morte, que foi quando comprei o album. Sei que escrevi sobre esta obra uns 10 anos atrás, mas o valor da grande arte é sua capacidade de ser eternamente comentada. Hoje sou outro e o album tem outro valor para mim. Beef Jerky é esquisita e é instrumental. E depois temos mais uma faixa que é puro Nilsson: Nobody Loves you when you're Down and Out. Só John e Nilsson poderiam fazer uma faixa com esse título. É uma longa lamentação de Lennon, pura auto piedade. Ele lambe feridas sem pudor. Mas eu adoro, porque musicalmente é uma maravilha. A massa sonora lembra o melhor de Phil Spector ( John foi o único Beatle que aprendeu com ele. Paul jamais deixou de seguir George Martin, um estilo muito mais refinado que o de Spector ). Essa massa de guitarras, violinos, metais, percussão, se arrasta como se tudo fosse uma imensa ressaca. E é uma ressaca sim. A canção é como uma dupla de amigos cantando na rua às 6 da manhã, com dor de cabeça, dor de corno, dor de viver. É adulta e é feita em espírito adolescente. É uma obra de arte. ---------------------- Minha opinião é que Lennon se afastou dos palcos e do trabalho por ter vivido um "momento de Voltaire". Desde sempre Lennon fora um rebelde ingênuo, um revolucionário enganado, e em 1975, após o inferno de 1974, ele viveu aquilo que Voltaire descreve ao fim de Candido: Ao final de tudo, o melhor é que cada um cuide de seu jardim. Em crise, percebendo a tolice de seus companheiros, ele se volta ao jardim, à família, à casa. Vai criar o filho, fazer pão, ver TV. Uma das raivas que sua morte nos legou é que não assistimos a segunda parte de sua vida. ------------- Walls and Bridges é o momento em que o Lennon chato e infantil morre.

VOLTAIRE E A ÚNICA LIBERDADE QUE MERECE ESSE NOME

" Posso não concordar com nada do que voce diz, mas morrerei defendendo seu direito de dizer o que voce quiser". Essa frase é de Voltaire e é a definição de liberdade de opinião. Não há como relativizar isso, quem o fizer estará assumindo a posição de censor. É iluminismo, a filosofia que construiu o modo de ser do ocidente por 200 anos. O fato de um ministro se dizer iluminista e ao mesmo tempo censurar 15 deputados faz dele um cínico. Ou algo pior, um fascista. Mal caráter ao extremo, ele usa o rótulo de Voltaire para iludir os asnos. Mas mesmo sendo um crápula, ele tem todo o direito de falar as besteiras podres que quiser. O que não pode é fazer calar, pois assim ele destroi a liberdade, e pior ainda, compromete todo o acordo social. ----------------- Eu me sinto ofendido ao ser diariamente chamado de nazista, mas nunca disse um CALA A BOCA. Para idiotices voce tem duas escolhas: as ignora ou argumenta exibindo a verdade. Cabe ao opositor aceitar a informação ou negar. Isso é a civilidade que empurra a sociedade para a luz. Iluminismo: ouvir cada opinião e tirar daí uma ideia. 99% será lixo, mas voce saberá em que estado as pessoas estão e concluirá qual a ideia menos idiota. Fatos, ações, consequências, esses são os sinais da verdade. A censura interrompe o diálogo, nega a descoberta ( todo censor teme algo a ser iluminado, por isso corta o caminho, interrompe a averiguação ). O censor se torna A VERDADE, o que é sempre um absurdo pois não há como uma pessoa ser depositário de toda a verdade. Quem se submete à isso se torna uma criança, um autômato que recebe na boca sua ração diária de pseudo verdades. Voltaire aceitava toda opinião, mesmo as criminosas como as de Sade, porque sabia que não há como Saber se negando parte da realidade. Freud levou isso adiante ao afirmar que a censura interna nos faz doentes. Uma sociedade censurada é sempre doente. Psicoses sociais irrompem. Sem parar. --------------------- Os mais maldosos dizem que se deve calar as vozes que são contra a liberdade. E então, se dando um poder absoluto, dizem defender a liberdade interrompendo a liberdade. É um paradoxo ridículo e bastante medíocre, intelectualmente de uma pobreza atroz. Uma desculpa para o SADISMO DA CENSURA. Sim, pois em todo cala a boca há um desejo sádico de poder. E acima de tudo o pavor da verdade. Pessoas que são contra a liberdade têm todo o direito de ser contra a liberdade. Não há crime em se pensar diferente, em se falar besteiras, em se expressar. Reprimidas, Freud outra vez, elas não deixam de existir, se tornam terror. ---------------- A internet trouxe a possibilidade, rica, humana, de se exibir toda opinião. Isso apavorou a imprensa, dona da verdade desde sempre. Mas também facilitou a censura, pois bloquear uma pessoa na rede é muito mais fácil que nas ruas. O ostracismo é não ter rede social, antes era ser preso ou exilado. Volto a dizer, temos mais de 15 deputados censurados e exilados das redes. Seu crime foi criticar, com palavras, uma pessoa, o censor. Sem julgamento, sem acesso aos autos, sem chance de defesa, foram CENSURADOS por aquele que acusam de ser um CENSOR. Sim, o Brasil é uma republiqueta latino americana. Se a acusação deles era mentirosa, acaba de ser validada. Seria supremamente educativo um debate sobre a verdade e a mentira, um julgamento, ouvir as partes, mas o que se viu foi um: CALE SUA BOCA. Fim. E ao final, um censor ousa dizer ser ILUMINISTA. Voltaire teria muito o que dizer. Exilado na Inglaterra, claro. ---------------------- É um absurdo se enfiar um crucifixo na vagina. Mas jamais me passou pela cabeça pedir a censura à isso. O que posso, e devo fazer, é mostrar o quanto isso é MAU, incivilizado, injusto e ofensivo. Desrespeitoso e preconceituoso. Há nesse ato obsceno a chance de afirmar e defender minha fé. Um cala a boca nada resolve. Nega o problema. Mas este é um pensamento sofisticado demais para censores bananeiros. Ou pior, para bandidos fantasiados de "gente fina".

VOLTAIRE

Ando lendo Voltaire, autor bastante fora de moda hoje. Isso acontece porque o gênio francês duvidava de tudo, principalmente daquilo que todo mundo dava como certo. No conto O HOMEM DOS 40 ESCUDOS, ele além de fustigar a igreja, poder central da época, chama Rousseau de "caso de loucura sem cura que deveria ser esquecido dentro de um hospital de alienados". A filosofia central de Voltaire é: Desconfie dos sábios. Sábios são vaidosos, e tudo o que fazem é lutar pela manuntenção de sua vaidade. Um sábio não admite se contradizer, e fica firme em seu erro. O sábio é o ditador da mente moderna. Ando pela rua. Sol, vento, ar leve, é primavera. Óbvio que como voltairiano que sou, não uso máscara. Levo um lenço no bolso. Coloco em locais fechados. Não quero causar escândalo. Não quero incomodar velhinhas. Mas me recuso a crer que um pedaço de tecido faça alguma diferença. Mais que isso, não vejo, em mim mesmo, e naqueles que conheço, a ocorrência de uma hecatombe. Cresci como maricas. Não me ofende dizer isso. Para quem não sabe, maricas não é gay. Freddie Mercury ou Ney Matogrosso não são maricas. Felipe Neto é. Eu tinha medo de tudo. De gente desconhecida, de lugares estranhos, de doenças, de morrer. Temia baratas e até cachorros. Minha vida era medo e medo. A dureza da vida me fez mudar. Ainda estou longe de ser corajoso, mas deixei faz tempo de ser um mariquinhas. A epidemia me surpreendeu por me fazer notar a quantidade imensa de gente medrosa que há no ocidente. Não falo do pai que teme pelos filhos. Da filha que teme pela mãe. Falo do cara de 18 anos trancado no quarto. Da menina de 20 que anda com lenço, óculos e alcool na mão. Completamente dominados pelo medo, odiando quem não sente o que eles sentem ( nada irrita mais um maricas que a coragem alheia....eu sei, cresci sentindo essa raiva ), eles abrem mão da sua inteligência em favor do instinto animal do medo. Voltaire escreveria sátiras maravilhosas sobre isso. Que seriam censuradas, como eram seus contos em 1760. Leiam Voltaire. Saúde não é um pedaço de cueca sobre o nariz. Saúde é duvidar do porque das coisas.

GIACOMO CASANOVA ( E UM COMETÁRIO SOBRE O TRABALHO À MODA DE RUSSELL )

   Vou negociar em um sebo. É uma das coisas que mais gosto de fazer. Com tempo livre hoje, vasculho o imenso sebo e acabo encontrando coisas realmente valiosas. Saibam então que conforme for lendo, logo livros interessantes serão aqui comentados. Já estou lendo as MEMÓRIAS DE CASANOVA. Comecei a lê-lo na cama e não consigo parar. Foram 70 páginas numa levada só.
  Creio que infelizmente vocês não acharão essa obra com facilidade. A edição que adquiro é da editora José Olympo, de 1945. Capa dura e páginas escuras de tão velhas. Vejo ser o volume dois. Suas memórias são em cinco volumes. Mas não faz mal, as aventuras do famoso italiano podem ser lidas em qualquer ordem. Aqui tenho os anos de 1750-1760. Ele está em Paris, Dresden e Viena.
  Casanova passou a posteridade como sinônimo de atleta sexual, e realmente ele vai à cama de muitas mulheres, casadas ou não, nobres e plebeias. Mas ele é muito mais que isso, ele é um curioso. Inteligente ao extremo, maravilhoso escritor, ele procura conhecer. se interessa por tudo, ele vive plenamente. O livro é acima de tudo um manual de como viver bem.
  Os melhores intelectuais do século XX eram apaixonados pelo século XVIII. Não o seu final, a revolução, mas sim seus começos, a época do absolutismo e do iluminismo. Muita gente se diz iluminista sem fazer a menor ideia do que seja isso. Os mais idiotas pensam que significa ser ateu ou então vagamente anarquista. Nada mais absurdo! Voltaire acreditava em Deus mas odiava a igreja. Iluminismo é ser curioso. Esse o passo fundamental: desprezar dogmas em prol de saber mais. Casanova é assim. Ele escreve no fim do seu século, naquele estilo simples e direto de Voltaire, muitas coisas acontecem sem parar, e tudo que lhe importa é saber. Suas conquistas sexuais são simplesmente atos de curiosidade: como aquela mulher ama? Como é seu corpo?
  Bertrand Russell disse que a guerra de secessão americana foi acima de tudo a luta entre puritanos do norte e aristocratas do sul. Lendo Casanova um aspecto nos choca: ninguém trabalha! Produzir alguma riqueza é ideia completamente distante. A fortuna vem às toneladas, gasta-se, e não se preocupa com isso. Com tempo livre, todo o tempo do mundo, os piores passam sua vida em fofocas e bebida, jogo e caça. Os melhores vivem adquirindo cultura. Eis Casanova. Para os puritanos ingleses, os mesmos que fizeram os EUA e venceram a guerra civil, nada é mais pecaminoso que a vagabundagem. Mesmo rico, um homem deve trabalhar. É ordem de Deus. Eis a filosofia americana. Observe que mesmo milionários de lá continuam indo ao escritório ou administrando fundações. O playboy ou o sheik árabe que vive só pelo lazer, lá são inimagináveis. Esse modo de viver, republicano, é a grande herança americana. É um país que odeia a nobreza. Não é o caso do Brasil. Nosso sonho é poder viver sem trabalhar. Bem...divago...divago como Casanova faz.
   Escrevo mais sobre este delicioso livro em outro post.
 

ADEUS JOHN WAYNE ( PORQUÊ O NAZISMO VENCEU )VOLTAIRE!

   Uma comissão na cidade de Orange County vai retirar a estátua de John Wayne. Ela ficará num porão. Eis um assunto difícil de falar.
   Cresci em um mundo cultural com espaço. Espaço é a palavra. Havia espaço para Eliot e para Marianne Moore. Para James Baldwin e para Mishima. O que se amava era a excelência. Podia-se lamentar a posição de Ezra Pound durante a guerra, podia-se odiar o que Elia Kazan fez, mas JAMAIS se imaginava censurar ou apagar da história alguém que tivesse contribuído para a diversidade cultural do planeta. Desde 1960 John Wayne era chamado, injustamente, de fascista. Mas seus filmes passavam normalmente na TV, ele era homenageado em festivais e respeitado por seu legado. Isso não poderia ser apagado, pois apagar a cultura seria como empobrecer nosso espírito. Porém, a partir dos anos 80 esse amor se perdeu.
  Uso a palavra amor de forma bastante apropriada. O amor pela cultura faz com que eu ame Acossado, mesmo odiando a posição política de Godard. Faz com que eu leia Heminguay, mesmo sabendo que eu o detestaria como pessoa. Esse amor a cultura morreu e não estou sendo exagerado ao dizer isso. Os fariseus tomaram o museu e compraram a editora. Eles não amam a cultura, eles amam o seu PRÓPRIO ESPELHO e esse espelho não aceita nada que não seja ele mesmo.
  Perversamente a diversidade está matando a....diversidade. Essa diversidade, made in 2020, é uma festa entre iguais, inclusive no modo de vestir e falar. Penso que eles estão tão profundamente condicionados que perderam a capacidade de perceber essa armadilha. Diversidade pequena, limitada, diversidade que tem pauta, censura, manual de bom comportamento. Uma festa que não permite a entrada de quem foge a seus ditames, e pior, uma festa que expulsa fantasmas.
  Aldous Huxley já dizia em 1930 que a pior opressão parte de quem diz defender o bem. Vegetarianos, pacifistas, naturistas, liberais, além de oprimir com suas regras, nos fazem mal por nos legarem a culpa. Se eles são bons, então somos o mal. Eles produzem o mesmo efeito do cristianismo que dizem odiar. Erguem o nariz arrotando sua superioridade. São anjos. E têm má digestão.
  Agora, neste exato momento, eles estão limpando a história do mundo. Desinfetam páginas e páginas do passado, tudo em nome do bem e da justiça. Desde a inquisição não se via tamanho fanatismo. Não é coincidência usarem a fogueira. O que os move é o ódio. Eles não compreendem o passado, não entendem a arte fora do utilitarismo político e por isso vivem em ressentimento. Discursam contra o racismo, mas dão cor à todo espírito e toda arte. Para eles um ser humano se resume a cor de sua pele. A raça condiciona toda arte que podemos produzir, tudo o que podemos falar. Segundo eles, não há como escapar do seu condicionamento racial. Se voce é branco voce só pode produzir arte de branco. Eles negam a alma, sem cor e sem sexo, e se prendem ao conceito que dizem exterminar. Bem...desde Hitler não se vê e ouve nada tão estúpido. Não à toa nazistas também se viam como puros.
  Alguns anos atrás eu li alguém que dizia que na verdade os nazis venceram a guerra. Leio dois livros por semana e é difícil lembrar todo autor, baby. Mas ele dizia que depois da guerra vivemos em um mundo armado, vigiado e desencantado, e por isso os nazis haviam vencido por terem mudado o mundo. Pois agora a coisa piorou. O modo nazi, inconsciente, toma conta da diversidade perversa. O ódio ao diferente é absoluto, e pior, é visto como O BEM.
  Não, não estou exagerando e explico mais um pouco.
  Sim, voce sempre teve sua turma. Vamos a chamar de turma da Vila Madalena. Ou galera do Baixo Leblon. Ou jovens de Greenwich Village. Voce odiava, digamos, os caras da Mooca, ou da Barra, ou de Boston. Havia um atrito. Uma discussão. Mas não havia a tentativa de fazer com que a Barra deixasse de existir. Voce odiava Roberto Carlos ou o general Geisel, mas não pensava em queimar seus discos ou apagar seus anos de governo da história. Pois é isso que agora se apresenta. A absoluta negação da cultura. Pois cultura é história e história é passado.
  Roger Scrutton diz que o conservadorismo se resume a amar as coisas do passado e lutar para as preservar. Nunca na história recente, a civilização, que eu amo, aquela criada por judeus e gregos, romanos e celtas, foi tão atacada. Há um plano óbvio de a cancelar.
  Não é a primeira vez que isso ocorre. Crises culturais cíclicas, em que todo o mundo cultural parece afundar, são inevitáveis. Houve isso nas invasões bárbaras, na crise da reforma, na guerra contra os nazistas. A diferença é que agora é uma guerra não declarada, uma guerra sem batalhas, de guerrilha, de pequenas e constantes destruições.
  Eu defenderei sempre o direito de voce assistir o filme que voce quiser. Mesmo que eu o deteste.
  Isso é Voltaire.
  E ontem vandalizaram sua estátua em Paris. Nela escreveram: Racista.
  Meu amor chora.
 

SUMARÉ, SÊNECA E VOLTAIRE

   Do meu bairro eu podia ver os altos do Sumaré. A antena da Tupi ( ou seria da Cultura? ) que mandava para minha casa a misteriosa imagem da TV. Eu achava que dentro do aparelho moravam pequenos homens, e que nas válvulas se condensava o cenário. Era maravilhoso ver o técnico arrumar a televisão.
   Às vezes eu ia ao Sumaré. Velhinhas cruzavam a rua. Nas janelas de suas casas, velhinhas olhavam a rua. E fazia sempre frio. Vento. Garoa. A gente ia na igreja de Nossa Senhora de Fátima, onde fui batizado. Sim, fui batizado e ainda acho, institivamente, um absurdo uma criança civilizada não ser batizada. Batismo é entrar na civilidade. Na Minha civilização.
   O bairro continua a ser um conjunto de ladeiras. E a ter suas pequenas velhinhas cruzando a rua. O ar tem muito de folhas verdes e de sombra. E há um silêncio que traz calma e também memória. Ao contrário do Morumbi que morreu ou do Itaim que se travestiu, o Sumaré continua vivo. Vento no alto do morro e a vista da cidade longe.
   Andando sinto a mão de minha mãe pegar a minha enquanto atravesso a rua. E a de meu pai me dando saudade. Eu briguei muito com ele. Eu briguei muito com todos aqueles que amei. Ainda brigarei mais. Fotografo as velhas casas. Eu ligo pra elas. Elas estão aqui pra vida.
   Sêneca disse que a vida não tem valor. Que a vida é um caminho sem valor em si. Que ao viver criamos seu valor, bom ou ruim. E que a vida só vale se for plena. Ela dura aquilo que vivemos. Viver não é uma benção e não é uma maldição. Depende. Certos bairros são vivos por terem duração. São diferentes e históricos. Existem como testemunhos. Para mim.
   Sêneca é um dos mais claros espíritos que o mundo viu. E eu continuo a andar. Uma feira. O cheiro dos legumes e das frutas. Cachorros me cheiram. Eles sempre sabem que sou um deles. Uma escola. Vozes de adolescentes. Eu sei que ainda serei sempre um deles. Como eles me percebem?
   A sombra some e eu sinto uma nova verdade. Sumaré ainda está aqui. Bom de andar. bom de tomar café e bom de olhar. Detalhes em detalhes: uma rachadura, uma flor, um enfeite no jardim. Casas com jardim. Um absurdo uma casa sem jardim. Casa sem jardim não é casa. Civilidade necessita de jardim. Como falava Voltaire, cultivemos nosso jardim.
   Estou cansado do romantismo. Chega de originalidades! Chega de novidades! Quero o bem feito, o hábil, o saber fazer. O prazer daquilo que é bonito. Chega de romantismos!
   Clássico Sumaré. Sem grandes emoções. Correto.
   Uma velhinha cruza a rua.

VOLTAIRE POR ROGER BASTIDE

   Voltaire nasceu filho de burguês bem colocado. Dinheiro e prazer, sua vida será marcada por esses valores. Mas um fato doloroso marcará sua entrada na maturidade, o fato de que na França de seu tempo, dinheiro comprava prazer, mas jamais comprava respeito. Doeu no imenso orgulho de Voltaire a percepção de que ele era apenas um escritor, um burguesinho, uma piada. Mas estou me adiantando. O belo texto de Roger Bastide começa analisando o porque de Arouet, nome verdadeiro do autor do Candide, assinar Voltaire. E não só isso, o porque de ele usar vários nomes e muitas vezes não reconhecer sua própria autoria.
  Uma questão de auto-preservação? A lei era autoritária, e textos ferinos podiam custar a prisão. Mas as máscaras de Voltaire dizem mais. Bastide diz que os pseudônimos servem na verdade para nomear os múltiplos seres que habitam em cada um de nós. Voltaire percebe que vivemos várias realidades, que em nós existem mundos díspares. Eis sua modernidade.
  Desde cedo ele amou a diversão e o teatro. Sua primeira filosofia é a do prazer. A vida existe para se divertir. E não vamos esquecer que em seu tempo ( século XVIII ), era o teatro que dava fama a um autor. Literatura séria era teatral, e os poetas vinham logo em seguida. Escrever prosa era considerada ocupação pouco nobre, futil. Voltaire ama o teatro e ama a fama. Tem ambição, quer ser o novo Corneille e o novo Racine, o rei do teatro francês. Por toda a vida ele escreverá peças, algumas de grande sucesso, outras não. Deve-se dizer, todas estão mortas em nosso tempo. O teatro de Voltaire é velho, chato, não mais se representa. Sua fama eterna virá de sua filosofia e de seus contos. E da ação que ele produziu. A vida de Voltaire fez dele um gigante.
  Fez dinheiro. Apesar de ser artista e filósofo, sabia capitalizar. Era cruel. Emprestava a juros altos, aplicava na bolsa e ganhava. Comprava terras. Era considerado frio, ambicioso, duro, implacável. Voltaire amava o dinheiro. Sonhava em ser embaixador, se fazer um nobre.
  Mas um de seus escritos ofende um conde que o esbofeteia na rua. A crise nasce aí. Nenhum amigo toma seu partido. E o conde nem admite um duelo, pois não iria se sujar em duelo contra um plebeu. Voltaire, que emprestava dinheiro aos nobres vê a realidade da França. Ele era um nada. Quando acontece em 1755 o terremoto de Lisboa, catástrofe que mudou a Europa, que deu impulso a crítica à religião ( que Deus é esse que mata uma cidade inocente? ), o amargor de Voltaire atinge seu apogeu. Mas que amargor é esse?
  Cartesiano ainda, ele ama a razão. E para ele, se Deus não pode ser racional, pois um ser racional não permitiria a injustiça, então Deus não pode existir. A razão não pode explicar Deus. Observe que Voltaire salva a razão destruindo Deus. Segundo Roger Bastide, Kierkegaard dará um passo adiante: nada é racional, incluindo Deus que é inexplicável como a vida. Para um cartesiano como Voltaire esse pensamento é impossível. O tempo de Voltaire é tempo em que a fé na razão é absoluta. Tudo é explicável, tudo tem um porque, uma causa e um fim. O surpreendente é que Voltaire nega Deus mas não se faz ateu. Ele crê num Deus que habita em todos nós. É um deísta.
   Mas o mundo é para ele absurdo. Esse absurdo vem do fato de que ele não consegue se livrar da razão. À luz da razão tudo parece absurdo. É preciso nada levar a sério. É preciso saber rir.
   E ao mesmo tempo é preciso saber tudo. Voltaire tem uma curiosidade sem fim. Pesquisa, vê, tenta entender. É poeta, contista, historiador, autor teatral, ator, cientista, filósofo, político e jornalista. Participa da Enciclopédia e faz-se inimigo de Rousseau.
  Rousseau acredita nos sentimentos. Voltaire zomba dos bons sentimentos. Rousseau fala da bondade natural do homem. Voltaire ama a civilização. Rousseau é sensível e Voltaire é intelectual. São inconciliáveis. Mas voltemos no tempo....
  Logo após o duelo que tanto o humilhou, Voltaire vai à Inglaterra. Detalhe: ninguém ia à Inglaterra então. A ilha era um país que não contava. Europa era França, Espanha, Roma, Viena e Prússia. Ninguém sabia nada sobre a Inglaterra e ninguém falava inglês. Pois será Voltaire quem lançará a moda inglesa, a mania que se apossará do continente. Na Inglaterra ele encontrará uma nação que tinha muito em comum com suas ideias. Uma crença na força do dinheiro, escritores como homens respeitados e a liberdade de se escrever o que se desejar. Sem medo. Os ingleses amavam seus escritores, os nobres aumentavam suas rendas, e a igreja não se metia na vida cotidiana dos cidadãos. Mas há também algo nos ingleses que desconcerta Voltaire. Ele observa que é um povo que está feliz de manhã, mas que no fim da tarde cai em terrível melancolia. Eis uma imensa diferença entre França e Inglaterra que se mantém séculos afora. A França é fria, racional, faladora, analítica, e de humor constante. Falta-lhe fantasia. Já a Inglaterra é sonhadora, melancólica, quieta, piegas e de humor desconcertante. Voltaire logo percebeu tudo isso. Shakespeare seria impossível na França ( apesar de logo se tornar um sucesso em Paris ), com suas fadas e ações irracionais. O que Voltaire não percebeu foi o humor inglês. Ele, como francês, tinha um humor ácido, destrutivo, cruel. O humor inglês é auto-irônico, carinhoso, tem pitadas de amor.
  Voltando a França ele logo lança sua obra de história, mais peças, contos, e com o tempo, e por ter tido a sorte de viver 82 anos, sua fama começa a se espalhar por todo o mundo. Já no fim da vida, Benjamin Franklyn vem da América e o visita. O filho de Franklyn lhe beija as mãos e diz que sua nação o ama. Voltaire percebe, espertamente, que a América consegue algo que ele sempre desejou. A união de Deus e da Liberdade. A divisa americana seria "God and Liberty".
  Há muito mais no texto de Bastide. A estada dele na Suiça, país que amava a liberdade mas que puritano, odiava o teatro. Suas relações com Frederico, rei da Prússia, monarca que desejava fazer de seu reino uma nova Atenas. E as mulheres, várias, variadas, usadas e descartadas.
  Voltaire viveu no auge da França. Tempo em que a razão era a rainha da vida. A ciência misturava-se com a filosofia e a arte com a politica. A vaidade imperava, a etiqueta. E Voltaire era muito vaidoso, esnobe, egoísta. Difamava sem remorsos quem o atacava, era agressivo, vingativo.
  Foi o primeiro escritor que chamei de ídolo. Teve enorme influência em minha adolescência. E desde então sempre peço a todo amigo que o leia. Se voce quer ser levado a sério, leia Voltaire. Depois a gente conversa. E nunca encontrei alguém que não gostasse de Candide, de Zadig ou de Micrômegas.
  Voltaire é pra sempre.

CANDIDO OU O OTIMISMO- VOLTAIRE

Foi aos 14 anos, numa madrugada, que lí este conto pela primeira vez. Termino hoje, tanto tempo depois, de o reler pela terceira vez. E continuo sentindo um prazer imenso em reencontrar Candido, Pangloss, Martinho, Cunegundes, Paquette e tanta gente mais. Ao contrário de livros que nos decepcionam numa segunda leitura, Candido permanece com o mesmo brilho, o mesmo encanto, dando tanto para quem o encontra.
Candido nasce rico, é expulso de casa e sofre castigos hilariantes na Bulgária, Portugal, Argentina, Paraguai, Colômbia, Suriname, Espanha, Veneza e Turquia. Tudo é possível e tudo acontece : guerras, inquisição, escravidão, enriquecimento, miséria, estupros, coincidências absurdas. A história, colorida e carnavalesca, tem a ação de um sonho frenético e o clima de uma lenda oriental. É absolutamente apaixonante.
Relendo-a, percebo que passei todos esses anos plagiando esta história, levando seu molde para peças e noveletas que escreví. Pois é um livro sobre estradas, filósofos encontrados em bosques, em mares, em estalagens. Frases simples que nortearam meus pensamentos, ações que são rememoradas em toda ação que faço. Voltaire se tornou meu guia. Por causa do adorável Candido.
O que motivou o gênio do século XVIII a escrever Candide foi o desejo de desbancar Leibniz. A pena de Voltaire, ácida, crua, pessimista, mostra a tolice do otimismo, dessa caduquice de se imaginar ser este " o melhor dos mundos ". É Pangloss, mestre de Candido, o filósofo otimista, que pensa ser tudo pura bondade, que toda ação é guiada para o bem geral, que a natureza é a própria perfeição. Mas Voltaire também joga farpas contra Rousseau e seu bom selvagem, contra a igreja católica, contra a nobresa, contra muçulmanos e judeus, contra a França e a Espanha e Veneza também. É um pessimismo orgulhoso, solar, ativo, cheio de humor, humor ácido, que faz pensar.
Voltaire crê na inteligência. Sua fé é a fé do século em que viveu : a fé no futuro, no triunfo da razão. Sabemos hoje que a razão jamais teve sua vitória. Que o século seguinte ao de Voltaire foi o século do trabalho infantil, da ilusão romântica, do colonialismo e da industrialização do mundo. E que o XX seria o da guerra sistemática, do terrorismo e da desumanização do homem. A razão nunca foi absoluta. Mas Voltaire acreditava em sua vitória. No racionalismo de se poder viver como se pode e de se deixar viver. Acreditava no fim de toda igreja, de toda tirania e da guerra. Não aconteceu. Bem...

Ele termina o conto de forma magnífica : Candido e Martinho ( o sempre pessimista ) abrem mão do filosofar. Ao homem compete cuidar de seu jardim.
Maravilhoso século que nos deu Voltaire ! E Newton, Mozart, Haydn, John Locke, Franklyn, Goethe, Jefferson, Swift e Sterne. Gigantes. Candido é gigantesco. Um conto ( 70 páginas ) que ecoa para todo o sempre. Que brilha, cintila, educa, diverte e faz rir. Candido justifica Voltaire, a literatura francesa, o século das luzes. Aprendemos a ler para poder penetrar em livros como este. Leia-o. Sempre e já.