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Diego Velazquez



leia e escreva já!

A PINTURA SERVE PRA QUÊ? ( VELAZQUEZ )

   1599. Nasce Velazquez em Sevilha. 1599. Shakespeare está escrevendo na Inglaterra. 1599. O barroco se aproxima. Tempo de escuros e de sóis, de céu e de danação. A carne e a alma em movimento. A Espanha começa a se afundar e França com Holanda serão o presente. Velazquez jamais passará necessidades, será o pintor do rei, viverá no palácio onde pintará a familia real e tudo que a cerca. Será ao mesmo tempo um escravo desse mundo, sua vida está dentro daquelas paredes e ao lado daquela gente. Faz duas viagens à Itália e lá se maravilha com Caravaggio e Bernini.
  1625. Velazquez é um homem belo, forte, de bigodes e veludos, de sedas e de ouro. E pinta. Talvez tenha sido o maior pintor que o mundo já viu. Talvez não, esse pintor maior pode ser Rembrandt. Os dois viveram nesse período, a época das sombras, das peles rosadas, das carnes opulentas e dos espíritos inquietos.
  As Meninas é a mais famosa pintura de Velazquez, e não é dela que vou falar. Não posso me dar esse esforço, é arte que está distante da minha escrita, seria como uma formiga tentando escrever sobre o planeta. Mas talvez eu possa simplesmente escrever impressões, jogar imagens como quem pinta. Mas As Meninas é vasto demais, grande demais, tem tantas possibilidades de abordagem que vários volumes não o esgotariam. Na verdade ele não é um quadro ou uma pintura, é mais como uma realidade colocada diante de quem a olha, vida congelada para sempre, um momento de realidade mais vivo que a própria vida. Um continente de significados. Não, não falarei das Meninas.
   1635. As Lanças. Está no museu do Prado, em Madrid. Nos esmaga. Nesse encontro de dois exércitos que assinam a carta de paz, eu vejo a vitória da arte. Lá há mais engenho que em qualquer ciência, mais razão que em toda equação, mais narrativa que no melhor romance. O castanho do cavalo brilha e os pretos e os vermelhos hipnotizam. Os rostos surgem em meio a massas de escuridão e cada um desses rostos é único. Ninguém nunca pintou rostos como esse espanhol. Respiram, me vêem, falam comigo. Sei que não podem se mover, mas se movem melhor que eu. Velazquez conseguiu o maior dos milagres, venceu o tempo. O tempo aqui é cativo de seu pincel. Aquele dia está escravo, para todo o sempre. E as lanças apontam aos céus, retas e duras, abstratas. E o castanho do cavalo se move indiferente a mim. Esses homens me humilham, são maiores que eu. Me humilham, são melhores que eu. É uma arte perdida, Velazquez criava vida.
   1650. Vênus ao Espelho. Sobre o veludo que é mais macio que o veludo que eu posso vestir, um corpo de mulher, nú, exibe sua indiferença. A pele é a mais bela pele que um homem pode imaginar, Velazquez a realiza. A curva do dorso é a mais sensual curva que um corpo de mulher pode um dia ter exibido. Velazquez a congela para que nós possamos atestar sua beleza. E a opulência das carnes redondas é o mais insistente apelo ao sexo que um homem pode suportar. Pois Velazquez cria esse apelo, cria e o dá para nós. Essa Vênus, mais perfeita imagem, é a constatação daquilo que um homem vê quando vê o amor primeiro. O pintor soube rever e reter.
   1622. Retrato de Luis de Gongora. Em meio ao negro das vestes pesadas, o rosto brota como algo que será jamais esquecido. Esse rosto discursa, blasfema, reza, e vê. Esse rosto não é apenas para ser visto, eu juro que ele pode nos olhar. Velazquez faz uns olhos que são a imagem primeva dos olhos. Esse homem vive nessa tela, vive e nos vive.
    E é para isso a pintura. De todos os nossos sentidos, é o olhar o mais desenvolvido. Somos o que vemos, vemos aquilo que entendemos. Então entender Velazquez, saber saborear sua genialidade, é ver melhor, entender melhor, viver melhor. Cortar a face apressada da vida e olhar o além do tempo. Interromper o fluxo sem sentido do nada e obter o testemunho da eternidade. Olhar, olhar, olhar, olhar, e conversar com esses quadros, com essas pinceladas. Deixar-se ser olhado por elas e suportar o confronto com essa magnifica grandesa. Não se deixar intimidar por ela, tentar subir até sua altura. Ser nobre.
   Nunca houve pintor mais nobre. Sua arte é inteligência visual. Tudo fala, tudo se move, tudo vence.
   Tenho orgulho de ser de sua espécie. Me embaralho nesses tecidos cheios de dobras e de meandros, me fascino com os bordados dourados e os desenhos vermelhos. Sinto a sensualidade dos escuros e dos cantos e me surpreendo com os graves rostos iluminados pelo fogo e pelo desejo. Mundos dentro de mundos, vidas dentro de tintas, segredos de magia, de rendados e pesados destinos. Os olhos grandes do rei, os pelos dos cachorros e a saia da infanta. E Velazquez, entre anões e bobos, pintando e pintando sem parar. Capturando, enclausurando, nos dando tanto. Maravilhoso século XVII, maravilhosa Espanha, Sevilha... Quero viver nessa penumbra quente.

AS MENINAS DE VELAZQUEZ, A MAIOR OBRA VISUAL DA HISTÓRIA HUMANA

Antecipando o zoom, nosso olhar penetra em sala. Mas não é apenas uma sala. É um mundo. As pessoas nos olham e respiram. E começa assim a sucessão de milagres.
Sabemos todo o tempo que aquilo é uma pintura. Nosso cérebro grita isso. Mas algo escondido dentro de nós balbucia: São vivas!
A vida/morta está para sempre viva naquele retângulo. Respiram os ares do museu do Prado. Eu irei partir, voce irá partir, nossos brinquedos eletrônicos tornar-se-ão pó, e aquela vida/morta estará lá.
Ao canto do quadro há o fundo de uma tela. E um pintor nos mira nos olhos e segura um pincel. Os olhos daquele pintor se movem para dentro de nós mesmos. Segundo milagre: ao penetrarmos naquele ambiente somos penetrados pelos olhos de quem lá está. As três meninas posam ao centro. Uma princesa-criança loura e suas duas amigas. Ao lado das três belas infantas, uma anã retardada nos observa. Ela é a imagem do grotesco. Dois adultos observam a cena ao fundo, mas na verdade nos observam. Olhando o quadro, de súbito nos sentimos nús. E bem ao fundo há um homem partindo por uma porta. Um cão está quase adormecido ao canto e uma criança perturba o quase-sono desse animal. Onze quadros estão enfeitando as paredes desse aposento. E um espelho, bem ao centro, reflete um casal que olha o quadro ao nosso lado. Capturados: estamos agora dentro daquela sala de 1656.
Olhe algum tempo para essa cena e voce estará vivendo com eles. Sua mente se entorpece- desperta e tudo o que existirá então será aquela gente e aquele tempo. Nenhuma imagem feita por mãos humanas tem esse estarrecedor poder. Suga voce para dentro da obra.
Então se inicia um diálogo entre voce e as pessoas. "Desculpe ter entrado sem avisar..." E elas, fantasmas que são, nada podem responder, apenas olham seus olhos e respiram paralisadas. Me vem um pensamento: Quando nosso mundo ruir, esta obra permanecerá. Pois não se trata de pintura, é um feitiço. Aquilo é o mundo real, eu é que sou um simulacro.
Que arte é essa que se perdeu? Observando mais de perto vemos que tudo alí é fumaça, são tênues camadas de tinta. Esfumaçamento da vida, o rosto da menina loura brilha e se avermelha e os cabelos são ouro enquanto sua mão pega um frasco que se move. Sentimos raiva então. Raiva por termos perturbado aqueles seres.
Recordo que é esta considerada a maior pintura de toda a história. O único outro que pode tentar se igualar é Rembrandt com sua Ronda Noturna. Século XVII. Ouro da pintura e da filosofia.
Chego então ao muito perigoso momento em que sinto a tentação de não mais sair daquela sala. Se eles são fantasmas vivos, serei um vivo fantasma e lá ficarei. Quero acariciar o pelo marrom daquele cão imenso e quero ser olhado e olhar os olhares daqueles espectros que respiram. Serei a imagem no espelho de fundo, serei o objeto do pincel que se segura, serei parte daquele mundo suspenso. Há um perigo mortal em toda obra-prima. Elas são maiores que nosso mundo. Têm um canto de sereia que pode enlouquecer. Pois esta obra é mais que sereia, é um oceano.
Agora, na rua de novo, sinto estranhamente que as meninas me esperam para outro dia. As coisas aqui fora parecem vulgarmente mortais, e eu, num quadro, tive visões de dourada imortalidade.