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AQUI E AGORA. A TEORIA DO BLOCO.

Nada do que Einstein disse foi desmentido na prática. Tenha isso em mente. ---------------- Trabalho na escola onde estudei. Estive lá entre 1972-1978. A escola está no mesmo local neste planeta. Os anos a modificaram. O pátio era todo de terra, hoje não. As paredes eram brancas e o chão de madeira. As árvores cresceram e eu, bem, sou um velho em 2024. Pois bem, tudo se modificou ao sofrer a ação do tempo senhor da vida. ------------------------ Imaginemos agora que um astronauta foi enviado a uma posição que fica a 50 anos luz da Terra. Ou que exista um ser nessa posição. Digamos que ele aponte uma lente para a escola onde estou em 2024. Digamos que seja o dia 20 de fevereiro de 2024. O que ele verá? --------------- A imagem leva 50 anos para chegar a 50 anos luz daqui e isso voce já sabe. Imagem é luz-energia e isso voce sabe. Então esse ser está vendo uma imagem de 1974 e nessa imagem ele me vê aos 12 anos de idade. Não só isso. Se mover a imagem ele irá ver meu pai vivo. Imagens. -------------- Vamos complicar isso? Vamos afastar nosso ponto de vista e nos posicionar num posto onde podemos ver AO MESMO TEMPO o menino de 1974, o cara de 62 em 2024 e o ser que observa a Terra a 50 anos luz. Esse ponto de vista OBSERVA TODOS OS 3 SERES AO MESMO TEMPO. Ou seja, em um ponto de vista distante, o menino de 12 anos não é apenas uma luz-energia que chega atrasada, é uma realidade que dura ao mesmo tempo que o eu que aqui escreve. ------------------------ Bergson já intuia isso e a palavra era DURAÇÃO. ------------------- O menino não seria uma luz como um dvd antigo, mas ele existiria em 2024, 2024 que aliás nada significa fora da Terra. -------------------- Complicado? Não. Ondas de rádio emitidas aqui viajam pelo cosmo para sempre, isso se sabe desde 1930. O que a Teoria do Bloco diz é que tudo aquilo que existe ou existiu existe para sempre. Presos ao tempo que nos empurra para frente, percebemos seu desaparecimento aparente no tempo, mas, e sei que isso é incrível, o evento continua a reverberar eternamente no local onde ocorreu. É tudo uma questão de ponto de vista. Desse modo, o cosmos seria um bloco onde tudo é um AGORA QUE NÃO PASSA pois passaria para onde? Não há uma lixeira, um ONDE em que tudo evento fosse eliminado do cosmos. O Cosmos é tudo e portanto tudo nele permanece. Cada ação, cada segundo, cada ser, tudo se repete em looping sem fim. ------------------ Podemos dar o próximo passo? Eu disse sem fim? Sim, sem fim. Mas se não pode haver fim, não há começo possível. E então, se o Cosmos é um bloco, o futuro faz parte disso, ou seja, dependendo do ponto de vista, o Futuro já acontece agora e acontece sempre. Eu sei que agora a coisa ficou confusa demais, mas não há como dizer que algo não tem fim sem admitir que não houve início. E se não houve início NADA começa agora, não pode haver começo. Portanto tudo existe desde sempre e cada evento, macro ou micro, acontece desde sempre e acontecerá infinitamente. --------------------- O menino de 12 anos e o homem de 62 existem no mesmo local e ao mesmo tempo ( tempo? que tempo? ). Os dois sentem, pensam, reagem e são contemporâneos. Não se comunicam porque não possuem a FERRAMENTA para tal. Presos na MUDANÇA ETERNA APARENTE, não podem ver nada que seja exterior a aparência. Sua máquina cerebral é Newtoniana. Uma coisa de cada vez, ação e reação, dia e noite, o fim depois do começo, tudo tem seu tempo etc etc etc. ----------------- Nada disso faz sentido quando nos afastamos deste sistema solar.

NO ALTO

Eu nasci no alto. Vento e chuva. Ao longe eu podia ver as montanhas do Pico do Jaraguá. Era minha primeira visão de manhã. Da porta da cozinha eu o via. Às vezes claro e brilhante, o sol lhe dando um prateado de joia. Outras manhãs mal se podia ver, o vulto cinzento envolto em chuva ou em névoas de inverno. Mais bonito era quando o Pico surgia todo verde, risonho como uma criança brincando. Mas havia mais: da frente de casa eu via o Morumbi e à direita "a cidade". O Morumbi era uma terra de Tom Sawyer, um Missouri de sonho onde havia córregos com peixinhos, lagos com tartarugas e cobras escondidas em montes de capim alto. Cada rua era uma aventura a espreita. Naquela havia uma velha bruxa, na outra um bando de pedreiros bêbados. A rua onde se corria de kart, a outra onde o Circo montou praça, e a do Moacyr Franco e do Roberto Carlos. Excursões que eu fazia. Um bairro tão pacato, uma vida tão familiar, que na casa do meu primo se entrava pela piscina, pois ela não era cercada e da rua voce andava direto para a água. Era 1969 e na minha casa meus amigos entravam sem avisar, quando eu percebia o Valtinho já estava entocado no porão. -------------- Era alto e de lá eu ouvia radinhos de pilha no jogo do São Paulo, Gerson e Pedro Rocha. Ou, andando pelas ladeiras, eu ouvia os rádios das donas de casa, nas cozinhas, no Silvio Santos que falava com suas colegas de trabalho pelo telefone. Era alto, casas lá longe, casas brotando, aviões vindo distantes, urubus, helicópteros, um disco voador. Meu pai, homem criado nos montes, sempre disse: More no alto, nunca no baixo. No alto há largueza, há o que ver. No baixo voce sufoca. Abra a janela na baixada e veja outra janela ou uma rua sem graça. Abra a janela no alto e veja o céu, a Lua ou uma montanha distante. Cães que latem a quilômetros daqui. ------------------- De quando nasci até meus 36 anos eu sempre vivi no alto. Da minha segunda casa eu olhava o Alto de Pinheiros e Perdizes inteiros. O inverno chegva em cheio na cara da casa, como um tapa. O verão tinha um céu tão vasto como aquele da praia. ( Única baixada que vale é a do mar ). Pois agora eu voltei para a parte alta do bairro e a diferença é imensa. Agora eu gosto de ver e de andar, pois há o que ver e onde andar. A chuva vem caindo do céu e não cai entre paredes, cai lá de cima. Quando olho pela janela não vejo outra janela, vejo o vazio, e que saudade eu tinha do vazio! Não é uma montanha, mas é meu alto. E eu me sinto de volta. Amém.

O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI E O TEMPO QUE PASSA

------------------- Perturbador pensar que em 1979, ano em que vi este filme pela primeira vez, O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI tinha "apenas" 57 anos, menos que minha idade hoje. O filme alemão estava para 1979 como 1966 está para 2023. Ou seja, Beatles e Stones nos são tão antigos como Caligari era para 1979. Mas não! Claro que não. O Caligari que vi, na TV Cultura, no quarto com meu irmão, tinha já em 1979 a presença de uma coisa morta. Todos os atores, nascidos no século XIX, pareciam assombrações. Para nós, eu aos 16 anos e meu irmão com 13, o filme pareceu como adentrar numa tumba. O mal estar foi tão grande que nós dois falamos ao mesmo tempo: Muda de canal. Estou me sentindo mal!!!! ------------------ Cenários tortos, aspecto de sujeira, escuridão, o sonâmbulo louco, o mundo como lugar onírico, pesadelo. O filme de Robert Wiene grudou na lembrança como a tradução fílmica da doença mental. Revisto ontem ele me pareceu pálido. Está longe de ser o melhor filme expressionista. Sua fama é maior do que ele mesmo é. Murnau, Lang e Leni fizeram filmes melhores. ---------------- Falo agora: Filmes de Keaton, Chaplin e mesmo Nosferatu ou Fausto não têm esse aspecto de coisa morta. Revisto isso se mantém. Caligari tem a estranha capacidade de nos fazer conscientes de sua época. E eu acho esse um ponto contra o filme. Ele está morto. É morto. E a arte verdadeira nunca morre. Ela pode parecer antiga, velha, assustadora, mas jamais morta. ----------------- Em 1979 o filme pareceu tão remoto não por ter 57 anos, mas por ser o que ele é: em estilo, em imagens, em ação uma coisa anciã, podre, ida ao esquecimento. Coisas que hoje têm 57 anos, coisas de 1966 parecerão tão remotas se forem cadáveres como Caligari é. Citei Beatles e Stones e voce sabe: Revolver e Aftermath podem ser cartas amareladas, mas ainda são e serão cartas que muitos querem ler e reler. Estão palpitando de vida. --------------------------- O tempo é o engima que mais me interessou por toda a vida. Pois a vida é tempo e estar vivo é sofrer sua força. Eu penso no tempo, eu odeio o tempo, eu tento o ignorar, eu o amo, eu procuro estar em outro tempo. Ele é presente e é outro sempre. Caligari é um eco que desaparece assim que escutado. -------------- Leia bem o que eu falei: ele é morto. Ele é podre. Mas ele tem algo que venceu: são imagens malditas típicas de 1890, não de 1922, que assombram. E creia, dois meninos de 16 e 13 anos, vivendo nos multi coloridos anos 70, não estavam preparados pra essa assombração. PS: o melhor filme expressionista é A CARROÇA FANTASMA de Sjostrom.

MEU PAI FAZ ANIVERSÁRIO

Dia 13 de julho, se estivesse aqui, meu pai fará 97 anos de idade. Morreu em 2008, com 82. Não sofreu, de todos aqui em casa era o único sem neurose aparente. Era um homem do tipo que está acabando. Levava um pente no bolso, maços de dinheiro vivo, todas as notas colocadas no mesmo sentido, quatro bolos amarrados com elástico. Ainda me lembro da rapidez que ele tinha em contar dinheiro. Usava sempre camiseta branca por baixo da camisa. Era questão de higiene. Talco nos sapatos, nunca usou um tênis. Aliás, ele nunca saiu a rua sem vestir uma camisa, seja manga curta ou longa. Camiseta nunca. Sua juventude é aquela dos anos de 1940, uma juventude que ainda não tinha o conceito de teenager. -------------- Fazia a barba todo dia, com gilette de verdade, aquela que corta muito ( minhas primeira barbas foram com essa Gillette, aquela que tinha um cara de bigodinho na embalagem. Nunca entendi como ele conseguia se barbear sem se cortar ). Após a barba, lavava o rosto com àgua Velva, o cheiro dela é o cheiro de meu pai. Punha talco no peito e ia se vestir. Eis o modelo de masculinidade para mim. Meu pai fazia ruídos de homem enquanto se vestia na madrugada. E eu ouvia do meu quarto, sempre atento a seus movimentos: o cinto escorregando pela cintura. A camisa enfiada na calça. O amarrar dod sapatos, sempre um nó bem firme, os sapatos engraxados. Verificar a carteira e colocar os maços de dinheiro nos bolsos. Um beijo na minha mãe. Uma olhada no meu quarto, eu fingia dormir. Um arroto alto e ele ia em jejum. Eram 4 da manhã. ---------------------- Ele voltava as 4 da tarde e eu o esperava ansiosamente. Nunca me dei com meu pai, mas ele foi e é o amor da minha vida. Talvez por sempre ter tido um relacionamento fácil com minha máe, meu pai foi na minha vida um mistério, uma saudade e uma falta. E um ciúme, pois ele se dava muito bem com meu irmão mais novo, eles eram realmente amigos. -------------- Meu pai chegava e não falava com ninguém. Ia ao quarto, tirava os sapatos, colocava o dinheiro na gaveta, lavava o rosto, e só então abraçava o cachorro que a tudo observava. Uma cerveja gelada. O almoço. Um banho, sempre barulhento, e deitava no sofá onde lia o jornal e tentava ver TV. Mas adormecia. Por mais de 40 anos esses foram os dias de meu pai, de segunda à sábado, sempre assim, os mesmos gestos. E saiba, ele jamais perdeu o sono ou a fome. Meu pai dormia. Muito. -------------- Minha mãe pedia dinheiro, eu o evitava, meu irmão sabia lidar com ele: brincava. Meu pai reclamava que ninguém sabia falar com ele. Era verdade. Mas ele sabia lidar com isso, dava de ombros e esquecia. Nunca vi alguém com tamanho poder sobre sua mente. Ele dormia quando queria e esquecia o que não lhe fazia bem. Era mais que prático, era quase mágico. ---------------------- Veio para o Brasil em julho de 1950 e encontrou aqui um mundo de paletós brancos e muitas chances de vencer. Portugal era medieval então. Viveu até os 24 anos em vila que ainda não tinha eletricidade nem água encanada. Casas de pedra. Animais morando na cozinha. Minha distância do mundo medieval é de apenas uma geração. Então ele briga com o pai e vem para cá. Vai morar na Barra Funda e depois Caxingui. Eu venho quando ele já tem 36 anos. --------------- Penso o que meu pai pensaria do mundo absurdo e idiota de hoje. A miss Holanda tem um pênis. Fumam maconha nas ruas. As mulheres se esforçam para parecer feias. O clima de rivalidade boba nas ruas. A hiper violência à espreita. O uso desenfreado de palavrões em todo meio. A transformação das pessoas em zumbis incomunicáveis. O despudor do roubo e da corrupção. A derrubada de casas, ruas, praças, avenidas. O fim da tal cordialidade brasileira. Penso que ele não se revoltaria, ele ignoraria. E zombaria. Ele era bom em zombar. Teria o mesmo sentimento que tenho hoje: Este não é meu mundo porque essa gente não é da minha cultura. Mas a vida é a mesma de sempre, embora essa cultura lute para dizer que não, que agora tudo mudou. ----------------- Ah sim, meu pai seria fã do Messi e do Ronaldo, mas perceberia, a copa do mundo provou, que eles são o fim de uma linha. Os jogadores perderam individualidade, Mbappé é um jogador que todo grande time tinha. E não faz muito tempo isso. -------------- Meu pai amava faroestes porque ele acreditava em herois. Ele sabia que sem eles as pessoas perdem direção. --------------- Termino dizendo que meu pai usava um bigodinho fininho, daqueles tipo Errol Flynn, um modelo de bigode que a maioria dos homens usava nos anos 40. Meu pai, como esse modelo de bigode, não teria lugar para o mundo de 2023. E eu sei que é o mundo que perdeu.

NÃO VOLTE, NUNCA

Não volta ao passado, pois o homem-menino que voce foi não será nunca mais. Então, creia, todo reencontro é um encontro e nunca um renascer. -------------- Percebo isso, de novo, ao comprar algumas revistas da Editora Ebal, publicações de 1968, 69... Alegria ao achar, alguma alegria ao comprar, e uma decepção imensa ao abrir e ler. Porque assim como o reencontro com um antigo amor não é um encontro com o sentimento antigo, voce mudou, ela mudou, o mundo mudou; abrir uma revista que voce tanto queria aos 12 anos de idade não satisfaz um homem que já passou por tanta coisa. ------------ Não se compra uma epifania. Eu já as tive e sei como acontecem. Elas te tocam sem serem chamadas, sem a espera, sem preparação. Andando numa rua da Vila Nova Comceição, cinco da tarde, de repente me sinto como eu era exatamente aos 6 anos de idade. Uma doçura triste, uma sensação de ter sentido aquilo antes, um tipo de reencontro comigo mesmo. Reencontro que não aconteceu com as revistas em quadrinho. ---------------- Porque eu queria a sensação de 1974, sete da manhã, indo à banca, segunda feira, ver as revistas que haviam acabado de chegar. O papel ainda quente, a tinta não havia secado direito, revistas recèm saídas da impressão. A banca colorida, uma folia para meus olhos, mais de vinte títulos, e eu com dinheiro para três. A escolha, e a volta para casa, ao frio da manhã, ansioso de alegria, o tesouro nas mãos. Nada disso pode ser repetido, as revistas agora estão secas, velhas, mortas. ---------------- Por isso eu sei, não visite a cidade onde voce viveu o paraíso em sua Lua de Mel. Não reencontre a primeira namorada. Não tente sentir de novo o sabor da torta que sua avó fazia. Serão decepções e ao voltar voce perde a lembrança perfeita. Deixe seus tesouros onde eles estão, dentro de voce. E procure viver uma emoção nova, nunca antes provada. Vá sempre adiante, levando em sua mente a lembrança perfeita e coletando novas memórias, novas sensações, novas ideias. Recordando voce pode, ocasionalmente, sentir parte daquilo que um dia foi vivo e fresco, mas tentando voltar, fisicamente, ao lugar, à coisa ou a pessoa, voce encontra apenas uma ruína, uma sombra, um lugar que parece caricatura daquilo que um dia foi. Nem tente. Vá em frente.

MEU TEMPO E SEU TEMPO

======================================== O meu tempo não é o seu tempo. E isso é corriqueiro. ---------------- Luis Schiavon morreu nesta semana e disse uma frase interessante ( frase que sinto sempre ): " O pior de ficar velho é se despedir de seu mundo. Ele desaparece dia a dia ". Não, não pense que este texto é choroso. Não faço elegias ao meu tempo. Ele existe enquanto existo. E tenho orgulho em ser dele e não deste. Muita coisa se foi, mas eu estou aqui. Sujando e poluindo o mundo de hoje. ------------------ Fui criança nos anos 60 e o que morreu daquele tempo foi o espaço. Havia espaço, não apenas uma quantidade imensa de terrenos vazios e ruas desertas, veja os mapas de então, como espaço para planejar. O futuro parecia um campo sem muros. Otimismo baby, um imenso otimismo. Nas ruas, tomadas por crianças, seja aqui seja no Japão ou em NY, o que mais lembro são dos rádios, volume alto, muita música. Música alegre. Minha cidade era muito pobre, mas não se ligava muito pra isso, porque a vida era vivida na rua. Em comunidade. Muita festa: carnaval com lançaperfume, guerra de confetes, em cada rua crianças jogando água em quem passava. Páscoa com os Judas amarrados nos postes. Festas juninas com fogueiras nos quintais e balões aos céus. Muita pipa, pião, bola, corda pra pular. --------------- Minha melhor década foram os anos 70. Quadrinhos, as bancas tinham cerca de 50 títulos mensais de quadrinhos. Discos e revistas de mulher pelada. Foi uma década colorida, de rock e de surf na alma. Carros amarelos, laranja, verdes, camisas de estampados absurdos, calças rosa e roxa. Tudo era exagero e eu exageradamente só pensava em mulheres e rock. Longos cabelos, longas noites na rua, longas conversas, Amigos vinham em casa sem avisar, porque ninguém tinha telefone, então pra ver alguém tinha de ir lá e correr o risco de dar com a cara na porta. Normal. No fim da década veio a discoteque e a coisa mudou, agora a gente tinha de ser elegante. E saber dançar. Adorei. ------------------- Os anos 80 foram uma chuva de cocaína. Todo mundo cheirava, era barato. Década de se sair toda noite e voltar com o sol. Eu detestei essa década desbundada, onde se falava muito, onde todo mundo parecia histérico, onde nada fazia sentido nenhum. Foi minha década pesadelo mas também minha década de apaixonado, em love por livros, filmes, meninas, praias, festas. Tudo sem regra, tudo free. Foi o tempo mais livre, mais irresponsável, mais over que eu vivi. ------------------ Nos anos 90 começaram os primeiros anúncios do que somos hoje. Mas ainda era louco. Foi um tempo que tentou pegar o melhor dos anos 70 e juntar ao que havia de bom dos anos 80. Não rolou. Os anos 90 foi um replay dos anos 70 em modo cínico. De repente tudo que era dos anos 70 era cool: filmes, discos, cabelos, roupas, modismos, tudo feito em 1976 parecia cool em 1996. Mas a coisa era fake, 1996 tinha uma frieza e uma melancolia que não havia em 76. --------------------- Então veio 2000 e logo veio a queda das torres e o mundo virou uma merda. A propagação do medo fez de nós um bando de dedo duros sem trégua. É um mundo de pavor, de cuidados, de receios e de policiamento absoluto. Quem nasceu dentro desta paranoia não pode a perceber, isto é tudo que se conhece, mas para a minha geração a coisa é ridícula. ------------------- Meu mundo tinha Paulo Francis e Nelson Rodrigues. E eles seriam impossíveis hoje. Meu mundo tinha Von Karajan e George Solti. Eu vivi sabendo que Dali e Miró estavam vivos. E fui acostumado a esperar um livro novo de Saul Bellow, Norman Mailer, John Updike e Graham Greene. Eu conheci o cinema lendo sobre a estreia dos novos filmes de Bunuel, Truffaut, Kurosawa e Bergman. Quando comecei a ir ao cinema sozinho, aos 13 anos, ainda produziam filmes gente como Hitchcock, Elia Kazan, Vincente Minelli e pasmem!, George Cukor!!!! Kubrick e Fellini estavam cheios de energia. ----------------- Aqui no Brasil a nova música tinha Secos e Molhados, Alceu Valença e Fagner. O país crescia a 12% ao ano. Mais que Coreia do Sul ou Singapura. Tivemos nossa chance. Mais uma. 1988 mataria nossas chances. ------------------ Esse é meu mundo e todo dia eu vejo um pouco dele sumir. O primeiro sinal faz muito tempo, foi a morte de Lennon em 1980, um sinal de que minha infancia estava partindo. Depois foram centenas: desde a casa de minha ex que é demolida, a rua que fica cheia de prédios, o amigo que morre ou enlouquece. -------------------- Mas o fim de meu tempo não é exatamente a morte de um guru ou a destruição de uma memória física, a morte do meu mundo é muito mais cruel e muito mais sutil, é o fim de um modo de viver, de pensar, a morte de valores e de sonhos. É o fim do "numa boa", a extinção do "eu quero é mais", o silenciamento do "é proibido proibir", tudo isso trocado por coisas, para mim ridículas, atitudes que cobram de todos uma espécie de eterna guarda, eterna tensão contra "o inimigo", inimigo que não existe, que é um espantalho criado para unir os diferentes em pseudo igualdade. ----------------- No meu mundo ser diferente era ser melhor. Hoje são todos falsamente iguais. A diversidade dos que pensam o mesmo e são diversos apenas na fachada. ------------------------ Meu mundo ria, ria muito. Ria do careca, do gordo, do magro, do baixo, do alto, do preto, do portuga, do gringo, do paulista, do baiano, do gaúcho, de todo mundo. Rir era recomendado e se voce era alvo de riso, então que se crie uma piada melhor como resposta. O brasileiro era famoso por contar piada. Por rir. Se contava piada no ônibus lotado, na praia, no bar, na escola. E acima de tudo, se admirava a mulher.... Se amava a beleza, as curvas, o sorriso da mulher. Drummond, Vinicius, Bandeira, eles falavam da mulher que passa, do molejo, do bamboleio, da felicidade que era a presença da mulher. ------------------------- Preciso dizer que isso morreu? As feias tiveram sua vingança. --------------------- Irreconhecível mundo meu. Amado mundo meu. -------------------Penso então que ele não morreu. Na verdade ele passa, eternamente, em looping, bamboleando como aquela mulher indo à praia. ---------------- Não falo de mulher por acaso, a beleza e o elogio à beleza são hoje atitudes rebeldes. Nada parece mais revolucionário que amar a beleza e elogiar a mulher como ser mágico e encantado encantador. -------------------- Então encerro dizendo que elas ainda existem e ainda são lindas e que o eu de 13 anos, que as descobria e as amava como fossem elas mágicas, tem seu canto em meio a melodia da moça que passa ao caminho do mar. Pois a moça bonita e o mar, esses não mudam, não morrem e resistem. E eu, ainda aqui, e esperando viver pelo menos mais 20 anos, testemunho, alimento, insisto e faço presente o meu mundo vivo. E como diria o poeta maior: Bebete vão bora pois já tá na hora!

MEU PAI ERA UM ESTOICO ( E EU ERA UM HEDONISTA ENVERGONHADO )

Se Portugal tivesse entrado na Segunda Guerra, meu pai teria idade para ter entrado nela em 1944. Ele foi pai aos 36 anos, ou seja, nossa diferença de idade era grande. O mundo onde meu pai viveu até os 30 anos não tinha TV, pouco rádio, sem telefone, quase sem jornais. Em 1950, aos 24 anos, ele pegou um navio e levou 10 dias de mar para chegar ao Brasil. Foi morar na Barra Funda, na época um lugar de fábricas e cortiços. Trabalhou com um primo, bar, prosperou e um dia se casou, em 1961. No ano seguinte eu nasci. No mundo que cresci, um baby boomer, já havia TV, muito rádio. Gosto de lembrar que nasci no ano em que os Beatles lançaram seu primeiro disco, Bob Dylan idem, ano do primeiro James Bond e da primeira Pantera Cor de Rosa. Psicose e Lawrence da Arabia eram os grandes filmes. Foi o ano de lançamento dos Flintstones. E os Rolling Stones faziam shows. No meu mundo a vida hedonista já dava as cartas. A ideia era: seja feliz, seja jovem, consuma sua juventude, viva intensamente. O mundo era vendido como shopping center, lugar das maravilhas, uma alegria ter 20 anos e poder estar vivo. --------------- Mas meu pai não era assim. Sua filosofia era radicalmente contra tudo isso. Na verdade nem era questão de ser contra, meu pai ignorava esse mundo. Ele era um estoico, e o mundo do estoicismo era o mundo de 99% das pessoas de sua geração. Não havia em meu pai nenhum traço da ideia de que o mundo era uma festa, ou de que todos nós tinhamos o direito de ser feliz. Sua filosofia era a de que nós dormimos e comemos e entre essas duas atividades, as mais importantes, nos distraímos com besteiras futeis da mente. Não havia como eu aceitar uma visão de vida tão antiga, daí nossas brigas eternas. Para meu pai, a vida era uma luta sem fim e sem trégua, felicidade era uma abstração vã e contentamento era sim uma ideia possível. Entenda: Felicidade está ligado à completa ausência de dúvida ou trsiteza, contentamento se liga ao repouso satisfeito. Meu pai não tinha neuroses visíveis, sua vida era simples, e apesar de ver o mundo como luta, ele era contente. Comida, sono e uma cerveja eram o que lhe bastava. Felicidade? Isso não existe. ---------------------- Ele estava certo e vejo isso pelo fato, simples, inquestionável, de que em casa ele foi o único "não ansioso". Ele não tinha esse sonho de felicidade, essa auto cobrança de alegria, ele não vivia a obrigação de ser jovem para sempre. Meu pai foi um senhor aos 40 anos, um senhor respeitável aos 50, um velho aos 60. Apesar de sempre aparentar menos idade do que tinha, isso para ele era indiferente. Seu contentamento era outro. Estoico sem o saber, crescido dentro do estoicismo, ele intuia que tudo era caminho para a morte e que a única coisa que contava era viver dentro dessa certeza. Tudo morre e nada dura, portanto a felicidade é impossível. Daí a ansiedade, pois se obrigar a ser feliz é uma luta perdida. Não há felicidade possível dentro de um corpo que morre a cada dia. ------------------- Triste ele? Nem um pouco. Entenda: ele não foi educado para ser estoico, não lhe impuseram isso. Ele era como seu pai, seu avô, seu bisavô, não havia ruptura alguma. A vida é isso e pronto, não se vai contra um fato tão óbvio. Apaixonado por filmes de faroeste, ele percebia naqueles cowboys a filosofia estoica colocada em termos claros: um homem solitário em briga eterna contra seu meio. Um cowboy não quer ser feliz, ele quer se safar ou resolver um conflito. E após vencer não alcança a felicidade. O cowboy fica contente e parte para a estrada. Só. ----------------- Ele também amava Sinatra, um estoico que vendia sonhos de felicidade. --------------- Minha tentativa de ser hedonista me levou ao vazio deseperado. O Paraíso não existe na Terra e ser um amante da alegria juvenil nos leva à burrice parva da busca sem fim. Ansiedade e uma decepção imensa: Me venderam a vida como festa, e ela é só isso?????? --------------------- Hoje eu entendo meu pai. E o entendi na hora certa.

QUANTO MAIS VELHOS MAIS NOS TORNAMOS NÓS MESMOS

...quanto mais velhos mais nos tornamos nós mesmos, então morrerei mouro, no deserto, sem dúvidas na alma, à procura do fim. -------------- No post abaixo, sobre AS MIL E UMA NOITES, falo do assunto, o modo como a cultura árabe está tatuada na cultura latina. Roma e Atenas são a base da vida do Ocidente, mas o sentimento árabe tempera esse caldo, o excita, surge em cada palavra proferida. Minha origem, lusitana, traz a marca das mulheres de véu preto, das viúvas eternas, dos homens jogando cartas e as esposas na cozinha, do ciúme infernal, da princesa e da puta, da faca nos dentes. Mas há mais: a canção de amor doído, a atração do deserto, o amor exultante pela água, o terraço sombreado, as cores fortes, a pimenta, a dança que move a bunda, o violão, os silêncios que duram dias, as brigas em família por motivos de honra, o desejo pela não-ação, a fidalguia, o banho, a miragem.... -------------------- Diferença fundamental: na cultura cristã, é o futuro que trará a verdade. Jesus há de voltar, o bem vencerá o mal, os últimos serão os primeiros, no fim dos tempos o Reino se fará presente. Na cultura àrabe o futuro foi. Ele já aconteceu. No ano 500DC, Deus falou com Maomé e esse era o futuro. Portanto, já vivemos no mundo que virá. Na visão de mundo àrabe, progresso, evolução, não fazem sentido. O homem já está em seu apogeu. E entenda: eles não dizem com isso que o auge Passou e estamos na decadência. Não! Esse apogeu cessou o tempo. Decadentes somos nós, os ocidentais que não vemos a Verdade. Que corremos atrás de um futuro que já chegou a 1500 anos. Para eles, somos como um cão que corre atrás do próprio rabo. Passamos toda uma vida almejando algo que está aqui: o futuro. -------------- Por isso que é IMPOSSÍVEL vencer uma cultura assim. Por isso que ingleses eram enfeitiçados pela India, franceses pela Argelia: a fratura da nossa cultura ficava explícita, estamos aqui mas sempre queremos estar lá. Eles não. Eles estão aqui. E lá. Porque o tempo PAROU. -------------- Por isso é impossível a assimilação do imigrante, pois como alguém assimilará uma cultura que está à procura, que não achou, que anda "como tonta" e "não vê a verdade" ? Na melhor das hipóteses, na visão deles, somos crianças, crianças que criam brinquedos, carros-aviões-celulares, mas incapazes de ver o mundo real. Não se iluda, quando nossa civilização afundar, a deles permanecerá a mesma. Pois a raiz de seu pensamento está a salvo por ser estática. Ironico isso, não?

SOBRE O LUGAR DO TEMPO E OS TEMPOS DE CADA LUGAR

Pessoas idiotas vivem em um tempo. Pessoas um pouco menos idiotas vivem em dois. Quantos tempos há? Como saber se meu cérebro foi adaptado para viver, vigilante, atento, desperto, em um tempo apenas, para poder assim o tomar para si? Pessoas um pouco menos idiotas sentem e intuem o que estou dizendo. Um grande sábio conseguirá viver em três ou quatro tempos concomitantemente. Entenda, nada do que falo é a verdade, pois toda verdade do mundo é a verdade de um tempo, de um mundo e de um modo. Apenas. ------------- O mundo de 2023 nos mostra isso de forma simplória, porém clara. Dentro das redes sociais há um tempo e logicamente, um local. Nesse mundo tudo é sempre um começo, um postar eterno que nada deixa de rastro ou de duração. Nesse mundo, sem solidez nenhuma, não há passado porque nada apodrece e não há futuro porque nada almeja a permanecer. É como uma explosão que explode sem pavio e sem assentamento de poeira. É como um orgasmo que é um jorro sem gozo, sem antes e sem paz. Mas.... se desligamos a máquina e vamos à janela há ali, explícito, um outro tempo. Muito mais nosso, particular. Ele anda ao modo do coração que bombeia e tem a certeza da morte final. Nele chove, nele faz frio, nele tudo enferruja e nasce. Todos vivem nesses dois tempos, sabendo, bem ou mal, que eles existem e não se misturam. ????? Sim, não se misturam e isso engana muita gente. Eles não se misturam. --------------- Mas eu vejo outros mundos quando olho nos olhos do meu cão. E no mundo do meu cão não corre o meu tempo, é um outro. Assim como recordo que meu tempo aos 7 anos de idade não era este onde escrevo isto. Como Bergson dizia, há tempos que duram e outros apenas passam. Então, se eu abrir meus olhos em 1974, por exemplo, o que me chocará não são as roupas ou os carros. Será o tempo que lá corre e dura. As pessoas se moverão de outro modo e mesmo o som de suas vozes ecoa em outra velocidade. A luz que incide na rua ilumina de modo alternativo e os cheiros que chegam ao meu nariz não são os daqui e agora. Porque 1974 foi e é outro feixe de tempo. ---------------- Cada ato humano no tempo tenta vencer o próprio tempo onde se insere. E quanto mais atrelado ao aqui e agora mais rápido e sem substância esse tempo irá ser. Desse modo, o tempo da notícia, da política, da diversão barata, é um tempo que se esvai como pó. Já a música tem um tempo que é dela e só dela. Três minutos que parecem duas horas ou duas horas que voam como um segundo. As ações mais sábias brincam com o tempo e o dominam. O olhar que mira além daqui se livra do agora. Mas há mais... --------------- Quando este mês se desfaz em chuva ele nos convida a entrar em seu tempo. Mas voce foge desse convite e irritado liga o video game. Imediatamente voce entra em conflito com o tempo e se deixa alienar. Esse o veneno da tecnologia: ela nos dá a chance de fugir do tempo por todo o....tempo. E o convite do momento, que é sempre um chamado harmônico, é perdido. A pessoa se fecha no tempo digital e se exila de qualquer outro. De certo modo ela morre para os tempos possíveis. ------------ Muitas vezes confundimos o lugar que amamos com o tempo que amamos. Exemplo. Eu amo a Serra do Mar. Não há lugar no planeta mais belo. E entendo que aquilo que mais amo na Serra é o modo como o tempo lá dura. O pássaro que ergue voo e passa no céu dura mais que qualquer pássaro aqui. Cada gota de chuva lá escorre mais viscosa que toda gota daqui. A voz falada é mais redonda e quica nos ouvidos e o odor da comida permanece no nariz. A melancolia do fim de tarde é uma sinfonia e nunca simples canção e o sol passa desfilando como um leão cheio de preguiça. Não me leve na brincadeira, estou falando sério, o tempo em cada lugar é o tempo daquele lugar. Assim como existe gente que nos dá, sem saber como e sem querer o fazer, seu tempo. Ela espalha o tempo dela ao redor e esse dom é recolhido por aquele que está desperto. Artistas, professores e padres deveriam ter sempre esse dom. São raros os que o possuem. ( Não confunda com gente lenta ou gente histérica. Estou falando da qualidade, do valor do tempo. Uma pessoa acelerada esvazia o tempo e o deixa anônimo; uma pessoa lenta e plácida pode fazer do tempo um peso inútil. Eu falo do ambiente, do estar dentro do tempo e nunca falo do simples e banal velocímetro ). ---------------------- Porque estar aqui é estar no tempo e portanto o tempo é um aqui, um lugar.

OUVINDO MOODY BLUES E PENSANDO NO TEMPO

Eu ouvi um CD dos Moody Blues gravado ao vivo no show da Ilha de Wight em 1970. Os caras estavam no auge e faziam um som psicodélico cheio de melotrom e uma bateria muito boa. Venderam muito. Gostei do disco, tem uns momentos que nos fazem recordar a emoção de ouvir Satanic Majesties Request pela primeira vez. Ou Traffic. Mas o assunto aqui nem é esse. Durante a audição eu pensei: o rock em 1970 era jovem. Não havia gente com mais de 30 no meio. Os nomes dos anos 50, que em 1970 tinham uns 35 anos, eram olhados como vovôs. Porém, mais que isso, ouvindo os Moody Blues, eu percebo que o estilo de som, as letras, eram como se feitos por e para gente com 16 anos. Mesmo os Velvet Underground, Dylan ou Zappa faziam coisas de jovens de 16 anos. No caso deles, jovens muito dotados, mas com aquela ingenuidade, alegria, desespero, deslumbre típicos da adolescência. Quando vem os anos 70 a coisa muda e o espírito passa a ser o do universitário. Mais sério, mais vaidoso, mais pretensioso. E incrivelmente imaturo. Podemos ir adiante e falar que os anos 80 têm a cara de trintões materialistas e começando a ter medo de envelhecer. Há na década de 1980 a obsessão pela saúde, moda, sucesso, relevância, típica de um adulto jovem. E também seu cinismo e sua falta de paixão. -------------- Se eu for adiante terei de dizer que os anos 90 tiveram o espírito quarentão. E eis um fato: Foi a primeira década realmente saudosista. Melancólica. Reciclada. Misturada. Bombada. Aditivada. Foi, pela primeira vez, um momento em que o rock começou a parecer velho. Coisa de tio. Se eu falar do século XXI a coisa vai se tornar chata então melhor parar aqui. A partir de 2000 o rock deixa de ser coisa de jovem e passa a ser estilo de quem é meio saudosista, meio fora de moda, meio nerd, meio mal humorado. Ou seja, nada jovem. Terei irritado voce? Não ligue não. Continuo ouvindo rock. O estilo representa 80% do que ouço e consumo. Mas que não é mais "símbolo da juventude" ou "tendência atual", isso não é desde pelo menos 1994. Desde quando virou quarentão.

VELHICE

Haverá quem saiba envelhecer hoje? Não me conte que foi sempre assim, que o mundo é o mesmo de sempre e que envelhecer sempre foi desgracioso. Pois eu acabo de escrever abaixo sobre um homem que soube envelhecer, eu sei que soube porque eu vi. E eu falo e digo que o rocknroll que tanto adoro e adorarei sempre, nos deu uma maldição terrível: nos roubou o dom de saber envelhecer. Porque nada é mais patético que ver Ozzy ou Steven ou Mick ou mesmo Paul e perceber que eles tentam e tentam e lutam e se negam na luta por permanecer rockers. E eu adoro todos eles e sempre adorarei. Não não estou dizendo que envelhecer bem seja usar um terno preto ou parar de fazer sexo ou dirigir um sóbrio Toyota. Eu, se pudesse, teria uma moto enorme e uso tatuagens e aneis e ouço e sempre vou ouvir rocknroll e rap e tudo mais. O que falo é sobre postura. Sobre admitir as dores as rugas as falhas as impotências as saudades a melancolia admitir o tempo que se foi. Falar a língua dos velhos. O que falo é sobre admitir que voce é o que voce é agora. Voce não é um futuro, voce não é um projeto, voce não pede desculpas porque voce é aquilo que voce é agora. Isso é voce, pronto, isso é ser responsável. Ser velho é ser pronto. Então envelhecer graciosamente é aceitar sua responsabilidade pela vida que voce viveu e voce vive. E ser firme em dizer: eu sei pois estive lá. E deixar de tentar agradar os jovens e deixar de tentar ser algo que não se é e deixar de tentar correr atrás e saber que voce tem pouco e tem muito. Não ser o velho cômico nem o velho jovial nem o velho sábio nem o velho frágil nem o velho ousado nem velho nenhum. Ser apenas o que voce é, um tempo vivido, um tempo ido, memórias e dores, doçuras e amargores, frustrações e uma coragem. Um homem velho que passa na rua e sente desejos e sente dores e está vivo mas não quer mais saber não quer mais ser não quer mais tentar ser jovem. Em paz com seus joelhos com seus ombros com sua próstata com seu humor com sua saudade. Olhando a morte olhando a sorte perdida olhando a vitória de estar aqui olhando a mulher que passa. Olhando o cara que ele foi. Haverá no futuro quem saiba envelhecer?

USUFRUA SUA VIDA

Tenho uma amiga, escritora, de direita, então voce não a conhece, que fez um belo texto sobre algo que muito a surpreende. A incapacidade das pessoas usufruirem uma experiência. Ela tem amigos que passaram por aventuras, viagens incríveis, conheceram pessoas fantásticas, mas que não tiraram nada do que viveram. Ela não está falando de aprendizado. Fala de simples narrativa, de ter o que contar, lembrar, descrever. Mais que falta de vocabulário, são pessoas cultas, que possuem leitura, o que ela precebe é a incapacidade de maravilhamento. A alma, ou coração, está morto. Ela diz que nunca houve tanta quantidade de maravilhas ao nosso alcance, mas estranhamente, nunca houve tantos zumbis no mundo. ------------ Falo à ela da minha experiência, tudo que escrevo neste espaço sempre é baseado em minha história pessoal, e lhe conto que meu ano mais rico em memórias, maravilhamentos, descobertas, foi aquele que aparenta ser o mais rotineiro e que sem dívida foi o mais solitário. Passei um ano, por razões que não cabe aqui dizer, sem amigos. Larguei a escola aos 15 anos e me distanciei dos amigos que tinha. Foi um ano em que minha rotina consistia em ler, ver TV, pouca, ler mais, ouvir música, ler. E dentro dessa vida, tão aparentemente banal, eu tiro os momentos mais mágicos, plenos, ricos, complexos, de toda minha existência. O que me faz crer que a pobreza atual se deve a ausência de solidão física, de tempo morto, de nada para fazer, de vazio espacial. De silêncio. Eu sei por experiência própria que a internet mata a alma. A telinha nos aliena de nós mesmos e nos torna um objeto que capta coisas e não as usufrui. É preciso vazio, vazio de tempo e de espaço para se absorver um livro, um filme, uma canção. É vital ter vazios para amar uma paisagem, a cor de uma manhã, o ar frio de uma noite. O aumento da velocidade diminui a apreciação. Comer com pressa é viver com pressa. -------------- O córrego que cruzei, numa estreita ponte de madeira, aos 10 anos, é uma lembrança muito mais rica que a primeira viagem à Paris. Porque cruzar aquela ponte foi um momento parado na vida, foi uma ação de total concentração, foi uma narrativa sem acessórios. Já a viagem foi uma ação entre várias, uma imagem em meio a centenas de outras imagens, uma corrida dentro do tempo que voa e se desfaz. Desse modo, o eu que cruza a ponte vive para sempre dentro de seu tempo particular, e o eu que desce do hotel em Paris faz parte da história do mundo, não da história dele. -------------- Acho que aí está o segredo. A vida do garoto de 15 anos que fui ERA DELE É SÓ DELE. A vida do cara de hoje, conectado no mundo 24 horas por dia, é a vida de todos, do planeta, do mundo. O que ele vê é aquilo que o mundo vê, portanto ele não pode e não sabe mais ter uma experiência só dele. Aos 15 eu lia meu livro, livro que eu pensava só eu ler, só eu ter, só eu ser como eu era. Hoje leio sabendo quentos mais estão lendo, quantos mais comentam, quantos mais estão comigo. O livro não é meu, é do mundo. A experiência não é minha, é geral. ---------------- Hoje é preciso uma força imensa para criar algo de único, particular, individual, só seu. Por isso a pobreza de experiências. Ver um disco voador no Vietnã não é mais uma coisa úncia e sagrada. É só mais um post sobre ovnis na net. Graças a Deus eu vivi meus 15 anos em 1977. Completamente isolado. Só. Com um Voltaire só meu. Um Truffaut que só eu conhecia. Um Roxy Music que cantava só para mim. Minha casa parecia ficar em uma rua sem vizinhos. Meu quarto era uma caverna secreta. Eu era o descobridor e inventor de uma vida, a minha. Foi um ano mágico. Porque foi e continua sendo parte de mim e só de mim. Dura. Vive. Respira e é pra sempre. E é assim.

UMA NOITE ETERNIZADA PARA SEMPRE OU MAIS UM POUCO...

Ela levou um gravador. Pesou e o rolo de fita atrapalhou sua noite. Mas valeu a pena. A banda não faltou. Era 1969 e havia por volta de 60 pessoas no lugar. Ela ficou sentada numa das mesas, bem na frente do palco e ligou o PLAY REC. Agora chove e é uma primavera da década de 2020. os anos vinte de outro século. Não há como haver uma gravação AO VIVO mais ao vivo que esta que voa pelo meu quarto. Estranhamente, Lou Reed parece ter 18 anos aqui. Eu sei, nessa noite ele já tinha 26, mas a gravação passa uma energia tão real, há uma PRESENÇA tão volátil, que fico testemunhando um cara de 18 anos tentando não desistir. Em 69 o Velvet já era. Andy era outro, Nico se fora, John Cale não havia mais e Tucker saíra para ser mãe. A onda passara. Em apenas 2 anos tudo mudara. De ESTRELA DO FUTURO eram os esquecidos do passado distante. Só dois anos cara! Mas nos anos 60 dois anos eram dois séculos! O que era IN em 67 era agora OUT. E o Velvet, IN para os mais antenados de NY, era agora, em 69, menos que OUT. Vozes ao redor: um cara diz estar muito doido, outro pede cocaína. Uma menina ri. Conversam enquanto a guitarra sola. Tá tudo gravado. A banda toca como se fossem novatos, o povo não tá nem aí. Engraçado, eles não sabem não sabiam que mais de 50 anos passados aquela noite ainda tá viva, aqui no Brasil. São 45 minutos de show e eles tocam bem, rocknroll de verdade. Billy Yule tem uma bateria de baile, bem legal, e Doug Yule, pobre Doug, tava tão apaixonado por Lou que imitava a voz e o jeito do cara. Ele canta duas faixas. Alguém pede Heroine e Lou diz que esta banda não toca Heroine. O set é perfeito, mas quem liga? Não param de falar, esse bando de malucos no Max. O CD não mente, eles estavam lá pelas drogas, a banda é apenas o som do lugar. Mas uma menina levou um gravador e fixou pra sempre aquilo tudo. TODOS OS DISCOS AO VIVO DEVERIAM SER ASSIM. Porque isto é um documentário de uma noite incapturável e memorável e eterna e inexistente. Sobre uma banda que começou acabando e vive para sempre por nunca ter dado certo. Caramba! Que bela definição acabo de encontrar: a banda que nunca deu certo. Mas que perdura e dura. Senhores, que puta disco!

O ALEPH, JORGE LUIS BORGES

Assim como todo novo amor modifica todo amor vivido no passado, o que passou jamais é estático, ele é vivo como o presente, cada livro lido modifica o valor de tudo aquilo que antes foi lido. O EU que leu O Aleph em 2006 é completamente outro do EU que o lê agora. Nesse meio tempo, 15 anos, eu estudei teoria literária e além disso devo ter lido mais uns 500 livros. Filmes, passeios, pessoas, atos, tudo isso faz com que minha percepção tenha mudado. O EU de 2006 ficou assombrado com a criatividade de Borges, o de 2021, menos, bem menos. --------------- O fato é que nesses 15 anos eu li aquilo que Borges amava e então a cada frase do argentino eu vejo a fonte em que ele bebia. Em 2006 eu nada sabia de Hesíodo ou Edmund Spenser e dava valor muito baixo a Poe, Conrad, Stevenson, Wells, Chesterton e às MIL E UMA NOITES. Borges não foi um gênio como eu pensei um dia, mas sem dúvida, foi um escritor maravilhoso. --------------- Disse uma vez que existem dois tipos de autores, aquele que narra histórias criativas e aquele que cria personagens vivos. Raramente alguém conseguiu fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Cervantes é um. Borges conta histórias criativas, o personagem que narra é quase sempre ele mesmo e seu interesse não reside na vida interior dos tipos, mas sim na ação e nas sensações que nascem. O que mais admiro em um autor é o poder de penetrar na mente de uma personagem viva. Borges não é assim. ------------------- Labirintos, mundos dentro de mundos, tempo que contém todo o tempo, universo que é o Kosmos e ao mesmo tempo partícula que reflete todo o Kosmos....tudo isso se tornou cultura POP neste século. E nesse sentido, Borges teve azar. Ler o Aleph agora traz à lembrança algo muito próximo de filme da Marvel. ----------- Borges sempre será um grande escritor, óbvio, mas sua maravilhosa criatividade hoje parece bem menos maravilhosa e muito menos criativa.

DÉCADAS

Vivi já as quatro décadas centrais da minha vida. Todo mundo as vive se não morrer antes dos 50. São as décadas do apogeu de seu amor às novidades da vida. Depois dessa fase, voce usufrui com mais calma aquilo em que se sente "em casa". Minha décadas foram os anos 80, 90, 2000 e 2010. Uma pena. O tempo que os deuses me deram não foi dos mais ricos. Interessante sim, rico, não. --------------- O momento mais importante desses quarenta anos foi a queda do muro de Berlin. E disso não há dívida alguma. O grande avanço da ciência foi a internet. Imenso avanço. Mas me parece que se eu fosse vinte anos mais velho eu poderia dizer que a chegada do homem à Lua e a televisão eram os tais momentos top. A geração do meu pai, as décadas dele foram os anos 40, 50, 60 e 70, foi mais dramática. Para eles o maior momento foi a bomba sobre o Japão. E o avanço da ciência, a invenção dos antibióticos. Mas é de arte que vou falar, e sem saudosismo, digo que pra minha geração a coisa foi de uma pobreza extrema. --------------------- Qual o grande escritor que escreveu seus mais importantes livros entre 1980-2019? Difícil né? Existem dezenas de bons escritores. Dezenas. Li nesses anos muito contemporâneos. Gente boa como Cees Noteboom, Le Clézio ou Transtromer. Há muito mais. Mas o único que me impressionou como gênio, que eu colocaria na altura de Nabokov, Saul Bellow ou Kawabata, é o alemão Sebald. Em seus livros topamos com a inteligência criativa que faz de um ótimo escritor um ser genial. Não há mais ninguém desse naipe. Temo que no futuro algum idiota diga que minhas décadas foram as de Saramago ou Mia Couto. Jamais! Se a inteligência ainda existir em 2050, meu tempo será de Sebald. ------------------ Já o tempo de meu pai foi de Nabokov, Bellow, Murdoch e Greene. E de um monte de poetas eternos. Não citarei mais seu tempo. Deixe meu pai em paz. ( Ele nasceu em 1926 e se foi em 2008 ). ---------------------- De 1980 até 2019 vários diretores de cinema tiveram auges de cinco ou dez anos e depois se foram. Infelizmente sou obrigado a dizer que Spielberg é o único que esteve no topo por todo esse tempo. Scorsese vem perto. E é só. Não me diga que Bergman ou Kurosawa fizeram ainda grandes filmes em 1983 ou 1985. Suas obras são dos anos 40 até os anos 80. Falo de quem se fez nos anos 80 em diante. Não há muito o que olhar. Adoro Eastwood, mas ele não é um gênio. Adoro Tarantino ou os Coen, mas eles são terrivelmente irregulares. Em 2050 dirão, se ainda houver algo parecido com cinema, aquela foi a época de Spielberg. ------------------ Não dirão ter sido, minha época, a era do jazz e nem a do rock. Todos pensarão que todo mundo ouvia rap. Voce pode me dizer que Basquiat ou Bacon ou Freud foram os artistas plásticos deste tempo. Mas há aí um problema que já se fazia sentir em 1960-1970 e que hoje se hiper amplificou: o mundo tem tanta imagem, tanta foto, gravação, reprodução, cópia, colagem, edição, que nenhum artista que lide com imagem conseguirá ser o retratista de uma época. Não haverá o Klimt de 1990 ou o Matisse de 2006. Em 2050 pouco valor se dará a qualquer foto ou pintura de 2020. Pois tudo será demasiado. ------------------------- Queda do muro, torres gêmeas e a tal Pandemia. Mais nada. Quedas. Três quedas. A invenção da internet e sua popularização. Observe: é uma invenção que não é criada para salvar vidas ou alimentar o mundo. É informação e diversão. Pobre por si mesma. E anuncia mais algumas quedas: jornais. Grandes redes de midia. Meu tempo será lembrado como época de muitos finais. ----------------------- A geração de meu pai sofreu mais. Mas me parece que também sonhou mais e fez mais. Não há progresso real e coragem inovadora em sociedades bem alimentadas. A fome nos faz desejar e tentar. Minha época teve estômagos cheios como nunca antes na história do mundo. E desejos futeis. Tripa cheia esvazia o cérebro. É isso aí.

NO DIA EM QUE CHARLIE WATTS MORREU

Eu nunca terei como pagar aquilo que os Rolling Stones me deram de graça. Postei um vídeo abaixo, Silver Train, 1973. Quando Mick grita OH YEAH eu me recordo, imediatamente, do prazer sexual que me dava gritar o mesmo OH YEAH com ele enquanto ouvia esse disco, dançando com ele, em meio aos piores dias da minha vida. Esse foi talvez o primeiro video que vi da banda. Eu tinha 10 anos e ainda achava que Mick Taylor era Keith e que Keith era Taylor. Não fui com a cara daquele cara de dentes estragados, mas me apaixonei por Mick Jagger. Ele era o cara que eu queria ser. E que sabia jamais seria. Então eu dançava. ------------ Hoje morreu Charlie Watts e eu não senti nada. Até ver esse clip, agora. Os Stones são uma coisa tão funda dentro de mim que já moram em meu inconsciente. Vendo esse clip eu choro e não é por Watts. Eu choro por Jagger e Keith. Por eles estarem velhos. Isso não é justo. Eu não aceito isso, não mesmo! -------------- Porque aqueles caras são eles! Esses caras de 1973 são eles! Para sempre são eles. E eles só podem ser aqueles. Sim, eu ia falar de Charlie. Ia dizer que em 1973 eu também não fui com a cara daquele senhor velho que parecia não gostar da banda em que tocava. ( kkkkkkkkkkkkkkkk ). Hoje eu sei que Charlie era a nota de ironia dentro da banda. O cara que parecia pensar: cresce Mick! Cresce!.....Charlie teve uma vida foda, de sorte, de plena realização. Não há porque lamentar sua partida. Eu lamento os Stones. Lamento sua idade e a minha idade e a nossa idade. É isso que doi. O tempo. O miserável tempo. Pois esse Keith que vejo hoje, barrigudo, não é o Keith. E esse Jagger não é o Mick. Mas Charlie...ele sempre foi o Charlie! Ele soube envelhecer porque aos 30 anos ele já era um velho. Sábio. ----------------- Não dá mais Mick. Chega. Sem Bill a gente ainda engoliu porque ele pediu pra sair. Sem Brian já foi um bode para quem tinha 20 anos na época. Sem Charlie...com um cara naquele lugar, um Steve Jordan da vida...tocando mais alto, solando, tocando mais rápido...NÃO façam isso! Façam como o Led. Não se substitui um fundador tão fundamental. Saibam partir com graça. --------------- Ouço o Get Yer e noto, mais uma vez, em Midnight Rambler, o ritmo aburdo que ele tinha. Charlie era foda! Então faz uma coisa Mick, convence Ringo Starr a sentar na batera e faz a loucura de juntar Beatles e Stones no último show de rock da história ( Hey....Paul pode pegar o baixo....parece que os deuses querem assim ). Porque fora isso, fora uma doideira dessas, ninguém mais.

QUANDO A FANTASIA ERA A VERDADE

Perdemos a fantasia quando ficamos adultos. Se voce ainda a tem, parabéns. Se nunca a teve, lamento por voce. Dizem que artistas a preservam por toda a vida. Mentira! Artistas trabalham. Inventam, raramente fantasiam. Não confunda fantasiar com ser criativo. Fantasiar é negar o mundo que todos percebem e perceber ou querer viver em um outro universo. Aos 15 anos eu vivi o apogeu da minha fantasia. -------------- Era 1977 e eu abandonara a escola. Não tinha absolutamente nada para fazer o dia inteiro. Vaidoso, como todo adolescente é, criei uma ilusão de que eu tinha de ser uma espécie de gênio. Sim, não ria, isso é muito mais comum aos 15 anos do que voce pensa. Minha rotina era a da descoberta da genialidade. Acordava em meio a um frio glacial ( aquele ano teve um dos piores invernos da história ), e lia a Barsa. Em 1977 eu li a Barsa inteira. Ainda posso sentir a gripe que me acompanhou por todo o ano. O odor das páginas velhas. Minha cama cheia de cobertores e meu pijama de flanela. Depois disso eu ligava o rádio: Cultura FM. Música clássica por toda a tarde. Meu irmão ia à escola e minha mãe à ginástica. A casa era minha. E eu vivia a fantasia de ser um pobre gênio tuberculoso em 1877. Sim, 1877. Devo confessar: era uma delícia! -------------------- De madrugada eu lia Dickens, Bronte, Hardy, London, tudo à luz de um abajur com luz fraca. O vento batia na janela, a casa adormecida, e eu naquele universo de lama, névoa e cheiro de Vick Vaporub... Meu irmão ria de mim! Ele dizia que eu só conseguia ler se passasse Vick Vaporub no peito. -------------- Viver cem anos antes em 1977 era mais fácil que seria hoje. No Brasil de então a vida era mais lenta e essa fantasia não era muito trabalhosa. Eu andava pela cidade dentro da fantasia, imaginando uma bengala em minha mão, e os ônibus, sujos e barulhentos, eram carruagens lotadas. -------------- Havia um incômodo nisso tudo: eu me sentia velho. Hoje eu sei que só um jovem consegue fantasiar tanto, mas eu sentia então que jogava minha juventude no lixo. Toda essa vida era temperada por culpa. Ouvir música clássica e ler livros antigos era coisa de velho. Minha educação deficiente me deu esse preconceito. Preconceito bastante americano aliás. Somente após os 30 anos eu entendi que em 1977 eu fui um adolescente muito, muito romântico. E como tal, eu tinha uma musa, e seu nome era Jeanne. ---------------------- Lembrei de tudo isso agora, ao escutar Vivaldi. Ele foi o primeiro compositor clássico que amei e foi descoberto em 1977 no rádio. Começar por Vivaldi é começar do modo certo. Ele é genial e é acessível. Se voce não sentir prazer com ele não haverá esperança para voce. -------------------- Acho que em 1977 eu cultivei minha jovem alma para o futuro. Não sei que futuro e não sei que alma. Não cabe à mim saber. Das poucas certezas que tenho é aquela que diz que ter uma alma é uma conquista e não um direito. Hoje tenho a idade que em 1977 eu imaginava ser a idade certa para ouvir Beethoven.

REENCONTRO COM ALGUÉM QUE NÃO EXISTE MAIS

Estou numa escola. Nela eu estudei dos 10 aos 16 anos. Os anos formadores eu passei lá dentro. Ando pelos corredores caçando minhas lembranças. Não se força a memória. Não devo caçar. Ela pousa em nós se quiser. Voce lembra quando esquece de lembrar. -------------------- Uma coisa percebo: fui feliz lá dentro. Ao contrário de todas as escolas onde estive depois ( três ), e das faculdades ( duas ), as lembranças deste lugar são risonhas. Será pela idade que lá estive? Ou seria a época? Os anos 70... ( 1972-1978, esses meus anos lá dentro ). Entrei sob Roberto Carlos e Simonal, saí no tempo de Fabio Jr e Sidney Magal. Fiquei lá de Ziggy Stardust até a disco music. Poderoso Chefão até Contatos Imediatos. Uma grande década! Os anos 70 foram tão voláteis que a gente sente que foi uma década cheia de décadas dentro dela. Entro nesta escola no tempo dos hippies e saio na ditadura de John Travolta. E tudo isso em apenas sete anos! ------------------- Minha última sala lá, o oitavo B, foi a melhor sala de todas. Era cheia, era formada por várias panelas, era habitada por meninas lindas. Ah....a doce moda feminina de então! Franjinhas e cabelos longos...bustiê e jeans altos....saias curtas...tudo coberto pelo avental branco que tínhamos de usar. Nada na vida me dá mais saudade que meus longos cabelos de então. Não dá pra ser feliz sem cabelos voando na rua. A sensação do cabelo cobrindo a testa e deles batendo no pescoço reafirma aquilo que somos: vivos. Sansão perdeu a força ao ter seus cabelos cortados. Simbologia simples e correta: toda geração de cabelos curtos é uma geração sem graça. ------------------------ Hoje, 2021, uma professora me chama. Conversamos e descubro que ela estudou comigo, veja só, na mesma sala em 1978 ( parece ficção, não é, isso é fato ). Ela cita os nomes de então: Ligia, Flan, Mellão, Marinho, Claudia Valverde, Betty, Alimari, Leonardo, Ivo, Regina, e me mostra fotos dessas pessoas em 1978 e agora. Sim, ela é desse tipo de pessoa que mantém contato com todo mundo. --------------------------- Deus meu, elas eram realmente bonitas! A beleza sem maquiagem, de muito sol na pele e cabelo solto que se usava então. A beleza que está associada de forma íntima à saúde física. Sorrisos. A moda era ser feliz. Mas... este é um estranho texto anti Proust e sinto na alma que o tempo é irrecuperável. A idade levou tudo embora e elas e eles, que são os mesmos, não são os mesmos. De Ricardo Mellão, que posa hoje com um charuto na boca e se parece muito comigo, nada restou a não ser a lembrança de sua história. De Ligia que era linda como um fim de tarde na praia, tudo que vejo é uma senhora pesada e tingida. E de mim o que restou é a memória dos meus cabelos idos. Não, não sinto vontade de chorar e nem fico triste. É pior, sinto a frieza da ausência. Eles não existem mais. O que reencontro naquela escola é um lugar que não é aquele que deixei. E eu, e eles, somos algo que não existia em 1978. --------------------------- Espero um dia voltar ao tema com outra visão.